quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Como a vitória de Trump me fez voltar ao clássico ‘O Homem Que Matou o Facínora’, de John Ford

Os dilemas deste nosso mundo interconectado exigem o ideal de preservá-lo. A mentira, o negacionismo e a hipocrisia não podem ser adotados como valores

Cena de 'O Homem que Matou o Facínora'. Foto: Paramount Pictures/Divulgação

Quando Joe Biden e Kamala Harris venceram a eleição, revivi um filme de Frank Capra. Testemunhava o triunfo do bom senso. Nos filmes de Capra, a igualdade e a liberdade dos comuns vencem a arrogância e a sovinice dos ricos. A vitória reiterava a fé na democracia como um regime político cuja diferença está em periodicamente colocar-se em crise.

A vida imita a arte e a arte imita a vida. A vitória de Biden levou-me a Capra e o retorno de Donald Trump a um clássico de John Ford, O Homem Que Matou o Facínora. Um drama fabricado pela permanente batalha da lei que vale para todos, contra a cupidez particularista das violentas ambições de Liberty Valance.

O filme é famoso pela tese que o explica: “Quando a lenda vira fato, imprima-se a lenda!”. Ou seja: as confusões e as incertezas da realidade requerem o mito e o ideal. Os dilemas deste nosso mundo interconectado exigem o ideal de preservá-lo. A mentira, o negacionismo e a hipocrisia não podem ser adotados como valores. A mentira nos acompanha. É um mal permanente, mas não pode ser de modo algum estimulado e adotado como uma arte, como ocorre na política brasileira, que se define precisamente pela “nobre arte” de enganar os ignorantes e os trouxas numa castração eleitoral.

A vitória de Trump e sua fúria autocrática, sustentada por um narcisismo patológico e posta em prática num frenesi de decretos presidenciais que nos EUA têm excepcionalidade, nos obriga a recordar o elo entre ideais e fatos. E, em paralelo, constatar como o mundo globalizado exibe complexidades e desafios justamente porque hoje sabemos demais sobre os países-modelo. Como um carro desgovernado, temos mais fatos do que capacidade para compreendê-los. Duvidando, negando e descartando ideais o desumano triunfa e engloba os valores que asseguravam rumos e contribuíam para distinguir o certo relativo do errado absoluto.

No filme, o cruel malfeitor Liberty Valance é morto por um advogado seguro de que o crime (esse particularismo que justifica os desejos do criminoso) não pode continuar compensando. Não desejo mortes, mas espero que a fraude, a arrogância e o abuso vingativo contra o espírito americano sejam postos nos seus devidos lugares – tal como no lendário filme.

Mas é claro que perdi!

Roberto DaMatta, o  autor deste artigo, é antropólogo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.02.25

Trump, o pombo enxadrista

Ao punir aliados como se fossem inimigos, presidente americano bagunça o tabuleiro das relações internacionais. Será difícil confiar nos EUA enquanto essa doutrina errática persistir

O presidente dos EUA, Donald Trump, se autoproclama o “homem tarifa” e diz que “tarifa” é a palavra mais bela do dicionário. Analistas ainda nutriam esperanças de que essas invectivas ficassem contidas na retórica e o emprego das tarifas seguisse o padrão mais moderado do primeiro mandato. Esse otimismo foi dizimado quando Trump abriu fogo não só contra os três principais parceiros comerciais dos EUA, mas mais agressivamente contra os dois vizinhos e aliados: Trump prometeu aumento de 10% para as tarifas da China e tarifas de 25% para o México e o Canadá. Logo depois, suspendeu temporariamente as taxas sobre os vizinhos, mas a mensagem foi clara: as tarifas serão mais agressivas e generalizadas, e ninguém está seguro. Não são só batalhas comerciais contra este ou aquele país, mas uma guerra contra o comércio global.

Para Trump, as tarifas servem a múltiplos objetivos econômicos: restaurar a indústria nacional, gerar receitas e reduzir o déficit comercial. Mas dois séculos de experiência econômica demonstram que, na melhor das hipóteses, seu efeito é inócuo e, na pior (e mais provável), contraproducente. E os danos exacerbarão os problemas econômicos. Uma vez que as tarifas não serão empregadas só com fins comerciais, mas como ferramentas para coagir países a cumprir todo tipo de demanda, elas alienarão aliados. E, uma vez que são aplicadas por meio de expedientes legalmente questionáveis, degradarão o Estado de Direito nos EUA.

Algumas indústrias se beneficiarão no curto prazo, mas isso não compensará os custos repassados aos demais consumidores e produtores, sobretudo aos consumidores mais pobres e produtores menores, que, em geral, dependem mais de produtos importados.

Mesmo majoradas, as tarifas responderão por uma fração marginal das receitas públicas e não abrirão muito espaço para reduzir impostos ou a dívida pública. A balança comercial é menos afetada por políticas comerciais do que por fatores macroeconômicos, como poupança, padrões de investimento, valor da moeda ou políticas fiscais. De resto, o aumento das alíquotas tende a ser anulado pela redução das importações. E, se as importações diminuirão, as exportações também diminuirão, primeiro, porque um dólar mais forte tornará os produtos americanos mais caros para outros países, depois, pelas retaliações que os alvejados se verão obrigados a impor.

Pagando mais pelos melhores produtos que o mundo oferece, a indústria americana ficará menos competitiva. Para piorar, o protecionismo estimula o clientelismo e desencoraja a inovação, resultando em menos empregos, renda, receitas e crescimento econômico.

Se o impacto sobre a economia americana é negativo, sobre os países atingidos é ainda mais. Trump aposta nessa assimetria para conquistar outras metas, como obrigar o México e o Canadá a coibir a imigração ou o tráfico de drogas. Mas um México mais pobre só agravará esses problemas, enquanto a participação do Canadá neles é irrisória. Os dois vizinhos têm uma economia altamente integrada aos EUA por tratados de livre comércio. Além dos danos econômicos para todos, a mensagem aos aliados dos EUA é de que o país não é confiável.

A destruição da rede de alianças ocidentais é um sonho tornado realidade para adversários como China e Rússia. Economicamente, a China perderá mais com um desacoplamento comercial com os EUA, mas isso a obrigará a buscar estratégias independentes para criar novas tecnologias (como já acontece com o 5G ou a inteligência artificial). Uma China menos interdependente tenderá a aumentar, não a diminuir, suas políticas totalitárias, agravando riscos geopolíticos que as tarifas de Washington supõem afastar e facilitando alianças de Pequim com países ressentidos com os EUA.

Se há alguma verdade no bordão tipicamente americano de que não há ganho sem dor (“no pain, no gain”), nem por isso toda dor é produtiva. Neste caso, só haverá dor, e nenhum ganho. Economicamente, todos perderão. Geopoliticamente, é como se Trump fosse um pombo enxadrista, que bagunça o tabuleiro e estufa o peito cantando vitória. A ofensiva tarifária degrada a aliança das democracias e fortalece as autocracias. Ela não tornará a “América grande de novo”, só tornará o mundo mais pobre e perigoso.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 05.02.25

O governo é ruim, mas Lula dificilmente será derrotado

Presidente tem a máquina pública a seu favor, o maior partido do país, o segundo maior fundo eleitoral e controla o tempo

Lula durante cerimonia de dois anos dos atos golpistas / Foto: Evaristo Sá, AFP

Na primeira semana de fevereiro de 2021, Jair Bolsonaro dava início à segunda metade de seu mandato emplacando os aliados Arthur Lira na presidência da Câmara e Rodrigo Pacheco na do Senado. Àquela altura, o país já havia perdido mais de 200 mil vidas para a Covid-19 e, após atrasos do Ministério da Saúde, finalmente as primeiras doses de vacina chegavam aos brasileiros.

Janeiro havia sido marcado por empresários alardeando a necessidade de o governo ficar atento ao déficit fiscal, com Bolsonaro reclamando, veja só, da dificuldade de isentar o imposto de renda quem ganhava até R$ 5 mil:

O governo era bem avaliado por 31% dos brasileiros, segundo o Datafolha, enquanto 40% o consideravam ruim ou péssimo — índice que passaria de 50% no segundo semestre daquele ano.

Vinte meses depois, Bolsonaro perdeu a eleição para Lula pela menor margem da História, 1,8 ponto. O governo era recheado de personagens folclóricos como Ernesto Araújo nas Relações Exteriores, Eduardo Pazuello na Saúde e o pastor Milton Ribeiro na Educação. Mas o poder da máquina pública embalou o crescimento eleitoral do presidente, que cortou impostos sobre combustíveis, turbinou o Bolsa Família e o vale-gás e criou auxílio a caminhoneiros e taxistas.

O governo Lula é um deserto de ideias, com um pequeno oásis no Ministério da Educação. Foi de lá que saíram as duas únicas propostas ao mesmo tempo inovadoras e relevantes em 25 meses — o Pé-de-Meia e o Mais Professores, que, diga-se, ainda precisam ser tiradas do papel. A percepção de que o governo não tem entregado o que prometeu está escancarada nas pesquisas. Só que ser medíocre é diferente de ser trágico.

Na semana passada, quando Gilberto Kassab afirmou que, se a eleição fosse hoje, Lula perderia, o alarme soou. Dois dias antes, uma pesquisa Quaest mostrou pela primeira vez a desaprovação do governo superando a aprovação. Ontem, o mesmo instituto revelou que as intenções de voto em Lula para 2026 flutuam entre 28% e 33%, a depender dos concorrentes. É pouco para o petista. Em julho 2021, na primeira pesquisa do instituto mirando as eleições de 2022, Lula tinha 43%, enquanto Bolsonaro alcançava 28%.

Há um novo Brasil que Lula e o PT não entenderam. Um país de trabalhadores informais que não almejam necessariamente carteira assinada, de microempreendedores que veem o Estado e sua máquina arrecadatória como inimigos, de adultos que chegaram à universidade, mas não viram se materializar um futuro luminoso.

A crise do Pix mostra o tamanho da dificuldade do governo em compreender o país. Para piorar, os adversários entenderam. É a direita que apontou o interesse arrecadatório da Receita, e é ela que tem mostrado quanto a proibição de as plataformas fazerem mototáxi impacta a vida dos trabalhadores que pagam passagens caras e perdem horas se deslocando em metrôs lotados e ônibus engarrafados.

Ainda faltam, porém, 20 meses para as eleições de 2026. Lula tem a máquina pública a seu favor, o maior partido do país, o segundo maior fundo eleitoral e controla o tempo. A oposição está desorganizada, e a decisão de Bolsonaro de não apontar sucessor tende a mantê-la assim.

Enquanto os governadores que quiserem disputar a Presidência precisam se desincompatibilizar em abril do ano que vem, Lula poderá tomar a decisão até agosto.

Reservadamente, Kassab faz uma análise sobre as eleições que vai além do palpite simplista da semana passada. O chefe do PSD avalia que Lula só será candidato se as pesquisas mostrarem um cenário de favoritismo. Estando popular e controlando a máquina, seria quase imbatível. E se sua popularidade declinar a ponto de torná-lo azarão? Ele sairia para os livros da História como a fênix que, depois de 580 dias preso, voltou e defendeu a democracia — e deixaria a derrota ser sofrida por um aliado. Com a eleição de Hugo Motta e Davi Alcolumbre neste fim de semana, a segunda metade do governo Lula acaba de começar.

Paulo Celso Pereira, o autor deste artigo, é o Editor Executivo de O Globo. Publicado em 04.02.25.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Classe média foi esmagada pela política?

Enquanto arca com impostos, ela sente que recebe pouco em troca

Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro - Florian Plaucheur - 24.jan.25/AFP

O que são políticas públicas? Elas são instrumentos para corrigir as disparidades nos pontos de partida ou devem ser utilizadas para reforçar as vantagens daqueles que já largaram à frente? No cerne da discussão está o dilema sobre se elas devem funcionar como um vetor de mudanças ou apenas manter a ordem vigente. No final, elas são reflexos de escolhas. Escolhas tanto políticas quanto ideológicas. Escolhas que determinam quem deve ganhar e quem deve perder.

Essas escolhas se materializam em decisões. Cada orçamento que aprovamos carrega consigo uma mensagem. Se priorizamos o investimento em segurança para proteger propriedades privadas mas negligenciamos escolas públicas, estamos dizendo que proteger coisas é mais importante do que investir no potencial humano. Quando optamos por subsidiar grandes corporações em vez de garantir saúde de qualidade, estamos declarando que o lucro é mais valioso do que a vida.

Tal hierarquia de prioridades reflete mais do que simples decisões administrativas, pois expõe a essência de nossos valores e nossas omissões. No Brasil, muitas políticas surgem para atender às mais variadas demandas, mas frequentemente ignoram os problemas centrais. A proliferação de programas desarticulados e sem avaliação levanta a questão: estamos realmente avançando no combate à pobreza e à desigualdade?

Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro - Florian Plaucheur - 24.jan.25/AFP

Bem, não podemos ser fatalistas. O país conquistou avanços desde a redemocratização. Programas como o Bolsa Família, a ampliação do acesso à educação básica e as políticas de saúde pública, como o SUS, trouxeram benefícios. Reduzimos a pobreza extrema e conseguimos, em alguns momentos, diminuir as desigualdades. No entanto, poderíamos ter avançado muito mais rapidamente se houvesse um projeto de desenvolvimento consistente.

O desafio não está apenas em combater a pobreza, mas em reformular as estruturas que a sustentam. Em vez de implementar políticas públicas integradas para limitar fatores externos que impedem o desenvolvimento dos indivíduos, a classe política frequentemente opta pela fragmentação e ineficiência, reforçando ciclos de privação. A incapacidade de integrar soluções sistêmicas perpetua a pobreza, tornando a mobilidade social uma exceção, não a regra.

Por outro lado, continuamos alimentando a concentração de riqueza com políticas que beneficiam desproporcionalmente os mais ricos, seja por meio de subsídios fiscais e benefícios tributários seletivos, seja com gastos públicos que privilegiam o topo da pirâmide.

Nesse cenário, a classe média sente o peso da omissão. Sem o amparo de benefícios sociais voltados às camadas mais pobres e distante dos privilégios fiscais e políticos das elites, ela sente o peso de um Estado que parece exigir muito, mas entregar pouco. Essa desconexão gera uma insatisfação difusa, mas crescente. O descontentamento se traduz em desaprovação política, além de alimentar a corrosão do atual pacto social, abrindo ainda mais espaço para soluções populistas que apenas aprofundam o problema.

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O texto é uma homenagem à música "I Want To Break Free", composta John Deacon e interpretada pela banda Queen.

Michael França, o autor deste artigo, é ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 04.02.25


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Oitenta anos do nascimento de Bob Marley

Amor, paz e liberdade para todas as pessoas são nossas buscas prioritárias em um mundo ameaçado pela extrema-direita

Bob Marley em Montego Bay, Jamaica, em julho de 1979 - Adrian Boot/Fifty-Six Hope Road Music Ltd./via Reuters

Em 1945, ano em que terminou a Segunda Guerra Mundial, nasceu Robert Nesta Marley. Dia 6 de fevereiro não é feriado oficial na Jamaica, mas o país estará em festa.

Já está, na verdade. Porque em 2025 são celebrados 80 anos do nascimento do homem que colocou políticos rivais no palco da ilha em guerra para apertarem as mãos e espalhou amor pelo mundo. "One Love. One Heart. Let's get together and feel all right".

Mensagem poderosa naquele 22 de abril de 1978, no Estádio Nacional, em Kingston, mas também hoje. Quando o ódio se multiplica pela Terra, em um jogo algorítmico perverso de supremacistas misóginos que interfere também nas urnas, "let them all pass all their dirty remarks (one love)".

Bob Marley em Montego Bay, Jamaica, em julho de 1979 - Adrian Boot/Fifty-Six Hope Road Music Ltd./via Reuters

Um homem de pele escura, descendente de pessoas sequestradas na África para serem escravizadas no Caribe, nos convoca à emancipação. Seus cabelos, as menções a Deus e o uso de kaya vieram da religião rastafari, profetizada pelo panafricanista Marcus Garvey.

"Look to Africa for the crowning of a Black king" é a frase que costuma ser atribuída a Garvey nas explicações sobre a religião que leva o título e o nome do imperador etíope Haile Selassie antes da coroação: Ras Tafari.

Entre 1930 e 1974, Selassie foi imperador da Etiópia. Neste período, colonizadores italianos foram expulsos do país pela segunda vez: a primeira, foi ainda no século 19. Na segunda, tropas etíopes expulsaram o exército fascista de Mussolini.

O rei negro libertaria não apenas a Etiópia ou a África, mas também o Caribe e toda a diáspora africana espalhada pelo mundo.

O movimento religioso rastafari foi perseguido pelos colonizadores ingleses da Jamaica. Houve prisões, tortura e assassinatos de religiosos até a década de 1960.

Rastafaris deixam o cabelo crescer livremente, costumam ser vegetarianos e meditam para chegarem próximos a Jah –fumar kaya, também chamada ganja, ajuda nisso.

Bob Marley popularizou o rastafari e registrou muitos dos princípios do movimento em suas músicas: Deus está em todas as pessoas –não há escolhidos–, somos todas e todos parte de uma única energia, "One Love. One Heart".

Em 1976, Bob Marley foi atingido com um tiro no peito, dentro de sua casa. Os que não queriam a paz também balearam sua esposa Rita Marley que, graças ao cabelo rastafari, teve o crânio preservado da bala dirigida à cabeça. O agente Don Taylor levou cinco tiros ao pular na frente de Bob para protegê-lo, e também sobreviveu. O horror daquelas dezenas de disparos está nos buracos preservados nas paredes da casa, hoje Museu Bob Marley, porque é importante lembrar.

Dois dias depois dos tiros, Bob e Rita tocaram e cantaram em um show para 80 mil pessoas, em um comício pela paz. "Por que eu tenho que parar se as pessoas que tentam tornar este mundo pior não tiram nenhum dia de descanso?", perguntou Bob. O episódio está lindamente filmado em "Bob Marley: one love", de 2024.

Se tudo der certo, chego a Kingston com Matheus Leitão no próximo dia 5 para acompanhar as celebrações no Museu Bob Marley. Há Trump, Musk, Zuckerberg. Temos também Bob e o amor.

Bianca Santana, a autora deste artigo, é Doutora em ciência da informação, mestra em educação e jornalista. Autora de "Quando me Descobri Negra". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 03.02.25

‘Se eles são famosos, sou napoleão’

A teoria do louco e os novos líderes populistas que recolocam na agenda questões sobre racionalidade na política


Capa do disco do conjunto musical Os Mutantes - Reprodução

O surgimento de novos líderes populistas recoloca na agenda questões sobre a racionalidade na política. Líderes como Trump, Chávez e AMLO apelam para a retórica grandiloquente e/ou tradições que se julgava sepultadas desde o pós-guerra: MAGA, bolivarianismo, quarta transformação. E fazem propostas tresloucadas. Mesmo quando derrotadas ou se mostram inexequíveis, elas sinalizam indignação com o statu quo e autenticidade. E assim geram ganhos políticos. Mas há mais em jogo, sobretudo no plano internacional.

Na interação estratégica e hostil entre líderes mundiais, parecer volátil e imprevisível garante vantagens porque intimida adversários, levando-os a fazer concessões. Aqui a questão da racionalidade é fundamental: agentes racionais esperam que outros agentes sendo racionais não levem a cabo ameaças, o que garante o equilíbrio, como argumentou Thomas Schelling. Esta é a base da teoria da dissuasão (deterrence).

O argumento quanto ao valor estratégico da loucura é conhecido como teoria do louco (madman theory), devido a ter sido expresso desta forma por Nixon a seu chefe de gabinete: "Eu chamo isso de Teoria do Louco, Bob. Quero que acreditem que eu cheguei ao ponto no qual faria qualquer coisa para acabar com a guerra. A gente vaza a mensagem: ‘não podemos segurá-lo quando está furioso e ele tem o dedo sobre o botão nuclear’."

Essa loucura não é genuína, é fabricada, como sugeriu Maquiavel, nos Discursos sobre Lívio ("Muitas vezes é coisa sábia simular a loucura"). Os loucos —estratégicos ou não— , no entanto, representam uma porcentagem pequena —8% entre 1986 e 2010— dos líderes mundiais, segundo uma pesquisa minuciosa sobre o tema, mas tem tido mais sucesso político recentemente na nova onda populista.

Mas a teoria tem limitações. A principal é que há trade-offs envolvidos na estratégia: ganhos de suposta irracionalidade implicam também em perdas de credibilidade. Atores irracionais não podem oferecer garantias quanto às promessas e propostas que fazem, como argumenta Roseanne McManus, em "The Limits of Madman Theory: How Trump’s Unpredictability Could Hurt His Foreign Policy", publicada na Foreign Affairs, 2025. É a incapacidade de ofertar compromissos críveis em virtude de sua própria instabilidade e volatilidade que debilita tais líderes. E, claro, a irracionalidade está sempre sob suspeita.

Mais especificamente McManus adverte que ações imprevisíveis podem levar a mal-entendidos, fazendo com que os adversários tomem medidas preventivas que intensificam os conflitos, em vez de resolvê-los. Os parceiros estratégicos também importam: terão cautela diante de um líder imprevisível, o que resulta em enfraquecimento de alianças e redução da cooperação em questões globais. Trump, por exemplo, não opera em um vazio institucional.

As instituições democráticas e a opinião pública estabelecem restrições ao quanto ele pode parecer irracional em um contexto de incertezas. O tiro também pode assim sair pela culatra para quem diz "se eles rezam muito, eu já estou no céu", (Balada do Louco, Os mutantes).

 Marcus André Melo, o autor deste artigo, é Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 03.02.25

A quadratura do círculo da reforma ministerial

A alta desaprovação popular de Lula pode contaminar ainda mais a prometida reforma ministerial e se tornar um perigo adicional para um governo já marcado pela disfuncionalidade

Além do risco de acelerar a adoção de medidas demagógicas e ampliar o arsenal de bobagens produzidas pelo governo, o derretimento da aprovação ao presidente Lula da Silva, radiografado pelas últimas pesquisas, tem pelo menos mais um efeito colateral significativo: fragilizar ainda mais a base de apoio do Executivo no Congresso e, consequentemente, contaminar a prometida reforma ministerial.

A tradicional cartilha que rege as relações em Brasília sugere que, com a popularidade em baixa, crescem as dúvidas sobre a musculatura política do presidente, sobretudo quando se olha para a sua sucessão em 2026, e sobem os custos da preservação de alianças, especialmente dos partidos de centro que compõem a coalizão governista. Mas o atual estágio da política brasileira não é regido apenas pelos códigos tradicionais. Se a disfuncionalidade do governo (com sua ineficiência crônica), da coalizão governista (ampla, heterogênea e fragmentada demais) e das relações com os demais Poderes (um Executivo enfraquecido, um Legislativo opaco e com poderes exacerbados pelo controle do Orçamento e um Judiciário politizado em demasia) já deixa mais penosa a vida de Lula, esse problema fica ainda mais sério diante da sua impopularidade.

Há a expectativa de que Lula faça mudanças tanto para trocar ministros com trabalho mal avaliado – e não são poucos, num governo cuja marca maior, até aqui, é a ausência de grandes marcas – quanto para reorganizar seus partidos aliados. Em outras palavras, como muitas reformas promovidas por Lula e seus antecessores, o manejo da coalizão multipartidária ancora as mudanças, pois é um modo de acomodar novos aliados, redistribuir cargos e orçamentos, fortalecer a base para aprovar agendas de interesse do Executivo, repactuar acordos ou preparar a coalizão para a próxima eleição. É do jogo. Mas essa reforma, se houver, terá também outra motivação: a ineficiência e mediocridade do ministério atual.

Como hábil prestidigitador, capaz de artimanhas para se manter no centro do universo e deliberar ao seu tempo e preferência, o presidente tem emitido sinais diversos ao sabor de suas conveniências: ora sugere que fará uma reforma ampla, ora diz que planeja mudanças pontuais. Como bom demagogo, Lula não vive sem ter a plena convicção de que é amado. Obcecado com a popularidade, inconformado com a maior desaprovação ao seu governo e ansioso pela eleição em 2026, o presidente parece escolher o caminho errado, ao intuir que precisa acelerar as pautas da esquerda.

Com uma agenda mais à esquerda do que deveria, e com a qual não foi eleito, Lula busca mirar tanto a disputa presidencial quanto moldar o seu legado – afinal, está perto dos 80 anos e não raro tem se mostrado inquieto sobre o seu futuro político. A aceleração de uma agenda de esquerda em prol de um legado lulista, contudo, tornará muito mais difícil para os partidos de centro aderirem, se não for por um preço muito mais alto do que o habitual. Na cosmologia do poder, isso significa mais recursos orçamentários e mais cargos para aliados – e maior prejuízo ao País. Vale tanto para as legendas centristas tradicionais, como MDB e PSD, quanto para o chamado Centrão, liderado pelo PP de Arthur Lira.

Se o apetite dos partidos é um fator de instabilidade adicional para o atual mandato, a concentração de poderes no PT vira um problema ainda mais grave na discussão de uma reforma ministerial. A coalizão de Lula tem hoje 18 partidos, e petistas dominam quase metade das pastas, incluindo os ministérios que funcionam perto do presidente, no Palácio do Planalto. É uma evidência da dificuldade crônica do PT de dividir o poder com aliados e da incapacidade do lulopetismo de aceitar que a volta ao poder, sacramentada com a eleição de 2022, não foi fruto das suas virtudes nem de sua agenda, mas de uma frente ampla temerosa dos riscos democráticos representados pelo bolsonarismo.

Lula precisará conciliar essas premissas aparentemente inconciliáveis. É a quadratura do círculo da sua reforma ministerial: um Executivo enfraquecido e impopular que espera agradar a aliados centristas enquanto deseja acelerar uma agenda de esquerda e resiste a dividir o poder. Não tem como dar certo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 03.02.25

O que dizem os ventos do hemisfério norte

É muito provável que a visão dominante entre as big techs conte com uma futura impossibilidade da vida na Terra

A coalizão das big techs com o governo Trump é um tema inesgotável. Estava precisamente pensando nelas quando estourou o caso da DeepSeek, startup chinesa que fez as empresas de tecnologia dos Estados Unidos e da Europa perderem US$ 1 trilhão em valor de mercado porque demonstrou que pode fazer mais na inteligência artificial com menos dinheiro.

A empresa chinesa tem seus pontos vulneráveis, e um deles é não responder a questões políticas proibidas pelo Partido Comunista. Mas não deixa de ser um incentivo para os que têm condições de buscar um caminho autônomo.

Quando aconteceu esse pequeno terremoto no Vale do Silício, eu refletia sobre uma frase enigmática de Elon Musk na posse de Donald Trump. Ele disse que a conquista de Marte salvaria a civilização. Já mencionei o desejo de Trump pela Groenlândia e cheguei à conclusão de que talvez ele não seja tão negacionista assim. Musk, que produz carros elétricos, conta com a colonização do espaço como alternativa ao nosso planeta.

É muito provável que a visão dominante entre as big techs conte com a futura impossibilidade da vida na Terra e pense uma fuga para a frente em duas direções: a colonização do espaço ou um avanço tecnológico que reformule completamente o planeta e o torne habitável, apesar de toda a destruição.

Em ambos os casos, os ecologistas que propõem uma revisão da forma de consumir e produzir são vistos como nostálgicos retrógrados. Há até intelectuais que consideram a ecologia o novo ópio do povo.

Nessa formulação meio science fiction, não só o mundo será remodelado pela tecnologia. Ela também ampliará a vida dos seres humanos e mais adiante os imortalizará, codificando a consciência em aplicativos para uma eventual reencarnação em corpos sintéticos.

O sonho de recriar um planeta por meio da tecnologia já foi mencionado por John Gray como uma espécie de solidão radical. Um exemplo do que nos espera pode ser encontrado no livro de Rachel Carson “Primavera silenciosa”. Inspirador de muitos ambientalistas, fala da desaparição dos pássaros numa área contaminada por agrotóxicos.

Claro que a tecnologia pode reproduzir o canto dos pássaros, o barulho da chuva e outros artifícios que já existem nos nossos telefones. Mas alguns problemas decorrem dessa fuga adiante, a produção desenfreada que esses teóricos veem não só como destino humano, mas também como base da felicidade.

Um deles é o tempo. A multiplicação de eventos extremos, o crescente número de refugiados do clima, os problemas de saúde e alimentação que decorrem do aquecimento — tudo isso não pode esperar uma utopia duvidosa do sonho de consumo ilimitado. Estou apenas alinhando a existência dessas posições para acentuar que nem sempre estamos lidando com negacionistas do tipo Jair Bolsonaro.

Muito possivelmente, os ventos do Norte nos trazem uma nova concepção a discutir, segundo a qual o aquecimento existe, mas é preciso produzir e esgotar os recursos planetários porque a tecnologia encontrará resposta, e uma fração da humanidade sobreviverá não só para desfrutar esse futuro solitário ou, como alternativa, se mudar para Marte.

É importante registrar que um setor da esquerda também adota uma teoria da aceleração. Ele combate os ambientalistas com o argumento de que é preciso acelerar o capitalismo em busca de uma alternativa. Frear a desgovernada máquina do crescimento econômico apenas nos prenderia ao passado, fantasioso e injusto.

Minha intuição a partir da frase de Musk e do interesse de Trump pela Groenlândia é que estamos diante de políticas que, de certa forma, foram antecipadas pela teoria, sobretudo nos Estados Unidos.

*Uma análise brilhante dessas correntes de pensamento encontra-se no livro dos brasileiros Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro “Há mundo por vir

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Publicado originalmente n' O Globo, em 03.02.25

sábado, 1 de fevereiro de 2025

O que o conflito na RD Congo tem a ver com smartphones?

República Democrática do Congo está sob ataque de grupos rebeldes no leste do país, uma região rica em minerais usados na fabricação de tecnologia de ponta. Civis já começaram a fugir para nações vizinhas.

Violência eclodiu em 27 de janeiro, um dia depois de a República Democrática do Congo romper relações diplomáticas com Ruanda (Foto: Samy Ntumba Shambuyi/AP Photo/picture alliance)

O aumento da violência na República Democrática do Congo provocou temores de instabilidade em larga escala em um dos países mais abalados por conflitos na África. Em 27 de janeiro, o grupo rebelde M23, apoiado por soldados da vizinha Ruanda, assumiu o controle de Goma, a maior cidade do leste do país. Com cerca de 1 milhão de habitantes, Goma desempenha um papel essencial na economia e na administração da RD Congo.

Na esteira da invasão, uma fuga em massa da principal prisão da cidade levou mais de 4 mil detentos às ruas, fazendo com que os moradores se trancassem em casa.

Na capital, Kinshasa, manifestantes responderam atacando as embaixadas de países como Bélgica, Holanda, Quênia, Uganda e Estados Unidos, exigindo que a comunidade internacional pressione Ruanda por seu suposto envolvimento no conflito.

Por que o conflito interessa ao resto do mundo

Rica em recursos naturais, a República Democrática do Congo tem metais e minerais como ouro, estanho e coltan que são essenciais para a fabricação de telefones celulares e baterias para veículos elétricos.

E é por isso que o conflito, aparentemente distante, pode repercutir no mundo inteiro. Inclusive no Brasil, onde 87,6% da população acima dos dez anos de idade usa smartphone, segundo o IBGE, e cada brasileiro tem em casa, em média, 2,2 aparelhos como computadores, smartphones, laptops e tablets, de acordo com um estudo de 2024 da Fundação Getulio Vargas. 

Esses minerais usados na produção de tecnologia de ponta desencadearam um ciclo de corrupção e derramamento de sangue em meio à disputa pelo controle do território por grupos armados, milícias locais e agentes estrangeiros.

A RD Congo tem sido abalada por conflitos há mais de 30 anos, desde o genocídio de Ruanda, em 1994.

Os conflitos armados já deslocaram mais de 7 milhões de pessoas somente dentro do país. Organizações de direitos humanos têm relatado atrocidades generalizadas, incluindo massacres, violência sexual e recrutamento de crianças como soldados.

Membros do grupo rebelde M23, vestindo roupas militares, caminham entre civis, inclusive crianças, após tomarem a cidade de Goma, no leste do Congo.Membros do grupo rebelde M23, vestindo roupas militares, caminham entre civis, inclusive crianças, após tomarem a cidade de Goma, no leste do Congo.

Em registro do dia 27 de janeiro de 2025, membros do grupo rebelde M23 caminham entre civis após tomarem a cidade de Goma, no leste do CongoFoto: STR/AFP

Mais de 100 grupos armados disputam controle da região

No centro da crise na RD Congo está o ressurgimento do grupo rebelde M23, liderado pela etnia tutsi, que ganhou poder rapidamente em 2012 e tomou a cidade de Goma, mas foi expulso pelo exército congolês e pelas forças da ONU em 2013.

O M23 voltou a pegar em armas em 2021, alegando agir para proteger os tutsis de discriminação e violência.

Já as autoridades congolesas afirmam que o grupo é apenas um representante de forças externas que buscam controlar os abundantes recursos minerais do país, especialmente nos territórios que fazem fronteira com Ruanda e Uganda.

Atualmente, há mais de 100 grupos armados tentando se instalar no leste da República Democrática do Congo. Os esforços para pacificar a região, a exemplo de um acordo de paz com os rebeldes do M23, assinado em Nairóbi, no Quênia, em 2013, fracassaram diversas vezes.

Qual é o papel de Ruanda?

O envolvimento de Ruanda na RD Congo é um ponto de tensão internacional. Oficialmente, autoridades ruandesas negam apoiar os rebeldes do M23. Mas, desde 2012, especialistas da ONU e de organizações de direitos humanos acusam Ruanda de apoiar o M23 com logística, armas e até mesmo pessoal.

Em parte, essa história começa no genocídio de Ruanda em 1994, quando 800 mil pessoas, principalmente da comunidade tutsi, foram massacradas por extremistas da etnia hutu. O genocídio terminou com o atual presidente de Ruanda, Paul Kagame, liderando uma força de rebeldes tutsis. Muitos hutus fugiram pela fronteira para a República Democrática do Congo.

Kagame alega ser necessário neutralizar as Forças Democráticas para a Libertação de Ruanda (FDLR), um grupo rebelde hutu que opera no leste da RD Congo. O argumento é que alguns membros desse grupo, que participaram do genocídio de 1994, representariam uma ameaça direta à segurança de Ruanda.

Já o governo congolês acusa Ruanda de usar o conflito como uma desculpa para explorar os recursos naturais, principalmente nas áreas controladas pelo M23. O comércio de minerais, incluindo o tráfico ilegal de ouro e coltan, é um negócio lucrativo que supostamente beneficia Ruanda e desestabiliza a RD Congo.

O diretor do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos HORN, Hassan Khannenje, disse à DW que não acredita que Ruanda vá deixar o vizinho em paz tão cedo.

"Ruanda esteve, está e sempre estará envolvida na República Democrática do Congo. O país é de interesse estratégico e nacional para Ruanda. Não se trata apenas de minerais, embora os minerais alimentem o conflito", disse Khannenje, acrescentando que a concorrência entre grupos rebeldes dão uma "justificativa adicional para ocupar partes da RDC".

As consequências diplomáticas têm sido graves. Em 26 de janeiro, a RDC rompeu com Ruanda. Os esforços regionais de mediação pouco progrediram.

O conflito pode se espalhar?

De acordo com a ONU, o conflito pode se transformar em uma crise regional mais ampla. Alguns especialistas, como Khannenje, dizem que isso é improvável.

"O que podemos ver talvez seja apenas uma escalada entre as partes que já estão no conflito – o governo da RD Congo e o M23 – e algum apoio maior de países da região ou de fora dela", afirma Khannenje.

Uganda, assim como Ruanda, também foi acusada de apoiar grupos armados no leste da RDC, embora negue as acusações. Em meio a isso, refugiados de Kivu do Norte, no leste do país, já estão fugindo para nações vizinhas, aumentando os temores de instabilidade nas fronteiras.

Sanções foram impostas aos líderes do M23, e houve advertências contra a interferência estrangeira. Mas não há resposta global ao conflito. Seu fardo e suas consequências são carregadas pelas nações africanas sozinhas, principalmente pelos mais de 100 milhões de habitantes da República Democrática do Congo.

Organizações humanitárias alertam que a violência pode levar à fome, ao surto de doenças e a mais deslocamentos em massa. Sem uma ação urgente, o conflito corre o risco de se transformar em uma tragédia de grande escala com consequências para toda a região.

Andrew Wasike, o autor, é Jornalista. Publicado originalmente pela Deutsche Welle, em 31.01.25 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

A ministra da guerrilha

Gleisi Hoffmann é cogitada por Lula a deixar o comando do PT para ocupar a Secretaria-Geral da Presidência – um agrado à esquerda e ao partido e uma afronta a Haddad e aos moderados

A repórter Vera Rosa informou neste jornal que a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, ocupará a Secretaria-Geral da Presidência, compondo a equipe do presidente Lula da Silva a partir da reforma ministerial. Oficialmente, entre as atribuições da pasta liderada atualmente pelo ministro Márcio Macêdo, está a interlocução do governo com os movimentos sociais, incluindo centrais sindicais, organizações como o MST, sindicatos e ONGs. Só oficialmente. Na prática, o provável embarque de Gleisi na Secretaria, passando a dar expediente diário no quarto andar do Palácio do Planalto, significa tudo menos a desejável melhora na qualidade da equipe ministerial de Lula. Não há meio-termo em relação a ela: Gleisi será a ministra da cisão enquanto o governo precisa de união, ou a porta-voz do desmonte, quando se requer reconstrução.

Só o convite feito a Gleisi representa mais do que a disposição do presidente em ter no Palácio uma petista radical, dando musculatura adicional a um grupo no qual se inclui o chefe da Casa Civil, Rui Costa, e o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha – isso num momento em que se esperaria de Lula e do PT um maior compartilhamento do poder com outros partidos que formam a coalizão governista. Se ministra for, Gleisi pode tornar-se ainda um símbolo de mais um constrangimento imposto ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Afinal, ela tem sido um ruidoso e virulento contraponto a Haddad e a qualquer premissa de responsabilidade fiscal. Coube a ela liderar o levante petista contra o próprio governo, aprovando um documento do partido que classificou a política fiscal de “austericídio” – uma pressão que, com a chancela do presidente Lula, desmontou qualquer esforço do ministro da Fazenda e da ministra do Planejamento, Simone Tebet, de pôr ordem nas contas do governo.

O arsenal de Gleisi é vasto e vai além dos ataques a Haddad. A ex-ministra da Casa Civil de Dilma Rousseff costuma funcionar como uma espécie de braço retórico armado de Lula da Silva. É nessa condição que frequentemente despeja declarações furiosas contra o Banco Central (pelo menos enquanto a instituição era presidida pelo inimigo preferencial dos petistas, Roberto Campos Neto), o mercado financeiro, o mundo corporativo, o agronegócio, o Congresso, a direita (inclusive a direita que não se enquadra no bolsonarismo fundamentalista), Israel, os evangélicos, a imprensa profissional e, agora, o presidente dos EUA, Donald Trump. Por outro lado, revela-se uma afável defensora de Nicolás Maduro, de Cuba e do Partido Comunista Chinês – aos quais costuma bajular enviando missões do PT ou indo pessoalmente para trocas que decerto geram dividendos políticos à esquerda de linhagem lulopetista e constrangimento ao restante do Brasil.

Com tais atributos, resta entender a natureza do convite feito por Lula a um nome que afrontou, desautorizou e deslegitimou seu ministro da Fazenda, mesmo sabendo que inexiste na história um governo forte com um ministro da Fazenda fraco; que Gleisi exibe um modus operandi de guerrilha contra tudo e contra todos que poderiam inspirar o governo a um padrão mínimo de racionalidade e eficiência; e que a presidente do PT tem como único mérito a defesa implacável de Lula, na alegria e na tristeza. Eis aí a natureza da possível escolha: agradar à esquerda do PT e resolver um problema do partido. Instalar Gleisi numa pasta do governo significa tirar dela o comando do processo eleitoral que escolherá, no fim de junho, o novo presidente do partido. O favorito de Lula, o ex-ministro e ex-prefeito de Araraquara Edinho Silva, é visto por Gleisi como um nome indesejável. O defeito de Edinho, na visão de Gleisi, é ser moderado, ter bom trânsito no mercado financeiro e em outros partidos e ser próximo de Haddad. Uma vez ministra, ela deixará o posto que ocupa desde 2017, substituída por um mandato-tampão até a eleição petista.

Eis aí uma artimanha tipicamente lulista – para o bem do PT e a ruína do País.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.01.25

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

O que você vai fazer pelo seu país?

Se dobrarmos a aposta nos populistas de direita e de esquerda em 2026, o Brasil vai naufragar. Não podemos continuar vivendo entre a omissão e a adulação


A polarização que consome o País. Temos que acabar com ela.

A qualidade da democracia pode ser mensurada por três indicadores: preservação da ordem, solidez do Estado Democrático de Direito e qualidade da educação básica. Nesses três quesitos, o Brasil está entre os piores do mundo democrático. Somos um dos países mais violentos do mundo, de acordo com o ranking da Organização das Nações Unidas (ONU). Responsável por 10% da taxa global de homicídios, apenas países em guerra contabilizam 44 mil assassinatos por ano, como ocorre no Brasil. Enquanto o crime organizado prolifera, o incompetente governo petista foi incapaz de unificar os sistemas de inteligência das polícias e endurecer as penas dos criminosos.

A nossa Justiça é lenta, parcial e corrupta, como indica o índice do World Justice Project. O País tem a segunda Justiça mais parcial do mundo (só perde para a Venezuela) e está no 114.º lugar (entre 142 países) no cumprimento do devido processo legal. Vivemos num país onde o que está escrito na lei e na Constituição pode ser deturpado pelo voluntarismo de um juiz ou pelos interesses corporativistas do Judiciário. A existência de inquéritos sem prazo determinado e sigilosos que violam as regras basilares do Direito à ampla defesa e ao devido processo legal; a anulação de sentenças de criminosos e corruptos confessos; o ativismo judicial que sepultou o equilíbrio constitucional entre os Poderes; a morosidade do Conselho Nacional de Justiça para apurar os escândalos de venda de sentenças nos tribunais regionais; e a escandalosa acumulação de supersalários, privilégios e mordomias que transformou o Poder Judiciário no mais caro do mundo.

A tragédia da educação envergonha o País. Mais da metade das nossas crianças não está devidamente alfabetizada e é incapaz de fazer operações básicas de matemática. O Brasil está entre os 15 piores do mundo na avaliação do aprendizado de jovens de 15 anos de idade em matemática, língua e ciência no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Sem educação básica de qualidade, não há igualdade de oportunidade. Cria-se um abismo econômico e social entre a parcela mais bem educada e aquela que não aprendeu nada. A massa dos desafortunados torna-se refém de políticas assistencialistas do Estado, do subemprego e das promessas infundadas de governos populistas.

Os populistas encantam o eleitor ao denunciar as mazelas do sistema político, mas eles são incapazes de prover soluções duradouras para os problemas prementes. Populistas têm alma de tirano. Lutam para subjugar as instituições aos seus caprichos, cooptar a Justiça, censurar os opositores e usar a democracia como mera fachada para legitimar o mando. Não estão interessados em reformar o Estado, criar um governo eficiente e deixar a livre economia funcionar.

Se dobrarmos a aposta nos populistas de direita e de esquerda em 2026, o País vai naufragar. Não podemos continuar vivendo entre a omissão e a adulação. A omissão é camuflada pela desculpa de votar no mal menor e apoiar o populista menos ruim. A adulação ocorre na falsa intimidade de jantares e de conferências para tentar influenciar governantes. Mas quando os malabarismos dos convescotes falharem e os populistas destruírem o País, a elite vai se mudar para os Estados Unidos e para a Europa e deixará um cadáver de nação para o povo. Foi assim que países como a Venezuela foram destruídos. Por isso, é hora de reunirmos os cidadãos de bem e agirmos – antes que seja tarde.

A polarização retrata a insatisfação popular com um Estado caro, ineficiente e falido. Cabe a nós deixar de nos iludirmos com os populistas e trabalhar desde já para eleger gente séria e competente para o Congresso e para a Presidência da República. Temos uma boa safra de governadores testados e preparados. É o caso de Ratinho Jr., Tarcísio de Freitas, Romeu Zema e Ronaldo Caiado, entre outros. O Brasil precisa de políticos com histórico de realizações e de defesa de valores democráticos. Duas décadas de governos populistas aceleraram a degeneração institucional do País. Perdemos competitividade, mercado, reputação internacional e confiança no Estado e nas nossas instituições.

Quando me perguntam o que podemos fazer para mudar o Brasil, sugiro seguir o exemplo de Martin Luther King. Sem dinheiro do governo ou apoio de ONG, ele começou sua peregrinação utilizando as ferramentas que tinha: a voz e os pés. Organizou a marcha da cidade de Selma a Montgomery (Alabama), e revelou ao longo das marchas sua capacidade extraordinária de liderar, inspirar, comunicar e mobilizar as pessoas em torno da defesa dos direitos civis. Martin Luther King mudou a história dos Estados Unidos sem exercer cargo público ou participar do governo. Apenas defendeu o que era certo e de maneira exemplar. Você também poder empregar o seu talento para promover mudanças no País. Responda à pergunta: o que você vai fazer pelo Brasil? Abandone a omissão e a adulação e comece hoje a construir o Brasil que queremos. Nós podemos mudar o País. O futuro é fruto das nossas escolhas e ações.

Luiz Felipe D'Avila, o autor deste artigo, é cientista político e autor do livro ‘10 Mandamentos – Do Brasil que Somos para o País de Queremos’. Foi candidato à Presidência da República, em 2024. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo,  em 29.01.25

Ai se eu te processo, Ai, ai se eu te processo

Fenômeno sintomático de nosso tempo, o lawfare verbal abusa da ameaça

O cantor Michel Teló, do sucesso 'Ai se eu te pego' - João Cotta /Divulgação

"Grupo de advogados vai acionar MPF contra Nikolas Ferreira por vídeo sobre Pix"; "Governo avalia processar criminalmente quem divulga fake news sobre o Pix"; "Bolsonaro diz que vai processar Haddad após fala sobre crise do Pix"; "Boulos diz que vai processar Nikolas Ferreira por fake news sobre fiscalização do Pix"; "Bruno Dantas ameaça jornalista após comentário sobre atuação no TCU".

"Pablo Marçal ameaça processar jornalista em entrevista ao vivo"; "Carlos Bolsonaro diz que vai processar Marçal por injúria"; "Bolsonaro diz que vai processar Lula por fala sobre mansão nos EUA"; "Boulos diz que vai processar Marçal sobre caso envolvendo homônimo"; "Michelle Bolsonaro diz que vai processar pessoas do PT por ‘ameaças’".

"Janja diz que vai processar ‘X’ após ataque hacker"; "Felipe Neto diz que vai processar Gustavo Gayer por divulgação de fake news"; "Yasmin Brunet diz que vai processar médicos após críticas e especulações sobre sua aparência"; "Thor Batista diz que vai processar quem o atacou na internet"; "Susana Vieira diz que vai processar quem falar mal dela"; "Susana Vieira ameaça processar quem lhe chamar de velha".

A sequência de manchetes recentes mistura embates políticos, jurídicos e pessoais muito diferentes. Algumas caricatas, outras dotadas de argumento jurídico talvez respeitável, as chamadas guardam em comum a escolha pela teatralização pública da ameaça jurídica.

O instinto da ameaça, que raramente se consuma em ação judicial e fica só no recado, dá sinais importantes sobre muita coisa. Não indica apenas modalidade do jornalismo declaratório, aquele desprovido de fato relevante ou análise, e ansioso por reportar declaração frívola. Não demonstra só a precariedade da comunicação não violenta para ter algum êxito em ambiente definido pela beligerância e incivilidade.

Não só demonstra ímpeto de usar o direito para intimidar, ou a crença de que conflitos podem ser vencidos pela ameaça de processo. Não só revela a ignorância de muita gente que, ao sacar a arma do "vou te processar", pode ser acusada de crime de ameaça: "Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave" (art. 147 do Código Penal). Estará sujeita à imprevisível interpretação judicial sobre o significado de "mal injusto e grave".

Esse coro de ameaças talvez seja sintoma de patologia social e jurídica que se intensifica em nosso tempo. O lawfare verbal e pré-judicial, uma espécie de judicialização informal do discurso público, precisa ser mais bem conhecido, suas causas e efeitos mais bem pesquisados.

Não basta processar, tem que ameaçar antes. O fenômeno não se confunde com a judicialização ou com a litigância predatória, que instrumentaliza a Justiça para violar a lei, ou usa o Judiciário como arma para fins espúrios. O lawfare pré-judicial usa a ameaça midiática, pura e simples, como arma. É também uma forma de predação e banalização do direito.

Enquanto o Judiciário não oferecer uma saída doutrinária e processual para neutralizar o eventual abuso do direito, ou o eventual crime de ameaça, seremos cada vez mais submetidos a esse ridículo jogral: "Nossa, nossa, assim você me mata, ai se eu te processo, ai, ai se eu te processo".

Conrado Hübner Mendes, o autor deste artigo, é Professor de direito constitucional da USP; doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 29.01.25

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Nunca foi tão bom ser um bilionário

Se os EUA continuarem elegendo um presidente bilionário, apoiado fartamente por outros bilionários, o lugar de destaque na festa de posse talvez tenha de ser aumentado

As duas cenas ocorreram no mesmo dia. Em Davos, nos Alpes suíços, a organização não governamental Oxfam divulgava aos participantes do Fórum Econômico Mundial seu relatório mostrando que a riqueza dos bilionários cresceu US$ 2 trilhões em 2024 e que o mundo está perdendo a guerra contra a desigualdade. Em Washington, Donald Trump tomava posse como 47.º presidente dos Estados Unidos tendo como convidados em lugar de honra alguns dos homens mais ricos do mundo.

Pode até ser que alguns desses multibilionários apoiem Trump por verem nele capacidade de tornar o mundo melhor para todos. O que interessa a todos eles, porém, é a possibilidade de o apoio ao presidente da maior potência econômica e militar do planeta facilitar seus negócios e torná-los ainda mais ricos. Naquela cena, se alguém estivesse preocupado com desigualdades não estava entre as figuras mais notadas. A depender de algumas das personalidades que terão grande destaque ao longo do governo Trump, por isso, o quadro apresentado pela Oxfam tenderá a piorar para quem não é bilionário.

“Nunca foi um tempo tão bom para ser um bilionário. Suas fortunas dispararam para níveis jamais vistos, enquanto as pessoas que vivem na pobreza em todo o mundo continuam a enfrentar várias crises”, afirma o relatório Às custas de quem: a origem da riqueza e a construção da injustiça no colonialismo, que a Oxfam divulgou em Davos. Fundada em 1942 por ativistas ingleses de Oxford para ajudar a população da Grécia ocupada pelos nazistas, a Oxfam é uma organização internacional que tem como objetivo combater a pobreza, a desigualdade e a injustiça. Atua no Brasil desde 1965.

A concentração da riqueza não chega a surpreender, muito menos no Brasil. Pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e estudos baseados nas declarações anuais apresentadas à Receita Federal, mesmo com a subnotificação do rendimento de parte dos mais ricos, vêm mostrando a imensa disparidade de renda entre os brasileiros.

O que surpreende, no mais recente relatório da Oxfam, é a velocidade com que aumenta a riqueza dos muito ricos. Eles ficam cada vez mais ricos e cada vez mais depressa. Sua riqueza aumentou três vezes mais rápido em 2024 do que em 2023. Por isso, agora se espera que haja cinco trilionários em uma década. O primeiro, lembra a Oxfam, foi identificado em 2023. Já o número dos que vivem na pobreza praticamente continua o mesmo desde 1990, por causa das crises econômicas, climáticas e de conflito. Se os Estados Unidos continuarem elegendo um presidente bilionário, apoiado fartamente por outros bilionários, o lugar de destaque na festa de posse talvez tenha de ser aumentado.

Outra conclusão do estudo da Oxfam é a de que a maior parte da riqueza dos bilionários não é conquistada em condições normais de mercado, que em geral premia os mais competentes. Essa riqueza é tomada, pois 60% vem de herança, favoritismo e corrupção ou poder de monopólio. “Nosso mundo extremamente desigual tem uma longa história de dominação colonial que beneficiou amplamente as pessoas mais ricas”, acrescenta.

Desde 1990, de acordo com o Banco Mundial, quase 3,6 bilhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza, o que representa 44% da humanidade. Enquanto isso, em uma simetria perversa, o 1% mais rico possui uma proporção quase idêntica, pois detém 45% de toda a riqueza.

Políticas sociais em áreas como educação, saúde, proteção social, direitos trabalhistas e tributação progressiva vêm sendo reduzidas na maioria dos países, o que leva a Oxfam a prever cenários piores no futuro: “Sem ações políticas urgentes para reverter essa tendência preocupante, é quase certo que a desigualdade econômica continuará a aumentar em 90% dos países”.

No Brasil, graças à retomada de programas de transferência de renda desativados ou destroçados no período 2019-2022, a pobreza foi reduzida em 2023, depois de muitos anos de aumento. O Programa Bolsa Família teve papel decisivo nessa mudança. A recuperação do mercado de trabalho também contribuiu para a redução da pobreza no País.

Os indicadores sociais continuam, no entanto, mostrando uma sociedade muito desigual e uma lenta redução das taxas de pobreza, quando não sua estabilidade. Mudar essa tendência implicaria políticas de distribuição de renda mais agudas, o que exige grande concordância política, difícil de ser alcançada.

“Reduzir a desigualdade, como questão abstrata, é algo que boa parte da população é a favor”, lembrou o doutor em Sociologia e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Pedro Ferreira de Souza, em entrevista recente ao jornal Valor Econômico. “Mas, na hora em que começa a mexer em questões específicas, as pessoas começam a gritar porque de fato é preciso impor perdas a determinados grupos. E grupos com muitos recursos. Reformas nesse sentido teriam efeito imediato sobre desigualdade.”

Jorge J. Okubaro, o autor deste artigo, é Jornalista. E também autor, entre outros, do livro "O Súdito (Banzai, Massateru!) - Editora Terceiro Nome. E ainda Presidente do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros (Jinmonken). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 28.01.25

Lula impopular é um perigo

Pesquisa aponta derretimento da aprovação ao presidente, sobretudo no Nordeste e entre a população de baixa renda, o que deve fazer o governo acelerar medidas demagógicas

Uma pesquisa da Genial/Quaest divulgada ontem trouxe más notícias para o governo do presidente Lula da Silva. Na comparação com o último levantamento, realizado em dezembro, a aprovação ao petista caiu 5 pontos porcentuais, de 52% para 47%, e pela primeira vez ficou atrás do porcentual dos que reprovam a atual gestão, com evidente viés de baixa para o governo.

Trata-se da mais significativa desaprovação ao trabalho de Lula desde o início do terceiro mandato, resultado até natural ante a corrosão constante de sua popularidade, que os petistas invariavelmente creditam aos culpados habituais – a alegada desordem deixada pelo antecessor, Jair Bolsonaro, as fake news e as big techs, a comunicação do governo e uma suposta incapacidade da população de perceber as virtudes do atual governo.

A notícia mais dura para o presidente Lula, porém, vem dos grupos em que a deterioração da popularidade apareceu com mais força: no Nordeste, tradicional reduto do presidente, onde o governo perdeu quase 10 pontos porcentuais de aprovação, e na população de baixa renda (-7 pontos) e renda média (-5 pontos). Mais: metade acredita que o País está na direção errada, e 65% acham que Lula não conseguiu cumprir suas promessas de campanha.

Ou seja, há uma fratura naquela que é a maior base social do presidente e, para piorar, o atual governo está produzindo frustração nos brasileiros em vez de incutir-lhes esperança de melhorar de vida. Um desalento que emerge não de alguma perversa conspiração da mídia ou do mercado financeiro, tampouco de uma eventual máquina de desinformação da extrema direita. É, isso sim, o retrato da vida real, cuja raiz é uma só: a inépcia de Lula e sua incapacidade de entender as aflições do Brasil que governa.

Não se gastaria tempo e esforço neste espaço se a revelação dos números servisse apenas para perturbar o humor presidencial, habituado aos aplausos frequentes que recebe dos sabujos palacianos. O problema vai além de Lula e dos morubixabas petistas, que até hoje têm a mais plena convicção de que as dificuldades com a popularidade decorrem de mentiras e desinformações que impedem que as ações do governo cheguem à população. Ocorre que ninguém que torce pelo Brasil pode sentir-se bem diante do fato de que apenas 25% dos brasileiros reconhecem que a economia melhorou no último ano e que, portanto, a percepção popular sobre a situação econômica continua majoritariamente negativa. Ou que apenas 39% acreditam que o País esteja na direção certa, que o aumento dos preços dos alimentos passou a ser uma tormenta e que a economia, mesmo malvista pela população, foi ultrapassada pela violência na lista de temas que inquietam os eleitores.

Tão sério quanto essas evidências é o risco embutido na pressa de Lula para mudar os números de sua popularidade e, sobretudo, garantir a viabilidade de sua reeleição em 2026. Afinal, se já é mau sinal quando as pesquisas de opinião pública ditam os rumos e a ansiedade de um governo e de um presidente, torna-se um perigo para a população ter um Lula obcecado com a popularidade, inconformado com a desaprovação e ansioso pela eleição. Para o presidente, como se sabe, é algo rotineiramente menor avaliar e aperfeiçoar programas, ajustar a gestão, corrigir rotas ou modelos que não mais funcionam. É o que fazem bons governantes. Mas, como bom demagogo, Lula tem a indisfarçável ambição de quem se enxerga um mítico representante dos interesses do povo e, como tal, em situações de crise, recuperar o amor popular significa escolher atalhos populistas, capazes de gerar resultados vistosos no curto prazo e devastadores no longo.

Sempre que precisou escolher entre a responsabilidade e a popularidade, Lula nunca titubeou. Donde se conclui que os números revelados pela Quaest certamente servirão de pretexto para ampliar o arsenal de estultices produzidas pelo governo, desde “intervenção” nos preços até guerra de araque contra as big techs. Serão dois longos anos pela frente.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.01.25

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Do jornalismo ao entretenimento

Um mundo sem jornalismo será um mundo sem democracia. E também sem liberalismo.

Elon Musk comemora durante discurso feito por Donald Trump um dia antes da posse (Alex Brandon / AP, 19.01.25)

Entendimento

Quase ninguém mais quer saber de buscar termos de convivência. Quase ninguém acha que precisa

Em outubro de 2024, o Instituto Gallup, dos Estados Unidos, publicou mais uma pesquisa sobre a credibilidade dos meios de comunicação na sociedade americana. Os resultados não foram bons: o prestígio da imprensa nunca esteve tão baixo. Apenas 31% das pessoas disseram ter confiança “grande” (“great deal”) ou “razoável” (“fair amount”) na maneira como jornais, televisão e rádio reportam os acontecimentos. É a pior marca já registrada. (https://news.gallup.com/poll/65 1977/americans-trust-mediaremains-trend-low.aspx.)

O êxodo é muito maior na direita do que na esquerda. Entre os adeptos do Partido Republicano, hoje um reduto do trumpismo galopante, somente 12% declararam confiar em órgãos de imprensa (eram 20% em 2018), ante 54% nas hostes do Partido Democrata (estes eram quase 80% em 2018). Até os anos 2000, não havia tanta distância entre um polo e outro: ambos se situavam no mesmo patamar, em torno dos 50%. Agora, o cenário é mais crispado.

No Brasil, a paisagem é quase idêntica. As facções que cerraram fileiras com o bolsonarismo abominam os repórteres e seus periódicos. Seus porta-vozes elogiam torturadores, execram a ciência, caluniam a universidade, hostilizam as artes, insultam a justiça e, last but not least, ofendem sistematicamente os jornalistas – e as jornalistas, de preferência.

Em todos os continentes, aumentam as multidões que aderem à onda anti-imprensa. Essas legiões não fazem mais distinções entre informação e propaganda, não têm a menor ideia do que separa o juízo de fato do juízo de valor e não dedicam nenhum respeito à verdade factual. Não raro, preferem abertamente a mentira.

Em resumo, o esvaziamento da confiança na imprensa é apenas a ponta do iceberg. Por baixo, prospera o triunfo da mentira, graças ao trabalho escravo de milhões de voluntários que espalham falsidades. Podemos comprovar o fenômeno diariamente pelos grupos de WhatsApp, especialmente os grupos de família e de turmas de amigos, que se tornaram uma estratégia dos agentes da extrema direita. Os tios e as tias do Zap, embora pacóvios, não são inocentes inúteis – eles sabem muito bem o que fazem e o que desfazem.

E aí? Como entender o cenário? Por que pessoas que até outro dia levavam uma vida pacata passaram a disseminar engambelações em período integral?

Em parte, as causas podem estar relacionadas à carência afetiva: quem posta sandices nas redes sociais suplica por elogios de meia dúzia de pares igualmente extremistas. De outra parte, é possível que a adesão à escalada desinformativa funcione como um jogo viciante, que gera dependência severa: os que se deixaram acometer dessa compulsão não conseguem parar e, para alimentar o vício, aceitam trabalhar de graça para as organizações antidemocráticas.

O que parece estar em marcha é uma crise epistêmica de enormes proporções. Os métodos de que dispúnhamos para produzir conhecimento sobre a realidade dão sinais de fadiga, porque perdem praticantes e interlocutores. A polarização, ou seja, a cisão que partiu ao meio a sociedade dita ocidental, mina as formas abstratas pelas quais interpretávamos coletivamente o mundo. O estatuto da verdade factual, que já foi o alicerce do melhor jornalismo que tivemos, cai em descrédito.

Só assim podemos entender por que grupos que plantam seus pés sobre o mesmo pedaço de chão, dentro de um mesmo país, habitam mundos imaginários tão díspares. O diálogo racional sobre os fatos deixa de ser possível entre esses grupos. Pior: deixa de ser desejável. Quase ninguém mais quer saber de buscar termos de entendimento ou de convivência. Quase ninguém acha que precisa. E, se o diálogo racional já não tem serventia para fazer pontes entre as “bolhas”, a imprensa não tem mesmo por onde escapar: é convidada a se retirar, como se fosse uma pregação anacrônica ou uma tecnologia ultrapassada, mais ou menos como a bússola e o astrolábio, que caíram em desuso depois da invenção dos dispositivos de georreferenciamento via satélite.

LUZES, OBSCURANTISMO. Foi no calor das revoluções liberais do final do século 18 que a imprensa entrou em cena. A ideia de que a sociedade precisaria contar com uma instituição não estatal para criticar publicamente o poder nasceu do liberalismo insurrecional, não nasceu da democracia. O substantivo “democracia” mal aparecia nos panfletos quando a liberdade de imprensa foi inventada.

Naquela fase, os redatores das folhas públicas eram ativistas. Eles não tinham a menor preocupação com objetividade, com reportagem precisa, com ouvir os dois lados de um debate. Suas finalidades eram conquistar a simpatia da incipiente opinião pública e pressionar o soberano. Ser jornalista era ser militante.

Foi só ao longo dos séculos 19 e 20 que as duas práticas se diferenciaram. À medida que o ordenamento social se modificava e que as liberdades dos negociantes cediam espaço para os direitos dos que não eram donos de riquezas, as causas do liberalismo passaram a ter que negociar com as demandas, agora, sim, da democracia em construção. A liberdade de imprensa deixava de ser entendida como uma prerrogativa burguesa e passou a ser vista como um direito da sociedade inteira. O direito à informação do público aflorou. A instituição da imprensa, sem abdicar de seu espírito crítico de origem liberal, assumiu o tríplice encargo de (1) fiscalizar as autoridades, (2) informar a sociedade com independência e (3) mediar o debate público.

Na primeira metade do século 19, as redações começaram a se profissionalizar. Os pesquisadores Michael Schudson e Leonard Downie Jr., no ensaio A Reconstrução do Jornalismo Americano, publicado na Columbia Journalism Review, em 2009, anotaram que, nos Estados Unidos, somente por volta dos anos 1820 os diários começaram a contratar profissionais regularmente remunerados. Logo adiante, a notícia bem apurada virou mercadoria e, acima disso, um bem público. Foi então que as melhores redações, como a do New

York Times, sentiram a necessidade de separar o relato factual (o noticiário) da opinião (os editoriais). Militância e jornalismo se separaram.

No nosso país, o processo foi mais lento. Apenas no início do século 20 o proprietário de O

Estado de S. Paulo, Julio Mesquita, num movimento pioneiro, retirou seu jornal da órbita do Partido Republicano, ao qual sempre fora ligado, e fez dele um título independente, com diversidade de pontos de vista. O Estado se tornou o diário mais sólido, mais influente e mais próspero do Brasil, como narra o historiador Jorge Caldeira em Júlio Mesquita e Seu Tempo (Editora Mameluco, 2015). O dono do Estado morreu, em 1927, aos 64 anos de idade, como um empresário de sucesso, rico, poderoso, invejado e temido, mais ou menos como William Randolph Hearst nos Estados Unidos, apesar das diferenças éticas e estilísticas que os distinguiam.

Nesse período, na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil, os autores das páginas impressas começaram a fazer o caminho de volta: saíam das redações para entrar na política. O próprio Hearst, que se elegeu deputado, concorreu à prefeitura e ao governo de Nova York na primeira década do século 20, mas fracassou. Em 1919, numa conferência famosa, “A política como vocação”, proferida na Universidade de Munique, o sociólogo alemão Max Weber afirmou que o jornalista era o “demagogo” da modernidade. Weber não empregou a palavra “demagogo” no sentido pejorativo, mas para enfatizar que os expoentes da imprensa, como os oradores que discursavam na ágora na Grécia clássica, dispunham dos meios para “conduzir” o povo pela palavra. Os jornais eram o centro da esfera pública e reinavam absolutos.

Então, o negócio do entretenimento, nascido de uma costela dos diários, entrou na briga. A palavra impressa passou a enfrentar a concorrência da imagem e, logo em seguida, da imagem em movimento. Atores de cinema também tiveram a chance de se projetar como líderes potenciais e alguns se deram muito bem. Ronald Reagan, Arnold Schwarzenegger e Donald Trump (protagonista do reality O Aprendiz) que o digam.

Com o advento das tecnologias digitais, o entretenimento teve um impulso ainda mais vigoroso. As redes sociais catapultaram comediantes à posição de chefes de Estado. As plataformas têm sido elogiadas porque turbinaram o fluxo de mensagens e ampliaram absurdamente as audiências, mas elas também trouxeram reveses. As inovações, atreladas à indústria do divertimento, aposentaram os relatos informativos confiáveis e anabolizaram atrações mais excitantes – e menos confiáveis. Os formatos discursivos do show business contaminaram a linguagem da política, de modo irreversível.

Dentro dessas turbulências, as empresas jornalísticas foram pegas no contrapé, sem saber como reagir. Na virada dos anos 1980 para os anos 1990, o jornalista Rodrigo Mesquita, o diretor da Agência Estado, passou a integrar o Media Lab no MIT e alertou para a letargia das redações. Não foi ouvido.

O modo como os jornais foram atropelados pelas inovações digitais pode dar a impressão de que a derrocada foi, antes de tudo, um descompasso tecnológico, mas a história real não é bem essa. O maior impacto da internet e seus passatempos sobre a circulação das notícias bem apuradas e bem editadas não foi meramente tecnológico, assim como não foi apenas econômico. O maior impacto se deu no plano da linguagem, das formas de representação, nas tramas do discurso. A internet e suas técnicas permitiram que o aliciamento emocional, característico do entretenimento, se impusesse sobre o argumento racional. Isso desnutriu o jornalismo, desnaturou a política e abriu caminho para as multidões que hoje têm prazeres gozosos com a difusão da mentira.

Veio assim uma alteração drástica da vida cultural. Os apelos sensuais do entretenimento tomaram para si latifúndios inteiros da linguagem. O pensamento, por sua vez, só conseguiu resistir, se é que foi capaz de resistir, em franjas exíguas. A imprensa, consequentemente, também encolheu. A crise atual do jornalismo só pode ser compreendida no quadro mais amplo da crise epistêmica – e esta, por sua vez, é inseparável da expansão predatória do entretenimento, que redundou na crise agônica da política democrática.

Ninguém ignora que a disputa do poder sempre jogou com a dissimulação e com recursos cênicos. No nosso tempo, entretanto, não é mais a política que instrumentaliza o recurso cênico, mas o recurso cênico que se apossa da política, até o ponto de desfigurá-la. A escala mudou a ordem dos fatores e desorganizou o equilíbrio entre eles. O efeito de circo e a dimensão teatral, que antes entravam na fórmula como um meio para amplificar a razão política, foram convertidos no veio dominante, no qual a retórica política se reduziu a um pálido papel de coadjuvante. O marqueteiro roubou o emprego do ideólogo.

Olhemos em volta. Quem é o narrador: o jornalismo ou a indústria da diversão? Quem é o comentador? Quem é o indutor? Quem dá o tom? A resposta é tão fácil quanto ácida. Quem traz as boas-novas ou as más notícias é o entretenimento, que assumiu de vez o posto que antes cabia às manchetes. O entretenimento, com seus hábitos, seus templos, seus cânones e seu fundamentalismo contente, é quem confere a forma social da religião do nosso tempo. Ele modula as narrativas, rege o debate público, que funciona como um reality show, e subjuga as pobres vozes jornalísticas, às quais só resta a condição humilhante de sair por aí mendigando cliques.

O negócio do entretenimento não fiscaliza o poder. Não precisa. Ele é o poder.

Conclusão? Ora, por favor. A conclusão inexiste. Uma sociedade que se nega a conhecer os fatos não é nada além de uma turba que renuncia à textura da política e se rende ao fanatismo. O que vem a seguir não é bem uma nova ordem, mas uma desordem obscura, sem paralelo com nada que já tenhamos visto. Um mundo sem jornalismo será um mundo sem democracia – e, ironia das ironias, será também um mundo sem liberalismo.

Internet

O maior impacto das inovações digitais se deu no plano da linguagem, das formas de representação, nas tramas do discurso.

Ordem dos fatos

Não é mais a política que instrumentaliza o recurso cênico, mas o recurso cênico que se apossa da política

Eugênio Bucci, o autor deste artigo, é Jornalista. Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S. Paulo - USP, articulista do jornal  O Estado de S. Paulo e ECA-USP e membro da Academia Paulista de Letras. Publicado em 16.01.25

A arte lulista de iludir

Lula avisou a ministros que pode desistir de disputar a eleição em 2026. É uma artimanha tipicamente lulista: o presidente não pensa em outra coisa que não seja se manter no poder

Na mesma reunião ministerial em que anunciou, sem rodeios, que “2026 já começou”, convertendo seu governo num insolente comitê de campanha, o presidente Lula da Silva também recorreu a uma de suas cartadas típicas, sobretudo em períodos pré-eleitorais: a arte de iludir, com a qual invariavelmente sugere sinais opostos a suas reais intenções para obter dividendos políticos no futuro próximo.

Na parte pública da reunião, Lula tratou de invocar mais uma vez a “defesa da democracia”, atribuindo a seu governo (ou melhor, a si próprio) a missão de liderar a resistência nacional contra a “volta ao neofascismo, ao neonazismo e ao autoritarismo”, segundo suas próprias palavras. Já no momento fechado do encontro, o presidente fez chegar aos ministros a ideia de que seu nome poderá não estar nas urnas em 2026. “Deus no comando”, teria dito, segundo relatos, creditando a incerteza a um conjunto de variáveis, entre elas a saúde principalmente. Ao cogitar a hipótese de desistir, Lula teria mencionado ainda recentes episódios que colocaram sua vida em risco, como o problema técnico na aeronave presidencial e a cirurgia na cabeça após uma queda no banheiro.

Noves fora as inevitáveis incertezas do destino, que impedem qualquer ser humano – mesmo aqueles convictos de seus poderes divinos, como Lula – de ter a mais plena segurança sobre o que fará e onde estará daqui a quase dois anos, não há dúvida de que o presidente não pensa em outra coisa senão continuar governando o Brasil e liderando a esquerda tradicional lulopetista. Nesse ponto não lhe falta convicção: para Lula, não só governar é estar no palanque, como ele se sente o único que efetivamente pode salvar o Brasil do “neofascismo” e do “neonazismo”, que é como ele qualifica o bolsonarismo.

A reação de ministros aliados, espontânea ou calculada, foi de “preocupação”. Providencialmente, integrantes da cúpula do PT difundiram a jornalistas as razões para tanto: hoje, segundo petistas, os principais nomes que podem vir a lhe suceder não teriam condições de representar o partido na corrida eleitoral. Seria o caso dos ministros Fernando Haddad, Camilo Santana e Rui Costa. Essa é a costumeira artimanha de lulistas, possivelmente inspirados no próprio Lula: difunde-se uma dúvida sobre a disposição do Grande Líder; faz-se chegar à militância o nome dos eventuais substitutos; conclui-se que nenhum tem condições de conquistar corações e mentes de eleitores; e, por fim, volta-se ao essencial, isto é, Lula precisa ser o candidato.

A prestidigitação lulista já ocorreu em outros tempos, mas rigorosamente nada o impediu até aqui de disputar sete eleições presidenciais, tornando-se o recordista de candidaturas na história de nossa república. Ensaiou desistir – apenas ensaiou, sublinhe-se – em 1998, quando meses antes já parecia certa a sua derrota para um imbatível Fernando Henrique Cardoso pós-Plano Real, e em 2002, quando impôs ao PT carta branca para ele e José Dirceu atraírem alianças para além dos satélites tradicionais da esquerda. Lula não hesitou em ser o candidato nem mesmo quando estava claro que sua candidatura seria barrada. Foi o caso de 2018, ano em que o lulopetismo quis ter o seu nome na urna mesmo com Lula preso. Coube a Haddad então cumprir o papel de boneco de ventríloquo na eleição.

A “vontade de Deus” a que Lula se referiu na reunião, portanto, parece ter muito mais a ver com seu método de fortalecer o próprio nome e manter-se como o único farol a iluminar o espectro da esquerda tradicional liderada pelo PT. É inegável que até aqui o estratagema deu certo para si mesmo. Resta saber se o demiurgo será bem-sucedido novamente. Há quem veja no recado uma forma de galvanizar apoios entre partidos, mas lideranças do Centrão já alertaram publicamente que, ao contrário, isso pode abrir espaço para defecções numa base já ideologicamente frágil. Pode também ser uma forma de colocar à prova uma providencial fragilidade dos seus substitutos, o que só revela o horizonte rarefeito na esquerda – enquanto na direita já existe uma profusão de nomes dispostos a herdar o espólio de Jair Bolsonaro, à sombra da liderança de Lula poucos emergem para valer. Assim caminha o lulopetismo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 27.01.25

domingo, 26 de janeiro de 2025

O sonegador agradece

Revogação de monitoramento do Pix só beneficia um grupo: o crime organizado

Após forte ruído nas redes sociais, o governo Lula se acovardou e optou por revogar instrução normativa da Receita Federal que ampliava o monitoramento de transações via Pix superiores a R$ 5 mil mensais (para pessoas físicas) e R$ 15 mil (para jurídicas) a fintechs e plataformas de pagamento, como, aliás, já ocorre com os chamados bancos tradicionais.

Com isso, perdeu-se uma oportunidade de atualizar uma regra que já existia antes mesmo da adoção exitosa do Pix, quando transações financeiras eram feitas por meio do hoje descontinuado DOC. “Corre-se o risco de abrir uma fresta em todo o sistema, por exemplo, de controle de lavagem de dinheiro, de fraude”, afirmou Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central, à revista Capital Aberto.

Loyola não é voz isolada. Em publicação recente, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco) também alertou que, com o recuo do governo, se compromete o combate ao crime organizado, uma vez que os dados de fintechs e plataformas de pagamentos, algumas das quais empresas de fachada a serviço de bandidos de alta periculosidade, ficarão de fora da base de dados da Receita.

É fundamental ressaltar que a maioria das fintechs é séria, tem no Pix um importante aliado na inclusão bancária de milhões de brasileiros, cumpre regras e coopera com os órgãos governamentais para que o sistema financeiro seja cada vez mais transparente e seguro.

Contudo, também há fortes indícios de que organizações como o Primeiro Comando da Capital (PCC) utilizavam fintechs que teriam movimentado bilhões de reais de origem suspeita. Esses dublês de “bancos digitais” dariam aos seus clientes delinquentes uma blindagem contra, por exemplo, bloqueios judiciais.

Investigadores e economistas ouvidos pelo Estadão afirmaram, em novembro passado, que a profusão de casos de fraudes envolvendo fintechs demonstra a necessidade de atualização do ambiente regulatório no qual elas operam. A instrução da Receita, infelizmente revogada, era um importante passo nessa direção.

Atente-se ainda para o fato de que o Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e Lavagem de Dinheiro. Ao revogar uma medida que ampliava o escopo de combate à sonegação, o País corre o risco de ter sua seriedade na luta contra o crime manchada internacionalmente, algo extremamente contraproducente porque a transnacionalização das organizações criminosas exige cooperação cada vez maior com parceiros externos.

Incapaz de explicar à população que a instrução era importante no combate à sonegação, e que exatamente por isso apenas sonegadores precisariam se preocupar com seus atos ilícitos, o governo, politicamente fraco, preferiu cancelar uma medida absolutamente correta.

Inovação brasileira que é motivo de orgulho nacional, além de interesse internacional, o Pix bate sucessivos recordes no País ano após ano. Apenas em 2024, o volume de transações foi de mais de R$ 26 trilhões, praticamente 2,5 vezes o Produto Interno Bruto (PIB) de 2023. Quanto mais abrangentes e transparentes forem as regras de monitoramento do Pix, melhor para todos os brasileiros, com exceção dos criminosos. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.01.25