sábado, 21 de dezembro de 2024

Emendas parlamentares, a grande jabuticaba

O Brasil fragmenta o uso de seus recursos orçamentários, reduzindo a eficiência, produzindo redundâncias e estimulando a corrupção

Neste corre-corre de final de ano, deputados podem votar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para turbinar emendas individuais. Hoje, elas têm um limite de 2% da Receita Corrente Líquida. Esse limite já foi de 1,2%. Agora, pode crescer de novo, para 2,9%. Hoje, os parlamentares já dispõem de R$ 49 bilhões do Orçamento.

Isso é uma jabuticaba brasileira, uma anomalia nacional, se comparamos com outras democracias. Nos outros países, o Congresso tem um grande poder sobre o Orçamento, debatendo cada item, como o fazem os comitês orçamentários nos EUA. Na Inglaterra, o Orçamento preparado pelo Tesouro é apresentado pelo primeiro-ministro. Os parlamentares têm o direito de questionar os gastos, mas não de controlar sua aplicação.

Essa anomalia brasileira significa uma perda de poder do Executivo e, na verdade, interfere na separação de Poderes.

As eleições presidenciais não colocam o problema com a seriedade que tem. Lula da Silva prometeu acabar com o orçamento secreto, mas o fim dessa modalidade é apenas o fim de uma grande aberração inconstitucional. Se o orçamento secreto for superado, o que nunca é pelas inúmeras artimanhas para fugir à transparência, apenas será retirado um bode da sala.

O problema continuará de pé: que sentido terá um projeto presidencial, se o vencedor não tem condições de manejar os recursos orçamentários para realizar um programa aprovado pela maioria?

Uma saída pseudorrealista é estourar o Orçamento. Mas as consequências desse estouro se refletem na inflação e acabam inviabilizando o próprio programa, por meio de instabilidade econômica.

O argumento para as emendas parlamentares é o de que os deputados conhecem em detalhes as necessidades de suas regiões. Isso pressupõe que o governo central as ignora. Não haveria a possibilidade de trocar informações, de criar nos ministérios uma comissão de escuta dessas necessidades?

Da mesma forma, as chamadas emendas de comissões são uma espécie de redundância. Elas podem alcançar o limite de 1% da Receita Corrente Líquida. Mas as comissões no Congresso são uma réplica dos ministérios, elas atuam numa área em que o governo federal tem responsabilidade. Por que duplicar a administração de recursos? Por que o Ministério da Educação, por exemplo, não pode incluir em seus gastos as aspirações da comissão do Congresso?

Outra dificuldade são as chamadas emendas de bancada. São propostas pelo conjunto dos deputados de um Estado. Seu argumento é oposto ao das emendas individuais: são destinadas às grandes obras no Estado, às obras estruturais. Se os deputados partem do pressuposto de que pequenas obras escapam ao governo, aqui admitem que ele ignora as obras estruturais.

Na verdade, as chamadas emendas de bancadas acabam sendo divididas entre os deputados, uma espécie de rachadinha para que cada um destine sua parte do recurso.

A proposta que circula agora na Câmara acaba com a emenda de comissão e torna tudo emenda individual. É uma forma de se aproximar da verdade. No fundo, todos querem usar as emendas nos seus redutos individuais.

Mas a jabuticaba continua brilhando no pé. O Brasil, ao contrário das grandes democracias, fragmenta o uso de seus recursos orçamentários, reduzindo a eficiência, produzindo redundâncias e, por último, algo muito importante, estimulando a corrupção.

É um país em que aviões repletos de dinheiro são apreendidos pela Polícia Federal, em que vereadores jogam fortunas pela janela, na chegada da polícia – enfim, o País em que algumas cidades recebem por radiografias feitas em todos os seus habitantes, como se houvesse uma fratura unânime em seus limites territoriais.

A superação desse problema é muito difícil. Parece quase impossível fazer o gênio voltar para a lâmpada. Mas o primeiro passo, nas eleições de 2026, é não encarar as eleições presidenciais com tanta exclusividade, não montar frentes apenas com uma vaga visão democrática, mas tentar reduzir o desequilíbrio entre Executivo e Legislativo num campo tão decisivo como o da aplicação dos recursos orçamentários.

A batalha pela transparência e rastreabilidade das emendas parlamentares toca apenas na ponta do iceberg, apesar da sua enorme importância.

Não só o desequilíbrio continuaria a existir com a transparência. A própria ideia de controlar as emendas através de planos de trabalho é de difícil execução. Quem faria isso, com que regularidade e eficácia num país tão vasto?

A jabuticaba é insustentável se quisermos, como outras democracias, administrar com seriedade nossos recursos, que aliás não são nem do Executivo nem do Legislativo, mas frutos do trabalho da sociedade.

Não é sonhar muito com um país onde as coisas andam com regularidade e as pressões e contrapressões do processo se deem pelo confronto de ideias. Hoje o ritmo do trabalho parlamentar é primordialmente decidido pelo pagamento das emendas. Há dinheiro, trabalha-se; faltou dinheiro, boicotam-se as votações. A jabuticaba torna nossa democracia vulgar e desalentadora.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 19.12.24

Congresso atua como sindicato dos ricos e trava ajuste fiscal de que Brasil precisa, diz especialista em desigualdade

Desde que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou o pacote de corte de gastos públicos planejado pelo governo, na última quarta-feira de novembro, o país vive as consequências das reações à proposta.

Congresso 'atua como um empecilho à economia do país' (Getty)

O dólar ultrapassou a casa dos R$ 6 pela primeira vez na história no dia seguinte ao anúncio e lá ficou como expressão da insatisfação do mercado – que diz que esperava por medidas mais rígidas de redução fiscal. Na terça-feira (17), o dólar fechou em R$ 6,09.

No Congresso, a bancada governista também torceu o nariz, mas por outra razão: deputados estavam preocupados com as implicações nos programas sociais, sobretudo no Benefício de Prestação Continuada (BPC), mas também no salário mínimo.

Ao final, o Planalto precisou negociar com seu próprio partido, o PT, por votações favoráveis aos projetos.

Um dos maiores especialistas em desigualdades do país, o sociólogo Marcelo Medeiros, evita fazer críticas diretas ao ministro e seu pacote, mas deixa claro que, para ele, as medidas são ruins — e por vários motivos.

"É que é mais fácil cortar de quem é pobre do que de quem é rico. Também é mais imoral", resume.

Para Medeiros, é um erro político e moral mexer no salário mínimo

À BBC News Brasil, Medeiros, que está pesquisando neste ano na Universidade Columbia, em Nova York, nos Estados Unidos, e ainda é ligado à Universidade de Brasília (UnB), argumenta que o ajuste fiscal deveria focar em tributação no topo da renda, e não na base.

Estendendo essa análise, a decisão de isentar do Imposto de Renda (IR) uma classe média que ganha até R$ 5 mil por mês é uma "gotinha no oceano" perto do que deveria ser, para ele, realmente feito: revisar o grosso dos subsídios fiscais para diferentes setores produtivos.

Por causa desses subsídios, em 2022, o país renunciou a um montante de R$ 581 bilhões – ou mais de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) – em impostos, segundo dados oficiais.

Mas esse ajuste fiscal, que ele considera o pacote que deveria ser feito, de fato, não avança no Brasil por causa do Congresso, "que está atuando como um empecilho à economia do país" ao se comportar como um "sindicato dos ricos".

Porém, na leitura de Medeiros, o erro político — e moral — mais grave está em mexer no salário mínimo, que terá um teto de 2,5% de reajuste anual.

"Do Plano Real para cá, o principal mecanismo de redução de pobreza no Brasil tem sido o salário mínimo, e não Bolsa Família ou qualquer outro programa de assistência", diz Medeiros.

Sociólogo aponta limitações e problemas em pacote de ajuste fiscal anunciado pelo ministro Fernando Haddad.

Vinícius Mendes, Jornalista, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 18.12.24

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Lula, imorrível ou a cavalo como El Cid

O bolsonarismo, com ou sem Bolsonaro, irá em frente. Já o lulismo não tem nenhum sucessor à vista

Lula fala à imprensa após receber alta no Hospital Sírio-Libanês - Zanone Fraissat - 15.dez.24/Folhapress

As ziquiziras de saúde de Lula acordaram os últimos distraídos para uma preocupação: a falta de opções no espectro democrático na vacância do titular. Há uma carência de nomes na esquerda, na centro-esquerda e até no campo liberal. A direita e a extrema direita, ao contrário, apesar do rabo entre as pernas pelos processos de golpismo contra Bolsonaro e asseclas, tornarão competitivo qualquer um que apresentem no lugar de seu inelegível e, em breve, condenado mito. O bolsonarismo, com ou sem Bolsonaro, irá em frente. O resto do Brasil terá de contar com Lula. Não há opções viáveis nas suas proximidades.

Já foi diferente. Um jovem eleitor de hoje achará difícil de acreditar, mas, na primeira eleição pós-democratização para presidente, em 1989, tínhamos um largo arco de escolhas. Eram 22 candidatos. Metade só visava um brilhareco junto aos familiares, mas os demais eram para valer e representavam vários pensamentos políticos. E, sem carbonários à direita ou à esquerda, ninguém chegava sequer perto das extremidades do arco.

De um lado, o sindicalista Lula, o trabalhista Leonel Brizola, o social-democrata Mario Covas, o liberal Ulysses Guimarães, o comunista Roberto Freire e o ambientalista Fernando Gabeira. Cada qual com seu programa, mas todos respeitáveis e comprometidos com o Brasil. Nenhum eleitor poderia ser crucificado por pender para qualquer deles. Lula, Brizola e Mario Covas perderam, mas foram bem. Ulysses fracassou e Freire e Gabeira tiveram os votos que esperavam, os dos amigos.

Do outro lado, Paulo Maluf, Guilherme Afif, Aureliano Chaves, Ronaldo Caiado e Fernando Collor. Todos beneficiários ou ex-funcionários da ditadura, mas que, se deixados por conta de seus interesses pessoais, não ameaçariam as liberdades básicas.

Hoje essa ameaça é palpável e com nuances sombrias para a democracia. O PT empurrou todos os partidos para a direita e formou uma poderosa frente contra si próprio. E seu líder, homem de fé, está convencido de que é imorrível. Em último caso, à falta de melhor, irá às eleições em 2026 amarrado ao cavalo, como El Cid.

Ruy Castro, o autor deste artigo, é Jornalista e escritor; autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues. é membro da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 19.12.24

Con­gresso, o dinheiro aca­bou!

A falta de republicanismo é flagrante. Mas não é só um problema ético, moral e que ameaça a democracia, no sentido de abalar o processo orçamentário típico. 
É também o sintoma de um sistema político doente e cada vez mais distante das reais necessidades do povo brasileiro. 


Onde no Brasil o diabo mais gosta

A festa acabou, o povo sumiu e anoite esfriou, parafraseando Carlos Drummond de Andrade. Entretanto, o Congresso Nacional continua coma faca no pescoço do ministro da Fazenda, na busca por mais e mais emendas parlamentares e benesses. É preciso aprovar as ações de ajuste fiscal e retomar a responsabilidade com o dinheiro público.

A farra com as emendas parlamentares chegou ao limite de ensejara atuação do próprio Supremo Tribunal Federal( STF ), a partir da correta decisão do ministro Flávio Dino. Ela obriga à transparência e delimita os parâmetros para organizar o coreto. Contudo, em plena votação do pacote de ajuste fiscal, as lideranças do Congresso partilham na penumbra vultosos recursos públicos – antes, vale dizer, bloqueados pela atuação do STF.

A falta de republicanismo é flagrante. Mas não é só um problema ético, moral e que ameaça a democracia, no sentido de abalar o processo orçamentário típico. É também o sintoma de um sistema político doente e cada vez mais distante das reais necessidades do povo brasileiro. Veja-se, por exemplo, a matéria do programa Fantástico, da TV Globo, que mostrou orecapeamento asfáltico financiado por emendas, em determinadas localidades, em condições mais parecidas com um “chiclete”. Para onde foi o dinheiro?

A lambança promovida pelo Congresso tem consequências sobre a economia, para além do mau uso do recurso público, cada vez mais escasso em um contexto de dívida pública crescente. O mercado precifica a irresponsabilidade fiscal nos juros e dólar mais caros. Não tem nada a ver com o maquiavelismo do mercado sugerido por lideranças petistas nos últimos dias. Ora, vejam, não temos hoje no Banco Central diversos diretores apontados pelo próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva? Como vão culpar, agora, o competente Roberto Campos Neto? Sinuca de bico para a retórica de boteco adotada por esse setor da política que, aliás, compõe a própria base governista.

O País precisa urgentemente de um choque fiscal. A dívida pública vai alcançar os 80% do Produto Interno Bruto (PIB), rapidamente, e a tarefa de estabilizar esse indicador poderá transformar-se em missão impossível. Tudo depende da elite política do País e de sua consciência. O dinheiro acabou, nobres parlamentares. Já rasparam o tacho, já distorceram a reforma tributária do consumo

Até quando o País aguentará que certas saúvas sigam trabalhando para acabar com o crescimento econômico e a normalidade dos mercados?

enfiando mais benefícios para a Zona Franca de Manaus e diversos setores amigos do rei. O que mais os senhores pretendem?

Agora, desidratam os projetos e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) enviada pelo Executivo para providenciar um ajuste fiscal mínimo. Atuam como se Brasília fosse uma espécie de bolha apartada da sociedade brasileira e da economia. Enquanto a pobreza e a miséria ainda envergonham a Nação, o Congresso dá-se ao luxo de praticar o proselitismo, mas não por ele mesmo; pior, tendo em vista mascarar seus reais objetivos de disparar mais e mais recursos por meio de emendas, descumprindo a decisão do STF.

Até quando o País aguentará que certas saúvas sigam trabalhando para acabar com a prosperidade, o crescimento econômico e a normalidade dos mercados? Estamos chegando a um limite preocupante. O ministro da Fazenda parece voz isolada. O presidente da República tem de entrar no jogo e mostrar de que lado está: do populismo barato, com medidas impensadas para ampliar a isenção do Imposto de Renda, ou do ajuste das contas e da responsabilidade que ele mesmo chegou a defender e a praticar?

Deixar nas mãos do Banco Central a tarefa de restabelecer a normalidade na economia nacional vai significar juros nas alturas e crescimento econômico no chão. A elevação da Selic é o instrumento de que a autoridade monetária dispõe, bem como as intervenções no mercado de dólar. Mas o uso dessa caixa de ferramentas não servirá para muita coisa se o Congresso não avançar na direção do ajuste fiscal proposto pelo governo.

É hora de apoiar o programa de contenção de gastos. Mais do que isso, de aprimorá-lo e de ampliá-lo. A dívida pública não vai se estabilizar apenas com as ações anunciadas. Sobretudo, não estacionará na presença de juros ainda mais elevados, já contratados em 14,25% ao ano após a última decisão do Comitê de Política Monetária (Copom).

Para ter claro, o déficit primário projetado para o ano que vem, mesmo sob os efeitos do novo pacote, tende a ficar acima de R$ 90 bilhões. A meta zero, como se vê, está muito distante. Pior, para estabilizar a dívida/PIB, é preciso produzir superávit primário. Com juros reais de 10%, nível para o qual estamos caminhando sem atalhos, mesmo que a economia cresça em torno de 3%, seria preciso gerar superávit primário de mais de 5,5% do PIB. É impraticável. A conta evidencia o tamanho do pesadelo em que nos metemos por pura inépcia.

O governo tem culpa na demora para enviar as medidas de ajuste, na contratação de gastos desnecessários desde o início do mandato atual e na falta de foco na tesoura. Entretanto, tomou uma decisão correta, agora, ao enviar um pacote de contenção de gastos. O Congresso tem de acordar para a realidade e deixar de lado a mesquinharia que parece ter dominado o Plenário Ulysses Guimarães. 

Felipe Salto, o autor deste artigo, é o economista - chefe e sócio da Warren Investimentos. Foi Secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de S. Paulo (2022). Publicado n'O Estado de S. Paulo, m 19.12.24

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

É tudo culpa do Lula?

Sem compromisso republicano das lideranças do país, inclusive do setor privado, a cada dia colocamos um tijolo na parede da ingovernabilidade do Brasil


Chico Buarque visitou Lula em sua casa nesta terça-feira em São Paulo — Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação

No regime presidencialista, a responsabilidade sobre os rumos da economia recai no presidente da República. Mesmo que os demais poderes cumpram papel relevante, cabe ao chefe do Executivo buscar o diálogo e soluções majoritárias.

Essa equação, porém, é mais complexa no Brasil, onde o patrimonialismo é disseminado e arraigado, beneficiando muitas corporações e grupos organizados, em um contexto de elevada desigualdade social. As muitas demandas por proteção, benefícios e privilégios, inclusive de dentro da máquina estatal, batem nas portas de todos os poderes.

Quando atendidas, pesam nos cofres públicos, comprometendo a capacidade de investimento do Executivo, enquanto não atendê-las implica elevado custo político e até ameaça à governabilidade.

O fato de o governo atual ter abraçado a agenda de elevação de gastos já de largada — e não em final de mandato, com vistas à reeleição — colocou mais combustível nas demandas. Afinal, todos tentam garantir o seu quinhão.

O quadro de polarização política extrema é sério agravante na construção de apoio político para avançar com reformas e evitar pautas-bombas. Ainda mais com Lula fazendo parte da divisão, o que, de quebra, impõe um teto à aprovação de seu governo.

Com magras taxas de aprovação (avaliação bom/ótimo em 35% em dezembro, segundo o Datafolha, é comparável à de Bolsonaro em 2020), o presidente exibe modesto capital político, inclusive com questionamentos à viabilidade de sua reeleição. E aqui vale a máxima: a força de um político está associada à perspectiva futura de poder.

Com a fraqueza do governo, muitos grupos aproveitam as fissuras abertas para preservar o status quo. A lista de más notícias só faz crescer. Vale citar algumas recentes.

A Reforma Tributária foi mais uma vez desidratada pelo Senado. Novamente, vários itens foram equivocadamente incluídos nos regimes diferenciados de tributação, elevando a alíquota-padrão. A Câmara retirou alguns dos excessos do Senado.

Ainda assim, o balanço final é desfavorável aos mais pobres, pois são mais impactados pela alíquota-padrão e a maioria dos itens com menor tributação não está na sua cesta de consumo.

Os jabutis do setor elétrico são outro exemplo. No projeto de lei que regulamenta a produção de energia eólica em alto-mar, o Senado ampliou os benefícios da geração solar de pequenas centrais. A fatura vai para o bolso do consumidor, reforçando o lema do país com baixo custo de geração de energia, mas com tarifa elevada.

O projeto de lei de renegociação das dívidas de estados com a União, de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, é mais um a premiar más gestões e a desestimular reformas estruturais nos entes.

Os juros da dívida são reduzidos e os pagamentos postergados, sem uma contrapartida de ajuste fiscal, enquanto se abre espaço para aumentar gastos. Estados ricos, mais endividados, são os mais beneficiados.

Tem ainda os seguidos penduricalhos do Judiciário, que escapam do teto do funcionalismo (R$ 44 mil em 2024). São benefícios de todo tipo que engrossam as remunerações, sem sofrerem a incidência de impostos.

O pacote fiscal do atual governo, ainda que propondo mudanças em poucos itens, tem o mérito de reconhecer que somos um país onde corte de despesas é praticamente impossível, pois os grupos impactados reagem, sendo mais razoável adotar mudanças graduais. Ainda assim, o vento contra é forte, sendo a liberação de emendas parlamentares a moeda de troca.

Esse quadro não é de hoje. Vale relembrar que o ex-ministro Paulo Guedes passou maus bocados. A Reforma da Previdência precisou poupar alguns segmentos, como militares e o funcionalismo de estados e municípios. Depois vieram gastos excessivos na pandemia, que resultaram em volta mais rápida da inflação, e os furos no teto de gastos.

O próprio presidente era contra as reformas pretendidas por Guedes, que defendia medidas extremas, inviáveis politicamente. As consequências não foram mais graves porque a arrecadação batia recordes, inclusive impulsionada pela elevada inflação ao produtor.

O presidente pode menos do que se imagina. Sem autocontenção e compromisso republicano das lideranças do país, inclusive do setor privado, seguiremos colocando a cada dia um tijolo na parede da ingovernabilidade do Brasil, quem quer que seja o próximo presidente.

 Zeina Latif, a autora deste artigo, é economista. Publicado originalmente n'O Globo, em 18.12.24

Braga Netto foi ao Alvorada em 44 dos últimos 60 dias do governo Bolsonaro

Ex-ministro chegou a ficar 11 horas no local, em período no qual a PF afirma que investida antidemocrática foi planejada; defesa nega acusações

General Walter Braga Netto — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

Preso no sábado sob suspeita de tentar atrapalhar investigações, o ex-ministro Walter Braga Netto foi uma presença constante no Palácio da Alvorada nos dois últimos meses do governo de Jair Bolsonaro, quando, segundo a Polícia Federal, houve discussões sobre um golpe de Estado no país. Braga Netto esteve no local em 44 dos 60 dias entre 31 de outubro de 2022, um dia após a derrota na eleição presidencial, e 30 de dezembro, quando Bolsonaro viajou para os Estados Unidos.

Ao todo, há 55 registros de entrada de Braga Netto no Alvorada neste período — em alguns dias ele esteve no local duas ou até três vezes. Com exceção de membros da família de Bolsonaro e de funcionários do local, ele foi a pessoa que mais esteve na residência oficial no fim do governo. O tenente-coronel Mauro Cid, por exemplo, que era ajudante de ordens do então presidente, tem 53 registros. Os dados foram coletados pela PF e usados como prova na investigação.

A defesa de Braga Netto afirma que irá comprovar que não houve tentativa de obstrução das investigações.

Além de ter chefiado a Casa Civil e o Ministério da Defesa, Braga Netto foi candidato a vice na chapa de Bolsonaro na disputa de 2022. Em depoimento como parte de sua delação premiada, Mauro Cid afirmou que o ex-ministro, que é general da reserva, entregou dinheiro para financiar operações do suposto grupo criminoso. A defesa nega as acusações.

As visitas variavam, podendo ser curtas, de menos de uma hora, ou mais longas, chegando a até onze horas. A maior delas foi no dia 4 de novembro, quando Braga Netto esteve no local por onze horas e 24 minutos.

No dia 22 de novembro, o general passou pouco mais de dez horas no palácio, das 9h06 às 19h14. Nessa data, o PL apresentou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) um pedido para anular os votos dados em quase 60% das urnas usadas no segundo turno das eleições presidenciais.

Pouco antes, no dia 18, ele foi gravado falando com apoiadores que estavam no Alvorada: "Vocês não percam a fé. É só o que eu posso falar para vocês agora". Neste dia, ele ficou mais de oito horas no local, das 8h06 às 16h23.

Os horários de Braga Netto também coincidem com ao menos três reuniões com os comandantes das Forças Armadas, nos dias 1º, 14 e 22 de novembro. Posteriormente, Bolsonaro apresentou aos comandantes uma proposta para reverter o resultado das eleições.

No dia 15 de dezembro, Braga Netto esteve no Alvorada duas vezes: uma pela manhã (entre 8h39 e 9h29) e outra de tarde (entre 14h24 e 17h28). Neste dia, de noite, de acordo com a PF, uma operação para sequestrar o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), chegou a ser iniciada, mas foi abortada.

Em 21 de dezembro, o general da reserva foi três vezes ao Alvorada. A última entrada foi às 16h34, e não há horário de saída. No dia seguinte, há dois registros de entrada: Braga Netto esteve no local durante meia-hora pela manhã, entre 8h15 e 8h48, e depois retornou às 15h09. Novamente, não há horário de saída.

Nesses dois dias, Mauro Cid e o coronel Marcelo Câmara, que era assessor de Bolsonaro, trocaram mensagens sobre a localização de Moraes. Eles conversam na noite do dia 21, entre 22h51e 23h04, e Câmara manda uma última mensagem na madrugada do dia seguinte, às 5h48.

O último registro de entrada de Braga Netto é de 26 de dezembro, quando ele passou quase onze horas no Alvorada, entre 8h46 e 19h25. Um dia depois, ele demonstrou em uma mensagem ainda ter esperança de continuar no governo, ao responder uma pergunta sobre para onde direcionar um currículo. "Se continuarmos poderia enviar para a Sec Geral (Secretaria-Geral)", escreveu, para um assessor de Bolsonaro.

Daniel Gullino, o autor, é Repórter de O Globo na sucursal de Brasília - DF. Publicado originalmente em 18.12.24 

De olho em espólio de Bolsonaro, Mourão defende golpistas e ataca STF

Com novo sotaque gaúcho, general exalta Braga Netto e fala em "ditadura da toga"

O senador Hamilton Mourão em entrevista após a prisão do general Braga Netto — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

O general Hamilton Mourão resolveu apontar sua garrucha contra o Supremo. Da tribuna do Senado, ele acusou a Corte de perseguir “quem se atreve a ser de direita”. “No Brasil, o Estado de Direito se tornou um Estado de juristas ou até mesmo uma ditadura da toga”, discursou.

De ditadura, Mourão entende. Sempre defendeu a de 1964, a ponto de chamar de herói o notório torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. A novidade é o sotaque gaúcho que ele adotou recentemente para caçar votos no Rio Grande do Sul.

No discurso de ontem, o senador disse que o Estado democrático de Direito estaria em “franca degeneração”. A culpa, claro, seria dos ministros do Supremo. “Os próprios guardiões da Carta Magna não a respeitam”, trombeteou o general. Deve preferir a Justiça Militar, conhecida por aliviar com acusados de farda.

Mourão encontrou um novo herói: o general Braga Netto, preso no último sábado pela Polícia Federal. Definiu o colega em apuros como “um velho soldado encanecido a serviço da pátria”. “Está afastado do convívio familiar, como se fosse um perigoso meliante capaz de atentar contra a ordem pública”, dramatizou.

O general instou o Senado a “levantar-se em uníssono” na defesa de Braga Netto. O apelo não comoveu nem os bolsonaristas mais dedicados. Damares Alves preferiu discursar sobre a guerra na Ucrânia. Magno Malta encontrou tempo para comentar a despedida do ex-jogador Adriano.

Mourão falou sozinho, mas não gastou saliva à toa. Com Jair Bolsonaro inelegível, o general busca se reposicionar para disputar o espólio da extrema direita. Para isso, precisa endossar a pregação contra o Supremo e a conversa fiada da “ditadura da toga”.

Não há inocentes num plano para solapar a democracia e matar o presidente eleito. O senador sabe disso, mas adotou a tática de desqualificar as investigações e tratar a trama criminosa como uma “conspiração tabajara”.

Empenhado no novo papel, Mourão finge não se lembrar das humilhações que sofria de Bolsonaro quando era vice-presidente. O senador Pinheiro Machado, um gaúcho de sotaque legítimo, dizia que a política é a arte de engolir sapos. O general parece ter aprendido rápido.

 Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 18.12.24

Leia Ludwig von Mises

Ele mostra como o socialismo e a regulamentação reduzem o desabrochar humano

O economista Ludwig Heinrich Edler von Mises (1881-1973) - Ludwig von Mises Institute

Estou lendo dois livros do economista e filósofo social Ludwig von Mises (1881-1973).

Judeu nascido no Império Austro-Húngaro, ele ensinou Hayek, entre outros, na Universidade de Viena. Mas em 1934 fugiu de Hitler para a Suíça e em 1940 conseguiu atravessar a França e a Espanha rumo aos EUA.

Depois da guerra, lecionou por décadas na Universidade de Nova York. Seus alunos incluem algumas estrelas que me influenciaram, todos exibindo o refinado senso comum chamado de economia "austríaca". A Escola Austríaca, a propósito, é desprezada pela maioria dos economistas na Áustria hoje em dia. Grandes tolos. Mas eu sou mais tola ainda por não ter lido Mises antes.

Os dois livros são "Socialismo: Uma Análise Econômica e Sociológica" (1922) e "Liberalismo" (1927). Ambos têm edição em português.

Neles Mises mostra como o socialismo e a regulamentação que dominam a política brasileira reduzem o desabrochar humano. Como no meu país. Veremos se as propostas admiravelmente antissocialistas do governo Trump poderão superar suas propostas terrivelmente fascistas.

O próprio Mises, na década de 1920, viu o fascismo como uma represa temporária contra o socialismo recentemente "bem-sucedido" na Rússia. De forma alarmante, alguns de seus seguidores e inimigos interpretaram seus comentários como se ele fosse aprovar o fascismo de Trump. De forma alguma. Ele detestava a dependência do fascismo da violência, em vez da persuasão, e previu corretamente que ele levaria a uma guerra geral. Os fascistas italianos e outros acreditavam, como Trump, que o comércio e outras relações internacionais são de soma zero —que a Itália só poderia prosperar conquistando a Etiópia ou a Grécia, por exemplo. Mises foi o grande expoente da soma positiva do verdadeiro liberalismo, comprometido com o livre comércio e a paz.

Os livros são análises interessantes, combinadas com um amor apaixonado pela liberdade. Mises resumiu as visões das quais discorda de forma totalmente justa. A maioria dos acadêmicos vê os oponentes como malignos, na pior das hipóteses, idiotas na melhor. Mas Mises elogiou os socialistas pelo desejo sincero de ajudar os pobres. Infelizmente, como observou, as intervenções prejudicaram os pobres.

Mises não era um quantificador. Isso o tornava menos persuasivo. O monopólio, por exemplo, pode ser mostrado quantitativamente como trivial, a menos que seja apoiado por um Estado corrupto. Veja o monopólio do táxi ou os excessos absurdos na lei de patentes. Combinar sua estrutura com números, como fazem os austríacos da Universidade George Mason, é uma ciência melhor para as políticas.

No entanto, Mises e a maioria dos economistas, ainda hoje, e alguns até da George Mason, acham que o investimento em capital explica o grande enriquecimento desde 1776. Não explica. A nova ideia do liberalismo, e não os direitos de propriedade sobre o capital, que sempre foram fortes, libertou a criatividade humana de uma vez por todas.

Em "Liberalismo", ele escreveu: "São as ideias... apenas elas, e não as armas, que, em última análise, viram a balança". Exatamente. Pessoas libertas acabam sendo fantasticamente inovadoras.

Vamos fazer isso. E pare de dar ao Estado mais coerções fascistas.

Deirdre Nansen McCloskey, a autora deste artigo, é economista, professora emérita de economia e história na Universidade de Illinois, em Chicago (United States of América). Publicado originalmente em lingua portuguesa na Folha de S. Paulo, em 18.12.24

Uma eleição sem Lula e Bolsonaro?

Argumento da idade poderá tirar petista da disputa; capitão reformado já está legalmente impedido de concorrer e poderá estar preso

Lula e Jair Bolsonaro durante debate na TV na campanha eleitoral de 2022 - Nelson Almeida/AFP

Em 2026 poderemos ter uma eleição presidencial sem Lula e Jair Bolsonaro.

Pelo lado de Lula, a situação é delicada. Até onde a vista alcança, ele terá condições objetivas de concorrer à reeleição, mas a idade poderá revelar-se um empecilho. O episódio de hemorragia cerebral por que ele passou está fortemente relacionado à idade.

Se os EUA servem de prévia, foi o número de velas no bolo que inviabilizou a candidatura de Biden. Aliás, o próprio Lula disse várias vezes na campanha de 2022 que estaria velho demais para um quarto mandato.

E o problema é que Lula não tem sucessor óbvio no PT. Para manter-se como líder inconteste do partido, ele trabalhou ativamente para que não surgisse nenhum. O mais perto que há de um candidato natural é Fernando Haddad, mas, por ocupar a posição de ministro da Fazenda, sua viabilidade eleitoral está indissociavelmente ligada ao desempenho da economia. E é o próprio Lula e as alas mais ideológicas do PT que vêm contribuindo para turvar o cenário que favoreceria Haddad.

Já nas hostes bolsonaristas, a ausência do capitão reformado é quase uma certeza. São irrisórias as chances de ocorrer uma reviravolta judicial que lhe restitua o direito de pleitear cargos eletivos. É mais verossímil imaginá-lo atrás das grades do que na chapa presidencial.

Resta saber qual será o nome da direita na disputa. Pode ser alguém tão ruim quanto Bolsonaro. Pense em Eduardo Bolsonaro ou em Pablo Marçal. Mas também pode ser um candidato que abrace a pauta conservadora, mas não os elementos antissistema da agenda bolsonarista.

Na democracia, devemos estar prontos a aceitar a vitória de ideias que desprezamos, desde que haja compromisso com a manutenção das regras do jogo e com um núcleo básico de direitos e garantias —o pacote liberal.

Infelizmente, não dá para descartar cenários ainda mais distópicos. Imagine uma teocrática presidenta Michelle Bolsonaro convocando cadeia de rádio e TV e falando em línguas com a população.

O fundo do poço sempre pode ter um alçapão. Os americanos estão prestes a passar por ele

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo e é autor de "Pensando Bem…".  Publicado na edição impressa da Folha, em 17.12.24. 

Sacola de dinheiro das emendas requer transparência

Que ao menos o nome do ‘padrinho’ e o destino das verbas sejam identificados publicamente

O plenário da Câmara dos Deputados — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

O vereador Francisquinho Nascimento quase conseguiu se livrar da prova. Quando os agentes da Polícia Federal chegaram a seu apartamento, em Salvador, na última terça-feira, ele atirou uma sacola pela janela. Deu azar. Os policiais recuperaram a sacola. Continha notas de R$ 200, R$ 100 e R$ 50, no valor exato de R$ 220.150,00.

Nascimento foi apanhado na Operação Overclean, coordenada pela Polícia Federal e pela Controladoria-Geral da União (CGU), órgão do governo federal. O objetivo era apurar um esquema de desvio de dinheiro de emendas destinado ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs). Segundo nota da CGU, investigações preliminares sugerem o possível desvio de R$ 1,4 bilhão em diversos contratos públicos.

Como a coisa funciona? Um deputado ou senador destina o dinheiro das “suas” emendas ao Dnocs. Algum órgão do ministério encaminha os recursos, obrigatoriamente. O dinheiro chega aos cofres do Dnocs e, nesse caso, parece ter sido usado não para obras, mas para encher o bolso de políticos e empresários.

Se fosse um caso isolado, já seria grave. Mas a investigação da CGU descobriu que R$ 5,5 bilhões de emendas foram destinados a organizações não governamentais. Numa análise por amostra, envolvendo dez organizações, a CGU verificou que pelo menos cinco entidades não tinham a menor condição de fazer nada, pareciam de fachada. A mesma investigação encontrou casos de obras não terminadas ou, pior, que nem começaram, mesmo já tendo recebido o dinheiro das emendas.

Claro que não se pode generalizar, e há mesmo pelo menos um ponto a favor do sistema de emendas. O parlamentar está mais perto das bases de seu estado, de modo que deve conhecer as necessidades da região. Mesmo assim, e mesmo que todo o dinheiro fosse bem utilizado, restaria um enorme problema para as finanças públicas.

Do Orçamento da União, 92% vão para despesas obrigatórias — basicamente, Previdência, pessoal e benefícios sociais. Com os restantes 8%, o governo federal mantém a máquina funcionando e investe. São as despesas discricionárias, entre as quais se incluem as emendas parlamentares, sobre as quais o Executivo não tem controle.

Segundo dados da Instituição Fiscal Independente, até setembro de 2024 a despesa discricionária total chegou a R$ 153 bilhões. E o gasto com as emendas parlamentares alcançou R$ 45,7 bilhões. O previsto para este ano todo passa dos R$ 50 bilhões. Em 2020, as emendas representavam 11,1% dos gastos discricionários. Neste ano, 17%.

O Orçamento da União é uma peça completa, montada de acordo com a orientação política do governo eleito, visando a atender as necessidades nacionais. Tem de ser aprovada pelo Congresso, que pode alterá-la, cortando certas despesas, acrescentando outras. É assim que funciona nas democracias. O Executivo propõe, o Legislativo aprova. O Congresso, portanto, já tem o poder sobre o Orçamento.

Mas deputados e senadores querem o que alguns líderes chamam de “Orçamento do Legislativo” — justamente aqueles R$ 50 bilhões, recursos para ser aplicados por cada parlamentar, conforme seu interesse político e eleitoral. É inédito o tamanho a que isso chegou. Há o sistema de emendas em alguns outros países, mas com valores mínimos.

Se não se consegue ao menos diminuir as emendas — a palavra final nisso é do próprio Congresso —, que ao menos o dinheiro seja aplicado com transparência e com critérios razoáveis. Que o nome do “padrinho” e o destino das verbas sejam identificados publicamente. E que o dinheiro seja liberado mediante a apresentação de um projeto mostrando como o recurso será aplicado.

É o que consta das regras estipuladas pelo ministro do STF Flávio Dino. Que foram mal recebidas no Congresso. O ministro também pediu que as emendas já pagas, nos últimos anos, fossem identificadas. O Congresso mandou dizer que, a esta altura, era impossível. Não é de estranhar, portanto, a bronca do ministro. Assim ele definiu:

— Bilhões de reais do Orçamento da Nação tiveram origem e destino incertos e não sabidos.

E querem continuar assim?

Carlos Alberto Sardenberg, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado original,ente n'O Globo, em 14.12.24

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Um general quatro estrelas na cadeia

Seja qual for o destino penal do general Braga Netto, sua prisão preventiva mostra a extensão da vergonha que o bolsonarismo causou às Forças Armadas

General Braga Netto na Polícia Federal, zona central do Rio, após ser preso

O País acordou ontem com a notícia da prisão de um general quatro estrelas da reserva, um desdobramento dramático do caso da suposta trama golpista contra o presidente Lula da Silva, investigada pela Polícia Federal (PF). É evidente que tudo ainda carece de maiores esclarecimentos, mas o episódio em si mesmo ilustra com clareza meridiana a dimensão da vergonha causada pelo bolsonarismo às Forças Armadas.

Por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), após consulta à Procuradoria-Geral da República (PGR), a Polícia Federal (PF) prendeu preventivamente o general de Exército da reserva Walter Braga Netto. O militar, segundo a PF, é suspeito de ser um dos líderes da tentativa de golpe de Estado urdida nos estertores do governo de Jair Bolsonaro para impedir a posse de Lula da Silva, plano que teria envolvido até o assassinato do atual mandatário, entre outras autoridades.

Moraes decretou a prisão preventiva de Braga Netto porque, ainda de acordo com a PF, ele estaria destruindo provas e, principalmente, coagindo testemunhas para tomar conhecimento do teor sigiloso do acordo de colaboração premiada firmado pelo tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro.

A serem verdadeiras essas acusações, haja vista que a prisão de Braga Netto foi ordenada por Moraes em grande medida pelos supostos novos elementos de prova que Mauro Cid teria fornecido ao STF em seu depoimento mais recente, prestado no dia 21 de novembro, está-se diante, de fato, de condutas típicas para a decretação da prisão preventiva. Por essa razão, Braga Netto foi mantido no cárcere após ser submetido à audiência de custódia, ocasião em que são verificadas as eventuais ilegalidades de uma prisão.

De todos os suspeitos de participar da intentona, Braga Netto, sem dúvida alguma, é o mais graduado a ser preso até agora. Acima dele só haveria o golpista maior, Jair Bolsonaro, o grande beneficiário do eventual sucesso daquele plano nefasto que teria sido colocado em marcha após sua derrota nas urnas em 2022, como aponta a PF. A regra no Brasil, como o passado demonstra, sempre foi o acobertamento de militares, da ativa e da reserva, suspeitos de terem cometido crimes comuns – à exceção, por óbvio, daqueles delitos cobertos pela Lei da Anistia, de 1979.

A prisão preventiva de Braga Netto, portanto, quebra essa rotina de leniência, para dizer o mínimo, com a apuração de crimes comuns envolvendo militares, fardados ou não, em que pese se tratar – e é fundamental frisar isso – de uma prisão cautelar, ou seja, decretada em sede de investigação, e não de antecipação de culpa nem muito menos de cumprimento de pena. Mas só isso, porém, já é algo inédito ao menos desde a redemocratização do País.

Se a prisão de outros militares de alta patente suspeitos de envolvimento na tentativa de golpe já não foram triviais, a de Braga Netto é histórica, na mais estrita acepção do vocábulo. Afinal, além de ele ser um general com quatro estrelas nos ombros a ir para a cadeia, sobretudo por suspeita de ter liderado uma tentativa de golpe de Estado, Braga Netto foi chefe do Estado-Maior do Exército, ministro da Casa Civil e da Defesa no governo Bolsonaro, candidato a vice na chapa do ex-presidente e, ademais, interventor na Segurança Pública do Rio de Janeiro, uma elevada posição de poder, malgrado o fiasco operacional da intervenção militar.

A prisão de um personagem como Braga Netto, alguém que, além de possuir o currículo acima, foi uma figura central na política brasileira nos últimos anos, é reveladora do desassombro com que membros do alto escalão do governo anterior parecem ter agido para se manter no poder a despeito da derrota eleitoral. Como sublinhamos nesta página há algumas semanas, o Brasil só terá paz quando todos os suspeitos de ter urdido o golpe de Estado forem julgados de acordo com as leis do mesmo Estado Democrático de Direito que tentaram abolir (ver Traidores da Pátria, 20/11/2024).

Desde a manhã de ontem, o general da reserva Walter Braga Netto viu consideravelmente reduzida a distância que o separa desse inevitável acerto de contas com a Justiça.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 15.12.24

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Mujica: 'Se você não tiver uma causa, a sociedade vai te enquadrar, e você vai passar a vida pagando contas'

"Uma narrativa falsa contra o Estado foi gerada aqui, porque não é o Estado que está falhando. 

O Estado é como uma caixa de ferramentas, não tem consciência. Quem está falhando são os seres humanos que administram o Estado.

Somos nós que não temos a cultura e a alma necessária para conduzi-lo bem.

Mas é legal dizer: "Ah, não, o Estado não presta". Nós é que não prestamos para administrá-lo!"

José Mujica nasceu em 20 de maio de 1935 em Montevidéu, no Uruguai

José "Pepe" Mujica aparece por uma porta, com as costas curvadas e o passo lento, mas com o desejo intacto de falar sobre suas paixões: a vida, a terra, a política...

Ele completou 89 anos em 20 de maio.

Na pequena sala, há uma luz fraca e estantes que se erguem do piso de cerâmica até o teto de zinco, transbordando de livros e lembranças de uma trajetória intensa.

O homem que na década de 1960 se juntou aos guerrilheiros Tupamaros, que mais tarde foi preso e sofreu tortura, que como presidente do Uruguai de 2010 a 2015 surpreendeu o mundo com seus discursos anticonsumo e sua vida austera, e que sobrevive a um câncer de esôfago, está sentado em uma poltrona.

"Tudo aconteceu comigo", reflete Mujica em entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

"Tenho que gritar: obrigado à vida."

Mujica diz que contar com a presença da esposa, a ex-senadora Lucía Topolansky, que conheceu quando era guerrilheira em 1971, é um "prêmio" na sua idade.

E também fala do "prêmio" que representou para ele a eleição de seu herdeiro político, Yamandú Orsi, como presidente do Uruguai em 24 de novembro, após uma grande votação do seu grupo político, o Movimento de Participação Popular (MPP).

A BBC News Mundo conversou com Mujica em sua chácara na zona rural de Montevidéu, onde paira no ar o aroma de jasmim, há caixas de milho e abóbora empilhadas, galos cantando e cachorros latindo.

BBC News Mundo - Como o senhor está se sentindo?

José Mujica - Um pouco cansado. Estou saindo de um tratamento que não sei quando vai acabar.

Fiz um tratamento contra o câncer que disseram ser muito eficaz, que havia eliminado (o câncer), mas fiquei com um buraco que precisa ser preenchido.

E, como sou velho, quase chegando aos 90 anos, a reprodução celular é muito lenta.

Por isso, não posso comer: como muito pouco pela boca, coisas pastosas. E me alimento com uma injeção por uma sonda pela manhã e outra à tarde. Vamos ver quando isso termina. Mas estou melhor do que antes.

BBC News Mundo - Há poucos dias, o senhor disse que está "lutando com a morte". Quão difícil é essa luta para alguém como o senhor, que já passou por quase tudo na vida?

Mujica - Sabe-se que a morte é inevitável. E talvez ela seja como o sal da vida.

Naturalmente, as chances de morrer se multiplicam com o passar dos anos. E se colocarmos a doença em cima disso...

Ela é uma senhora de quem não gostamos, e que não queremos, mas que inevitavelmente vai chegar em algum momento. Portanto, temos que nos resignar.

A morte 'é uma senhora de quem não gostamos, e que não queremos, mas que inevitavelmente vai chegar', diz Mujica. (Crédito da foto:Mariana Castiñeiras)

Todos os seres vivos são feitos para lutar pela vida: desde uma erva daninha, um sapo e até nós. Chega-se à conclusão de que isso serve para dar sabor à vida, pois, como dizia o velho Aristóteles: tudo o que a natureza faz é bem feito.

Eu teria que ser um crente fanático. Porque muitas vezes a morte estava rondando o leito onde eu estava. E consegui chegar até hoje.

E, apesar de todos os pesares, fiquei anos preso, tudo aconteceu comigo, e depois me tornei presidente.

Então, tenho que gritar: obrigado à vida.

Mas você tenta viver um pouco mais, não é? E bem, é isso que estou fazendo.

BBC News Mundo - O senhor diria que este é o momento mais difícil de todos pelos quais já passou?

Mujica - É provável que eu tenha vivido momentos mais difíceis, mas não estava ciente disso.

Uma vez levei um tiro em uma pista de boliche, mas era perto do Hospital Militar. Me levaram rapidamente. E o cirurgião de plantão era um companheiro. Dá para acreditar?

Me deram qualquer sangue, o que tinham em mãos, porque eu havia perdido muito sangue. E, no final, fui salvo.

BBC News Mundo - O senhor perdeu o baço aí...

Mujica - Perdi meu baço. Acho que deve ter sido o momento mais dramático que vivi, mas não tinha consciência disso.

Sei que me jogaram em algo, e eu fazia discursos bárbaros para eles: "Não me deixem morrer, sou um lutador social". Não tem nenhum sentido. Estava em choque.

BBC News Mundo - Que significado encontrou na vida?

Mujica - É a diferença notória que tem com as outras formas de vida. A vida humana, devido ao nosso desenvolvimento intelectual, nos permite em parte escolher uma causa para viver: dar um sentido à vida.

Esse é o prêmio de ter consciência. Mas não necessariamente o exercitamos. Às vezes, sim — às vezes, não.

Mujica foi libertado em 1985 pela ditadura militar uruguaia, depois de passar mais de 14 anos preso — ele foi submetido à tortura e tratamento desumano (Getty Images)

O que significa dar sentido à vida? É ter uma coisa principal que preencha os capítulos e as preocupações da nossa existência.

No meu caso, é o sonho de lutar por um mundo um pouco melhor. É uma preocupação sociopolítica.

Mas há tmbém a paixão dos cientistas, que passam 20 anos com uma molécula. Ou aqueles que cultivam uma arte.

Ter algo central como objetivo da nossa vida: muita gente faz isso, mas nem todo mundo faz.

Qual é o problema? Se você não definir um objetivo, uma causa, a sociedade de mercado vai te enquadrar e você vai passar a vida inteira pagando contas.

Em outras palavras, você é funcional para a mecânica do mercado, e acaba confundindo "ser" com "ter".

Agora, se você tem uma causa, isso é secundário, porque você vive pela causa.

BBC News Mundo - O senhor vem pregando contra o consumo há anos. Acha que é uma batalha perdida?

Mujica - Sim, por enquanto é uma semeadura intelectual.

A maior parte das nossas sociedades está sujeita à autoexploração, porque o que ganham tende a não chegar até elas, porque tudo é feito de tal forma que nunca chegue até elas.

E tem que conseguir mais, e trabalhar cada vez mais e mais, porque gasta cada vez mais. E com o que você paga? Com o tempo da sua vida, você gasta para produzir valor para poder pagar.

Quando sou livre? Quando escapo da lei da necessidade.

Se a necessidade me obriga a gastar tempo para obter meios financeiros com os quais tenho que pagar pelo consumo que tenho, não sou livre.

Sou livre quando dedico tempo da minha vida ao que gosto e ao que quero. Sim, porque é meu. É para isso que as pessoas têm menos tempo hoje em dia.

Costuma-se dizer: "Não quero que falte nada ao meu filho". Sim, mas idiota, você faz falta, porque nunca tem tempo para seu filho.

BBC News Mundo - Por onde passa a solução?

Mujica - Pela sobriedade no modo de viver.

BBC News Mundo - É algo individual, não uma mudança de sistema?

Mujica - Não pode ser imposto. Por isso digo que a única coisa que faço é semear.

Mas há também uma razão global.

Se todo o mundo subdesenvolvido chegar a consumir, nem precisa ser como os ianques, apenas como os europeus, o planeta não resiste.

Precisamos de três planetas. Não sou eu que digo isso - não há como viver em uma sociedade com tanto desperdício.

Podemos viver tranquilamente, mas se 8 bilhões de pessoas vão tomar banho em uma jacuzzi, precisamos de uma Amazônia. Você percebe? Não é possível.

A humanidade está desperdiçando uma quantidade absurda de coisas, e esse desperdício acaba se voltando contra nossa espécie. É um círculo vicioso.

Então, a sobriedade e a prudência são vantajosas por vários motivos.

Mas sei que estou em uma época em que as pessoas não vão me entender, porque a cultura do nosso tempo é uma conquista formidável do capitalismo.

Criou-se uma cultura subliminar em que todos nós temos que ser compradores compulsivos.

Todos os economistas do mundo estão sempre desesperados para que a economia cresça. Isso é imposto, tudo o que digo é contrário a isso.

BBC News Mundo - O senhor acha que vai haver um ponto de ruptura?

Mujica - Vamos ter que pagar pelo que estamos fazendo.

Não vou estar vivo, mas não se pode fazer nada acima da Terra; a natureza nos cobra. E ela começa a nos cobrar.

Mujica foi presidente do Uruguai de 2010 a 2015 e chamou a atenção por seu discurso anticonsumo e estilo de vida austero, além de reformas como a legalização da maconha (Getty Images)

A mudança climática não é insignificante. Este provavelmente vai ser o ano mais quente para nós, para o pequeno Uruguai.

BBC News Mundo - A natureza continua a te surpreender?

Mujica - A natureza nos deixa de boca aberta quando a observamos. Estou extasiado, para ser sincero.

Tem gente no campo que diz: 'Que tristeza, que solidão'.

É preciso ter olhos para enxergar.

Todas as formas de vida que lutam, indo e vindo, é uma coisa assustadora. Desde os pequenos vermes e as minhocas até os pássaros e tudo o que está acontecendo ao redor.

BBC News Mundo - Desde quando o senhor tem essa admiração pela natureza?

Mujica - Talvez desde sempre, porque fui criado em uma chácara, e aprendi a gostar dela e da terra.

Hoje estou ferrado, mas todos os dias, se posso, ando um pouco no trator, porque me encontro comigo mesmo.

Além disso, quando estava na prisão, passei quase sete anos sem livros, em uma sala menor do que esta. Me transferiam de quartel para quartel. Então, acabei contraindo o vício da misantropia, de falar comigo mesmo.

Isso era como uma autodefesa, nas condições em que eu estava, para não perder o juízo. Mas isso permaneceu comigo. Virou um hábito.

Então, fico fazendo as coisas, pensando constantemente e remoendo na minha cabeça. Você percebe? Isso transformou meu jeito de ser.

Tampouco posso escapar do que vivi. Como faço para sair disso agora?

BBC News Mundo - O senhor continua lendo?

Mujica -Sim, continuo lendo e leio sobre tudo. Veja... (apontando para o livro Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial, do historiador israelense Yuval Noah Harari).

BBC News Mundo - Harari. O senhor conversou com ele uma vez, não foi?

Mujica - Sim, conversei. Me abalou.

BBC News Mundo - Por quê?

Mujica - Me lembro de ele me dizer: "Tenho medo de que a humanidade não tenha tempo de limpar a bagunça que fez".

Como preocupação intelectual, é uma bomba-relógio. Lembro que ele encerrou a conversa com isso.

BBC News Mundo - E o que o senhor acha?

Mujica - Tenho uma sensação parecida com a dele, e espero estar errado.

BBC News Mundo - O senhor não acredita na capacidade do ser humano de se adaptar?

Mujica - Sim, acredito na capacidade, mas o fato é que é preciso adaptar o meio ambiente.

O medo é que a humanidade caminhe para uma espécie de Holocausto ecológico. Não porque ela não saiba; ela sabe há mais de 30 anos o que está acontecendo, e sabe o que precisa fazer.

Os cientistas disseram isso em Kyoto há cerca de 32 anos, e não estavam errados: os fenômenos adversos vão ser mais frequentes, mais profundos e maiores.

É o que está acontecendo.

De repente, há uma grande seca... ou de repente caem 400 milímetros de chuva em um curto espaço de tempo.

Mujica diz que ter sido criado em uma chácara despertou sua admiração pela natureza. Hoje ele continua morando na zona rural (Getty Images)

E eles também disseram o que precisava ser feito. Portanto, não se trata de falta de consciência. Não foi a ciência que falhou, foi a política que falhou, que não levou em consideração o que a ciência estava indicando.

O que vai acontecer? Não sei. Mas quando você tem um mandatário como (Donald) Trump, que nega as evidências, ou como (Javier) Milei e assim por diante, você diz: socorro!

BBC News Mundo - O senhor está preocupado com a reeleição de Trump e com o fenômeno dos movimentos da direita radical em todo o mundo?

Mujica - Sim, é claro. E especialmente esse negativismo.

Uma narrativa falsa contra o Estado foi gerada aqui, porque não é o Estado que está falhando. O Estado é como uma caixa de ferramentas, não tem consciência. Quem está falhando são os seres humanos que administram o Estado.

Somos nós que não temos a cultura e a alma necessária para conduzi-lo bem.

Mas é legal dizer: "Ah, não, o Estado não presta". Nós é que não prestamos para administrá-lo!

BBC News Mundo - Como a esquerda deve enfrentar estes fenômenos?

Mujica - Eu teria que revisar muitas coisas. Essas coisas que estou dizendo geralmente não são ditas pela esquerda. Ela defende o Estado com fanatismo, o que equivale a dizer que o Estado é perfeito. Mentira, porque nós não somos perfeitos.

Para ser um profissional da área médica ou de engenharia, é preciso passar vários anos na universidade, mas para ser um senador ou deputado ninguém te pede nada. Somos um bando de burros, muitas vezes. Como permitimos isso?

BBC News Mundo - Mas a alternativa seria impedir a ascensão de pessoas como você, que chegou ao poder sem passar pela universidade...

Mujica - Claro! Estou falando sobre o que vivenciei.

Mas não se trata de ir para a universidade; tem que haver uma medida de experiência, para ser comprovado, mais ou menos.

BBC News Mundo - A questão é quem mede...

Mujica - Acredito que a democracia, institucionalmente, está meio em crise porque o sistema representativo não pode representar as complexidades da sociedade atual.

Porque o desenvolvimento tecnológico e científico está tornando os diferentes setores cada vez mais complexos. E não é possível resumi-los em um Parlamento, em uma equipe de governo.

Há um sentimento no mundo inteiro, e nos países de democracia representativa, de uma desvalorização da democracia. Se agarram à democracia, e não se agarram aos pontos fracos e em como podemos superá-los.

'Dirigir o trator, uma atividade antiga de Mujica, continua sendo um de seus prazeres diários: 'Encontro comigo mesmo' (Getty Images)

A democracia é o melhor sistema que inventamos até agora, mas é uma porcaria, porque nos promete legalmente algo que está longe de ser concretizado.

Somos iguais perante a lei, sim, mas não somos iguais perante a vida: há alguns que são mais iguais.

Apesar de tudo isso, precisamos defender a democracia, porque até agora é o melhor que conseguimos alcançar; como disse (Winston) Churchill, "a melhor porcaria".

Como hipótese, vejo que no futuro diferentes governos vão ter de coexistir na sociedade, com um governo central, que não diz o que eles devem fazer, mas impede o que não devem fazer.

As questões de saúde vão ter um governo, as questões de educação vão ter outro. Porque são necessárias pessoas especializadas em diferentes setores, e não é possível resumir tudo em um único organismo.

Pelo menos, é o que indicam os gigantes transnacionais, que são verdadeiras equipes de gestão.

É uma hipótese, posso estar errado.

Vimos isso na pandemia.

Tínhamos o governo e formamos uma equipe de especialistas para nos assessorar. E, na realidade, esses caras deveriam estar no comando, não o governo e nós, porque não entendíamos absolutamente nada do que estava acontecendo.

BBC News Mundo - O que significa para o senhor ser de esquerda no mundo de hoje?

Mujica - É simples, você vê isso na história do Uruguai.

Nos últimos 40 anos de democracia, os salários não chegaram a aumentar 13% nos 25 anos em que os partidos conservadores governaram. E nos 15 anos em que a Frente Ampla governou, aumentaram 87%.

A diferença está na distribuição. Não é radical, não é uma mudança histórica, é uma mudança de distribuição.

BBC News Mundo - O senhor comentou isso no dia da eleição, e alguém respondeu que a Frente governou durante um período de boom das matérias-primas que permitiu um enorme impulso para a economia...

Mujica - Sim, isso foi verdade de 2005 a 2009, mas depois eclodiu a crise europeia. As coisas começaram a mudar. No entanto, os salários aumentaram.

BBC News Mundo - Quando começamos esta conversa, o senhor disse que teria que ser crente. A doença que superou fez com que o senhor olhasse para a religião de uma maneira diferente?

Mujica - Não, eu respeito as religiões até morrer. Porque de 60 a 65% da humanidade acredita em algo, e quem sou eu para ignorar essa realidade?

Minha explicação: é o amor pela vida, não podemos aceitar a morte e temos que inventar um além e tudo mais. Precisamos disso para viver.

Acredito que a vida é a aventura das moléculas, que não há nada para trás nem pela frente. O inferno e o paraíso é o que estamos vivendo.

Mas essa é a minha maneira de pensar, não é a da maioria. E tenho que respeitar a maioria.

BBC News Mundo - É reconfortante estar ao lado da sua companheira de vida, Lucía, nesta fase?

Mujica - Ah, é um prêmio. Se não fosse por Lucía, estaria sem nada.

BBC News Mundo - Por quê?

Mujica - Porque Lucía é muito mais que uma companheira. Ela cuidou de mim, me bancou e muito mais.

Sou um velho meio insuportável, e tenho consciência disso. Na melhor das hipóteses, sou meio irascível.

Não somos iguais, homens e mulheres, felizmente. Temos uma dependência da feminilidade.

E o amor na juventude é uma coisa. Mas, na minha idade, o amor é um doce hábito, é a maneira de evitar a solidão.

Recebi um prêmio, porque tenho quase 90 anos e ela tem cerca de 80, e somos autossuficientes. E juntos. Isso não é comum no mundo de hoje.

Aqui não tem trabalhadora doméstica, não tem Maria, não tem ninguém. Aqui somos dois idosos que se viram e convivem.

Mas tenho consciência de que devo grande parte da minha vida hoje a ela. Porque ela não é companheira; é enfermeira, é tudo.

'Na minha idade, o amor é um doce hábito', diz Mujica ao falar da esposa, Lucía Topolansky (Crédito da foto: Mariana Castiñeiras)

BBC News Mundo - O que significa esta vitória de Orsi, a quem o senhor impulsionou na carreira política?

Mujica - Para mim, pessoalmente, é um prêmio. Meus últimos 40 anos de militância estão resumidos nisso. E surge na reta final, quando estou fora da competição.

É um prêmio, se preferir, um prêmio de consolação, porque está chegando ao fim da partida. Mas, ainda assim, um prêmio.

Sempre achei que o melhor líder não é aquele que faz mais; é aquele que deixa um grupo que o supera com vantagem.

Passei a vida toda tentando promover e dar a eles oportunidades, porque tenho consciência de que as causas sociais e políticas são mais longas do que nossa vida.

E que a única maneira de terem uma certa validade é assimilando pessoas novas para levantar as velhas bandeiras e readaptá-las às conjunturas em que vivem.

BBC News Mundo - O que o senhor vai fazer agora? Já pensou no papel que vai desempenhar no governo de Orsi?

Mujica - Não, meu papel é dar a ele alguns conselhos.

Outro dia, ele veio bater um papo, e contei a ele um conselho que Alejandro Atchugarry (falecido ex-senador e ex-ministro do Partido Colorado), de quem éramos muito amigos, havia me dado.

Ele me pega em uma pista de boliche e me diz: "Olha, Pepe, agora que você se tornou presidente, não vai assinar nenhum documento que não tenha sido revisado por um bom advogado".

BBC News Mundo - Foi esse o conselho? Alguém poderia pensar que foi algo filosófico...

Mujica - Não, não, foi muito específico.

Porque na Presidência você tem centenas de papéis para assinar. A maior parte é bobagem, mas você não tem tempo para ler; você assina como um autômato.

Podem colocar uma casca de banana pra você escorregar.

E também disse a ele: "Consulte e converse com todos, mas certifique-se de que tenham votos mesmo, para que você não fique preso ao aparato de liderança de pessoas que não têm nem sequer o voto do papagaio. Como estamos em um regime representativo, ouça as pessoas que realmente têm votos, sejam elas amigas ou adversárias".

BBC News Mundo - O senhor falou do "prêmio" pela votação no Uruguai. Mas a nível internacional você teve muitos reconhecimentos. Qual você diria que é o seu legado, e como acha que vai entrar para a história?

Mujica - Primeiro, a história não existe. O que existe é um pouco de historieta. Porque as formigas vivem há muito mais tempo do que os seres humanos, e vão continuar vivendo quando os humanos não estiverem mais vivos.

Por isso, a história é relativa. É uma convenção humana, mas diante do jogo infinito da natureza, não é nada.

Em segundo lugar, meu legado não é nada, os companheiros que continuam lutando.

Depois sei que sou um velho meio maluco, porque filosoficamente sou um estoico pelo meu modo de vida e pelos valores que defendo. E isso não cabe no mundo de hoje, sou consciente disso.

Algumas pessoas me dizem: "você é marxista". Não, o estoicismo é mais antigo que o cristianismo, dá um tempo. É uma corrente antiga de filosofia, uma concepção de vida. É por isso que vivo com sobriedade.

E, como fui presidente, eles vêm aqui, veem esta casinha e me admiram. Mas não me seguem de maneira alguma.

BBC News Mundo - Não seguem seus hábitos...

Mujica - Claro que não. Então, eles me admiram. Dizem: 'Ele é coerente'.

Mas não faço isso pelo mundo; faço isso por mim. É a minha forma de defender a liberdade. Não quero perder tempo pagando parcelas.

Então, tudo isso vai ficar a cargo da organização política a que pertenço. Quando eu morrer, tudo permanece, e eles fazem o que quiserem. Tchau, acabou.

'Como fui presidente, eles vêm aqui, veem esta casinha e me admiram', diz Mujica (Getty Images)

BBC News Mundo - Olhando para trás, há algo importante que gostaria de ter feito diferente?

Mujica - Ah, sim, um monte de coisas.

É inconcebível que no Uruguai existam pessoas que tenham dificuldade para comer. E eu também tenho responsabilidade nisso. Poderia e deveria ter feito mais.

É um país produtor de alimentos, somos meia dúzia de gatos pingados, não faz sentido.

Sim, haveria coisas a serem feitas.

Gerardo Lissardy, o autor, é Jornalista. Publicado pela BBC News Mundo, em 1.12.24

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Como era plano de militares para dar golpe e matar Lula, Alckmin e Moraes, segundo a PF

 A Polícia Federal realizou uma operação na manhã de terça-feira (19/11) para cumprir mandados de prisão e busca e apreensão contra suspeitos de planejar um golpe de Estado no final de 2022 para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Alckmin, Lula e Moraes são citados em documentos sobre um possível plano para golpe de Estado (Getty Images)

Cinco pessoas foram presas com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF). Quatro são militares do Exército, integram forças de operações especiais e são conhecidos como "kids pretos".

Foram presos o general de brigada da reserva Mario Fernandes, o tenente-coronel Helio Ferreira Lima, o major Rodrigo Bezerra Azevedo e o major Rafael Martins de Oliveira.

O quinto indivíduo que teve a prisão decretada foi o policial federal Wladimir Matos Soares.

Dessa lista, o nome de Mario Fernandes é um dos mais conhecidos. Ele atuou como secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência no governo de Jair Bolsonaro e também exerceu a função de assessor do deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ), mas foi afastado do posto por determinação do STF.

Nos documentos que embasam a decisão divulgada nas últimas horas, estão detalhadas todas as evidências — trocas de mensagens por diferentes aplicativos, documentos, fotos, áudios, entre outros — e o trabalho de investigação que relacionou esse material.

Mas alguns nomes de documentos ou operações clandestinas que foram descobertas pela PF chamaram a atenção.

Intitulados "Copa 2022" e "Punhal Verde Amarelo", os planos envolviam o monitoramento, a prisão ilegal e até uma possível execução de três personagens centrais nessa história: Alexandre de Moraes, ministro do STF e então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE); Lula, à época presidente eleito; e Geraldo Alckmin (PSB), vice-presidente eleito.

Rafael Martins de Oliveira e Hélio Ferreira Lima teriam participado de uma reunião em 12 de novembro na casa do general Braga Netto, na companhia de Mauro Cid.

Braga Netto foi candidato à vice-presidência na chapa derrotada de Jair Bolsonaro em 2022.

Já Mauro Cid foi ajudante de ordens de Jair Bolsonaro durante a presidência e atualmente é delator.

Após o encontro em novembro, Oliveira teria enviado a Cid um documento em formato Word intitulado "Copa 2022" que detalhava as necessidades logísticas e financeiras para realizar a operação planejada para 15 de dezembro.

Um documento encontrado nos arquivos de Mário Fernandes planejava também instituir um "gabinete institucional de gestão da crise" que entraria em operação em 16 de dezembro de 2022, dia seguinte à operação "Copa 2022". Este gabinete, segundo a PF, seria chefiado pelo general Augusto Heleno e teria Braga Netto como coordenador-geral.

Mauro Cid prestou novo depoimento à PF na terça-feira (19/11). Segundo a CNN Brasil, ele negou que soubesse do plano para assassinar Lula, Alckmin e Moraes.

A PF apontou inconsistências no depoimento, e caberá a Alexandre de Moraes, do STF, avaliar se os benefícios ligados ao acordo de delação devem ser anulados por isso.

A operação 'Copa 2022'

Segundo documento do STF citando a apuração da PF, os investigados tinham "a finalidade de impedir a posse do governo legitimamente eleito e restringir o livre exercício da Democracia e do Poder Judiciário brasileiro".

Para isso, eles colocaram em marcha uma operação que teve "auge a partir de novembro de 2022" e avançou até o mês de dezembro, "como parte de plano para a consumação de um golpe de Estado, em uma operação denominada pelos investigados de 'Copa 2022'".

Ainda de acordo com a investigação, tal operação tinha "elementos típicos de uma ação militar planejada detalhadamente, porém, no presente caso, de natureza clandestina e contaminada por finalidade absolutamente antidemocrática".

Em 15 de novembro de 2022, o major Rafael Martins de Oliveira encaminhou para Cid, via WhatsApp, um documento protegido por senha intitulado "Copa 2022".

"Pelo teor do diálogo, seria uma estimativa de gastos para subsidiar, possivelmente, as ações clandestinas, que seriam executadas durante os meses de novembro e dezembro de 2022", aponta a petição no STF.

Esse mesmo nome, "Copa 2022", foi usado posteriormente como título de um grupo criado no Signal, um aplicativo de mensagens.

Esse grupo era composto de seis usuários — e cada um deles recebeu um país como codinome "para não revelarem sua identidade", segundo a PF.

Os codinomes escolhidos foram: Alemanha, Áustria, Brasil, Argentina, Japão e Gana.

Vale destacar que os chips dos números de celulares que aparecem no grupo de mensagens estavam cadastrados em nomes de terceiros, os quais se encontravam em outras regiões do país.

O documento do STF aponta que "as mensagens trocadas entre os integrantes do grupo 'Copa 2022' demonstram que os investigados estavam em campo, divididos em locais específicos para, possivelmente, executar ações com o objetivo de prender o ministro Alexandre de Moraes".

Um exemplo: no dia 15 de dezembro de 2022 às 20h33, a pessoa associada ao codinome Brasil informa um dos locais em que estava atuando.

Ele diz: "Estacionamento em frente ao gibão carne de sol [um restaurante]. Estacionamento da troca da primeira vez".

Em seguida, a pessoa associada ao codinome Gana informa que já estava no local combinado: "Tô na posição".

A troca de mensagens continua até que, às 20h57min, a pessoa de codinome Áustria diz: "Tô perto da posição. Vai cancelar o jogo?".

Segundo a PF, ele possivelmente queria saber se a ação contra Moraes seria cancelada.

Cerca de dois minutos depois, Japão, o suposto líder do grupo, respondeu: "Abortar... Áustria... volta para local de desembarque... estamos aqui ainda..."

A investigação da PF cruzou as informações fornecidas pelos envolvidos e também dados de chips de celular, de aluguel de carros e outras fontes para concluir que o grupo monitorava Moraes.

"A análise [...] permite concluir que é plenamente plausível que a pessoa de codinome Gana estivesse próxima a residência funcional do ministro Alexandre de Moraes."

O uso de termos específicos do ambiente militar e o detalhamento das ações sugere, de acordo com a investigação, que os envolvidos tinham treinamento e especialização em operações especiais.

O trabalho da PF apontou que o major Rafael Martins de Oliveira seria o líder da operação "Copa 2022".

Algumas das mensagens foram enviadas por Mauro Cid (à esquerda), ajudante de ordens de Bolsonaro (Reuters)

'Punhal Verde Amarelo'

A PF aponta que um documento com o plano do "Punhal Verde Amarelo" foi impresso por Fernandes no Palácio do Planalto em 9 de novembro de 2022.

Nessa mesma ocasião, os aparelhos telefônicos de outros investigados — Rafael Martins de Oliveira e Mauro Cid — também estavam conectados à rede que cobre o Palácio do Planalto.

Depois, esses papéis teriam sido levados ao Palácio da Alvorada, residência do então presidente Bolsonaro.

"O planejamento 'Punhal Verde e Amarelo' evidencia que, no tabuleiro das intenções antidemocráticas, vidas humanas eram descartáveis, inclusive de eventuais militares envolvidos na ação", diz o documento do STF.

No relatório, a PF diz que o documento tinha "características terroristas", no qual constam "todos os dados necessários para a execução de uma operação de alto risco".

"O plano dispõe de riqueza de detalhes, com indicações acerca do que seria necessário para a sua execução, e, até mesmo, descrevendo a possibilidade da ocorrência de diversas mortes", diz a PF.

Há, por exemplo, menções ao arsenal que seria utilizado na operação — que incluiria pistolas e armas comumente usados por policiais e militares, mas também armamentos de guerra mais pesados, como metralhadoras e lança-granadas.

A investigação aponta que, no documento, o codinome "Jeca" refere-se a Lula.

"Para execução do presidente Lula, o documento descreve, considerando sua vulnerabilidade de saúde e ida frequente a hospitais, a possibilidade de utilização de envenenamento ou uso de químicos para causar um colapso orgânico", revela a PF.

Já "Joca" seria Alckmin.

"Isso porque o texto aponta que na inviabilidade do '01 eleito', ou seja, Lula, 'sua neutralização extinguiria a chapa vencedora'. Como, além do presidente, a chapa vencedora é composta, obviamente, pelo vice-presidente, é somente na hipótese de eliminação de Geraldo Alckmin que a chapa vencedora estaria extinta".

Há ainda a menção a um terceiro nome, "Juca", descrito como "iminência parda do 01 [possivelmente Lula] e das lideranças do futuro gov [governo]", mas a PF não conseguiu identificar quem seria essa pessoa.

Já para o assassinato de Moraes, "foram consideradas diversas condições de execução", "inclusive com o uso de artefato explosivo e por envenenamento em evento oficial público", diz documento do STF, mencionando investigação da PF.

Uma das reuniões de planejamento da operação teria acontecido na casa do general Braga Netto, candidato à vice-presidente na chapa de Bolsonaro (Getty Images)

Reações

Após a divulgação dos fatos, autoridades e figuras públicas deram declarações.

O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Passos Rodrigues, disse que comunicou Lula e Alckmin pessoalmente sobre o que havia sido encontrado — e o presidente reagiu com "surpresa e indignação".

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), classificou como "extremamente preocupante" o fato de um grupo tramar os assassinatos de Moraes, Lula e Alckmin.

"Não há espaço no Brasil para ações que atentam contra o regime democrático, e menos ainda, para quem planeja tirar a vida de quem quer que seja. Que a investigação alcance todos os envolvidos para que sejam julgados sob o rigor da lei", declarou ele.

Ainda no Senado, Flávio Bolsonaro (PL-RJ), saiu em defesa dos investigados.

"Quer dizer que, segundo a imprensa, um grupo de 5 pessoas tinha um plano pra matar autoridades e, na sequência, eles criariam um 'gabinete de crise' integrado por eles mesmos para dar ordens ao Brasil e todos cumpririam?", escreveu ele no X (o antigo Twitter).

"Por mais que seja repugnante pensar em matar alguém, isso não é crime. E para haver uma tentativa é preciso que sua execução seja interrompida por alguma situação alheia à vontade dos agentes. O que não parece ter ocorrido", argumentou o senador.

Até a última atualização desta reportagem, o ex-presidente Bolsonaro e o ex-candidato a vice-presidente Braga Netto não haviam se pronunciado sobre o caso.

Editado e publicado originalmente por BBC News Brasil, em 19.11.24. Atualizado em 20.11.2024.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O cerco se fecha em torno de Bolsonaro

Apurações sobre plano para matar autoridades se aproximam um pouco mais a cada etapa de nomes do círculo mais próximo do ex-presidente, como Braga Netto e Augusto Heleno

Augusto Heleno, Mauro Cid e Braga Netto — Foto: Agência O Globo

Se, na semana passada, o ataque de um extremista à Praça dos Três Poderes foi o ato tresloucado que explodiu as conversas para uma anistia aos golpistas do 8 de Janeiro, as revelações estarrecedoras desta terça-feira sepultam qualquer tentativa de minimizar as tentativas de supressão da democracia naquele dia e nos meses que o antecederam. Os subordinados diretos de Jair Bolsonaro urdiram o assassinato de autoridades de primeiro escalão da República para manter o ex-capitão no poder.

A gravidade do que se tem até aqui é inaudita. Mas, como as investigações insistem em demonstrar, não é possível assegurar que tenhamos chegado a todos os fatos e a todos os envolvidos na trama. Os novos depoimentos do tenente-coronel Mauro Cid — personagem que permitiu que se desenrolasse o fio da meada da tentativa de melar a eleição e empastelar a democracia — e também dos cinco presos ontem mostrarão quem mais estava no plano, a mando de quem e com que grau de anuência e deliberação de Bolsonaro e de seus ministros mais próximos.

Como informei em meu blog, a prisão do ex-ministro da Defesa Walter Braga Netto ainda não foi pedida, mas por excesso de zelo da Polícia Federal em preencher os requisitos técnicos e jurídicos para embasá-la. Até aqui, a evolução das investigações tem se dado de fora para dentro, descrevendo círculos que vão ficando menores, até chegar ao núcleo decisório e político do golpismo.

Na operação de ontem, se chegou pela primeira vez à prisão de um general da reserva, Mário Fernandes, mas ainda com menos poder e proximidade com Bolsonaro que Braga Netto ou Augusto Heleno, de quem as apurações se aproximam um pouco mais a cada etapa. Diante do que veio à tona até aqui, com um plano impresso nas dependências do Palácio do Planalto em que se admitia a eliminação do então presidente eleito Lula, do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, é impossível dizer se haveria um limite ao que os bolsonaristas inconformados com a derrota estavam dispostos a perpetrar.

O ministro Paulo Pimenta foi feliz na escolha da palavra: foi por um detalhe que o Brasil, menos de 40 anos depois de reconquistar sua democracia, não assistiu a uma nova quartelada para suprimi-la. A extensão das tratativas e a abundância de rastros deixados explicam o nervosismo que se abateu sobre Bolsonaro, familiares e aliados nos últimos meses, desde a mobilização para o reiterado sequestro do Sete de Setembro para pregar contra o Judiciário até a campanha indecente pela injustificável anistia aos bagrinhos do 8 de Janeiro — mirando, evidentemente, não neles, mas nos fardados e em seus superiores, que estavam mergulhados até a cabeça na articulação para assassinar adversários e reinstalar o arbítrio no país.

Muito se tem discutido, também neste espaço, a respeito da extensão dos inquéritos sob a relatoria de Alexandre de Moraes. É possível encontrar argumentos jurídicos para questionar o fato de, sendo vítima dessa e de outras tramas sob investigação, ele continuar relatando os inquéritos. Nada disso, no entanto, é capaz de desviar o debate do que é central: não fosse a atuação firme e articulada da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e do Judiciário, a democracia teria soçobrado.

A Justiça formou sucessivas barreiras, primeiro no TSE, depois no Supremo, às ações do ex-presidente para se perpetuar no poder, primeiro tentando evitar as eleições de 2022 , depois com as maquinações que até aqui já têm as digitais de nomes de alta patente de seu entorno para impedir a diplomação, a posse e o governo de Lula.

O inquérito da tentativa de golpe pré-8 de Janeiro será concluído até o fim do ano. Não só não haverá anistia, como parece claro que os próximos alvos estão num círculo ainda mais restrito e nuclear.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 20.11.24