quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Por que o bullying de Trump contra o mundo vai sair pela culatra?

Ou Trump quer abrir um buraco na economia dos EUA, ou está blefando ou não tem a mínima ideia do que está fazendo


Apoiadores de Trump em Mar-a-Lago, Flórida, resort de luxo do presidente americano. Foto: Ben Curtis/AP

Você diz que tem uma solução real.

Bem, você sabe

Todos nós adoraríamos ver o plano.

— “Revolution 1″, The Beatles

Creio que o mais assustador a respeito do que o presidente Donald Trump está fazendo com sua estratégia de tarifas para todos é ele não ter ideia do que está fazendo — nem sobre como a economia mundial funciona, nesse caso. Ele está simplesmente inventando tudo à medida que avança — e todos nós estamos nesse barco.

Não sou contra o uso de tarifas para combater práticas comerciais injustas. Eu apoiei as tarifas de Trump e do ex-presidente Joe Biden sobre a China. E se tudo isso não passa de um blefe de Trump para fazer com que outros países nos deem o mesmo acesso que nós damos a eles, por mim, tudo bem.

Mas Trump nunca é claro: algumas vezes ele diz que suas tarifas são para aumentar a receita, depois que elas servirão para forçar todos a investir nos Estados Unidos, outras vezes afirma que o objetivo é manter o fentanil fora.

Mas qual é a dele? Como cantavam Os Beatles, eu adoraria ver o plano. Tipo: É assim que achamos que a economia global opera hoje; portanto, para fortalecer os EUA, é aqui que precisamos cortar gastos, impor tarifas e investir — e é por isso que estamos fazendo X, Y ou Z.

Seria uma liderança real. Mas em vez disso Trump está ameaçando impor tarifas a rivais e aliados, sem nenhuma explicação satisfatória do porquê alguns países estão sendo tarifados e outros não, e sem se importar sobre como essas tarifas podem prejudicar a indústria e os consumidores americanos. É uma bagunça total.

Conforme apontou o presidente-executivo da Ford Motor, Jim Farley, corajosamente (comparado a outros presidentes-executivos): “Sejamos realmente honestos: a longo prazo, uma tarifa de 25% nas fronteiras do México e do Canadá abriria um buraco jamais visto na indústria dos EUA”.

Então, ou Trump quer abrir esse buraco ou está blefando ou não tem a mínima ideia do que está fazendo. Se a última hipótese for a verdadeira, Trump vai passar por um curso intensivo a respeito de duras realidades da economia global — como ela realmente é, não como ele a imagina.

Meu tutor favorito nesses assuntos é o economista Eric Beinhocker, da Universidade de Oxford, que chamou minha atenção quando conversávamos, outro dia, com a seguinte — e simples — fala: “Nenhum país do mundo é capaz de fabricar um iPhone sozinho”.

Pensem nessa frase por um instante. Não há um único país ou empresa na Terra que tenha todo o conhecimento, todas as peças, todas as capacidades de fabricação nem todas as matérias-primas que entram nesse dispositivo em seu bolso chamado iPhone. A Apple diz que monta seus iPhones, seus computadores e seus relógios com a ajuda de “milhares de empresas e milhões de pessoas, em mais de 50 países e regiões” que contribuem com “nossas habilidades, nossos talentos e nossos esforços para ajudar a construir, entregar, consertar e reciclar nossos produtos”.

Estamos falando de um enorme ecossistema de rede necessário para tornar esse telefone tão legal, tão inteligente e tão barato. E esse é o ponto de Beinhocker: a grande diferença entre a era em que estamos agora e aquela em que Trump pensa estar vivendo, é que hoje não é mais “a economia, estúpido”. Essa foi a era Bill Clinton. Hoje, “são os ecossistemas, estúpido”.

Ecossistemas? Ouça um pouco Beinhocker, que também é diretor-executivo do Institute for New Economic Thinking, na Oxford Martin School. No mundo real, argumenta ele, “Não existe mais uma economia americana que você possa identificar de forma real e tangível. Existe apenas essa ficção contábil que chamamos de PIB americano”. Sem dúvida, afirma ele, “Existem interesses americanos na economia. Existem trabalhadores americanos. Existem consumidores americanos. Existem empresas sediadas nos EUA. Mas não existe uma economia americana nesse sentido isolado”.

Os velhos tempos, acrescenta ele, “quando você fazia vinho e eu fazia queijo, e você tinha tudo o que precisava para fazer vinho e eu tinha tudo o que precisava para fazer queijo e então nós negociávamos um com o outro — o que nos melhorava a vida, conforme ensinou Adam Smith — esses dias já se acabaram há muito”. Exceto na cabeça de Trump.

Em vez disso, existe uma rede global de “ecossistemas” comerciais, de fabricação, serviços e negociação, explica Beinhocker. “Existe um ecossistema de automóveis. Existe um ecossistema de IA. Existe um ecossistema de smartphones. Existe um ecossistema de desenvolvimento de medicamentos. Existe um ecossistema de fabricação de chips.” E as pessoas, os componentes e o conhecimento que conformam esses ecossistemas se movem de um lado para o outro entre muitas economias.

Conforme observou a NPR numa reportagem recente sobre a indústria automobilística, “as montadoras construíram uma vasta e complicada cadeia de fornecimento que abrange toda a América do Norte, com peças atravessando fronteiras durante todo o processo de fabricação de automóveis. (…) Algumas peças cruzam fronteiras várias vezes — como, digamos, um fio que é fabricado nos EUA, enviado para o México para ser integrado a um grupo de cabos e, em seguida, volta aos EUA para ser instalado em um componente maior de um carro, como um assento”.

Trump simplesmente ignora isso tudo. Ele disse a repórteres que os EUA não dependem do Canadá. “Não precisamos deles para fazer nossos carros”, afirmou ele.

Na verdade, nós precisamos sim deles. E graças a Deus por isso. Isso nos permite não apenas tornar os carros mais baratos, mas também melhores. Tudo o que um Modelo T fez foi nos levar de um ponto a outro mais rapidamente do que um cavalo, mas os carros de hoje oferecem ar-condicionado quente ou frio e entretenimento via internet e satélites. Eles navegam para você, eles até dirigem para você — e são muito mais seguros. Quando somos capazes de combinar conhecimentos e componentes complexos para resolver problemas complexos, nossa qualidade de vida dispara.

Mas eis a questão: não é mais possível fazer coisas complexas sozinhos; é complexo demais.

Em um ensaio de 2021, publicado no website da Escola de Saúde Pública de Yale, Swati Gupta, diretora para doenças infecciosas emergentes da IAVI, uma organização de pesquisa científica sem fins lucrativos, explicou como as vacinas de mRNA contra a covid-19 foram desenvolvidas em tempo recorde:

“Vacinas tradicionalmente levam de 10 a 20 anos para serem desenvolvidas, e os custos de pesquisas e testes podem facilmente chegar a bilhões de dólares. Então, a pergunta natural após a pandemia de covid-19 é: como as vacinas atualmente disponíveis foram desenvolvidas tão rapidamente? (…) Houve uma colaboração global sem precedentes, realizada por meio de parcerias coordenadas entre governos, indústrias, organizações doadoras, organizações sem fins lucrativos e a academia. (…) Somente agindo dessa maneira nós teríamos alcançado o que foi visto no ano passado, pois nenhum grupo isolado poderia ter feito isso sozinho.”

O mesmo vale hoje para os microchips mais avançados. Agora eles são fabricados por um ecossistema global: a AMD, a Qualcomm, a Intel, a Apple e a Nvidia se destacam no design dos chips. A Synopsys e a Cadence criam ferramentas e softwares sofisticados de design auxiliado por computação nos quais os fabricantes de chips elaboram realmente suas ideias mais recentes. A Applied Materials cria e modifica os materiais para forjar bilhões de transistores e fios de conexão nos chips. A ASML, uma empresa holandesa, fornece as ferramentas de litografia em parceria com, entre outros, a Carl Zeiss SMT, uma empresa alemã especializada em lentes ópticas, que desenha os estênceis nas pastilhas de silício desses projetos. A Lam Research, a KLA e empresas da Coreia do Sul, do Japão e de Taiwan também desempenham papéis importantes nessa coalizão.

Quanto mais ultrapassamos limites da física e da ciência dos materiais para enfiar mais transistores em um chip, menos uma só empresa ou um só país pode se destacar em todas as partes do processo de design e fabricação. Todo o ecossistema global é necessário.

No Dia de Natal de 2021, eu despertei às 7h20 para assistir o lançamento do Telescópio Espacial James Webb, que vasculha profundamente o espaço sideral. De acordo com a NASA, “milhares de cientistas, engenheiros e técnicos qualificados”, de 309 universidades, laboratórios nacionais e empresas, principalmente nos EUA, Canadá e Europa, “colaboraram no projeto, na construção, nos testes, na integração, no lançamento, no comissionamento e nas operações do Webb”.

Adam Smith identificou famosamente a divisão do trabalho, e isso sem dúvida é importante — nós somos capazes de fabricar mais alfinetes com menos trabalhadores se dividirmos o trabalho corretamente. “Isso foi ótimo”, observa Beinhocker. “Mas o motor mais poderoso é a divisão do conhecimento, o que é necessário para fabricar coisas mais complexas do que alfinetes. Nós temos de nos valer da divisão do conhecimento, da divisão da expertise.”

Se dermos um passo atrás e considerarmos o grande arco da história da economia, explica Beinhocker, “a história é realmente de uma expansão de nossas redes de cooperação para utilizar e compartilhar conhecimento para fabricar produtos e serviços mais complexos, que nos conferem padrões de vida cada vez mais elevados. E se você não fizer parte desses ecossistemas, seu país não prosperará.”

E a confiança é o ingrediente essencial que faz esses ecossistemas funcionarem e crescerem, acrescenta Beinhocker. A confiança é a cola e a graxa. A confiança fixa laços de cooperação e ao mesmo tempo lubrifica fluxos de pessoas, produtos, capitais e ideias entre os países. Sem confiança os ecossistemas começam a ruir.

A confiança, no entanto, é erguida por regras boas e relações saudáveis, e Trump está pisoteando ambas. O resultado: se seguir nesse caminho, Trump tornará os EUA e o mundo mais pobres. Senhor presidente, faça sua lição de casa. 

Thomas Friedman, o autor deste artigo, ganhador de vários Prêmios Pullitzer, é colunista do New York Times, especialista em relações internacionais. Publicado em língua portuguesa n' O Estado de S. Paulo, em 20.02.25, em tradução de Guilherme Russo.

Lula, o frentista

Petista chama de ‘assaltantes’ revendedores de combustíveis ao se queixar dos preços, tentando forjar culpados para uma inflação que tem no perfil perdulário estatal seu maior motor

O presidente Lula da Silva defendeu que a Petrobras venda combustível diretamente aos consumidores, sem a intermediação de distribuidoras e redes de postos. Trata-se de um diversionismo mequetrefe, com o objetivo de forjar culpados para uma escalada de preços da qual seu governo é o principal agente. Beira a leviandade dizer que “o povo, no fundo, é assaltado pelo intermediário” e precisa “saber quem xingar” quando o preço sobe, já que o governo, segundo o petista, é quem leva a fama.

O constrangedor discurso de Lula foi feito no terminal da Transpetro, em Angra dos Reis (RJ), numa cerimônia especialmente cara ao presidente: o anúncio de licitação para contratar a construção de oito navios para a frota da Petrobras. O evento recendia a nostalgia de um tempo em que Lula e o PT reinavam absolutos em mandatos presidenciais sucessivos prometendo fazer o Brasil grande de novo, tendo o Estado como o formidável motor do desenvolvimento. Não por acaso, é exatamente a estatolatria perdulária do lulopetismo que cria o ambiente ideal para a carestia.

Mas, como de hábito, Lula preferiu a mistificação. E caprichou: “O povo não sabe que a gasolina sai da Petrobras a R$ 3,04 e que, na bomba, ela é vendida a R$ 6,49. Ou seja, é vendida pelo dobro do que ela sai da Petrobras. Mas, quando sai o aumento, o povo pensa que foi a Petrobras que aumentou. E nem sempre é a Petrobras, porque cada Estado e cada posto têm liberdade de aumentar na hora que quer”. Segundo o petista, “o povo brasileiro não tem as informações necessárias para fazer um juízo de valor”, razão pela qual, “quando sai um anúncio de aumento no diesel, na gasolina ou no gás, a Petrobras e o governo federal levam a fama, mas muitas vezes a Petrobras não tem culpa nenhuma”. Para arrematar, Lula afirmou que “o povo tem que saber quem é o filho da mãe disso”.

Ora, Lula sabe muito bem, ou deveria saber, já que tem assessores perfeitamente capazes de lhe explicar isso, que não se pode comparar a gasolina que sai da refinaria, ainda sem a incidência dos impostos federais e estaduais e sem a mistura de etanol, com a que sai da bomba dos postos de combustíveis. Mais de 20% do valor que o consumidor paga por litro no posto corresponde a impostos. O preço é formado também pelo custo de transporte e logística e pelas margens de distribuidoras e revendedores, que o presidente classifica como “assaltantes” – ignorando o fato de que o preço dos combustíveis é livre desde 2002. Fiscalizar e combater eventuais cartéis é tarefa de órgãos reguladores do governo, em defesa dos consumidores.

O presidente propõe que a Petrobras abasteça diretamente grandes consumidores, sem intermediários. Para prestar esse serviço, a empresa precisa de autorização da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, o que inclusive é feito para produtos em desenvolvimento, mas não será isso que irá baratear o preço dos combustíveis. A Petrobras já teve sua própria distribuidora, a BR, atual Vibra, e nem por isso regulava os preços na revenda.

Houve época em que o governo interferiu diretamente no mercado, segurando preços de gasolina e diesel, mas isso se deu nas próprias refinarias, como o congelamento irregular realizado na gestão de Dilma Rousseff, que resultou num desastre financeiro para a Petrobras.

Depois da devastação nas contas da Petrobras durante a trevosa era Dilma, a atual gestão petista na empresa não consegue manter os preços nas refinarias inalterados por muito tempo. Mesmo derrubando seguidamente pilares de governança da companhia, há limites para a interferência estatal difíceis de transpor.

A bem da verdade, a interferência política nos preços dos combustíveis não é exclusividade do lulopetismo. Foi assim nos governos de Jair Bolsonaro, Michel Temer e Fernando Henrique Cardoso, na maior parte dos casos por meio de subsídios, zerando os impostos federais por um tempo para forçar uma queda de preços. De um jeito ou de outro, porém, sempre que um presidente reclama do preço dos combustíveis, é porque seu governo está nas cordas.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 20.02.25

Jogo Político: 'Direita não se resume a Bolsonaro, mas vaidade vai levá-lo a manter a candidatura a presidente até o fim'

Newsletter semanal do jornalista Thiago Prado avança em série de entrevistas ouvindo Marcos Carvalho, responsável pela comunicação da campanha do ex-presidente em 2018, analisa a corrida pelo governo do Rio e recomenda documentário sobre o cantor Belo


Marcos Carvalho

(Bom dia, boa tarde boa noite, a depender da hora em que você abriu esse e-mail. Sou o editor de Política e Brasil do GLOBO, e nessa newsletter você encontra análises, bastidores e conteúdos relevantes do noticiário político.)

Os últimos dias, que expuseram o tombo na popularidade do presidente Lula na pesquisa do Datafolha e a denúncia da Procuradoria Geral da República (PGR) contra Jair Bolsonaro nesta terça-feira, estimularam falas importantes de analistas brasileiros sobre a possibilidade de surgimento de um outsider poderoso na corrida de 2026 ao Planalto.

Na segunda-feira, na Globonews, Felipe Nunes, da Quaest, comentou: "Estamos caminhando para um cenário muito parecido com o de 2018, quando violência e corrupção ganham protagonismo nas grandes cidades, com uma rejeição alta ao governo atual e ao Estado como um todo. Isso, combinado, faz com que a antipolítica possa ter protagonismo". 

Na Veja, Thomas Traumann escreveu: "Pesquisas qualitativas feitas nos últimos dias em São Paulo indicaram que a rejeição aos políticos vai além das reclamações dos preços nos supermercados. Todos os políticos, e não apenas Lula, estão sendo criticados (...). Mais do que um novo Bolsonaro, há indicações que sugerem o desejo de um Javier Milei, alguém que promete cortar o estado assistencial petista".

Responsável pela comunicação da campanha de Jair Bolsonaro à Presidência em 2018, o empresário Marcos Carvalho é o quarto entrevistado da série da newsletter com estrategistas políticos e donos de institutos de pesquisa sobre a eleição do ano que vem. As outras conversas podem ser lidas nos links abaixo:

Carvalho chegou a ser nomeado na equipe de transição do ex-presidente para cuidar da comunicação do governo, mas acabou retirado da função após o vereador Carlos Bolsonaro se incomodar com o seu protagonismo na área. O estrategista, que em 2022 participou da campanha do petista Jerônimo Rodrigues ao governo da Bahia, também vê um cenário favorável para candidatos da oposição no ano que vem, e diz que nomes da direita de fora da política podem, sim, surpreender nas eleições.

Abaixo, os principais trechos da conversa.

O senhor considera que um discurso outsider pode emplacar de novo em 2026?

Acho, sim, que há nomes supercompetitivos. Pablo Marçal e Gusttavo Lima representam a nova política digital, com capacidade de mobilização online e conexão com o eleitorado jovem e evangélico. Se conseguir manter-se elegível, Marçal estará mais maduro depois da eleição em São Paulo. Já Gusttavo Lima tem audiência, 46 milhões de seguidores, é pai de família, empresário, pode ser bom candidato. Resta saber se conseguirão mostrar atributos funcionais e emocionais ao longo de uma campanha.

Você, que conviveu bastante com Bolsonaro, sabe que dificilmente ele vai apoiá-los...

A direita brasileira não se resume mais a Bolsonaro, e novas lideranças estão surgindo. Deixou de ser um movimento monolítico. Outro ponto: transferência de votos precisa ter um receptor compatível. Não necessariamente vai herdar os votos do Bolsonaro quem ficar ali puxando o saco dele.

Depois da denúncia desta terça-feira, uma eventual condenação no Supremo Tribunal Federal (STF) ou prisão não podem levar a um discurso de vitimização do ex-presidente, que volte a torná-lo relevante na sucessão?

Acho a expectativa desse efeito superdimensionada. Na minha cabeça, Bolsonaro seguirá inelegível, nem a pau vai reverter essa situação. Agora, até pelas conversas que tenho em Brasília, não passa pela cabeça de ninguém prender o Bolsonaro. Não vejo esse ânimo. Aliás, muitos no governo nem querem isso.

Acha ruim para o país Bolsonaro preso?

Não sou jurista, mas acho ruim, sim. Acirraria as disputas, precisamos caminhar para um ambiente de paz.

Tarcísio de Freitas não seria um nome mais competitivo para a direita vencer?

Se fosse candidato, sim. Mas acho que ele virá ao governo de São Paulo. Por vaidade, Bolsonaro vai manter a própria candidatura até o último segundo. Depois, a tendência é apontar o dedo para alguém da própria família. O problema é que, hoje, Bolsonaro é considerado um inapto para muitos eleitores de direita. A capacidade dele de indicar pessoas competentes é considerada suspeita.

E Romeu Zema e Ronaldo Caiado?

Zema tem um problema político, não está sendo bem-sucedido na consolidação do seu projeto no seu próprio reduto. Não elegeu prefeitos em Minas Gerais, perdeu na capital e nem sequer parece ter um sucessor claro. Já Caiado pode ser um nome viável por ter perfil de gestor, bom trânsito no agronegócio e um discurso moderado que não repele o centro.

Você crava, portanto, que a direita vencerá em 2026?

O Brasil caminha para uma eleição onde a direita terá um candidato favorito. Mas o quadro não é irreversível para Lula ainda. O problema é que o Planalto não tem uma comunicação digital eficiente. O governo fala muito, mas não se conecta. O eleitorado digital não quer discursos longos e técnicos, mas mensagens diretas, com storytelling envolvente.

Lula voltou a fazer o tradicional, agendas pelo Brasil com discursos longos e entrevistas para rádios locais. É um erro?

Problema não é o rádio ou o palanque. O problema é que não tem um corte depois dessa fala, e a mensagem carece de tração. Em dois anos, o governo não construiu uma rede de influenciadores orgânicos e depende da grande mídia, que perdeu influência no cenário digital. As novas gerações consomem informações via TikTok e Instagram, mas o governo insiste em um formato de comunicação que não dialoga com esse público. No Brasil, o TikTok ultrapassou o Google como ferramenta de busca entre jovens de 18 a 24 anos. Além disso, há ainda um problema de mensagem central em várias áreas.

Por exemplo?

Segurança. Na minha opinião, será o maior fator de decisão na eleição de 2026, especialmente para as classes C e D, que vivem diretamente os efeitos do aumento da criminalidade. A direita no mundo se apropriou desse tema de forma eficaz, enquanto a esquerda ainda não conseguiu construir uma narrativa convincente sobre segurança. Além disso, a direita fez muitos mais movimentos ao centro do que a esquerda. Saíram dos costumes e foram para a economia, e isso tem dado muito certo.

O caso do Pix foi um divisor de águas?

Foi uma anomalia, uma tragédia. Será usado até o último dia contra o governo. Mas não é só isso. O PT não é mais o Partido dos Trabalhadores. E isso é um problema. O Brasil mudou. O trabalhador de hoje não é o operário sindicalizado da década de 80. Viramos um país de pequenos empresários, MEIs, autônomos, prestadores de serviço, profissionais liberais, e esse público não se identifica mais com o PT. A esquerda ainda fala de emprego com carteira assinada, mas o Brasil real vive de trabalho informal, aplicativos, empreendedorismo digital. A nova geração não busca estabilidade, busca oportunidade. O governo não pode prometer um “emprego seguro”, mas precisa garantir um ambiente favorável ao crescimento individual.

Com tantos problemas em áreas da comunicação, segurança e economia, Lula pode acabar desistindo da disputa para não perder e manchar a biografia?

Até existe um talento no campo progressista que não é para agora: o prefeito do Recife, João Campos. Fora isso, mesmo com tantos problemas, Lula é o único candidato. Não existe outra pessoa.

Este texto foi originalmente publicado na newsletter "Jogo Politico". Reproduzido por O Globo, em 20.02.25

editado por Thiago Prado Por Thiago Prado na newsletter Jogo Político


Julgamento de Bolsonaro deve coroar democracia, e não enfraquecê-la

 Não foram poucas as evidências encontradas pela Polícia Federal e pela Procuradoria-Geral da República (PGR) de que Bolsonaro tramou um golpe, tentou convencer os comandantes das Forças Armadas a aderir e, mesmo quando já estava claro que isso não aconteceria, estimulou os manifestantes que estavam nas portas dos quartéis pedindo intervenção militar a não arredar pé.

  • O ex-presidente Jair Bolsonaro e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes — Foto: Fotos de Brenno Carvalho e Cristiano Mariz/O Globo

Como já era de esperar, a denúncia contra Jair Bolsonaro e outros 33 acusados de golpe de Estado pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, dividiu o Brasil. Quem já considerava o ex-presidente culpado ou de alguma forma responsável pelo 8 de janeiro comemorou antecipadamente até a provável condenação e, por tabela, o enterro do projeto de anistia aos presos pelos ataques golpistas às sedes dos três Poderes. No polo oposto do espectro político, a acusação foi tachada de frágil, sem evidências ou provas de que Bolsonaro tem ligação com os ataques — para muita gente, tudo não passou de uma baderna generalizada.

Para que se avalie a denúncia pelo que ela realmente é, e não pelo que se pretende fazer dela, porém, é preciso entender de que tipo de crime estamos falando. Um presidente da República que trame um golpe de Estado nunca assinará um recibo ou preencherá um formulário descrevendo o que fará.

Da mesma forma, uma autoridade que recebe de presente um apartamento de um empreiteiro não o passará diretamente a seu nome, ainda que o use e faça reformas nele. É para isso que servem os prepostos, os intermediários, os amigos e os ajudantes de ordem.

Não foram poucas as evidências encontradas pela Polícia Federal e pela Procuradoria-Geral da República (PGR) de que Bolsonaro tramou um golpe, tentou convencer os comandantes das Forças Armadas a aderir e, mesmo quando já estava claro que isso não aconteceria, estimulou os manifestantes que estavam nas portas dos quartéis pedindo intervenção militar a não arredar pé.

Depoimentos dos comandantes, a minuta do decreto de golpe e até o discurso que o então presidente faria logo em seguida estão nos autos. As trocas de mensagens entre os golpistas dos acampamentos e os militares que faziam o leva e traz do Palácio do Planalto mostram que as orientações para continuarem a postos eram dadas em nome do próprio Bolsonaro. É verdade que ele estava nos Estados Unidos quando tudo aconteceu, mas os manifestantes que marcharam sobre a Esplanada dos Ministérios em 8 de janeiro de 2023 para a “tomada de poder pelo povo” não brotaram do nada.

Se quisesse, o então presidente teria mandado todo mundo para casa muito antes. Não faltou, aliás, quem tentasse convencê-lo a fazer isso. Não conseguiu porque, nas palavras de Mauro Cid, ele “ainda mantinha a chama acesa de que pudesse acontecer alguma coisa”. “Até um dia ele falou, ‘papai do céu sempre ajudou a gente, vamos ver o que aparece aí’ ”, disse Cid. Não era preciso Bolsonaro estar enrolado numa bandeira verde e amarela comandando a turba para ter responsabilidade sobre o que ocorreu.

Nesse caso, porém, nem tudo é delírio militante. Num país em que a Justiça já anulou as penas de um ex-presidente da República condenado por corrupção e considerou suspeito o juiz que deu a primeira sentença, o mínimo que se poderia esperar do Supremo Tribunal Federal (STF) é coerência.

A suspeição de Alexandre de Moraes para comandar o caso já foi discutida no STF e descartada. Os argumentos de quem a defende, porém, são legítimos. Por mais diligente que seja Moraes, ele e Bolsonaro são adversários notórios que mantiveram embates públicos bastante duros.

Além disso, a denúncia demonstra que havia um plano para “neutralizar” Moraes. Como vítima, é difícil acreditar que ele terá a imparcialidade necessária para comandar o julgamento — não porque seja mal-intencionado, e sim porque é humano.

Outra questão é o formato do julgamento. O regimento do Supremo permite que Bolsonaro seja julgado por uma turma, um colegiado menor formado por apenas cinco juízes. O mecanismo foi criado para agilizar o funcionamento da Corte, atolada em processos.

Mas não é proibido que o processo seja submetido ao plenário, onde todos os ministros poderiam opinar sobre um caso que talvez seja o mais importante do tribunal em nossa geração. Tudo indica que Bolsonaro seria condenado mesmo assim. Mas não é disso que se trata.

Um presidente que trama um golpe de Estado para acabar com a democracia comete o crime mais grave para alguém em sua posição. Por isso mesmo, é necessário que o julgamento seja definitivo. Não se pode impedir que parte dos seguidores de Bolsonaro o considerem para sempre inocente.

É preciso, por isso, cuidar para que o processo pelo qual ele será julgado e eventualmente punido seja para sempre lembrado como o coroamento da democracia, e não como mais um acontecimento a fragilizá-la.

Malu Gaspar, a autora deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 20.02.25

Denúncia contra Jair Bolsonaro é sólida e gravíssima

Cabe agora ao Supremo evitar atropelo e lentidão para que o julgamento tenha desfecho justo

O ex-presidente Jair Bolsonaro — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

Com base num extenso trabalho investigativo da Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou o ex-presidente Jair Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal (STF), sob a acusação de ter liderado uma tentativa de golpe de Estado depois de derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva em 2022. Entre os outros 33 denunciados estão quatro ex-ministros, quatro ex-integrantes do Alto Comando do Exército, um ex-comandante da Marinha, assessores palacianos e militares da ativa ou da reserva.

Estão na lista nomes como Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro; Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional; Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; Alexandre Ramagem, deputado federal pelo Rio e ex-diretor da Abin; e Silvinei Vasques, ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal. Se a denúncia for aceita pelo STF, os envolvidos passarão à condição de réus e serão julgados por crimes como tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e participação em organização criminosa. Somadas, as penas de prisão podem chegar a 43 anos.

Esperada com ansiedade nos meios políticos, a decisão da PGR é histórica. Bolsonaro é acusado de liderar uma organização criminosa que não apenas tentou reverter a vontade popular expressa nas urnas, mas até matar o presidente eleito, seu vice e um ministro do Supremo, com o objetivo de acabar com a alternância de poder. Nada pode haver de mais grave numa democracia.

Em capítulo tão singular da nossa História, o STF precisa tomar os devidos cuidados para garantir a todos os denunciados amplo direito de defesa, seguindo à risca o que determina a Constituição que eles são acusados de tentar destruir. Se a denúncia for aceita, o julgamento dos réus exigirá minuciosa avaliação das provas, depoimentos e argumentos da PGR e da defesa. A denúncia é sólida e tem base numa investigação exemplar. Mesmo assim, as eventuais condenações precisarão ser explicadas à população de forma exaustiva para mitigar o efeito dos ataques que certamente se intensificarão. Nas cadeias (não apenas nas brasileiras), é difícil encontrar réus confessos. Quando, entre os acusados, estão políticos populares e figuras notórias, não há como fugir a uma guerra de versões e narrativas. Por isso, além de justo, o julgamento deverá ser didático.

O STF precisará doravante ampliar seus esforços para manter o equilíbrio. Evitar, ao mesmo tempo, o atropelo e a lentidão nas decisões. A denúncia da PGR está embasada não apenas em delações, mas em manuscritos, arquivos, planilhas, trocas de mensagens, áudios e depoimentos. A defesa de Bolsonaro divulgou nota manifestando “estarrecimento e indignação”. Segundo seus advogados, trata-se de denúncia “inepta”. Nada mais distante da realidade. É uma denúncia consistente, da mais alta gravidade. Por isso mesmo, caberá ao Supremo conduzir o processo com respeito às provas, à legislação e com toda a serenidade necessária para que ele tenha um desfecho justo.

Editorial d'O Globo, em 20.02.25

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

O perigo de um Judiciário sob suspeita

A se confirmarem as múltiplas suspeitas de corrupção no Judiciário vindas à tona no último ano, o sistema de Justiça, já cronicamente disfuncional, poderá entrar numa crise aguda

A Polícia Federal indiciou 23 pessoas no Maranhão, entre elas três desembargadores, dois juízes e sete advogados, por crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Evidentemente, é preciso máxima cautela para um caso em que ainda não houve sequer denúncia. Os indiciados ainda não são réus, e terão a oportunidade de se manifestar dentro do devido processo legal. Mas os indícios são robustos e, se confirmadas, as suspeitas abrirão uma chaga profunda na já combalida credibilidade do Judiciário.

Historicamente, a corrupção é um mal muito mais associado ao Legislativo e ao Executivo. A descrença no Judiciário tem razões de ordem estrutural: a percepção de uma casta de privilegiados; o dissabor com uma Justiça custosa, lenta e labiríntica; a desconfiança de sua parcialidade e, cada vez mais – especialmente em relação às cortes superiores –, de seu ativismo e partidarismo.

O impacto dessa descrença é multifacetado e incomensurável. A desconfiança dos cidadãos no sistema judicial como um meio legítimo e eficaz de solucionar disputas degrada o Estado de Direito, incentiva a instabilidade política e institucional, fragiliza a coesão social, encoraja a violação das leis e afasta investimentos. Em um corpo judiciário já cronicamente disfuncional, os escândalos de corrupção têm o potencial de precipitar uma crise aguda e possivelmente letal.

O ano de 2024 foi marcado por sucessivas denúncias de corrupção. Segundo apuração do Estadão, além do Maranhão, pelo menos cinco Tribunais de Justiça estaduais são alvo de investigações relacionadas à corrupção, em especial à venda de sentenças judiciais: Mato Grosso do Sul, São Paulo, Tocantins, Espírito Santo e Bahia. Ainda em 2024, o Conselho Nacional de Justiça afastou dois juízes, no Espírito Santo e no Amapá, suspeitos de atuarem a serviço de facções criminosas. O próprio Superior Tribunal de Justiça é investigado por um esquema de venda de sentenças que envolve funcionários de quatro gabinetes e possivelmente um ministro.

O inquérito no Maranhão sugere que os magistrados persuadiam pessoas a ajuizar ações contra empresas, fraudavam a distribuição dos processos, decidiam favoravelmente aos autores das ações e inflavam valores de correção monetária. Suspeita-se que o esquema tenha gerado quase R$ 18 milhões na forma de honorários advocatícios distribuídos entre os envolvidos.

“A presente investigação identificou a existência de uma organização criminosa formada pelos núcleos judicial, causídico e operacional, em que magistrados, advogados e terceiros atuavam de forma estruturalmente ordenada, com clara divisão de tarefas, com o objetivo de obter vantagens de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais, dentre as quais, corrupção e lavagem de dinheiro”, afirmou a Polícia Federal.

O caso é especialmente alarmante porque, a se confirmarem as suspeitas, revelará magistrados que já não são mais simplesmente cooptados por organizações criminosas, mas que formam eles mesmos uma organização criminosa.

Entre tantas más notícias, a boa notícia é justamente que as suspeitas estão sendo investigadas. Em tese, os anticorpos da Justiça estão agindo. Sob os holofotes públicos, espera-se em todos esses casos a observância rigorosa dos ritos legais e, se confirmados os crimes, uma punição exemplar. Mas se, ao contrário, esses ritos forem manipulados para afastar a punição dos eventuais criminosos, a desmoralização será redobrada e, ao menos a curto prazo, irreversível.

A mera punição dos eventuais culpados, contudo, não será suficiente para revigorar a integridade do sistema de Justiça. O Judiciário precisará mostrar empenho em implementar reformas estruturais que corrijam fragilidades, ampliem a transparência e criem mecanismos de controle que garantam melhores condições de responsabilização e prestação de contas perante a sociedade. Muito mais do que a reputação da magistratura, o que está em jogo é a saúde do Estado Democrático de Direito nacional.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 18.02.25

Lula, o pequeno ‘Grande Irmão’

Presidente quer que STF regule as redes para nos ‘moralizar’. Tamanha ignorância ou malícia impõe ao Congresso prudência no exercício de suas competências e intransigência na sua defesa

A obsessão do presidente Lula da Silva de encabrestar a opinião pública não é novidade. Há muito o eufemismo “democratização dos meios de comunicação” figura nos estatutos e programas do PT. Em relação às mídias tradicionais, Lula sabe muito bem o que quer. A sociedade também, e sempre frustrou suas manobras para amordaçar a imprensa. A novidade em relação às mídias digitais é que Lula, aparentemente, não tem a menor ideia do que são, nem dos direitos e deveres das redes e usuários consagrados na Constituição e nas leis, nem dos meios legítimos para reformulá-las.

“Nós precisamos regular essa chamada imprensa digital”, disse Lula recentemente a duas rádios baianas. A Secretaria de Comunicação do Planalto retificou o ato falho: o presidente supostamente se referia às “plataformas digitais”. Mas o sonho autoritário de uma imprensa servil e adulatória é indisfarçável.

“Numa imprensa escrita, numa televisão normal, o cidadão falou uma bobagem, ele é punido. Tem lei para isso. E no digital não tem”, explicou o presidente. Felizmente, a legislação penal não pune “bobagens”. Mas pune crimes como difamação ou fraude, e seus autores são responsáveis seja lá qual meio de comunicação utilizem. Como as redes digitais não são editoras ou produtoras de conteúdo, mas só veículos, o legislador estabeleceu no Marco Civil da Internet que elas só se tornam corresponsáveis se continuarem divulgando o conteúdo criminoso após uma ordem judicial de remoção, exceção feita a cenas de nudez ou sexo não autorizadas.

Pode-se discutir se essa exceção deve ser estendida a outros crimes flagrantes. Lula, porém, quer muito mais. “A liberdade de expressão não é as pessoas utilizarem esses meios de comunicação para canalhice, para fazer provocação, para mentir”, declarou o petista. Mas a garantia constitucional da liberdade de expressão visa exatamente a impedir que os poderosos punam cidadãos comuns por seja lá o que entendam por “canalhice”. Mesmo a mentira, em si, não é crime, exceto se empregada como meio para ilicitudes.                                         

“O que não pode é a gente achar (...) que um empresário pode ficar falando mal de todo mundo a toda hora, se metendo nas eleições de cada país”, disse Lula, aludindo ao dono do X, Elon Musk. Ao contrário do que Lula diz, há uma lei para as redes digitais. O Marco Civil exige delas neutralidade, e se há prova de favorecimento de algum grupo político ou interferência em eleições, elas podem ser punidas. Fora isso, Musk e outros donos de plataformas digitais são indivíduos como outros quaisquer, e podem falar mal de quem bem entenderem e emitirem as opiniões que quiserem sobre a política de seja lá qual país.

Ninguém se dirá surpreso com as taras autoritárias de Lula, e, felizmente, também ele tem direito às suas canalhices, bobagens, provocações e mentiras. Mas é alarmante um presidente da República intimidar o Legislativo e incentivar o Judiciário a violentar a Constituição. O Congresso “vai ter de colocar isso para regular”, bradou Lula. “Se não for o caso, a Suprema Corte vai ter de regular, porque é preciso moralizar”. O que o Congresso tem ou não de fazer é uma decisão do Congresso. A Suprema Corte não tem legitimidade para regular nada, muito menos para “moralizar” quem quer que seja. Se o fizer, violará duplamente a Constituição, na forma do procedimento e no conteúdo da decisão.

Das duas uma: ou Lula não tem a menor ideia do que são as redes digitais, das garantias constitucionais à liberdade de expressão e de como funciona a divisão de Poderes num Estado Democrático de Direito, ou sabe muito bem tudo isso e joga areia nos olhos da população enquanto seus consorciados no Judiciário fazem o trabalho sujo de tecer a mordaça. Ambas as hipóteses são aterradoras e mostram a urgência de um Congresso alerta, a um tempo cauteloso e assertivo. Ante tamanha manifestação de ignorância ou malícia do presidente da República, os parlamentares precisam redobrar a prudência na regulação das redes e ao mesmo tempo deixar claras suas competências, conferidas pelo povo.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 18.02.25

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Os desvarios de Trump sobre Gaza

Plano de remover 2 milhões de palestinos mostra como é curta a distância entre ousadia e loucura


O plano do presidente Donald Trump de assumir Gaza, remover seus 2 milhões de palestinos e transformar a faixa costeira desértica num tipo de Club Med prova apenas uma coisa: como é curta a distância entre o pensamento fora da caixa e o pensamento desvairado. Posso dizer com segurança que a proposta é a iniciativa de “paz” para o Oriente Médio mais absurda e perigosa jamais apresentada por um presidente americano.

Ainda assim, não tenho certeza do que é mais assustador: a proposta de Trump para Gaza, que parece mudar a cada dia, ou a velocidade com que seus conselheiros e autoridades do gabinete – quase nenhum informado sobre os planos com antecedência – balançaram a cabeça em aprovação à ideia, como uma coleção de bonecos bobbleheads.

Prestem atenção, senhoras e senhores: essa proposta não trata apenas do Oriente Médio. É também um microcosmo do problema que os americanos enfrentam neste momento enquanto país. Em seu primeiro mandato, Trump esteve cercado por mitigadores: conselheiros, secretários de gabinete e generais que muitas vezes evitaram e contiveram seus piores impulsos.

Agora, Trump está cercado somente por amplificadores: conselheiros, secretários de gabinete, senadores e membros da Câmara que vivem com medo de sua ira ou de serem atacados por multidões online atiçadas por seu fiscal, Elon Musk, caso saiam da linha.

Essa combinação de Trump sem amarras, Musk sem restrições e grande parte do governo e do establishment empresarial vivendo com medo de ser tuitado por qualquer um dos dois é uma receita para o caos, domesticamente e no exterior.

Trump opera mais como o Poderoso Chefão do que como o presidente: “Belo pequeno território que vocês têm aí (Groenlândia, Panamá, Gaza, Jordânia, Egito). Seria uma pena se algo ruim acontecesse por lá”.

Isso pode funcionar nos filmes, mas na vida real, se o governo Trump realmente tentar forçar Jordânia e Egito ou qualquer outro Estado árabe a aceitar os palestinos que vivem em Gaza – e fazer o Exército israelense prendê-los e deslocá-los, já que ele disse que a transferência não envolveria tropas dos EUA e não custaria nenhum centavo aos contribuintes americanos –, isso desestabilizará o equilíbrio demográfico na Jordânia, Cisjordânia, Egito e Israel.

Por mais que os israelenses odeiem o Hamas, estou certo de que muitos soldados, fora os de extrema direita, se recusarão a fazer parte de qualquer operação que possa ser comparada à captura e transferência de judeus de suas casas durante a 2.ª Guerra.

Conforme opinou o jornal israelense Haaretz: “Não há soluções mágicas capazes de dissolver simplesmente o conflito. A audácia de apresentar tal solução – que ecoa em termos como transferência, limpeza étnica e outros crimes de guerra – é um insulto tanto aos palestinos quanto aos israelenses”.

REAÇÕES. Trump também criará uma reação contra embaixadas e interesses dos EUA em todo o mundo árabe muçulmano, com muitos indo às ruas na Europa, no Oriente Médio e na Ásia se manifestar contra palestinos sendo forçados a deixar suas terras em nome de Trump, criando um resort litorâneo na Faixa de Gaza – que Trump disse que “possuirá” e para onde os palestinos não teriam direito de retornar.

Isso seria o maior presente que Trump poderia dar para o Irã se reerguer no Oriente Médio e envergonharia todos os regimes sunitas pró-EUA. Empresas americanas como McDonald’s e Starbucks, que já enfrentaram boicotes em razão do armamento fornecido pelos EUA a Israel na guerra de Gaza, seriam prejudicadas ainda mais duramente.

Trump tem alguma razão? Bem, sim. Ele está certo ao afirmar que o Hamas é uma organização enlouquecida e perversa, que, ao massacrar de cerca de 1,2 mil pessoas em 7 de outubro de 2023 e sequestrar de cerca de 250, desencadeou o impiedoso ataque israelense contra o Hamas, escondido no subsolo de Gaza, sem nenhum respeito aos seus civis.

O Hamas transformou seus vizinhos palestinos em objetos de sacrifício humano com intenção de deslegitimar Israel em todo o mundo. Para muitos jovens que só recebem notícias pelo TikTok, funcionou, embora a estratégia não pudesse ter sido mais cínica.

Trump também está certo ao afirmar que, como resultado, Gaza transformou-se em um inferno. E também está certo ao afirmar que o problema dos refugiados palestinos foi mantido vivo durante muito tempo por cínicos, no mundo árabe e em Israel, e por líderes palestinos incompetentes.

Sair do 7 de Outubro para qualquer tipo de processo de paz não será fácil, mas a ideia de que tudo já foi tentado e a única opção que resta é limpeza étnica está errada – mas é isso que a direita israelense e o Hamas querem que todos acreditem.

Um dos maiores problemas com a atual equipe de Trump é que todo seu foco sobre o Oriente Médio advém das lentes de extremistas de direita israelenses e cristãos evangélicos. Tudo o que o pessoal de Trump conhece sobre o mundo árabe vem da comunidade de investimento no Golfo Pérsico. Portanto, eles são completamente, totalmente loucos pelo primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu.

Por exemplo, o secretário de Estado, Marco Rubio, continua dizendo aos líderes árabes: “O Hamas nunca mais poderá governar Gaza nem ameaçar Israel”. Mas Rubio parece não ter a mínima ideia de que Netanyahu foi o responsável por permitir que o Catar desse ao Hamas centenas de milhões de dólares – que o grupo destinou para seu programa de construção de túneis e fabricação de armas, para ser capaz de controlar Gaza eternamente.

Bibi queria que o Hamas “governasse Gaza”, não a Autoridade Palestina na Cisjordânia, para que os palestinos permanecessem divididos e nunca pudessem ser parceiros em uma solução de dois Estados – o objetivo de todos os presidentes americanos desde George H. W. Bush.

SAÍDAS. E a razão pela qual Netanyahu se recusou a definir uma liderança alternativa para Gaza é que ele sabe que a única alternativa crível é uma Autoridade Palestina reformada, mas que a extrema direita em Israel derrubará seu governo se ele concordar com tal solução.

Então, por favor, não me venham com a ideia de que tudo, exceto uma limpeza étnica, já foi tentado de boa-fé por ambos os lados. Se Trump realmente pretende provocar uma mudança radical e tirar vantagem de parte do medo que ele incute nas pessoas, não será com essa proposta imatura de “Mar-a-Gaza”.

Isso só seria possível se Trump convocasse publicamente todas as partes e desafiasse cada uma delas a verdadeiramente e de boa-fé fazer o trabalho duro necessário para sair desse inferno.

PLANO. Seria necessário dizer à Autoridade Palestina que, se quiser governar Gaza, a entidade precisa empossar um novo líder não corrupto e um novo primeiro-ministro eficiente – como o ex-primeiro-ministro Salam Fayyad – imediatamente. Essa Autoridade Palestina reformada precisa então criar um gabinete de tecnocratas para convidar uma força de paz árabe para assumir Gaza, concluir a expulsão da liderança do Hamas e solicitar a assistência internacional necessária para a reconstrução de Gaza.

Essa força árabe também teria de se comprometer a treinar uma força de segurança da Autoridade Palestina para a entidade se tornar capaz, eventualmente, de governar Gaza por conta própria, com ajuda dos árabes.

E seria necessário dizer a Netanyahu que, assim que a força de paz árabe estiver formada e operante, Gaza será dividida em Áreas A e B. A Autoridade Palestina e a força de paz árabe governarão a Área A – todos os centros populacionais – e o Exército israelense pode permanecer em todo o perímetro – a Área B – por vários anos.

Depois disso, os palestinos realizam eleições na Cisjordânia e em Gaza e negociam uma solução de dois Estados com Israel para ambos os territórios. Uma vez que esse processo estiver em andamento, a Arábia Saudita normaliza as relações com Israel, e o acordo de segurança EUA-Arábia Saudita pode ir adiante.

Cedo ou tarde, Trump pode aprender o seguinte: os interesses dos EUA e os interesses de Netanyahu não estão alinhados. O interesse de Bibi é usar qualquer pretexto para permanecer no poder, não importando se isso significa postergar a libertação dos reféns, travar uma guerra eterna ou abandonar a perspectiva de uma normalização histórica das relações entre o Estado judaico e a Arábia Saudita.

Netanyahu chegou a dizer outro dia que “os sauditas podem criar um Estado palestino na Arábia Saudita; eles têm muito território por lá”, desencadeando uma dura resposta saudita.

Será que Trump vai despertar e perceber o quanto Netanyahu e os supremacistas judeus em Israel o veem como um trouxa ao seu dispor?

Praticamente todo o establishment de segurança em Israel está em pé de guerra pelo fato de Netanyahu ter se recusado a definir um plano para transformar a vitória militar de Israel em Gaza numa vitória política sustentável.

Vejam, então, o que Bibi disse à Knesset (Parlamento) esta semana: “A visão de Trump é nova, criativa, revolucionária; e ele está determinado a implementá-la. Vocês falaram sobre o ‘dia seguinte’ (o plano para Gaza) – vocês conseguiram seu ‘dia seguinte’! Só que ele não condiz com a visão de Oslo, porque nós não repetiremos esse erro”. Bibi está simplesmente usando Trump para ganhar mais tempo, a caminho do nada. PÁRIA. Se Bibi chegar aonde está indo, todo jovem judeu hoje aprenderá o que é crescer em um mundo onde o Estado judaico é um Estado pária. Presidente Trump, eu lhe repito: há um argumento verdadeiro para o senhor reformular seu pensamento sobre esse problema. Mas seu plano para um “Mara-Gaza” não é um novo pensamento. É um novo estribilho.

Sua proposta não passa de conceitos amalucados de um plano de paz lançado sem checagem por seus conselheiros ou aliados, cujos detalhes o senhor muda todos os dias, forçando seus conselheiros bobbleheads a concordarem vigorosamente – sem nenhuma consideração aos interesses de longo prazo dos EUA ou à sua própria credibilidade. É um plano que Israel amará até a morte, ressuscitará o Irã e desestabilizará todos os aliados dos americanos.  

Thomas L. Friedman, o autor deste artigo, é colunista do The New York Times e ganhador de três prêmios Pulitzer. Publicado em língua portuguesa em tradução de Guilherme Russo para O Estado de S. Paulo, em 16.02.25.

Quando a crise financeira vai chegar?

Em grande parte porque o governo está focalizado na reeleição em 2026, não dá para contar com uma ‘mensagem forte de compromisso fiscal’


Rainha Elizabeth II, "Por que ninguém percebeu isso?"

No dia 5 de novembro de 2008, logo após a crise financeira mundial disparada com a falência do banco americano Lehman Brothers, a rainha Elizabeth II, ao comparecer a uma cerimônia na London School of Economics, em Londres, fez uma pergunta: “Por que ninguém percebeu isso?”. Dias depois, economistas enviaram carta à soberana para explicar que houve uma falha coletiva de muitas pessoas brilhantes, no país e no exterior, que as impediu de entender os riscos do sistema.

Na verdade, mesmo quem entendeu os riscos (e houve muitos alertas) não conseguiria cravar o momento da erupção da crise. Segundo a lei de Dornbusch (homenagem ao saudoso economista alemão Rudiger Dornbusch), “a crise demora muito mais a chegar do que se imagina, mas depois ocorre mais rapidamente do que se pensa”. Daí por que os mercados não precificam uma grande crise. A enorme incerteza não permite calcular o desconto pelo risco de um determinado ativo financeiro.

O Brasil, como já afirmei neste espaço, caminha para uma profunda crise financeira decorrente de um colapso fiscal. É a consequência da marcha da insensatez fiscal iniciada na Constituição de 1988 e continuada em governos posteriores, especialmente os do PT. Decidiu-se resolver a desigualdade social e a pobreza por meio de gastos de Previdência e assistência social, sem indagar se haveria as condições para tanto. Segundo um de nossos melhores especialistas, Raul Velloso, esses gastos representam hoje 84,8% das despesas primárias da União.

Claro, a crise pode ser evitada por meio de expressivo corte de gastos, o que é impossível sem reformas estruturais. Fora disso, os cortes serão sempre tímidos, insuficientes e na maioria temporários. É o que ficou provado com o recente pacote fiscal, que decepcionou o mercado financeiro, o qual esperava, inocentemente, que ele seria robusto e levaria à estabilização e depois à queda da relação entre a dívida pública e o Produto Interno Bruto (PIB). Na verdade, o fracasso derivou, em parte, da excessiva rigidez orçamentária. De fato, quando computados os gastos com educação, saúde e o piso de investimentos, 96% das despesas primárias federais têm natureza obrigatória. Isso tende a piorar nos próximos anos.

Essa realidade é, todavia, pouco percebida. Demandam-se cortes expressivos de gastos, mas isso dependeria da aprovação das citadas reformas estruturais, o que é quase impossível no atual governo, principalmente agora que Lula da Silva entrou no modo de reeleição. Tudo indica que a Secretaria de Comunicação Social terá a inédita palavra final em medidas fiscais. Ações impopulares, mesmo que modestas, não passarão no filtro.

Há quem imagine que o governo possa fazer cortes do mesmo modo que o setor privado. “O Brasil precisa de mensagem forte de compromisso fiscal”, disse um banqueiro em Davos, o que tem chances zero de acontecer atualmente. Na verdade, restrições políticas, a reeleição, a ausência de determinação e a rigidez orçamentária explicam a relativa timidez do pacote fiscal. Claro, é bom que o mercado tenha percebido a existência desse grave problema e entenda que a dívida pública é o calcanhar de aquiles. Essa percepção explica em grande parte o forte estresse recente, quando o dólar chegou a valer R$ 6,20 e continuou acima de R$ 6 por vários dias.

Como se sabe, a causa básica do estresse foram a decepção com o pacote fiscal e as expectativas em torno das medidas do novo presidente americano, as quais, se implementadas, podem acarretar forte valorização do dólar nos mercados mundiais e desvalorizações de outras moedas, inclusive o real. Como isso não aconteceu na dimensão imaginada, criou-se a percepção de que Trump pode não implementar totalmente suas promessas de campanha relativas às tarifas. Os mercados desfizeram posições e corrigiram excessos, o que resultou em queda da moeda americana em relação ao real. No momento em que este texto era escrito, a cotação do dólar estava em R$ 5,83. O ministro da Fazenda afirmou que não compraria o dólar a R$ 5,70, sugerindo que esse seria o patamar do dólar com base nos fundamentos da economia brasileira.

Nada garante que o cálculo do ministro será confirmado ou que o dólar não volte a ser cotado acima de R$ 6,00. Em outras crises, de tempos em tempos, tudo parecia que a situação se normalizava, mas o estresse retornava diante da reemergência dos fatores que o justificaram. Assim, o problema pode renascer por um fato novo que relembre a insustentabilidade da trajetória da dívida pública. Por exemplo, a percepção de que o programa de Donald Trump é para valer. Basta ver a imposição de tarifas para punir a Colômbia por recusar-se a receber deportados e de 25% nas importações do México e do Canadá. Em resumo, em grande parte porque o governo está focalizado na reeleição em 2026, não dá para contar com uma “mensagem forte de compromisso fiscal”. Isso poderá acontecer no pós-crise, dependendo de quem estiver na Presidência da República.

Mailson da Nóbrega, o autor deste artigo, é sócio da Tendência Consultoria. Foi Ministro da Fazenda. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.02.25

O diabo à espreita

Com Lula enfrentando a maior impopularidade já registrada em seus mandatos e sem ideias novas, resta ao lulopetismo aplicar a máxima de Dilma e ‘fazer o diabo’ para ganhar a reeleição

Pesquisa Datafolha divulgada anteontem mostrou uma queda significativa na popularidade do governo do presidente Lula da Silva: 41% dos brasileiros o avaliam negativamente, enquanto apenas 24% o veem de forma positiva. Foram 11 pontos de queda em apenas dois meses, um tombo inédito, segundo o Datafolha, se comparados os três mandatos do petista, confirmando tendência já detectada em janeiro pela Quaest. O declínio é ainda maior justamente entre as pessoas que votaram em Lula: 20 pontos porcentuais. Mas a notícia mais dura para o presidente e o PT é que a queda foi puxada pelos eleitores que até outro dia eram considerados cativos do lulopetismo, isto é, as mulheres, os negros, os nordestinos, os mais pobres e os menos escolarizados.

Tais dados não assombram apenas o lulopetismo. Afinal, trata-se da expressão, em números, de incômodos que se aprofundam em parte significativa do País. A base que elegeu Lula em 2022 está frustrada e descontente. A franja da base, isto é, setores que compunham a chamada frente ampla (liberais sociais, progressistas moderados, empreendedores individuais, eleitores não petistas que votaram nele por rejeitar o bolsonarismo), já demonstra insatisfação há meses. Esses movimentos se dão enquanto se constata que o governo é uma soma de atos e resultados medíocres, de uma equipe ministerial disforme e de qualidade duvidosa e de um comando sem clareza de propósitos.

Importam menos, nesse caso, indicadores oficiais positivos, como emprego em baixa e crescimento do PIB em alta, se tais índices não se traduzem em renda suficiente para enfrentar a carestia, sobretudo dos alimentos. O que importa de verdade é que Lula venceu a eleição prometendo picanha e cerveja a preços módicos e não está entregando. Pior, não aparenta ter a menor ideia do que fazer. Não tem um plano nem ideias novas. Só faz reclamar dos outros: do dólar que subiu, dos juros que não caem, dos empresários que não pagam bons salários.

Exegetas do Palácio do Planalto nem sequer podem argumentar que mudanças em curso trarão benefícios no longo prazo. Seria o caso da agenda climática, de mudanças estruturais na educação ou de avanços reais na saúde. Mas Lula não tem como recorrer a esse argumento, pois pouco ou nada tem a exibir nessas frentes. Com efeito, o governo recorre a culpados externos – as fake news, a especulação do mercado financeiro, Donald Trump, a imprensa. E assim, aos poucos, mais do que um quadro de malaise, a insatisfação parece configurar-se como rejeição de fato, uma inquietação cada vez mais aguda com os rumos da gestão. E o mais grave: a percepção de que não só Lula não vem cumprindo promessas de bem-estar, como não tem a menor ideia do que propor ao País.

O pensamento rupestre do PT faz o terceiro mandato se concentrar não na atualização das ideias e iniciativas de governo para atender a novas demandas da população. O elixir lulopetista segue a prescrição do passado, com a conjugação de programas sociais, benefícios de transferência de renda (atualizados sob a forma do Pé-de-Meia, por exemplo), dirigismo na economia, nenhuma atenção a microrreformas que favoreçam o mundo empreendedor e altíssima atenção à militância esquerdista. O resultado é um nível baixíssimo de avaliação líquida, hoje -17 (o saldo entre os 24% que o avaliam positivamente e os 41% que o veem de forma negativa).

Ainda é cedo para dizer se Lula está diante de um fracasso circunstancial ou definitivo. No início do terceiro ano do seu mandato, Jair Bolsonaro exibia -9 de avaliação líquida e quase venceu em 2022. A situação atual é mais grave, mas ainda assim se trata de Lula, um inquestionável líder popular e um prestidigitador experiente na arte eleitoral. Entretanto, indo a sua popularidade ladeira abaixo, pressionado por resultados imediatos e engolfado pela falta de ideias, Lula pode se sentir tentado a aplicar desde já a famosa máxima de Dilma Rousseff, segundo a qual, em eleição, “a gente faz o diabo”.

É onde mora o perigo. Consta que uma ala do PT já pede uma guinada à esquerda – como se o atual governo, perdulário e estatista, já não estivesse suficientemente lá. Mas é claro que, sendo vermelho o diabo, sempre é possível ir além.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.02.25

Pesquisa Ipec: cresce percentual de brasileiros que acham que Lula não deveria se candidatar à reeleição

Aumento aconteceu também entre eleitores do petista na última eleição

O presidente Lula no lançamento do Pé-de-Meia: programa fora da meta fiscal — Foto: Cristiano Mariz / Agência O Globo/25-03-2024

Como um novo indicativo da queda de popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o percentual de brasileiros que acham que Lula não deve ser candidato à reeleição subiu de 57% para 62%. O dado faz parte de uma pesquisa Ipec (antigo Ibope) divulgada neste sábado pelo colunista José Roberto de Toledo, do UOL, e que mostra ainda um enfraquecimento do apoio entre os eleitores do petista.

De acordo com o levantamento, a taxa entre pessoas que votaram em Lula em 2022 e que acreditam que ele não deve concorrer passou de 24% para 32%, mais do que um a cada três eleitores. A última medição havia sido feita em novembro de 2024. Já entre os eleitores do ex-presidente Jair Bolsonaro, a taxa de pessoas que não apoiam a reeleição do atual chefe do Executivo é de 95%.

A pesquisa perguntou aos 62% de participantes que se disseram contrários à reeleição do Lula o motivo da opção. As respostas, que por conta do método espontâneo ultrapassa os 100%, foram as seguintes:

Não está fazendo um bom trabalho - 36% dos entrevistados

Porque é corrupto - 20%

Pela idade - 17%

Já teve a sua chance - 11%

Por não confiar nele - 9%

Para ter renovação - 7%

Não é um bom administrador - 5%

Aumentou impostos - 5%

Prometeu não se candidatar novamente - 3%

Não cumpre o que promete - 2%

Inflação muito alta - 2%

De acordo com a medição, a queda de popularidade acontece exatemente na avaliação do governo atual do presidente, já que a soma de quem acha que ele não faz bom trabalho (36%), com não ser bom administrador (5%), com impactos pelo aumento impostos (5%) , inflação alta ( 2%) e não cumprir promessas (2%) chega a 50% dos entrevistados.

Há ainda um indicativo no levantamento de um desejo por renovação, que totaliza 39% das respostas: a soma de quem cita a idade avançada e saúde do presidente (17%), dizem que ele já teve sua chance (11%), que é preciso renovar (7% ), que afirmam que ele prometeu não se candidatar de novo (3%) e que é contra a reeleição em geral (1%).

A análise vai de encontro à pesquisa Datafolha divulgada nesta sexta-feira, que mostrou um tombo na popularidade de Lula, puxado por segmentos que formam a base de sustentação do presidente. A atual gestão atingiu o menor índice de avaliação positiva de todos os mandatos do petista na série histórica do levantamento e o percentual do eleitorado que considera que Lula 3 é ótimo ou bom caiu 11 pontos percentuais em apenas dois meses, de 35% para 24%. No grupo que declara ter votado em Lula no segundo turno das eleições de 2022, a queda é ainda maior, de 20 pontos.

A avaliação negativa do governo (ruim ou péssima) também é recorde e subiu, no período, de 34% para 41%. Já o percentual da população que considera a gestão regular variou de 29%, em dezembro, para 32% no levantamento mais recente.

O movimento de queda da percepção positiva do governo Lula foi puxado pelos segmentos que formam a base eleitoral do presidente, em especial a população com renda de até dois salários mínimos, fatia que representa pouco mais da metade da amostra da pesquisa. A mudança ocorre ainda após a crise envolvendo o monitoramento de transações financeiras superiores a R$ 5 mil, incluindo as por Pix, que acabou revogada pela Receita Federal diante da recepção negativa e da disseminação de desinformação sobre a medida nas redes sociais. Outro tema que pressiona a popularidade e gera preocupação no próprio governo é a alta na inflação dos alimentos.

A pesquisa Datafolha ouviu presencialmente com 2.007 eleitores de 16 anos ou mais em 10 e 11 de fevereiro. A margem de erro geral da pesquisa é de dois pontos percentuais. No mês passado, a pesquisa Genial/Quaest, feita entre 23 e 26 de janeiro, já havia detectado recuo na aprovação ao governo Lula . O instituto mostrou queda de cinco pontos, de 52% para 47%, no indicador, que ficou pela primeira vez atrás do percentual dos que reprovam a atual gestão (49%). Já avaliação negativa passou de 31% para 37%, enquanto a positiva variou de 33% para 31%. A margem de erro é de um ponto percentual.

Publicado originalmente por O Globo, em 15.02.25

Em tempos de intolerância, a palavra não oficial é vista como ameaça

 


Mundo atual precisa de um mínimo de retidão moral e intelectual de cada bípede capaz de pensar para além do próprio nariz

Elon Musk com o filho e Donald Trump no Salão Oval da Casa Branca — Foto: JIM WATSON/AFP

Sábado, 23 de junho de 1934. O telefone toca na casa do poeta Bóris Pasternak em Moscou. É a secretária de Josef Stálin, líder supremo da União Soviética pós-revolucionária. O camarada queria dar uma palavrinha. A histórica ligação registrada pela KGB durou cerca de três minutos, e as perguntas formuladas por Stálin vieram de chofre, sem introito:

— O que você acha de Mandelstam?

— O que se fala sobre a prisão dele nos círculos literários?

Stálin se referia à detenção, um mês antes, do também poeta Osip Mandelstam. Autor de um ácido poema contra o líder, Mandelstam o recitara privadamente para um grupo de 14 intelectuais amigos — entre eles, Pasternak. Este último admirava o colega modernista, porém considerava desnecessária e perigosa para todos a crítica a Stálin. Pego de surpresa, o autor de “Doutor Jivago” e posteriormente Nobel de Literatura (1958) conseguiu apenas articular uma resposta genérica sobre o estilo literário de cada um, resposta essa de que se arrependeria o resto da vida:

— Nós somos diferentes, Camarada Stalin. Ele é modernista, enquanto eu sou de outra tendência. Nada posso lhe dizer sobre Mandelstam — respondeu.

— Só isso? Esse é o máximo de lealdade que você demonstra a um amigo? Você é um péssimo camarada, Camarada Pasternak — retorquiu Stálin antes de desligar.

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O escritor ainda tentou se reconectar com o ditador para fazer reparos. Em vão. Stálin perdera interesse. Já sabia o que queria. Ademais, o número de telefone criado pela KGB para essa única chamada já não mais existia.

Autoridades dotador para fazer reparos. Em vão. Stálin perdera interesse. Já sabia o que queria. Ademais, o número de telefone criado pela KGB para essa única chamada já não mais existia.

Esse é o tema do livro “Um ditador na linha” (Cia. das Letras, 2024), em que o autor albanês Ismail Kadaré analisa múltiplas versões do telefonema para refletir sobre a relação entre poder e política, totalitarismo e liberdade de expressão, ditador e poeta. Além da fonte primária — a gravação feita pela KGB —, existem outras 12 versões baseadas na memória do que intelectuais russos da época — como Anna Akhmátova, Ilya Ehrenburg e Isaiah Berlin — ouviram do próprio Pasternak.

Por que evocar esse episódio agora? Porque os tempos andam bicudos, e nunca é demais lembrar quanto o mundo atual precisa de um mínimo de retidão moral e intelectual de cada bípede capaz de pensar para além do próprio nariz. No auge da Segunda Guerra Mundial, o escritor americano John Steinbeck garantia a seu editor que todas as bondades e heroísmos do mundo haveriam de ressurgir, apenas para ser novamente derrotados. “Não é que o mal vá vencer”, escreveu ele. “Isso nunca acontecerá, o mal apenas não morre.”

Em tempos de intolerância galopante, a palavra não oficial (seja ela falada, escrita, cantada ou pensada) é vista como ameaça. E, uma vez farejada, é preciso higienizá-la, por subversiva. Levantamento recente do jornal The Washington Post detectou 662 exemplos de alteração no vocabulário de 14 agências federais sob Donald Trump, alterando a comunicação em 8 mil sites do governo. A palavra “diversidade” foi banida, não terá substituto, na esperança, talvez, de assim fazer desaparecer também a comunidade LGBT+, as diferenças de gênero, raça e cor. “Mudança climática” agora atende pelo nome de “resiliência climática”. “Direitos Humanos”, “aumento de desigualdades”, “promoção de justiça social” ou “violação de direitos civis” já estão na linha de tiro. O ideal imaginado de uma América grande, branca e macho?

Já se escreveu aqui que palavras são acontecimentos, elas fazem coisas, mudam coisas, transformam tanto quem as pronuncia como quem as ouve. Governos autoritários ao longo da História sempre procuraram encurtar o vocabulário oficial, simplificar ao máximo as palavras de ordem, os diktats, ucasses ou as ordens executivas de agora.

Em seu livro sobre a emergência de novos autocratas (“Autocracia, Inc.”), a jornalista Anne Applebaum cita um memorando interno do Partido Comunista Chinês intitulado “Sobre o estado atual da esfera ideológica”. O documento de 2013 listava os principais perigos a ser enfrentados pelo presidente Xi Jinping. No topo da lista vinha a “democracia constitucional ocidental”, seguida por “direitos humanos universais”, “independência da mídia”, “independência judicial” e “participação cívica”.

Passados 15 anos desde a circulação desse documento, a China de Xi Jinping já pode se concentrar noutras preocupações, pois, na toada atual, é o próprio Trump que parece estar empenhado em enterrar a democracia constitucional tal qual a conhecemos.

O amanhã dessa distopia em curso nos foi exibido dias atrás em cena no Salão Oval da Casa Branca. De pé e à vontade, envergando boné, capote preto e camiseta, estava a criatura Elon Musk, centro das atenções. Vez por outra ele levantava do chão sua indócil cria de 4 anos, cujo nome de batismo é X Æ A-12, para acomodá-lo nos ombros. Sentado e algo acabrunhado estava o 47º presidente dos Estados Unidos. Novos tempos.

Dorrit Harazim, a autora deste artigo, é jornalista e documentarista. Publicado originalmente n'O Globo, em 16.02.25

Queda na popularidade de Lula não será resolvida com mais propaganda

Fábrica de soluções mágicas quer convencer povo de que governo é melhor do que parece

O presidente Lula na Cerimônia de assinatura do contrato de concessão da BR-381 — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Em entrevista à Rádio Clube do Pará, Lula esboçou uma tese sobre os governos e a opinião pública. “No primeiro ano, ninguém cobra, porque o pessoal sabe que você não teve tempo de fazer nada”, disse. “No segundo ano, o povo já começa a ter uma expectativa”, prosseguiu. “O terceiro ano é o melhor”, arrematou.

O presidente falou na manhã de sexta-feira. À tarde, foi atropelado pelo Datafolha. O instituto mostrou que sua popularidade desabou justamente no início do terceiro ano de governo. A fatia de eleitores que consideram a gestão boa ou ótima recuou para 24% — menor índice já registrado em seus três mandatos.

A pesquisa agravou o clima de desânimo no governo. Um ministro petista descreve a situação como “horrível”. Outro cardeal do partido define os números como “assustadores”. A queda da aprovação deve dificultar a vida de Lula e lançar novas dúvidas sobre o projeto da reeleição.

O presidente martelou a ideia de que 2025 seria o “ano da colheita”. Às vésperas do carnaval, não conseguiu concretizar nem as prometidas mudanças na Esplanada. O assunto gera excitação em Brasília, mas não deve mexer no ponteiro das pesquisas. E ainda arrisca piorar o governo, a depender do tamanho da mordida do Centrão.

As razões da queda na popularidade passam longe das intrigas de gabinete. A mais inconteste é a alta no preço dos alimentos, que corroeu a renda dos mais pobres e frustrou a promessa de carne barata. O presidente não se ajudou ao dizer que os consumidores deveriam evitar produtos caros. Quem vai ao mercado já faz o que pode para se defender da inflação.

A crise do Pix também abalou a confiança no governo. A extrema direita emplacou a mentira de que as transações seriam tributadas, e o Planalto não soube defender a portaria editada pela Receita. Por fim, o recuo foi lido como uma confissão de culpa. Se a medida era justa, por que revogá-la?

A pesquisa trouxe outra notícia preocupante para Lula. O tombo foi maior na base da pirâmide social, onde se concentram seus eleitores mais fiéis. É ilusão pensar que a crise será resolvida na fábrica de soluções mágicas, que aposta em truques de propaganda para convencer a população de que o governo seria melhor do que parece.

No fim de janeiro, o presidente deixou escapar um diagnóstico mais realista: “O povo tem razão, a gente não tá entregando aquilo que prometeu. Então como o povo vai falar bem do governo se a gente não tá entregando?”.

Ele não usa black tie

Lula embarca em março para Tóquio. Será recebido em visita de Estado, horaria que o Japão só concede a um país por ano.

O presidente poderia ter sido recepcionado com pompa em 2008, mas o convite esbarrou num impasse inusitado. Ele não aceitou vestir black tie, como exigia o protocolo do imperador Akihito.

Na época, o governo japonês ouviu que Lula representava a classe trabalhadora e se recusava a usar smoking. A saída foi rebaixar a viagem ao status de visita oficial, sem o mesmo peso diplomático.

Ao assumir o trono que pertenceu ao pai, o imperador Naruhito flexibilizou o código de vestimenta da corte. Graças à mudança, o presidente poderá ir ao banquete de terno e gravata.

Terra estrangeira

O Itamaraty precisará ter cuidado ao organizar a agenda de Lula no Japão. Antes de tomar posse, ele já estava em baixa com a comunidade brasileira no país. No segundo turno de 2022, Jair Bolsonaro recebeu 83,6% dos votos dos decasséguis. O petista teve míseros 16,4%.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 16.02.25

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Corrupção em alta no país é resultado da farra das emendas

Presença do crime organizado nas instituições também influi na piora do desempenho

O Brasil está empatado com Argélia, Nepal, Tailândia, Maláui e Níger no Índice de Percepção da Corrupção (IPC) da Transparência Internacional. Exibe a pontuação 34, sua pior posição e nota desde 2012, o começo da série histórica. Está nove pontos abaixo da média global e oito abaixo da média das Américas. Mesmo assim, espanta que o país não tenha caído ainda mais quando se sabe que a Polícia Federal investiga uma empresa suspeita de fraude em licitações contratada pela própria Polícia Federal.

A principal evidência de corrupção, segundo a Transparência Internacional, é a presença cada vez maior do crime organizado nas instituições estatais. O assassinato do delator do PCC Vinicius Gritzbach foi mais do que um aviso. As investigações resultaram na prisão ou afastamento de nove integrantes da Polícia Civil de São Paulo; e a Corregedoria indiciou 17 policiais militares.

Há outro fator que, por enquanto, deixa visível apenas a ponta do iceberg: o descontrole no pagamento das emendas parlamentares. Os valores são, como nas atrações circenses, incríveis, fantásticos, extraordinários: mais de R$ 148,9 bilhões em cinco anos. Sem transparência ou rastreamento.

Os casos têm pipocado aqui e ali, mas devem crescer à medida que a PF aprofundar as investigações. A existência do corretor de emendas, com prefeituras pagando a funcionários de gabinetes da Câmara e do Senado para ajudá-las a receber as verbas sob responsabilidade de seus chefes, já era conhecida. Agora descobriram os vendedores de emendas.

O ministro do STF Cristiano Zanin determinou que a denúncia contra os deputados federais Josimar Maranhãozinho e Pastor Gil, ambos do PL do Maranhão, além do suplente Bosco Costa (PL-SE), seja incluída na pauta de julgamento do Supremo. Os três são acusados de pertencer a uma organização que fazia ameaças com armas para comercializar os recursos públicos.

Só a apuração sobre o esquema liderado pelo empresário conhecido como Rei do Lixo acumula 54 celulares e 33 computadores. Um mundo a ser periciado.

Alvaro Costa e Silva, o autor deste artigo, é Jornalista e escritor - autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo (edição impressa) em 14.02.25


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Aprovação de Lula cai para 24%, em pior marca de todos os seus mandatos, diz pesquisa Datafolha

Reprovação aumentou de 34% para 41% em dois meses, segundo levantamento do Instituto Datafolha divulgado nesta sexta-feira, 14


Lula, presidente da República (Foto: Evaristo Sa/AFP)

A aprovação do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegou a uma marca inédita: em dois meses, caiu de 35% para 24%, atingindo o pior índice dos seus três mandatos na Presidência.

De acordo com a pesquisa Datafolha divulgada nesta sexta-feira, 14, a reprovação do governo do petista também é recorde, passando de 34% para 41%.

A “crise do Pix” e a alta no preço dos alimentos ajudam a explicar a queda da popularidade do presidente, que tem apostado na comunicação do governo para reverter a imagem ruim.

Segundo o instituto, 32% acham que o governo está regular, três pontos porcentuais a mais do que em dezembro do ano passado, na penúltima pesquisa. Foram ouvidas 2.007 eleitores entre os dias 10 e 11, em 113 cidades brasileiras. A margem de erro é de dois pontos porcentuais para mais ou para menos.

Na série histórica da pesquisa, que avaliou os outros dois mandatos que o petista esteve no poder, Lula nunca chegou a um patamar tão baixo de aprovação.

O pior índice havia sido no final de 2005, quando o PT atravessava o escândalo do mensalão, e chegou a 28% de avaliação “bom e ótimo”. Na penúltima pesquisa, em dezembro, foi o auge da avaliação ruim, com 34%.

A reprovação de Lula está um pouco pior do que a do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) a essa mesma altura do mandato, quando marcava 40% de “ruim ou péssimo”, apenas um ponto porcentual de diferença. A aprovação, no entanto, estava sete pontos acima que a do petista, com 31%.

Entre os segmentos, a aprovação de Lula caiu de 44% para 29% entre os mais pobres, que recebem até dois salários mínimos (com margem de erro de três pontos), e 15 pontos, de 53% para 38%, entre os que estudaram até o ensino fundamental.

Karina Ferreira, a autora deste texto, é jornalista. Publicado originariamente n'O Estado de S. Paulo, em 14.02.25, (edição online, às 16h36).

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Golpe ou baderna?

Novo presidente da Câmara diz que não considera 8/1 uma tentativa de golpe e gera reação de governistas


Hugo Motta (Republicanos-PB), novo presidente da Câmara dos Deputados - Pedro Ladeira-5.fev.2025/Folhapress

Sempre que algum neófito assume cargo público relevante, acaba levando um susto com a força que a nova função empresta a suas palavras. Não foi diferente com o novo presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta.

Depois de uma campanha em que sabiamente evitou pronunciar-se sobre questões polêmicas, Motta resolveu dizer o que pensa. Mostrou-se simpático à anistia aos condenados pelo 8 de janeiro, ao esvaziamento da Lei da Ficha Limpa, entre outras pautas que desagradam ao governo.

Ao que tudo indica, foi surpreendido pelas reações e passou os últimos dias em modo contenção de danos, tentando se explicar a interlocutores. Se for esperto, aprenderá rapidamente a calibrar suas falas.

E quanto ao mérito da mais polêmica das declarações? O 8/1 foi tentativa de golpe ou baderna?

Até acho que, se isolarmos as ações daquele dia, despindo-as de seu contexto histórico e político, daria para descrevê-las como um episódio de vandalismo. Só que fazer isso seria um erro.

As manifestações de militantes bolsonaristas diante de quartéis, que depois desaguaram na invasão da praça dos Três Poderes, eram um dos eixos do plano golpista. Se a movimentação tivesse ocorrido enquanto Bolsonaro ainda detinha a caneta presidencial, o desfecho da intentona poderia ter sido outro.

Na minha leitura, o binômio manifestações/invasão foi um pavio que os conspiradores acenderam deliberadamente em sua tentativa de golpear a democracia, mas se esqueceram de desligar (ou não puderam fazê-lo) depois que desistiram de dar continuidade à ação.

Incompetência, penso, não basta para descaracterizar a tentativa. Ao contrário até, acho que a materialização do 8/1 pode ser interpretada como um forte indício de que a tentativa de golpe entrou em fase de execução, não sendo mera cogitação, como pretendem alguns defensores dos indiciados.

Diferentemente de parte da esquerda, porém, não vejo mal em debater essa questão. Uma das razões por que vale a pena preservar a democracia é que ela permite discutir tudo sob qualquer ângulo.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem…" Publicado originalmente em 11.02.25

Os novos horizontes do crime organizado

Após avançar sobre o mercado e o Estado, a hidra do crime agora manipula movimentos sociais e influencia a cultura. O mal é sistêmico e só será debelado com ampla articulação republicana

Turbinadas pelo narcotráfico, as organizações criminosas brasileiras se expandem pelo mundo com a mesma velocidade vertiginosa com que se infiltram na economia legal e no Estado nacional.

O Brasil, outrora um mercado consumidor de cocaína na América Latina, se transformou num dos principais exportadores para o mundo. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) estima um faturamento de R$ 335 bilhões, cerca de 4% do PIB nacional. Além disso, as facções exploram crimes patrimoniais, corrupção de agentes públicos, contrabando, fraudes digitais, extorsão, lavagem de dinheiro e crimes ambientais.

Com 3% dos habitantes do planeta, o Brasil responde por 10% dos homicídios. O crime organizado está na raiz do morticínio. O FBSP estima que o País tenha 72 organizações criminosas – duas delas, o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), transnacionais –, que influenciam diretamente o cotidiano de pelo menos 23 milhões de brasileiros.

As organizações nascem da ausência do Estado e prosperam infiltrando-se nele. As duas principais, o CV e o PCC, nasceram nos presídios e os transformaram em QGs. Na Amazônia, o ecossistema do crime consolida um Estado paralelo. Em metrópoles como o Rio de Janeiro elas dominam amplos pedaços do território. As milícias surgiram de bandas podres da polícia que ofereciam proteção às populações atemorizadas, diversificaram seus negócios oferecendo serviços públicos clandestinos, até começarem a explorar o narcotráfico. As facções seguem o caminho inverso. Em São Paulo, há inúmeros indícios de empresas controladas pelo PCC prestando serviços ao poder público.

Alastrando seus tentáculos sobre a economia e a política, a hidra do crime organizado se sente confortável para influenciar políticas públicas e aliciar a cultura. O Ministério Público de São Paulo recentemente denunciou uma ONG, chamada Pacto Social & Carcerário, que seria um braço do PCC para atuar supostamente em favor dos direitos dos encarcerados. Tudo indica que ela tenha participado da produção de um documentário, O Grito, sobre as condições dos presídios e que está disponível na Netflix. A presidente da tal ONG participou de reuniões nos Ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos e no Conselho Nacional de Justiça.

O caso ilustra o círculo vicioso retroalimentado por miopias à direita e à esquerda. Uma direita adepta da lei do mais forte resume a segurança pública a penas draconianas e à truculência da polícia, e se compraz em perpetuar os presídios como sucursais do inferno, precisamente o que os torna um celeiro de oportunidades para as facções. Em contraposição, tem-se uma esquerda tatibitate que reduz as causas do crime às “injustiças sociais” e toda repressão policial a uma certa opressão classista, como se bastasse substituí-la por programas sociais para eliminar o mal pela raiz. A narrativa é de que, não fossem as condições degradantes das penitenciárias, o PCC e o CV jamais teriam surgido. Mas, se o caos carcerário é condição necessária para explicar o surgimento das facções, não é suficiente nem a causa principal. Nesse vácuo de sensatez, as organizações criminosas e seus fantoches prosperam.

É preciso melhorar as condições da população carente, mas punir duramente os delinquentes. A repressão deve ser implacável, mas feita com inteligência e nos limites da lei. Para enfrentar o crime organizado, o País precisa de um Estado organizado. Mais do que endurecer penas de crimes comuns, é necessária uma legislação antimáfia. Mais do que concentrar poderes no governo federal, é preciso mais coordenação entre os entes federados.

O País pode estar longe de se tornar um narcoestado, mas está mais perto do que na geração passada, acelera o passo e em alguns territórios já o é. O mal é sistêmico, infecta a economia, a política e a cultura, e combatê-lo não é tarefa só da polícia ou da Justiça, nem de políticos, lideranças civis, muito menos dos cidadãos comuns, mas de todos. Debelar a metástase exigirá uma mobilização popular materializada numa frente tão ampla, articulada e plural quanto a que sepultou a ditadura militar e restaurou a democracia.

Editorial / Notas e Informações, O  Estado de S. Paulo, em 11.02.25

Não se transige com o golpismo

Fala de Hugo Motta, para quem o 8 de Janeiro ‘não foi uma tentativa de golpe’, compõe mosaico de atitudes que se prestam a relativizar a evidente gravidade da insurgência bolsonarista

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), afirmou que “foi grave” o assalto às sedes dos Poderes em Brasília por uma malta de bolsonaristas inconformados com a eleição do presidente Lula da Silva, no dia 8 de janeiro de 2023, mas “não uma tentativa de golpe”. A opinião do deputado sobre o que houve naquele fatídico dia foi dada durante uma entrevista à Rádio Arapuan FM, de João Pessoa (PB), na sexta-feira passada.

Segundo Motta, “o que aconteceu não pode ser admitido novamente, foi uma agressão às instituições”, mas tentativa de golpe não teria sido porque, em sua visão, “golpe tem de ter um líder, uma pessoa estimulando, tem de ter o apoio de outras instituições interessadas”. “E não houve isso”, concluiu. O presidente da Câmara também avaliou que as penas impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) aos condenados pela participação no 8 de Janeiro são “muito severas”.

Independentemente do que pense sobre o 8 de Janeiro ou, principalmente, sobre o que vai fazer como presidente da Câmara, Motta tem seus motivos para ter dito o que disse. Decerto não foram poucos os compromissos que o deputado teve de assumir para viabilizar a aclamação de seu nome como o sucessor de Arthur Lira (PP-AL). Sejam quais forem, porém, nenhum é relevante o bastante, à luz do melhor interesse público, para que se admita qualquer tipo de transigência com o golpismo. Caso contrário, a jovem democracia brasileira, prestes a completar 40 anos, restará mais fraca, e não mais vigorosa, passado seu maior teste de estresse sob a égide da Constituição de 1988.

Em que pese sua importância, sendo ele quem é, a opinião do presidente da Câmara sobre o 8 de Janeiro não pode ser tomada de forma isolada. Ela compõe um mosaico de atitudes e palavras de parlamentares, governadores, prefeitos, setores da imprensa e formadores de opinião que, ao fim e ao cabo, se prestam à relativização da gravidade do que aconteceu em Brasília.

Há quem reduza a destruição do Palácio do Planalto, do Congresso e do STF a mera “baderna”, sem que por trás da razia houvesse uma intenção de subverter a vontade popular consagrada nas urnas em 2022. Fala-se com tremenda naturalidade e desfaçatez em anistiar os insurgentes, como se todos lá reunidos fossem pacatos senhoras e senhores “patriotas” preocupados, ora vejam, com o bem do Brasil.

No Congresso, há quem queira reduzir o tempo de inelegibilidade de políticos condenados pela Justiça com o descarado propósito de reabilitar Jair Bolsonaro – sem o qual não teria havido o 8 de Janeiro, é bom enfatizar – com vistas à eleição presidencial do ano que vem. Como se sabe, Bolsonaro foi condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral à inelegibilidade até 2030 por abuso de poder político e econômico e uso indevido dos meios de comunicação.

A rigor, caberá exclusivamente ao Poder Judiciário dizer se a tomada violenta da capital federal pelos camisas pardas do bolsonarismo foi ou não uma tentativa de golpe de Estado, à luz da chamada Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. A Polícia Federal concluiu as investigações sobre o caso, indiciou dezenas de suspeitos de participação direta ou indireta na “agressão às instituições”, para usarmos a expressão empregada por Hugo Motta, e remeteu os autos do inquérito à Procuradoria-Geral da República (PGR), a quem cabe oferecer ou não denúncia contra os suspeitos à Justiça.

A decisão sobre a tipificação do 8 de Janeiro, portanto, está nas mãos da PGR e da Justiça. Dito isso, seria ingenuidade desconhecer que os terríveis atos havidos em 8 de janeiro de 2023 não representaram, no mínimo, uma clara ameaça à estabilidade institucional do País, mal saído de uma eleição muitíssimo acirrada. Os danos causados à democracia não estão circunscritos à destruição material dos prédios públicos, mas se estendem ao ataque frontal ao processo eleitoral, algo que Bolsonaro estimulou desde o início de seu tenebroso mandato presidencial.

O País não pode, a quaisquer pretextos, relativizar o 8 de Janeiro. É de uma Justiça equilibrada, porém implacável, que advirá a garantia de que uma violência como aquela jamais se repetirá.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 11.02.25