quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Denúncia contra Jair Bolsonaro é sólida e gravíssima

Cabe agora ao Supremo evitar atropelo e lentidão para que o julgamento tenha desfecho justo

O ex-presidente Jair Bolsonaro — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

Com base num extenso trabalho investigativo da Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou o ex-presidente Jair Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal (STF), sob a acusação de ter liderado uma tentativa de golpe de Estado depois de derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva em 2022. Entre os outros 33 denunciados estão quatro ex-ministros, quatro ex-integrantes do Alto Comando do Exército, um ex-comandante da Marinha, assessores palacianos e militares da ativa ou da reserva.

Estão na lista nomes como Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro; Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional; Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; Alexandre Ramagem, deputado federal pelo Rio e ex-diretor da Abin; e Silvinei Vasques, ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal. Se a denúncia for aceita pelo STF, os envolvidos passarão à condição de réus e serão julgados por crimes como tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e participação em organização criminosa. Somadas, as penas de prisão podem chegar a 43 anos.

Esperada com ansiedade nos meios políticos, a decisão da PGR é histórica. Bolsonaro é acusado de liderar uma organização criminosa que não apenas tentou reverter a vontade popular expressa nas urnas, mas até matar o presidente eleito, seu vice e um ministro do Supremo, com o objetivo de acabar com a alternância de poder. Nada pode haver de mais grave numa democracia.

Em capítulo tão singular da nossa História, o STF precisa tomar os devidos cuidados para garantir a todos os denunciados amplo direito de defesa, seguindo à risca o que determina a Constituição que eles são acusados de tentar destruir. Se a denúncia for aceita, o julgamento dos réus exigirá minuciosa avaliação das provas, depoimentos e argumentos da PGR e da defesa. A denúncia é sólida e tem base numa investigação exemplar. Mesmo assim, as eventuais condenações precisarão ser explicadas à população de forma exaustiva para mitigar o efeito dos ataques que certamente se intensificarão. Nas cadeias (não apenas nas brasileiras), é difícil encontrar réus confessos. Quando, entre os acusados, estão políticos populares e figuras notórias, não há como fugir a uma guerra de versões e narrativas. Por isso, além de justo, o julgamento deverá ser didático.

O STF precisará doravante ampliar seus esforços para manter o equilíbrio. Evitar, ao mesmo tempo, o atropelo e a lentidão nas decisões. A denúncia da PGR está embasada não apenas em delações, mas em manuscritos, arquivos, planilhas, trocas de mensagens, áudios e depoimentos. A defesa de Bolsonaro divulgou nota manifestando “estarrecimento e indignação”. Segundo seus advogados, trata-se de denúncia “inepta”. Nada mais distante da realidade. É uma denúncia consistente, da mais alta gravidade. Por isso mesmo, caberá ao Supremo conduzir o processo com respeito às provas, à legislação e com toda a serenidade necessária para que ele tenha um desfecho justo.

Editorial d'O Globo, em 20.02.25

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

O perigo de um Judiciário sob suspeita

A se confirmarem as múltiplas suspeitas de corrupção no Judiciário vindas à tona no último ano, o sistema de Justiça, já cronicamente disfuncional, poderá entrar numa crise aguda

A Polícia Federal indiciou 23 pessoas no Maranhão, entre elas três desembargadores, dois juízes e sete advogados, por crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Evidentemente, é preciso máxima cautela para um caso em que ainda não houve sequer denúncia. Os indiciados ainda não são réus, e terão a oportunidade de se manifestar dentro do devido processo legal. Mas os indícios são robustos e, se confirmadas, as suspeitas abrirão uma chaga profunda na já combalida credibilidade do Judiciário.

Historicamente, a corrupção é um mal muito mais associado ao Legislativo e ao Executivo. A descrença no Judiciário tem razões de ordem estrutural: a percepção de uma casta de privilegiados; o dissabor com uma Justiça custosa, lenta e labiríntica; a desconfiança de sua parcialidade e, cada vez mais – especialmente em relação às cortes superiores –, de seu ativismo e partidarismo.

O impacto dessa descrença é multifacetado e incomensurável. A desconfiança dos cidadãos no sistema judicial como um meio legítimo e eficaz de solucionar disputas degrada o Estado de Direito, incentiva a instabilidade política e institucional, fragiliza a coesão social, encoraja a violação das leis e afasta investimentos. Em um corpo judiciário já cronicamente disfuncional, os escândalos de corrupção têm o potencial de precipitar uma crise aguda e possivelmente letal.

O ano de 2024 foi marcado por sucessivas denúncias de corrupção. Segundo apuração do Estadão, além do Maranhão, pelo menos cinco Tribunais de Justiça estaduais são alvo de investigações relacionadas à corrupção, em especial à venda de sentenças judiciais: Mato Grosso do Sul, São Paulo, Tocantins, Espírito Santo e Bahia. Ainda em 2024, o Conselho Nacional de Justiça afastou dois juízes, no Espírito Santo e no Amapá, suspeitos de atuarem a serviço de facções criminosas. O próprio Superior Tribunal de Justiça é investigado por um esquema de venda de sentenças que envolve funcionários de quatro gabinetes e possivelmente um ministro.

O inquérito no Maranhão sugere que os magistrados persuadiam pessoas a ajuizar ações contra empresas, fraudavam a distribuição dos processos, decidiam favoravelmente aos autores das ações e inflavam valores de correção monetária. Suspeita-se que o esquema tenha gerado quase R$ 18 milhões na forma de honorários advocatícios distribuídos entre os envolvidos.

“A presente investigação identificou a existência de uma organização criminosa formada pelos núcleos judicial, causídico e operacional, em que magistrados, advogados e terceiros atuavam de forma estruturalmente ordenada, com clara divisão de tarefas, com o objetivo de obter vantagens de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais, dentre as quais, corrupção e lavagem de dinheiro”, afirmou a Polícia Federal.

O caso é especialmente alarmante porque, a se confirmarem as suspeitas, revelará magistrados que já não são mais simplesmente cooptados por organizações criminosas, mas que formam eles mesmos uma organização criminosa.

Entre tantas más notícias, a boa notícia é justamente que as suspeitas estão sendo investigadas. Em tese, os anticorpos da Justiça estão agindo. Sob os holofotes públicos, espera-se em todos esses casos a observância rigorosa dos ritos legais e, se confirmados os crimes, uma punição exemplar. Mas se, ao contrário, esses ritos forem manipulados para afastar a punição dos eventuais criminosos, a desmoralização será redobrada e, ao menos a curto prazo, irreversível.

A mera punição dos eventuais culpados, contudo, não será suficiente para revigorar a integridade do sistema de Justiça. O Judiciário precisará mostrar empenho em implementar reformas estruturais que corrijam fragilidades, ampliem a transparência e criem mecanismos de controle que garantam melhores condições de responsabilização e prestação de contas perante a sociedade. Muito mais do que a reputação da magistratura, o que está em jogo é a saúde do Estado Democrático de Direito nacional.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 18.02.25

Lula, o pequeno ‘Grande Irmão’

Presidente quer que STF regule as redes para nos ‘moralizar’. Tamanha ignorância ou malícia impõe ao Congresso prudência no exercício de suas competências e intransigência na sua defesa

A obsessão do presidente Lula da Silva de encabrestar a opinião pública não é novidade. Há muito o eufemismo “democratização dos meios de comunicação” figura nos estatutos e programas do PT. Em relação às mídias tradicionais, Lula sabe muito bem o que quer. A sociedade também, e sempre frustrou suas manobras para amordaçar a imprensa. A novidade em relação às mídias digitais é que Lula, aparentemente, não tem a menor ideia do que são, nem dos direitos e deveres das redes e usuários consagrados na Constituição e nas leis, nem dos meios legítimos para reformulá-las.

“Nós precisamos regular essa chamada imprensa digital”, disse Lula recentemente a duas rádios baianas. A Secretaria de Comunicação do Planalto retificou o ato falho: o presidente supostamente se referia às “plataformas digitais”. Mas o sonho autoritário de uma imprensa servil e adulatória é indisfarçável.

“Numa imprensa escrita, numa televisão normal, o cidadão falou uma bobagem, ele é punido. Tem lei para isso. E no digital não tem”, explicou o presidente. Felizmente, a legislação penal não pune “bobagens”. Mas pune crimes como difamação ou fraude, e seus autores são responsáveis seja lá qual meio de comunicação utilizem. Como as redes digitais não são editoras ou produtoras de conteúdo, mas só veículos, o legislador estabeleceu no Marco Civil da Internet que elas só se tornam corresponsáveis se continuarem divulgando o conteúdo criminoso após uma ordem judicial de remoção, exceção feita a cenas de nudez ou sexo não autorizadas.

Pode-se discutir se essa exceção deve ser estendida a outros crimes flagrantes. Lula, porém, quer muito mais. “A liberdade de expressão não é as pessoas utilizarem esses meios de comunicação para canalhice, para fazer provocação, para mentir”, declarou o petista. Mas a garantia constitucional da liberdade de expressão visa exatamente a impedir que os poderosos punam cidadãos comuns por seja lá o que entendam por “canalhice”. Mesmo a mentira, em si, não é crime, exceto se empregada como meio para ilicitudes.                                         

“O que não pode é a gente achar (...) que um empresário pode ficar falando mal de todo mundo a toda hora, se metendo nas eleições de cada país”, disse Lula, aludindo ao dono do X, Elon Musk. Ao contrário do que Lula diz, há uma lei para as redes digitais. O Marco Civil exige delas neutralidade, e se há prova de favorecimento de algum grupo político ou interferência em eleições, elas podem ser punidas. Fora isso, Musk e outros donos de plataformas digitais são indivíduos como outros quaisquer, e podem falar mal de quem bem entenderem e emitirem as opiniões que quiserem sobre a política de seja lá qual país.

Ninguém se dirá surpreso com as taras autoritárias de Lula, e, felizmente, também ele tem direito às suas canalhices, bobagens, provocações e mentiras. Mas é alarmante um presidente da República intimidar o Legislativo e incentivar o Judiciário a violentar a Constituição. O Congresso “vai ter de colocar isso para regular”, bradou Lula. “Se não for o caso, a Suprema Corte vai ter de regular, porque é preciso moralizar”. O que o Congresso tem ou não de fazer é uma decisão do Congresso. A Suprema Corte não tem legitimidade para regular nada, muito menos para “moralizar” quem quer que seja. Se o fizer, violará duplamente a Constituição, na forma do procedimento e no conteúdo da decisão.

Das duas uma: ou Lula não tem a menor ideia do que são as redes digitais, das garantias constitucionais à liberdade de expressão e de como funciona a divisão de Poderes num Estado Democrático de Direito, ou sabe muito bem tudo isso e joga areia nos olhos da população enquanto seus consorciados no Judiciário fazem o trabalho sujo de tecer a mordaça. Ambas as hipóteses são aterradoras e mostram a urgência de um Congresso alerta, a um tempo cauteloso e assertivo. Ante tamanha manifestação de ignorância ou malícia do presidente da República, os parlamentares precisam redobrar a prudência na regulação das redes e ao mesmo tempo deixar claras suas competências, conferidas pelo povo.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 18.02.25

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Os desvarios de Trump sobre Gaza

Plano de remover 2 milhões de palestinos mostra como é curta a distância entre ousadia e loucura


O plano do presidente Donald Trump de assumir Gaza, remover seus 2 milhões de palestinos e transformar a faixa costeira desértica num tipo de Club Med prova apenas uma coisa: como é curta a distância entre o pensamento fora da caixa e o pensamento desvairado. Posso dizer com segurança que a proposta é a iniciativa de “paz” para o Oriente Médio mais absurda e perigosa jamais apresentada por um presidente americano.

Ainda assim, não tenho certeza do que é mais assustador: a proposta de Trump para Gaza, que parece mudar a cada dia, ou a velocidade com que seus conselheiros e autoridades do gabinete – quase nenhum informado sobre os planos com antecedência – balançaram a cabeça em aprovação à ideia, como uma coleção de bonecos bobbleheads.

Prestem atenção, senhoras e senhores: essa proposta não trata apenas do Oriente Médio. É também um microcosmo do problema que os americanos enfrentam neste momento enquanto país. Em seu primeiro mandato, Trump esteve cercado por mitigadores: conselheiros, secretários de gabinete e generais que muitas vezes evitaram e contiveram seus piores impulsos.

Agora, Trump está cercado somente por amplificadores: conselheiros, secretários de gabinete, senadores e membros da Câmara que vivem com medo de sua ira ou de serem atacados por multidões online atiçadas por seu fiscal, Elon Musk, caso saiam da linha.

Essa combinação de Trump sem amarras, Musk sem restrições e grande parte do governo e do establishment empresarial vivendo com medo de ser tuitado por qualquer um dos dois é uma receita para o caos, domesticamente e no exterior.

Trump opera mais como o Poderoso Chefão do que como o presidente: “Belo pequeno território que vocês têm aí (Groenlândia, Panamá, Gaza, Jordânia, Egito). Seria uma pena se algo ruim acontecesse por lá”.

Isso pode funcionar nos filmes, mas na vida real, se o governo Trump realmente tentar forçar Jordânia e Egito ou qualquer outro Estado árabe a aceitar os palestinos que vivem em Gaza – e fazer o Exército israelense prendê-los e deslocá-los, já que ele disse que a transferência não envolveria tropas dos EUA e não custaria nenhum centavo aos contribuintes americanos –, isso desestabilizará o equilíbrio demográfico na Jordânia, Cisjordânia, Egito e Israel.

Por mais que os israelenses odeiem o Hamas, estou certo de que muitos soldados, fora os de extrema direita, se recusarão a fazer parte de qualquer operação que possa ser comparada à captura e transferência de judeus de suas casas durante a 2.ª Guerra.

Conforme opinou o jornal israelense Haaretz: “Não há soluções mágicas capazes de dissolver simplesmente o conflito. A audácia de apresentar tal solução – que ecoa em termos como transferência, limpeza étnica e outros crimes de guerra – é um insulto tanto aos palestinos quanto aos israelenses”.

REAÇÕES. Trump também criará uma reação contra embaixadas e interesses dos EUA em todo o mundo árabe muçulmano, com muitos indo às ruas na Europa, no Oriente Médio e na Ásia se manifestar contra palestinos sendo forçados a deixar suas terras em nome de Trump, criando um resort litorâneo na Faixa de Gaza – que Trump disse que “possuirá” e para onde os palestinos não teriam direito de retornar.

Isso seria o maior presente que Trump poderia dar para o Irã se reerguer no Oriente Médio e envergonharia todos os regimes sunitas pró-EUA. Empresas americanas como McDonald’s e Starbucks, que já enfrentaram boicotes em razão do armamento fornecido pelos EUA a Israel na guerra de Gaza, seriam prejudicadas ainda mais duramente.

Trump tem alguma razão? Bem, sim. Ele está certo ao afirmar que o Hamas é uma organização enlouquecida e perversa, que, ao massacrar de cerca de 1,2 mil pessoas em 7 de outubro de 2023 e sequestrar de cerca de 250, desencadeou o impiedoso ataque israelense contra o Hamas, escondido no subsolo de Gaza, sem nenhum respeito aos seus civis.

O Hamas transformou seus vizinhos palestinos em objetos de sacrifício humano com intenção de deslegitimar Israel em todo o mundo. Para muitos jovens que só recebem notícias pelo TikTok, funcionou, embora a estratégia não pudesse ter sido mais cínica.

Trump também está certo ao afirmar que, como resultado, Gaza transformou-se em um inferno. E também está certo ao afirmar que o problema dos refugiados palestinos foi mantido vivo durante muito tempo por cínicos, no mundo árabe e em Israel, e por líderes palestinos incompetentes.

Sair do 7 de Outubro para qualquer tipo de processo de paz não será fácil, mas a ideia de que tudo já foi tentado e a única opção que resta é limpeza étnica está errada – mas é isso que a direita israelense e o Hamas querem que todos acreditem.

Um dos maiores problemas com a atual equipe de Trump é que todo seu foco sobre o Oriente Médio advém das lentes de extremistas de direita israelenses e cristãos evangélicos. Tudo o que o pessoal de Trump conhece sobre o mundo árabe vem da comunidade de investimento no Golfo Pérsico. Portanto, eles são completamente, totalmente loucos pelo primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu.

Por exemplo, o secretário de Estado, Marco Rubio, continua dizendo aos líderes árabes: “O Hamas nunca mais poderá governar Gaza nem ameaçar Israel”. Mas Rubio parece não ter a mínima ideia de que Netanyahu foi o responsável por permitir que o Catar desse ao Hamas centenas de milhões de dólares – que o grupo destinou para seu programa de construção de túneis e fabricação de armas, para ser capaz de controlar Gaza eternamente.

Bibi queria que o Hamas “governasse Gaza”, não a Autoridade Palestina na Cisjordânia, para que os palestinos permanecessem divididos e nunca pudessem ser parceiros em uma solução de dois Estados – o objetivo de todos os presidentes americanos desde George H. W. Bush.

SAÍDAS. E a razão pela qual Netanyahu se recusou a definir uma liderança alternativa para Gaza é que ele sabe que a única alternativa crível é uma Autoridade Palestina reformada, mas que a extrema direita em Israel derrubará seu governo se ele concordar com tal solução.

Então, por favor, não me venham com a ideia de que tudo, exceto uma limpeza étnica, já foi tentado de boa-fé por ambos os lados. Se Trump realmente pretende provocar uma mudança radical e tirar vantagem de parte do medo que ele incute nas pessoas, não será com essa proposta imatura de “Mar-a-Gaza”.

Isso só seria possível se Trump convocasse publicamente todas as partes e desafiasse cada uma delas a verdadeiramente e de boa-fé fazer o trabalho duro necessário para sair desse inferno.

PLANO. Seria necessário dizer à Autoridade Palestina que, se quiser governar Gaza, a entidade precisa empossar um novo líder não corrupto e um novo primeiro-ministro eficiente – como o ex-primeiro-ministro Salam Fayyad – imediatamente. Essa Autoridade Palestina reformada precisa então criar um gabinete de tecnocratas para convidar uma força de paz árabe para assumir Gaza, concluir a expulsão da liderança do Hamas e solicitar a assistência internacional necessária para a reconstrução de Gaza.

Essa força árabe também teria de se comprometer a treinar uma força de segurança da Autoridade Palestina para a entidade se tornar capaz, eventualmente, de governar Gaza por conta própria, com ajuda dos árabes.

E seria necessário dizer a Netanyahu que, assim que a força de paz árabe estiver formada e operante, Gaza será dividida em Áreas A e B. A Autoridade Palestina e a força de paz árabe governarão a Área A – todos os centros populacionais – e o Exército israelense pode permanecer em todo o perímetro – a Área B – por vários anos.

Depois disso, os palestinos realizam eleições na Cisjordânia e em Gaza e negociam uma solução de dois Estados com Israel para ambos os territórios. Uma vez que esse processo estiver em andamento, a Arábia Saudita normaliza as relações com Israel, e o acordo de segurança EUA-Arábia Saudita pode ir adiante.

Cedo ou tarde, Trump pode aprender o seguinte: os interesses dos EUA e os interesses de Netanyahu não estão alinhados. O interesse de Bibi é usar qualquer pretexto para permanecer no poder, não importando se isso significa postergar a libertação dos reféns, travar uma guerra eterna ou abandonar a perspectiva de uma normalização histórica das relações entre o Estado judaico e a Arábia Saudita.

Netanyahu chegou a dizer outro dia que “os sauditas podem criar um Estado palestino na Arábia Saudita; eles têm muito território por lá”, desencadeando uma dura resposta saudita.

Será que Trump vai despertar e perceber o quanto Netanyahu e os supremacistas judeus em Israel o veem como um trouxa ao seu dispor?

Praticamente todo o establishment de segurança em Israel está em pé de guerra pelo fato de Netanyahu ter se recusado a definir um plano para transformar a vitória militar de Israel em Gaza numa vitória política sustentável.

Vejam, então, o que Bibi disse à Knesset (Parlamento) esta semana: “A visão de Trump é nova, criativa, revolucionária; e ele está determinado a implementá-la. Vocês falaram sobre o ‘dia seguinte’ (o plano para Gaza) – vocês conseguiram seu ‘dia seguinte’! Só que ele não condiz com a visão de Oslo, porque nós não repetiremos esse erro”. Bibi está simplesmente usando Trump para ganhar mais tempo, a caminho do nada. PÁRIA. Se Bibi chegar aonde está indo, todo jovem judeu hoje aprenderá o que é crescer em um mundo onde o Estado judaico é um Estado pária. Presidente Trump, eu lhe repito: há um argumento verdadeiro para o senhor reformular seu pensamento sobre esse problema. Mas seu plano para um “Mara-Gaza” não é um novo pensamento. É um novo estribilho.

Sua proposta não passa de conceitos amalucados de um plano de paz lançado sem checagem por seus conselheiros ou aliados, cujos detalhes o senhor muda todos os dias, forçando seus conselheiros bobbleheads a concordarem vigorosamente – sem nenhuma consideração aos interesses de longo prazo dos EUA ou à sua própria credibilidade. É um plano que Israel amará até a morte, ressuscitará o Irã e desestabilizará todos os aliados dos americanos.  

Thomas L. Friedman, o autor deste artigo, é colunista do The New York Times e ganhador de três prêmios Pulitzer. Publicado em língua portuguesa em tradução de Guilherme Russo para O Estado de S. Paulo, em 16.02.25.

Quando a crise financeira vai chegar?

Em grande parte porque o governo está focalizado na reeleição em 2026, não dá para contar com uma ‘mensagem forte de compromisso fiscal’


Rainha Elizabeth II, "Por que ninguém percebeu isso?"

No dia 5 de novembro de 2008, logo após a crise financeira mundial disparada com a falência do banco americano Lehman Brothers, a rainha Elizabeth II, ao comparecer a uma cerimônia na London School of Economics, em Londres, fez uma pergunta: “Por que ninguém percebeu isso?”. Dias depois, economistas enviaram carta à soberana para explicar que houve uma falha coletiva de muitas pessoas brilhantes, no país e no exterior, que as impediu de entender os riscos do sistema.

Na verdade, mesmo quem entendeu os riscos (e houve muitos alertas) não conseguiria cravar o momento da erupção da crise. Segundo a lei de Dornbusch (homenagem ao saudoso economista alemão Rudiger Dornbusch), “a crise demora muito mais a chegar do que se imagina, mas depois ocorre mais rapidamente do que se pensa”. Daí por que os mercados não precificam uma grande crise. A enorme incerteza não permite calcular o desconto pelo risco de um determinado ativo financeiro.

O Brasil, como já afirmei neste espaço, caminha para uma profunda crise financeira decorrente de um colapso fiscal. É a consequência da marcha da insensatez fiscal iniciada na Constituição de 1988 e continuada em governos posteriores, especialmente os do PT. Decidiu-se resolver a desigualdade social e a pobreza por meio de gastos de Previdência e assistência social, sem indagar se haveria as condições para tanto. Segundo um de nossos melhores especialistas, Raul Velloso, esses gastos representam hoje 84,8% das despesas primárias da União.

Claro, a crise pode ser evitada por meio de expressivo corte de gastos, o que é impossível sem reformas estruturais. Fora disso, os cortes serão sempre tímidos, insuficientes e na maioria temporários. É o que ficou provado com o recente pacote fiscal, que decepcionou o mercado financeiro, o qual esperava, inocentemente, que ele seria robusto e levaria à estabilização e depois à queda da relação entre a dívida pública e o Produto Interno Bruto (PIB). Na verdade, o fracasso derivou, em parte, da excessiva rigidez orçamentária. De fato, quando computados os gastos com educação, saúde e o piso de investimentos, 96% das despesas primárias federais têm natureza obrigatória. Isso tende a piorar nos próximos anos.

Essa realidade é, todavia, pouco percebida. Demandam-se cortes expressivos de gastos, mas isso dependeria da aprovação das citadas reformas estruturais, o que é quase impossível no atual governo, principalmente agora que Lula da Silva entrou no modo de reeleição. Tudo indica que a Secretaria de Comunicação Social terá a inédita palavra final em medidas fiscais. Ações impopulares, mesmo que modestas, não passarão no filtro.

Há quem imagine que o governo possa fazer cortes do mesmo modo que o setor privado. “O Brasil precisa de mensagem forte de compromisso fiscal”, disse um banqueiro em Davos, o que tem chances zero de acontecer atualmente. Na verdade, restrições políticas, a reeleição, a ausência de determinação e a rigidez orçamentária explicam a relativa timidez do pacote fiscal. Claro, é bom que o mercado tenha percebido a existência desse grave problema e entenda que a dívida pública é o calcanhar de aquiles. Essa percepção explica em grande parte o forte estresse recente, quando o dólar chegou a valer R$ 6,20 e continuou acima de R$ 6 por vários dias.

Como se sabe, a causa básica do estresse foram a decepção com o pacote fiscal e as expectativas em torno das medidas do novo presidente americano, as quais, se implementadas, podem acarretar forte valorização do dólar nos mercados mundiais e desvalorizações de outras moedas, inclusive o real. Como isso não aconteceu na dimensão imaginada, criou-se a percepção de que Trump pode não implementar totalmente suas promessas de campanha relativas às tarifas. Os mercados desfizeram posições e corrigiram excessos, o que resultou em queda da moeda americana em relação ao real. No momento em que este texto era escrito, a cotação do dólar estava em R$ 5,83. O ministro da Fazenda afirmou que não compraria o dólar a R$ 5,70, sugerindo que esse seria o patamar do dólar com base nos fundamentos da economia brasileira.

Nada garante que o cálculo do ministro será confirmado ou que o dólar não volte a ser cotado acima de R$ 6,00. Em outras crises, de tempos em tempos, tudo parecia que a situação se normalizava, mas o estresse retornava diante da reemergência dos fatores que o justificaram. Assim, o problema pode renascer por um fato novo que relembre a insustentabilidade da trajetória da dívida pública. Por exemplo, a percepção de que o programa de Donald Trump é para valer. Basta ver a imposição de tarifas para punir a Colômbia por recusar-se a receber deportados e de 25% nas importações do México e do Canadá. Em resumo, em grande parte porque o governo está focalizado na reeleição em 2026, não dá para contar com uma “mensagem forte de compromisso fiscal”. Isso poderá acontecer no pós-crise, dependendo de quem estiver na Presidência da República.

Mailson da Nóbrega, o autor deste artigo, é sócio da Tendência Consultoria. Foi Ministro da Fazenda. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.02.25

O diabo à espreita

Com Lula enfrentando a maior impopularidade já registrada em seus mandatos e sem ideias novas, resta ao lulopetismo aplicar a máxima de Dilma e ‘fazer o diabo’ para ganhar a reeleição

Pesquisa Datafolha divulgada anteontem mostrou uma queda significativa na popularidade do governo do presidente Lula da Silva: 41% dos brasileiros o avaliam negativamente, enquanto apenas 24% o veem de forma positiva. Foram 11 pontos de queda em apenas dois meses, um tombo inédito, segundo o Datafolha, se comparados os três mandatos do petista, confirmando tendência já detectada em janeiro pela Quaest. O declínio é ainda maior justamente entre as pessoas que votaram em Lula: 20 pontos porcentuais. Mas a notícia mais dura para o presidente e o PT é que a queda foi puxada pelos eleitores que até outro dia eram considerados cativos do lulopetismo, isto é, as mulheres, os negros, os nordestinos, os mais pobres e os menos escolarizados.

Tais dados não assombram apenas o lulopetismo. Afinal, trata-se da expressão, em números, de incômodos que se aprofundam em parte significativa do País. A base que elegeu Lula em 2022 está frustrada e descontente. A franja da base, isto é, setores que compunham a chamada frente ampla (liberais sociais, progressistas moderados, empreendedores individuais, eleitores não petistas que votaram nele por rejeitar o bolsonarismo), já demonstra insatisfação há meses. Esses movimentos se dão enquanto se constata que o governo é uma soma de atos e resultados medíocres, de uma equipe ministerial disforme e de qualidade duvidosa e de um comando sem clareza de propósitos.

Importam menos, nesse caso, indicadores oficiais positivos, como emprego em baixa e crescimento do PIB em alta, se tais índices não se traduzem em renda suficiente para enfrentar a carestia, sobretudo dos alimentos. O que importa de verdade é que Lula venceu a eleição prometendo picanha e cerveja a preços módicos e não está entregando. Pior, não aparenta ter a menor ideia do que fazer. Não tem um plano nem ideias novas. Só faz reclamar dos outros: do dólar que subiu, dos juros que não caem, dos empresários que não pagam bons salários.

Exegetas do Palácio do Planalto nem sequer podem argumentar que mudanças em curso trarão benefícios no longo prazo. Seria o caso da agenda climática, de mudanças estruturais na educação ou de avanços reais na saúde. Mas Lula não tem como recorrer a esse argumento, pois pouco ou nada tem a exibir nessas frentes. Com efeito, o governo recorre a culpados externos – as fake news, a especulação do mercado financeiro, Donald Trump, a imprensa. E assim, aos poucos, mais do que um quadro de malaise, a insatisfação parece configurar-se como rejeição de fato, uma inquietação cada vez mais aguda com os rumos da gestão. E o mais grave: a percepção de que não só Lula não vem cumprindo promessas de bem-estar, como não tem a menor ideia do que propor ao País.

O pensamento rupestre do PT faz o terceiro mandato se concentrar não na atualização das ideias e iniciativas de governo para atender a novas demandas da população. O elixir lulopetista segue a prescrição do passado, com a conjugação de programas sociais, benefícios de transferência de renda (atualizados sob a forma do Pé-de-Meia, por exemplo), dirigismo na economia, nenhuma atenção a microrreformas que favoreçam o mundo empreendedor e altíssima atenção à militância esquerdista. O resultado é um nível baixíssimo de avaliação líquida, hoje -17 (o saldo entre os 24% que o avaliam positivamente e os 41% que o veem de forma negativa).

Ainda é cedo para dizer se Lula está diante de um fracasso circunstancial ou definitivo. No início do terceiro ano do seu mandato, Jair Bolsonaro exibia -9 de avaliação líquida e quase venceu em 2022. A situação atual é mais grave, mas ainda assim se trata de Lula, um inquestionável líder popular e um prestidigitador experiente na arte eleitoral. Entretanto, indo a sua popularidade ladeira abaixo, pressionado por resultados imediatos e engolfado pela falta de ideias, Lula pode se sentir tentado a aplicar desde já a famosa máxima de Dilma Rousseff, segundo a qual, em eleição, “a gente faz o diabo”.

É onde mora o perigo. Consta que uma ala do PT já pede uma guinada à esquerda – como se o atual governo, perdulário e estatista, já não estivesse suficientemente lá. Mas é claro que, sendo vermelho o diabo, sempre é possível ir além.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.02.25

Pesquisa Ipec: cresce percentual de brasileiros que acham que Lula não deveria se candidatar à reeleição

Aumento aconteceu também entre eleitores do petista na última eleição

O presidente Lula no lançamento do Pé-de-Meia: programa fora da meta fiscal — Foto: Cristiano Mariz / Agência O Globo/25-03-2024

Como um novo indicativo da queda de popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o percentual de brasileiros que acham que Lula não deve ser candidato à reeleição subiu de 57% para 62%. O dado faz parte de uma pesquisa Ipec (antigo Ibope) divulgada neste sábado pelo colunista José Roberto de Toledo, do UOL, e que mostra ainda um enfraquecimento do apoio entre os eleitores do petista.

De acordo com o levantamento, a taxa entre pessoas que votaram em Lula em 2022 e que acreditam que ele não deve concorrer passou de 24% para 32%, mais do que um a cada três eleitores. A última medição havia sido feita em novembro de 2024. Já entre os eleitores do ex-presidente Jair Bolsonaro, a taxa de pessoas que não apoiam a reeleição do atual chefe do Executivo é de 95%.

A pesquisa perguntou aos 62% de participantes que se disseram contrários à reeleição do Lula o motivo da opção. As respostas, que por conta do método espontâneo ultrapassa os 100%, foram as seguintes:

Não está fazendo um bom trabalho - 36% dos entrevistados

Porque é corrupto - 20%

Pela idade - 17%

Já teve a sua chance - 11%

Por não confiar nele - 9%

Para ter renovação - 7%

Não é um bom administrador - 5%

Aumentou impostos - 5%

Prometeu não se candidatar novamente - 3%

Não cumpre o que promete - 2%

Inflação muito alta - 2%

De acordo com a medição, a queda de popularidade acontece exatemente na avaliação do governo atual do presidente, já que a soma de quem acha que ele não faz bom trabalho (36%), com não ser bom administrador (5%), com impactos pelo aumento impostos (5%) , inflação alta ( 2%) e não cumprir promessas (2%) chega a 50% dos entrevistados.

Há ainda um indicativo no levantamento de um desejo por renovação, que totaliza 39% das respostas: a soma de quem cita a idade avançada e saúde do presidente (17%), dizem que ele já teve sua chance (11%), que é preciso renovar (7% ), que afirmam que ele prometeu não se candidatar de novo (3%) e que é contra a reeleição em geral (1%).

A análise vai de encontro à pesquisa Datafolha divulgada nesta sexta-feira, que mostrou um tombo na popularidade de Lula, puxado por segmentos que formam a base de sustentação do presidente. A atual gestão atingiu o menor índice de avaliação positiva de todos os mandatos do petista na série histórica do levantamento e o percentual do eleitorado que considera que Lula 3 é ótimo ou bom caiu 11 pontos percentuais em apenas dois meses, de 35% para 24%. No grupo que declara ter votado em Lula no segundo turno das eleições de 2022, a queda é ainda maior, de 20 pontos.

A avaliação negativa do governo (ruim ou péssima) também é recorde e subiu, no período, de 34% para 41%. Já o percentual da população que considera a gestão regular variou de 29%, em dezembro, para 32% no levantamento mais recente.

O movimento de queda da percepção positiva do governo Lula foi puxado pelos segmentos que formam a base eleitoral do presidente, em especial a população com renda de até dois salários mínimos, fatia que representa pouco mais da metade da amostra da pesquisa. A mudança ocorre ainda após a crise envolvendo o monitoramento de transações financeiras superiores a R$ 5 mil, incluindo as por Pix, que acabou revogada pela Receita Federal diante da recepção negativa e da disseminação de desinformação sobre a medida nas redes sociais. Outro tema que pressiona a popularidade e gera preocupação no próprio governo é a alta na inflação dos alimentos.

A pesquisa Datafolha ouviu presencialmente com 2.007 eleitores de 16 anos ou mais em 10 e 11 de fevereiro. A margem de erro geral da pesquisa é de dois pontos percentuais. No mês passado, a pesquisa Genial/Quaest, feita entre 23 e 26 de janeiro, já havia detectado recuo na aprovação ao governo Lula . O instituto mostrou queda de cinco pontos, de 52% para 47%, no indicador, que ficou pela primeira vez atrás do percentual dos que reprovam a atual gestão (49%). Já avaliação negativa passou de 31% para 37%, enquanto a positiva variou de 33% para 31%. A margem de erro é de um ponto percentual.

Publicado originalmente por O Globo, em 15.02.25

Em tempos de intolerância, a palavra não oficial é vista como ameaça

 


Mundo atual precisa de um mínimo de retidão moral e intelectual de cada bípede capaz de pensar para além do próprio nariz

Elon Musk com o filho e Donald Trump no Salão Oval da Casa Branca — Foto: JIM WATSON/AFP

Sábado, 23 de junho de 1934. O telefone toca na casa do poeta Bóris Pasternak em Moscou. É a secretária de Josef Stálin, líder supremo da União Soviética pós-revolucionária. O camarada queria dar uma palavrinha. A histórica ligação registrada pela KGB durou cerca de três minutos, e as perguntas formuladas por Stálin vieram de chofre, sem introito:

— O que você acha de Mandelstam?

— O que se fala sobre a prisão dele nos círculos literários?

Stálin se referia à detenção, um mês antes, do também poeta Osip Mandelstam. Autor de um ácido poema contra o líder, Mandelstam o recitara privadamente para um grupo de 14 intelectuais amigos — entre eles, Pasternak. Este último admirava o colega modernista, porém considerava desnecessária e perigosa para todos a crítica a Stálin. Pego de surpresa, o autor de “Doutor Jivago” e posteriormente Nobel de Literatura (1958) conseguiu apenas articular uma resposta genérica sobre o estilo literário de cada um, resposta essa de que se arrependeria o resto da vida:

— Nós somos diferentes, Camarada Stalin. Ele é modernista, enquanto eu sou de outra tendência. Nada posso lhe dizer sobre Mandelstam — respondeu.

— Só isso? Esse é o máximo de lealdade que você demonstra a um amigo? Você é um péssimo camarada, Camarada Pasternak — retorquiu Stálin antes de desligar.

 governo Trump atacam consenso alemão sobre nazismo e discurso de ódio

O escritor ainda tentou se reconectar com o ditador para fazer reparos. Em vão. Stálin perdera interesse. Já sabia o que queria. Ademais, o número de telefone criado pela KGB para essa única chamada já não mais existia.

Autoridades dotador para fazer reparos. Em vão. Stálin perdera interesse. Já sabia o que queria. Ademais, o número de telefone criado pela KGB para essa única chamada já não mais existia.

Esse é o tema do livro “Um ditador na linha” (Cia. das Letras, 2024), em que o autor albanês Ismail Kadaré analisa múltiplas versões do telefonema para refletir sobre a relação entre poder e política, totalitarismo e liberdade de expressão, ditador e poeta. Além da fonte primária — a gravação feita pela KGB —, existem outras 12 versões baseadas na memória do que intelectuais russos da época — como Anna Akhmátova, Ilya Ehrenburg e Isaiah Berlin — ouviram do próprio Pasternak.

Por que evocar esse episódio agora? Porque os tempos andam bicudos, e nunca é demais lembrar quanto o mundo atual precisa de um mínimo de retidão moral e intelectual de cada bípede capaz de pensar para além do próprio nariz. No auge da Segunda Guerra Mundial, o escritor americano John Steinbeck garantia a seu editor que todas as bondades e heroísmos do mundo haveriam de ressurgir, apenas para ser novamente derrotados. “Não é que o mal vá vencer”, escreveu ele. “Isso nunca acontecerá, o mal apenas não morre.”

Em tempos de intolerância galopante, a palavra não oficial (seja ela falada, escrita, cantada ou pensada) é vista como ameaça. E, uma vez farejada, é preciso higienizá-la, por subversiva. Levantamento recente do jornal The Washington Post detectou 662 exemplos de alteração no vocabulário de 14 agências federais sob Donald Trump, alterando a comunicação em 8 mil sites do governo. A palavra “diversidade” foi banida, não terá substituto, na esperança, talvez, de assim fazer desaparecer também a comunidade LGBT+, as diferenças de gênero, raça e cor. “Mudança climática” agora atende pelo nome de “resiliência climática”. “Direitos Humanos”, “aumento de desigualdades”, “promoção de justiça social” ou “violação de direitos civis” já estão na linha de tiro. O ideal imaginado de uma América grande, branca e macho?

Já se escreveu aqui que palavras são acontecimentos, elas fazem coisas, mudam coisas, transformam tanto quem as pronuncia como quem as ouve. Governos autoritários ao longo da História sempre procuraram encurtar o vocabulário oficial, simplificar ao máximo as palavras de ordem, os diktats, ucasses ou as ordens executivas de agora.

Em seu livro sobre a emergência de novos autocratas (“Autocracia, Inc.”), a jornalista Anne Applebaum cita um memorando interno do Partido Comunista Chinês intitulado “Sobre o estado atual da esfera ideológica”. O documento de 2013 listava os principais perigos a ser enfrentados pelo presidente Xi Jinping. No topo da lista vinha a “democracia constitucional ocidental”, seguida por “direitos humanos universais”, “independência da mídia”, “independência judicial” e “participação cívica”.

Passados 15 anos desde a circulação desse documento, a China de Xi Jinping já pode se concentrar noutras preocupações, pois, na toada atual, é o próprio Trump que parece estar empenhado em enterrar a democracia constitucional tal qual a conhecemos.

O amanhã dessa distopia em curso nos foi exibido dias atrás em cena no Salão Oval da Casa Branca. De pé e à vontade, envergando boné, capote preto e camiseta, estava a criatura Elon Musk, centro das atenções. Vez por outra ele levantava do chão sua indócil cria de 4 anos, cujo nome de batismo é X Æ A-12, para acomodá-lo nos ombros. Sentado e algo acabrunhado estava o 47º presidente dos Estados Unidos. Novos tempos.

Dorrit Harazim, a autora deste artigo, é jornalista e documentarista. Publicado originalmente n'O Globo, em 16.02.25

Queda na popularidade de Lula não será resolvida com mais propaganda

Fábrica de soluções mágicas quer convencer povo de que governo é melhor do que parece

O presidente Lula na Cerimônia de assinatura do contrato de concessão da BR-381 — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Em entrevista à Rádio Clube do Pará, Lula esboçou uma tese sobre os governos e a opinião pública. “No primeiro ano, ninguém cobra, porque o pessoal sabe que você não teve tempo de fazer nada”, disse. “No segundo ano, o povo já começa a ter uma expectativa”, prosseguiu. “O terceiro ano é o melhor”, arrematou.

O presidente falou na manhã de sexta-feira. À tarde, foi atropelado pelo Datafolha. O instituto mostrou que sua popularidade desabou justamente no início do terceiro ano de governo. A fatia de eleitores que consideram a gestão boa ou ótima recuou para 24% — menor índice já registrado em seus três mandatos.

A pesquisa agravou o clima de desânimo no governo. Um ministro petista descreve a situação como “horrível”. Outro cardeal do partido define os números como “assustadores”. A queda da aprovação deve dificultar a vida de Lula e lançar novas dúvidas sobre o projeto da reeleição.

O presidente martelou a ideia de que 2025 seria o “ano da colheita”. Às vésperas do carnaval, não conseguiu concretizar nem as prometidas mudanças na Esplanada. O assunto gera excitação em Brasília, mas não deve mexer no ponteiro das pesquisas. E ainda arrisca piorar o governo, a depender do tamanho da mordida do Centrão.

As razões da queda na popularidade passam longe das intrigas de gabinete. A mais inconteste é a alta no preço dos alimentos, que corroeu a renda dos mais pobres e frustrou a promessa de carne barata. O presidente não se ajudou ao dizer que os consumidores deveriam evitar produtos caros. Quem vai ao mercado já faz o que pode para se defender da inflação.

A crise do Pix também abalou a confiança no governo. A extrema direita emplacou a mentira de que as transações seriam tributadas, e o Planalto não soube defender a portaria editada pela Receita. Por fim, o recuo foi lido como uma confissão de culpa. Se a medida era justa, por que revogá-la?

A pesquisa trouxe outra notícia preocupante para Lula. O tombo foi maior na base da pirâmide social, onde se concentram seus eleitores mais fiéis. É ilusão pensar que a crise será resolvida na fábrica de soluções mágicas, que aposta em truques de propaganda para convencer a população de que o governo seria melhor do que parece.

No fim de janeiro, o presidente deixou escapar um diagnóstico mais realista: “O povo tem razão, a gente não tá entregando aquilo que prometeu. Então como o povo vai falar bem do governo se a gente não tá entregando?”.

Ele não usa black tie

Lula embarca em março para Tóquio. Será recebido em visita de Estado, horaria que o Japão só concede a um país por ano.

O presidente poderia ter sido recepcionado com pompa em 2008, mas o convite esbarrou num impasse inusitado. Ele não aceitou vestir black tie, como exigia o protocolo do imperador Akihito.

Na época, o governo japonês ouviu que Lula representava a classe trabalhadora e se recusava a usar smoking. A saída foi rebaixar a viagem ao status de visita oficial, sem o mesmo peso diplomático.

Ao assumir o trono que pertenceu ao pai, o imperador Naruhito flexibilizou o código de vestimenta da corte. Graças à mudança, o presidente poderá ir ao banquete de terno e gravata.

Terra estrangeira

O Itamaraty precisará ter cuidado ao organizar a agenda de Lula no Japão. Antes de tomar posse, ele já estava em baixa com a comunidade brasileira no país. No segundo turno de 2022, Jair Bolsonaro recebeu 83,6% dos votos dos decasséguis. O petista teve míseros 16,4%.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 16.02.25

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Corrupção em alta no país é resultado da farra das emendas

Presença do crime organizado nas instituições também influi na piora do desempenho

O Brasil está empatado com Argélia, Nepal, Tailândia, Maláui e Níger no Índice de Percepção da Corrupção (IPC) da Transparência Internacional. Exibe a pontuação 34, sua pior posição e nota desde 2012, o começo da série histórica. Está nove pontos abaixo da média global e oito abaixo da média das Américas. Mesmo assim, espanta que o país não tenha caído ainda mais quando se sabe que a Polícia Federal investiga uma empresa suspeita de fraude em licitações contratada pela própria Polícia Federal.

A principal evidência de corrupção, segundo a Transparência Internacional, é a presença cada vez maior do crime organizado nas instituições estatais. O assassinato do delator do PCC Vinicius Gritzbach foi mais do que um aviso. As investigações resultaram na prisão ou afastamento de nove integrantes da Polícia Civil de São Paulo; e a Corregedoria indiciou 17 policiais militares.

Há outro fator que, por enquanto, deixa visível apenas a ponta do iceberg: o descontrole no pagamento das emendas parlamentares. Os valores são, como nas atrações circenses, incríveis, fantásticos, extraordinários: mais de R$ 148,9 bilhões em cinco anos. Sem transparência ou rastreamento.

Os casos têm pipocado aqui e ali, mas devem crescer à medida que a PF aprofundar as investigações. A existência do corretor de emendas, com prefeituras pagando a funcionários de gabinetes da Câmara e do Senado para ajudá-las a receber as verbas sob responsabilidade de seus chefes, já era conhecida. Agora descobriram os vendedores de emendas.

O ministro do STF Cristiano Zanin determinou que a denúncia contra os deputados federais Josimar Maranhãozinho e Pastor Gil, ambos do PL do Maranhão, além do suplente Bosco Costa (PL-SE), seja incluída na pauta de julgamento do Supremo. Os três são acusados de pertencer a uma organização que fazia ameaças com armas para comercializar os recursos públicos.

Só a apuração sobre o esquema liderado pelo empresário conhecido como Rei do Lixo acumula 54 celulares e 33 computadores. Um mundo a ser periciado.

Alvaro Costa e Silva, o autor deste artigo, é Jornalista e escritor - autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo (edição impressa) em 14.02.25


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Aprovação de Lula cai para 24%, em pior marca de todos os seus mandatos, diz pesquisa Datafolha

Reprovação aumentou de 34% para 41% em dois meses, segundo levantamento do Instituto Datafolha divulgado nesta sexta-feira, 14


Lula, presidente da República (Foto: Evaristo Sa/AFP)

A aprovação do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegou a uma marca inédita: em dois meses, caiu de 35% para 24%, atingindo o pior índice dos seus três mandatos na Presidência.

De acordo com a pesquisa Datafolha divulgada nesta sexta-feira, 14, a reprovação do governo do petista também é recorde, passando de 34% para 41%.

A “crise do Pix” e a alta no preço dos alimentos ajudam a explicar a queda da popularidade do presidente, que tem apostado na comunicação do governo para reverter a imagem ruim.

Segundo o instituto, 32% acham que o governo está regular, três pontos porcentuais a mais do que em dezembro do ano passado, na penúltima pesquisa. Foram ouvidas 2.007 eleitores entre os dias 10 e 11, em 113 cidades brasileiras. A margem de erro é de dois pontos porcentuais para mais ou para menos.

Na série histórica da pesquisa, que avaliou os outros dois mandatos que o petista esteve no poder, Lula nunca chegou a um patamar tão baixo de aprovação.

O pior índice havia sido no final de 2005, quando o PT atravessava o escândalo do mensalão, e chegou a 28% de avaliação “bom e ótimo”. Na penúltima pesquisa, em dezembro, foi o auge da avaliação ruim, com 34%.

A reprovação de Lula está um pouco pior do que a do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) a essa mesma altura do mandato, quando marcava 40% de “ruim ou péssimo”, apenas um ponto porcentual de diferença. A aprovação, no entanto, estava sete pontos acima que a do petista, com 31%.

Entre os segmentos, a aprovação de Lula caiu de 44% para 29% entre os mais pobres, que recebem até dois salários mínimos (com margem de erro de três pontos), e 15 pontos, de 53% para 38%, entre os que estudaram até o ensino fundamental.

Karina Ferreira, a autora deste texto, é jornalista. Publicado originariamente n'O Estado de S. Paulo, em 14.02.25, (edição online, às 16h36).

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Golpe ou baderna?

Novo presidente da Câmara diz que não considera 8/1 uma tentativa de golpe e gera reação de governistas


Hugo Motta (Republicanos-PB), novo presidente da Câmara dos Deputados - Pedro Ladeira-5.fev.2025/Folhapress

Sempre que algum neófito assume cargo público relevante, acaba levando um susto com a força que a nova função empresta a suas palavras. Não foi diferente com o novo presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta.

Depois de uma campanha em que sabiamente evitou pronunciar-se sobre questões polêmicas, Motta resolveu dizer o que pensa. Mostrou-se simpático à anistia aos condenados pelo 8 de janeiro, ao esvaziamento da Lei da Ficha Limpa, entre outras pautas que desagradam ao governo.

Ao que tudo indica, foi surpreendido pelas reações e passou os últimos dias em modo contenção de danos, tentando se explicar a interlocutores. Se for esperto, aprenderá rapidamente a calibrar suas falas.

E quanto ao mérito da mais polêmica das declarações? O 8/1 foi tentativa de golpe ou baderna?

Até acho que, se isolarmos as ações daquele dia, despindo-as de seu contexto histórico e político, daria para descrevê-las como um episódio de vandalismo. Só que fazer isso seria um erro.

As manifestações de militantes bolsonaristas diante de quartéis, que depois desaguaram na invasão da praça dos Três Poderes, eram um dos eixos do plano golpista. Se a movimentação tivesse ocorrido enquanto Bolsonaro ainda detinha a caneta presidencial, o desfecho da intentona poderia ter sido outro.

Na minha leitura, o binômio manifestações/invasão foi um pavio que os conspiradores acenderam deliberadamente em sua tentativa de golpear a democracia, mas se esqueceram de desligar (ou não puderam fazê-lo) depois que desistiram de dar continuidade à ação.

Incompetência, penso, não basta para descaracterizar a tentativa. Ao contrário até, acho que a materialização do 8/1 pode ser interpretada como um forte indício de que a tentativa de golpe entrou em fase de execução, não sendo mera cogitação, como pretendem alguns defensores dos indiciados.

Diferentemente de parte da esquerda, porém, não vejo mal em debater essa questão. Uma das razões por que vale a pena preservar a democracia é que ela permite discutir tudo sob qualquer ângulo.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem…" Publicado originalmente em 11.02.25

Os novos horizontes do crime organizado

Após avançar sobre o mercado e o Estado, a hidra do crime agora manipula movimentos sociais e influencia a cultura. O mal é sistêmico e só será debelado com ampla articulação republicana

Turbinadas pelo narcotráfico, as organizações criminosas brasileiras se expandem pelo mundo com a mesma velocidade vertiginosa com que se infiltram na economia legal e no Estado nacional.

O Brasil, outrora um mercado consumidor de cocaína na América Latina, se transformou num dos principais exportadores para o mundo. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) estima um faturamento de R$ 335 bilhões, cerca de 4% do PIB nacional. Além disso, as facções exploram crimes patrimoniais, corrupção de agentes públicos, contrabando, fraudes digitais, extorsão, lavagem de dinheiro e crimes ambientais.

Com 3% dos habitantes do planeta, o Brasil responde por 10% dos homicídios. O crime organizado está na raiz do morticínio. O FBSP estima que o País tenha 72 organizações criminosas – duas delas, o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), transnacionais –, que influenciam diretamente o cotidiano de pelo menos 23 milhões de brasileiros.

As organizações nascem da ausência do Estado e prosperam infiltrando-se nele. As duas principais, o CV e o PCC, nasceram nos presídios e os transformaram em QGs. Na Amazônia, o ecossistema do crime consolida um Estado paralelo. Em metrópoles como o Rio de Janeiro elas dominam amplos pedaços do território. As milícias surgiram de bandas podres da polícia que ofereciam proteção às populações atemorizadas, diversificaram seus negócios oferecendo serviços públicos clandestinos, até começarem a explorar o narcotráfico. As facções seguem o caminho inverso. Em São Paulo, há inúmeros indícios de empresas controladas pelo PCC prestando serviços ao poder público.

Alastrando seus tentáculos sobre a economia e a política, a hidra do crime organizado se sente confortável para influenciar políticas públicas e aliciar a cultura. O Ministério Público de São Paulo recentemente denunciou uma ONG, chamada Pacto Social & Carcerário, que seria um braço do PCC para atuar supostamente em favor dos direitos dos encarcerados. Tudo indica que ela tenha participado da produção de um documentário, O Grito, sobre as condições dos presídios e que está disponível na Netflix. A presidente da tal ONG participou de reuniões nos Ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos e no Conselho Nacional de Justiça.

O caso ilustra o círculo vicioso retroalimentado por miopias à direita e à esquerda. Uma direita adepta da lei do mais forte resume a segurança pública a penas draconianas e à truculência da polícia, e se compraz em perpetuar os presídios como sucursais do inferno, precisamente o que os torna um celeiro de oportunidades para as facções. Em contraposição, tem-se uma esquerda tatibitate que reduz as causas do crime às “injustiças sociais” e toda repressão policial a uma certa opressão classista, como se bastasse substituí-la por programas sociais para eliminar o mal pela raiz. A narrativa é de que, não fossem as condições degradantes das penitenciárias, o PCC e o CV jamais teriam surgido. Mas, se o caos carcerário é condição necessária para explicar o surgimento das facções, não é suficiente nem a causa principal. Nesse vácuo de sensatez, as organizações criminosas e seus fantoches prosperam.

É preciso melhorar as condições da população carente, mas punir duramente os delinquentes. A repressão deve ser implacável, mas feita com inteligência e nos limites da lei. Para enfrentar o crime organizado, o País precisa de um Estado organizado. Mais do que endurecer penas de crimes comuns, é necessária uma legislação antimáfia. Mais do que concentrar poderes no governo federal, é preciso mais coordenação entre os entes federados.

O País pode estar longe de se tornar um narcoestado, mas está mais perto do que na geração passada, acelera o passo e em alguns territórios já o é. O mal é sistêmico, infecta a economia, a política e a cultura, e combatê-lo não é tarefa só da polícia ou da Justiça, nem de políticos, lideranças civis, muito menos dos cidadãos comuns, mas de todos. Debelar a metástase exigirá uma mobilização popular materializada numa frente tão ampla, articulada e plural quanto a que sepultou a ditadura militar e restaurou a democracia.

Editorial / Notas e Informações, O  Estado de S. Paulo, em 11.02.25

Não se transige com o golpismo

Fala de Hugo Motta, para quem o 8 de Janeiro ‘não foi uma tentativa de golpe’, compõe mosaico de atitudes que se prestam a relativizar a evidente gravidade da insurgência bolsonarista

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), afirmou que “foi grave” o assalto às sedes dos Poderes em Brasília por uma malta de bolsonaristas inconformados com a eleição do presidente Lula da Silva, no dia 8 de janeiro de 2023, mas “não uma tentativa de golpe”. A opinião do deputado sobre o que houve naquele fatídico dia foi dada durante uma entrevista à Rádio Arapuan FM, de João Pessoa (PB), na sexta-feira passada.

Segundo Motta, “o que aconteceu não pode ser admitido novamente, foi uma agressão às instituições”, mas tentativa de golpe não teria sido porque, em sua visão, “golpe tem de ter um líder, uma pessoa estimulando, tem de ter o apoio de outras instituições interessadas”. “E não houve isso”, concluiu. O presidente da Câmara também avaliou que as penas impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) aos condenados pela participação no 8 de Janeiro são “muito severas”.

Independentemente do que pense sobre o 8 de Janeiro ou, principalmente, sobre o que vai fazer como presidente da Câmara, Motta tem seus motivos para ter dito o que disse. Decerto não foram poucos os compromissos que o deputado teve de assumir para viabilizar a aclamação de seu nome como o sucessor de Arthur Lira (PP-AL). Sejam quais forem, porém, nenhum é relevante o bastante, à luz do melhor interesse público, para que se admita qualquer tipo de transigência com o golpismo. Caso contrário, a jovem democracia brasileira, prestes a completar 40 anos, restará mais fraca, e não mais vigorosa, passado seu maior teste de estresse sob a égide da Constituição de 1988.

Em que pese sua importância, sendo ele quem é, a opinião do presidente da Câmara sobre o 8 de Janeiro não pode ser tomada de forma isolada. Ela compõe um mosaico de atitudes e palavras de parlamentares, governadores, prefeitos, setores da imprensa e formadores de opinião que, ao fim e ao cabo, se prestam à relativização da gravidade do que aconteceu em Brasília.

Há quem reduza a destruição do Palácio do Planalto, do Congresso e do STF a mera “baderna”, sem que por trás da razia houvesse uma intenção de subverter a vontade popular consagrada nas urnas em 2022. Fala-se com tremenda naturalidade e desfaçatez em anistiar os insurgentes, como se todos lá reunidos fossem pacatos senhoras e senhores “patriotas” preocupados, ora vejam, com o bem do Brasil.

No Congresso, há quem queira reduzir o tempo de inelegibilidade de políticos condenados pela Justiça com o descarado propósito de reabilitar Jair Bolsonaro – sem o qual não teria havido o 8 de Janeiro, é bom enfatizar – com vistas à eleição presidencial do ano que vem. Como se sabe, Bolsonaro foi condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral à inelegibilidade até 2030 por abuso de poder político e econômico e uso indevido dos meios de comunicação.

A rigor, caberá exclusivamente ao Poder Judiciário dizer se a tomada violenta da capital federal pelos camisas pardas do bolsonarismo foi ou não uma tentativa de golpe de Estado, à luz da chamada Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. A Polícia Federal concluiu as investigações sobre o caso, indiciou dezenas de suspeitos de participação direta ou indireta na “agressão às instituições”, para usarmos a expressão empregada por Hugo Motta, e remeteu os autos do inquérito à Procuradoria-Geral da República (PGR), a quem cabe oferecer ou não denúncia contra os suspeitos à Justiça.

A decisão sobre a tipificação do 8 de Janeiro, portanto, está nas mãos da PGR e da Justiça. Dito isso, seria ingenuidade desconhecer que os terríveis atos havidos em 8 de janeiro de 2023 não representaram, no mínimo, uma clara ameaça à estabilidade institucional do País, mal saído de uma eleição muitíssimo acirrada. Os danos causados à democracia não estão circunscritos à destruição material dos prédios públicos, mas se estendem ao ataque frontal ao processo eleitoral, algo que Bolsonaro estimulou desde o início de seu tenebroso mandato presidencial.

O País não pode, a quaisquer pretextos, relativizar o 8 de Janeiro. É de uma Justiça equilibrada, porém implacável, que advirá a garantia de que uma violência como aquela jamais se repetirá.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 11.02.25

Donald Trump e a Nova Ordem Mundial

No melhor dos cenários para os americanos, ruptura seria apenas um desvio até que a ordem liberal fosse restabelecida. No pior, China e Rússia aproveitariam para moldar o mundo a seu favor

Donald Trump desembarca na Casa Branca. A bordo do Air Force One, presidente anunciou novas tarifas, avançando na política "America First" que abala alianças americanas.  Foto: Jose Luis Magana/Associated Pres

Quando os Houthis lançaram mais de 130 ataques com drones e mísseis contra embarcações no Mar Vermelho, em 2024, foi um pandemônio.

Mais de 80% das mercadorias comercializadas internacionalmente são transportadas por navios de carga. E o Mar Vermelho desempenha um papel fundamental nessa história.

Se você olhar com atenção para este mapa, perceberá que o ponto em destaque é um lugar no Egito chamado Canal de Suez.

É fácil entender por que o Canal de Suez é uma das rotas marítimas mais importantes do mundo: ele permite a passagem de navios entre a Europa e a Ásia sem a necessidade de navegar ao redor da África pelo Cabo da Boa Esperança.

O que acontece quando um grupo rebelde ataca embarcações no Mar Vermelho que estão a caminho do Canal de Suez? As companhias marítimas passam a evitar passar pelo local.

E nós não estamos falando de um desvio pequeno.

O redirecionamento desses navios pela África acrescenta 6.500 quilômetros e 10 dias extras às rotas marítimas, encarecendo inúmeros produtos que alcançam a casa de famílias do mundo inteiro. O que significa que mesmo um grupo minúsculo, num país miserável – como os Houthis, no Iêmen –, sem laços econômicos com os Estados Unidos, pode provocar uma imensa dor de cabeça em Washington e isso se transformar numa crise política.

Isso acontece porque os americanos dependem umbilicalmente do comércio internacional para sustentar o seu estilo de vida. Grande parte das mercadorias que alcançam os Estados Unidos são produzidas do outro lado do mundo – incluindo muitos dos produtos comercializados pelo próprio presidente americano (das suas bíblias a camisetas).

Há inúmeros motivos por que os Estados Unidos não conseguiriam se desconectar do comércio internacional sem dilapidar o estilo de vida da sua população, mas citarei apenas dois.

Em primeiro lugar, países tendem a se especializar na produção daquilo que conseguem fazer de forma relativamente mais eficiente em comparação a outros países. Na economia, nós chamamos isso de vantagem comparativa. Se os americanos resolvessem produzir absolutamente tudo o que consomem – de jatos a bananas – teriam que arcar com custos muito maiores em áreas em que não são eficientes ou não dispõem de recursos naturais adequados.

Mas há um segundo problema: os Estados Unidos são um dos maiores exportadores do mundo. Empresas americanas não apenas recorrem a uma cadeia de suprimentos com peças e componentes vindos de outros continentes, como também vendem produtos e serviços que alcançam bilhões de pessoas que nunca pisaram nos Estados Unidos – aeronaves, automóveis, eletrônicos, serviços financeiros. O que aconteceria se essas empresas deixassem de vender para outros países? Isso encareceria o custo dos seus produtos para os consumidores americanos.

Muitas indústrias americanas operam com economias de escala – ou seja: quanto maior a produção, menor o custo por unidade. Empresas que exportam para diversos mercados conseguem diluir custos e acabam oferecendo produtos a preços mais competitivos. Sem essa escala global, essas empresas teriam que produzir quantidades menores apenas para o mercado interno americano, o que elevaria consideravelmente o custo dos seus produtos.

É por isso que a economia americana depende do que acontece no resto do mundo. No fim, qualquer perturbação nas cadeias de abastecimento ou de distribuição do comércio internacional – como a realizada pelos Houthis no Mar Vermelho, em 2024 – tem capacidade de interromper a produção de itens fundamentais para a manutenção da vida americana.

Como Washington se preparou para se proteger desses riscos? Desenhando um sistema de regras previsíveis voltadas para o comércio e a cooperação entre os países; fundando instituições globais que estimulam a redução de barreiras comerciais; incentivando tratados e tribunais internacionais para substituir tanques e aviões militares; promovendo democracia, direitos humanos e liberdades individuais. Nós chamamos esse sistema de ordem internacional liberal, mas há quem prefira outro nome: ordem baseada em regras.

É verdade que, em diferentes episódios, a defesa desses valores, por parte dos americanos, foi hipócrita. Nos últimos 70 anos, não apenas os Estados Unidos desrespeitaram preceitos fundamentais da ordem internacional liberal, como apoiaram violadores desses princípios. Mas ajudar a sustentar a estabilidade global sempre foi muito mais barato para os Estados Unidos do que arriscar a instabilidade de um planeta incerto e isolado, onde mesmo grupos marginais pequenos podem arriscar encarecer o que é servido na mesa dos americanos.

Em números absolutos, ninguém gasta tanto com defesa quanto os Estados Unidos. Em 2023, Washington dedicou US$ 916 bilhões nas suas forças armadas – um valor maior que a soma dos gastos de China, Rússia, Índia, Arábia Saudita, Reino Unido, Alemanha, Ucrânia, França e Japão (os 9 países seguintes que mais gastaram com as suas forças armadas). Mas há um bom motivo por que os Estados Unidos gastam tanto com o seu complexo militar-industrial: porque vale a pena. Os ganhos que Washington alcança com as suas alianças militares não são pequenos, e é fácil justificar por quê, antes da ascensão de Trump, essa tenha sido uma causa bipartidária por tantas décadas.

Desde que foi criada, em 1949, a OTAN é a principal plataforma para os Estados Unidos projetarem o seu poder no mundo. Mas ela não é a única.

Os Estados Unidos sustentam algo próximo de 750 bases militares em 80 países. Todo esse poderio militar não caiu do céu. Ele não foi construído porque Washington deseja proteger o mundo da ação dos homens maus de forma altruísta e desinteressada. Ele foi projetado por líderes americanos, democratas e republicanos, com amplo apoio popular e uma motivação bem fácil de capturar: essa estrutura é indispensável para os Estados Unidos ocuparem o papel de nação hegemônica na Terra – dominante na economia, na política, nas artes e na ciência. E é esse domínio que sustenta o modo de vida americano. No fim, 3,4% do PIB em gastos militares não parece um preço caro perto desse retorno.

Os Estados Unidos lidam diariamente com inúmeras ameaças e cenários complexos e imprevisíveis de crises. É esse colosso militar que facilita a capacidade de Washington exercer uma imensa influência em todos os cantos do mundo, protegendo rotas de comércio e a estabilidade de um planeta com instituições desenhadas pelos próprios americanos e os seus aliados. Putin colocaria o mundo de cabeça para baixo para Moscou ter acesso a isso.

E nem dá para dizer que a presença americana nesses lugares foi imposta pela força – pelo contrário, ela veio através da diplomacia militar, cultivando aliados, num capítulo da história que o norueguês Geir Lundestad chamou de “império por convite”.

É inegável que os europeus ganham segurança e estabilidade com a proteção militar americana. Mas o que os Estados Unidos perdem sem alianças como a OTAN? Muita coisa.

Em primeiro lugar, alianças como a OTAN promovem uma política de defesa coletiva que, a bem da verdade, produz inúmeros contratos para empresas americanas de tecnologia militar. Os Estados Unidos são responsáveis por 40% das exportações do comércio global de armas, e os países aliados representam uma grande parcela do destino desses produtos.

Além disso, a OTAN desempenha um papel fundamental na dissuasão de potenciais agressões contra os Estados Unidos – e até hoje nunca foi usada para defender qualquer país da aliança que não seja os Estados Unidos.

Quando um adversário ataca os Estados Unidos, provoca a maior aliança militar da história. Esse é um excelente motivo para desistir dessa ideia. Essa segurança não só contribui para gerar um ambiente internacional mais previsível – capaz de proteger a população americana – como permite que os Estados Unidos não gastem trilhões de dólares em conflitos inesperados.

No decorrer da história, no auge de qualquer império, a guerra foi a regra, não a exceção. Entre 1500 e 1945, só a Europa experimentou mais de 200 conflitos armados significativos, com poucos períodos intercalados de paz. Os Estados Unidos gastaram 14,1% do seu PIB na Primeira Guerra Mundial e 37,5% na Segunda Guerra Mundial.

A ordem internacional liberal foi projetada para evitar que conflitos globais devastadores se repetissem, e foi extremamente bem-sucedida nessa tarefa. Desde 1945, o mundo não experimenta um conflito militar envolvendo diretamente duas grandes nações. Essa é uma anomalia conhecida como Longa Paz, e o poder de dissuasão da OTAN foi fundamental para esse resultado.

EUA levaram décadas para construir sua influência global e Trump está destruindo tudo em semanas

A política externa de Trump é a sentença de morte da ‘Pax americana’ e da hegemonia dos EUA

Se os Estados Unidos se retirassem da OTAN, poupariam, com o financiamento da aliança, algo próximo de US$ 500 milhões por ano (0,05% do seu orçamento militar). Mas o Pentágono arriscaria perder o acesso a inúmeras instalações, portos, aeródromos e bases militares em toda a Europa, vitais para as operações dos Estados Unidos não apenas para frear o expansionismo dos seus adversários, como monitorar o Oriente Médio.

A quem interessa o desmantelamento disso tudo? Aos mesmos países que sonham com um isolamento dos Estados Unidos e um enfraquecimento da sua relação com os seus aliados, envolvidos em ameaças de anexação e guerra tarifária: a Rússia e a China.

Ocupar a posição de liderança da maior aliança militar da história só reforça o papel dos Estados Unidos como a grande superpotência global – o que recebe uma natural oposição dos seus adversários, que defendem uma nova ordem mundial, multipolar, onde diferentes centros de poder são distribuídos dentro do sistema internacional.

Sim: uma nova ordem mundial. Por décadas, a direita americana recorreu a essa expressão para denunciar um plano de subversão global liderado por bilionários sedentos por poder. Seria irônico se bilionários sedentos por poder, apoiados de forma tão entusiasmada por eleitores de direita, tentassem romper com a ordem baseada em regras, ridicularizando a ideia de conservar o que os conservadores sempre se comprometeram em proteger.

E o que veríamos no caso de uma completa desintegração da ordem vigente? Provavelmente um retorno das grandes potências.

Com mais potências competindo, cada região do planeta arriscaria virar palco de tensões – de disputas por recursos energéticos a conflitos étnicos. Ninguém protegeria os países pequenos de serem engolidos e anexados pelos grandes. Nós vimos isso na primeira metade do século 20.

Com cada potência buscando se proteger, desconfiando mesmo daqueles que foram os seus aliados no passado, o investimento em forças armadas certamente aumentaria no mundo, desviando recursos de outras áreas (como educação, saúde e infraestrutura) para uma corrida armamentista. E com um menor poder de coordenação internacional, menos eficiente seria o controle de armas nucleares e outros armamentos de destruição em massa.

Com blocos econômicos distintos, cada qual seguindo regras e padrões diferentes, empresas e países enfrentariam barreiras mais complexas e custos maiores para operar em múltiplos mercados – o que deixaria o mundo mais pobre e menos inovador.

Para os americanos, no melhor cenário, a nova ordem mundial seria apenas um longo desvio: o caminho mais distante entre a destruição da ordem baseada em regras e o reestabelecimento da ordem baseada em regras. No pior cenário, potências como China e Rússia se aproveitariam do vácuo deixado por Washington e moldariam o mundo a seu favor.

No fim, ajudar a destruir a ordem vigente – atacando aliados históricos, promovendo uma onda anti-liberal no comércio internacional, ameaçando anexação de território independente, prometendo limpeza étnica, menosprezando os direitos humanos, bajulando ditadores, titubeando em defender países aliados invadidos por adversários históricos, promovendo isolacionismo, desmantelando instituições que construíram o soft power e o hard power americano, apoiando partidos políticos europeus abertamente adversários da ordem vigente, se retirando de órgãos multilaterais desenhados para projetar o poder americano no mundo, sancionando tratados e tribunais internacionais – é exatamente o tipo de movimento que um líder revolucionário anti-americano faria nos Estados Unidos.

É o que Vladimir Putin faria se tivesse o poder americano por um dia.

Rodrigo da Silva, o autor deste artigo, é jornalista e criador do canal Spotniks, do YouTube. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 11.02.25

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

À falta de governança, resta o ‘gogó’

Antes da hora, Lula resolveu subir em palanques Brasil afora como se não houvesse um país acossado por problemas de toda ordem que demanda a atenção e o tempo do chefe de governo


O presidente Lula da Silva rasgou de vez a fantasia de chefe de Estado e de governo e resolveu vestir o figurino que mais o deixa confortável: o de eterno candidato em campanha eleitoral. Premido pela queda de popularidade, além dos sucessivos desgastes causados, direta ou indiretamente, pelo vazio programático que marca seu terceiro mandato, Lula se lançou numa turnê Brasil afora com o objetivo, segundo disse, de “disputar no gogó” com a oposição. À guisa de divulgar realizações do governo, Lula quer ampliar o campo da batalha discursiva contra seus adversários políticos para além das redes sociais, um ambiente dominado pela direita, como é notório.

Por ora, é vistoso o ânimo do petista para subir no palanque com cada vez mais frequência, malgrado daqui até 2026 Lula ter sob sua responsabilidade direta um país acossado por problemas de toda ordem que demanda a atenção e o tempo do presidente da República. Lula decerto não pedirá votos para não afrontar tão acintosamente a Lei Eleitoral, mas, na prática, seu giro pelo País, iniciado na quinta-feira passada, no Rio de Janeiro, não é outra coisa senão uma campanha eleitoral antecipada – afinal, como o próprio petista admitiu, “2026 já começou”. Tanto é assim que essa estratégia para tirar o governo das cordas, segundo reportagens publicadas pela imprensa, foi concebida pelo marqueteiro Sidônio Palmeira, ministro da Secretaria de Comunicação Social (Secom), responsável pela vitoriosa campanha do petista na eleição de 2022.

Além das viagens de Lula, Sidônio programou roteiros para a primeira-dama Rosângela da Silva, conhecida como Janja, o vice-presidente Geraldo Alckmin e ministros de Estado. Mas não há tour de force publicitária que dê conta de engambelar os brasileiros quando o próprio Lula se ressente publicamente de não conseguir imprimir uma “marca” em seu governo, como o fez nos outros dois mandatos presidenciais. O fato de um marqueteiro ser o condutor dos passos de Lula daqui até as próximas eleições gerais – pois foi com essa missão que Sidônio foi alçado ao cargo de chefe da Secom – diz muito sobre a real preocupação do presidente, qual seja, a reeleição, e não a construção de uma agenda virtuosa para o País, claramente identificada como tal e negociada com a sociedade por meio de seus representantes no Congresso. Se assim o fizesse, os resultados viriam como desdobramentos naturais e, muito provavelmente, tamanho esforço de propaganda seria ocioso.

A estratégia publicitária não é nova e deu certo no passado, o que seguramente é um fator motivador para que Lula desça do Palácio do Planalto e suba no palanque antes da hora. Na esteira do escândalo do mensalão, há cerca de 20 anos, Lula também decidiu sair de Brasília e rodar pelo País para escapar da crise política que se abateu sobre seu governo na capital federal. Como se sabe, o movimento foi bem-sucedido, haja vista que o petista foi reeleito em 2006. A diferença, porém, era o estado da economia brasileira à época, muito mais favorável ao então incumbente do que agora. Somadas à violência urbana que apavora os brasileiros, a carestia e a estagnação econômica estarão no centro do debate político com vistas à sucessão de Lula em 2026, ano em que a defesa da democracia contra a ameaça golpista encarnada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, inelegível até 2030, certamente terá papel muito menos determinante do que teve em 2022.

Além de apreensão, em que pese o fato de mal ter iniciado a metade final de seu mandato, o recurso ao “gogó” revela que Lula claramente fez a escolha de sobrepor a política de imagem à governança responsável capaz de responder aos desafios econômicos e sociais que o Brasil enfrenta neste momento.

Não se sabe exatamente como Lula e o País chegarão a 2026, mas é certo que o eleitorado estará cansado de uma retórica vazia, que não encontra respaldo na vida cotidiana de milhões de brasileiros ansiosos pela concretização de um futuro mais auspicioso para todos – há muito prometido, mas nunca plenamente realizado.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S.  Paulo, em 10.02.25

Hannah Arendt nos lembra que verdade e política nunca tiveram boa relação

Para a filósofa, diferente de mentiras tradicionais que ocultavam segredos, as modernas distorcem fatos conhecidos

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, durante discurso no Capitólio - Ting Shen - 6.fev.25/AFP

Quando, pela primeira vez, Donald Trump assumiu a presidência dos Estados Unidos, muitos recorreram à leitura de Hannah Arendt para tentar compreender o que estava acontecendo na política americana.

Foi assim que "Origens do Totalitarismo" passou a figurar nas listas de livros mais vendidos de lá, e que trechos dessa obra passaram a ser compartilhados nas redes sociais, motivando debates sobre as consequências políticas da solidão.

Outro texto de Arendt que também despertou o interesse dos leitores, e que merece ser relido no contexto do retorno de Trump à Casa Branca, foi o ensaio "Verdade e Política".

Inspirado na controvérsia desencadeada pela publicação de "Eichmann em Jerusalém: Um Relato Sobre a Banalidade do Mal", quando o testemunho de Arendt sobre o caso Eichmann foi distorcido, "Verdade e Política" propõe uma reflexão sobre o lugar da verdade —principalmente do que a autora chama de verdade factual— no âmbito público, frisando tanto a sua relevância para a preservação da realidade que compartilhamos com outros seres humanos, como a sua fragilidade ante o poder político.

No ensaio, Arendt comenta que verdade e política nunca mantiveram uma boa relação. Assim, ela ressalta, não é de se surpreender que sempre tenhamos visto as mentiras como "ferramentas necessárias e justificáveis ao ofício não só do político ou do demagogo, como também do estadista".

Segundo Arendt, as verdades factuais estão sempre relacionadas a outras pessoas e fazem referência a eventos dos quais muitos participaram. Consequentemente, para que tomemos conhecimento delas, precisamos dos relatos das testemunhas e da sua comprovação. Isso, por sua vez, faz com que as verdades factuais sejam caracterizadas por um elemento de contingência. É esse elemento que faz com que tais verdades sejam especialmente frágeis, pois quando a maioria das pessoas desacredita de um fato, ele corre o risco de perder a sua relevância política.

Arendt também destaca a diferença entre as mentiras políticas tradicionais e as suas equivalentes modernas. Para ela, as mentiras tradicionais tinham por alvo um inimigo específico e costumavam se referir tanto a segredos que jamais deveriam vir a público quanto a intenções que talvez nunca viessem a se realizar. Já as mentiras modernas lidam com fatos conhecidos, tendo por objetivo iludir a todos, incluindo os próprios mentirosos.

"Isso é óbvio no caso em que a história é reescrita sob os olhos daqueles que a testemunharam, mas é igualmente verdadeiro na criação de imagens de toda espécie, em que todo fato conhecido e estabelecido pode do mesmo modo ser negado ou negligenciado caso possa vir a prejudicar a imagem."

Arendt exemplifica esse tipo de mentira ao mencionar a ausência proposital do nome de Trotsky nos antigos compêndios soviéticos sobre a história da Revolução Russa: "Quando Trotsky escutou que nunca desempenhara nenhum papel na Revolução Russa, deve ter tomado consciência de que sua sentença de morte fora assinada (...) Em outras palavras, a diferença entre a mentira tradicional e a moderna acarretará, na maior parte das vezes, a diferença entre ocultar e destruir".

Mas, como questiona a própria Arendt, será mesmo que a verdade é essencialmente impotente diante do poder? Não exatamente, pois aqui vale a pena enfatizar que, embora o poder atente contra a verdade, ainda assim, precisa dela para se manter. Afinal, segundo Arendt, nada se sustenta por muito tempo na ausência da verdade: "Ela é o solo sobre o qual nos colocamos de pé e o céu que se estende acima de nós".

Juliana de Albuquerque, a autora deste artigo, é escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 09.02.25