No melhor dos cenários para os americanos, ruptura seria apenas um desvio até que a ordem liberal fosse restabelecida. No pior, China e Rússia aproveitariam para moldar o mundo a seu favor
Donald Trump desembarca na Casa Branca. A bordo do Air Force One, presidente anunciou novas tarifas, avançando na política "America First" que abala alianças americanas. Foto: Jose Luis Magana/Associated Pres
Quando os Houthis lançaram mais de 130 ataques com drones e mísseis contra embarcações no Mar Vermelho, em 2024, foi um pandemônio.
Mais de 80% das mercadorias comercializadas internacionalmente são transportadas por navios de carga. E o Mar Vermelho desempenha um papel fundamental nessa história.
Se você olhar com atenção para este mapa, perceberá que o ponto em destaque é um lugar no Egito chamado Canal de Suez.
É fácil entender por que o Canal de Suez é uma das rotas marítimas mais importantes do mundo: ele permite a passagem de navios entre a Europa e a Ásia sem a necessidade de navegar ao redor da África pelo Cabo da Boa Esperança.
O que acontece quando um grupo rebelde ataca embarcações no Mar Vermelho que estão a caminho do Canal de Suez? As companhias marítimas passam a evitar passar pelo local.
E nós não estamos falando de um desvio pequeno.
O redirecionamento desses navios pela África acrescenta 6.500 quilômetros e 10 dias extras às rotas marítimas, encarecendo inúmeros produtos que alcançam a casa de famílias do mundo inteiro. O que significa que mesmo um grupo minúsculo, num país miserável – como os Houthis, no Iêmen –, sem laços econômicos com os Estados Unidos, pode provocar uma imensa dor de cabeça em Washington e isso se transformar numa crise política.
Isso acontece porque os americanos dependem umbilicalmente do comércio internacional para sustentar o seu estilo de vida. Grande parte das mercadorias que alcançam os Estados Unidos são produzidas do outro lado do mundo – incluindo muitos dos produtos comercializados pelo próprio presidente americano (das suas bíblias a camisetas).
Há inúmeros motivos por que os Estados Unidos não conseguiriam se desconectar do comércio internacional sem dilapidar o estilo de vida da sua população, mas citarei apenas dois.
Em primeiro lugar, países tendem a se especializar na produção daquilo que conseguem fazer de forma relativamente mais eficiente em comparação a outros países. Na economia, nós chamamos isso de vantagem comparativa. Se os americanos resolvessem produzir absolutamente tudo o que consomem – de jatos a bananas – teriam que arcar com custos muito maiores em áreas em que não são eficientes ou não dispõem de recursos naturais adequados.
Mas há um segundo problema: os Estados Unidos são um dos maiores exportadores do mundo. Empresas americanas não apenas recorrem a uma cadeia de suprimentos com peças e componentes vindos de outros continentes, como também vendem produtos e serviços que alcançam bilhões de pessoas que nunca pisaram nos Estados Unidos – aeronaves, automóveis, eletrônicos, serviços financeiros. O que aconteceria se essas empresas deixassem de vender para outros países? Isso encareceria o custo dos seus produtos para os consumidores americanos.
Muitas indústrias americanas operam com economias de escala – ou seja: quanto maior a produção, menor o custo por unidade. Empresas que exportam para diversos mercados conseguem diluir custos e acabam oferecendo produtos a preços mais competitivos. Sem essa escala global, essas empresas teriam que produzir quantidades menores apenas para o mercado interno americano, o que elevaria consideravelmente o custo dos seus produtos.
É por isso que a economia americana depende do que acontece no resto do mundo. No fim, qualquer perturbação nas cadeias de abastecimento ou de distribuição do comércio internacional – como a realizada pelos Houthis no Mar Vermelho, em 2024 – tem capacidade de interromper a produção de itens fundamentais para a manutenção da vida americana.
Como Washington se preparou para se proteger desses riscos? Desenhando um sistema de regras previsíveis voltadas para o comércio e a cooperação entre os países; fundando instituições globais que estimulam a redução de barreiras comerciais; incentivando tratados e tribunais internacionais para substituir tanques e aviões militares; promovendo democracia, direitos humanos e liberdades individuais. Nós chamamos esse sistema de ordem internacional liberal, mas há quem prefira outro nome: ordem baseada em regras.
É verdade que, em diferentes episódios, a defesa desses valores, por parte dos americanos, foi hipócrita. Nos últimos 70 anos, não apenas os Estados Unidos desrespeitaram preceitos fundamentais da ordem internacional liberal, como apoiaram violadores desses princípios. Mas ajudar a sustentar a estabilidade global sempre foi muito mais barato para os Estados Unidos do que arriscar a instabilidade de um planeta incerto e isolado, onde mesmo grupos marginais pequenos podem arriscar encarecer o que é servido na mesa dos americanos.
Em números absolutos, ninguém gasta tanto com defesa quanto os Estados Unidos. Em 2023, Washington dedicou US$ 916 bilhões nas suas forças armadas – um valor maior que a soma dos gastos de China, Rússia, Índia, Arábia Saudita, Reino Unido, Alemanha, Ucrânia, França e Japão (os 9 países seguintes que mais gastaram com as suas forças armadas). Mas há um bom motivo por que os Estados Unidos gastam tanto com o seu complexo militar-industrial: porque vale a pena. Os ganhos que Washington alcança com as suas alianças militares não são pequenos, e é fácil justificar por quê, antes da ascensão de Trump, essa tenha sido uma causa bipartidária por tantas décadas.
Desde que foi criada, em 1949, a OTAN é a principal plataforma para os Estados Unidos projetarem o seu poder no mundo. Mas ela não é a única.
Os Estados Unidos sustentam algo próximo de 750 bases militares em 80 países. Todo esse poderio militar não caiu do céu. Ele não foi construído porque Washington deseja proteger o mundo da ação dos homens maus de forma altruísta e desinteressada. Ele foi projetado por líderes americanos, democratas e republicanos, com amplo apoio popular e uma motivação bem fácil de capturar: essa estrutura é indispensável para os Estados Unidos ocuparem o papel de nação hegemônica na Terra – dominante na economia, na política, nas artes e na ciência. E é esse domínio que sustenta o modo de vida americano. No fim, 3,4% do PIB em gastos militares não parece um preço caro perto desse retorno.
Os Estados Unidos lidam diariamente com inúmeras ameaças e cenários complexos e imprevisíveis de crises. É esse colosso militar que facilita a capacidade de Washington exercer uma imensa influência em todos os cantos do mundo, protegendo rotas de comércio e a estabilidade de um planeta com instituições desenhadas pelos próprios americanos e os seus aliados. Putin colocaria o mundo de cabeça para baixo para Moscou ter acesso a isso.
E nem dá para dizer que a presença americana nesses lugares foi imposta pela força – pelo contrário, ela veio através da diplomacia militar, cultivando aliados, num capítulo da história que o norueguês Geir Lundestad chamou de “império por convite”.
É inegável que os europeus ganham segurança e estabilidade com a proteção militar americana. Mas o que os Estados Unidos perdem sem alianças como a OTAN? Muita coisa.
Em primeiro lugar, alianças como a OTAN promovem uma política de defesa coletiva que, a bem da verdade, produz inúmeros contratos para empresas americanas de tecnologia militar. Os Estados Unidos são responsáveis por 40% das exportações do comércio global de armas, e os países aliados representam uma grande parcela do destino desses produtos.
Além disso, a OTAN desempenha um papel fundamental na dissuasão de potenciais agressões contra os Estados Unidos – e até hoje nunca foi usada para defender qualquer país da aliança que não seja os Estados Unidos.
Quando um adversário ataca os Estados Unidos, provoca a maior aliança militar da história. Esse é um excelente motivo para desistir dessa ideia. Essa segurança não só contribui para gerar um ambiente internacional mais previsível – capaz de proteger a população americana – como permite que os Estados Unidos não gastem trilhões de dólares em conflitos inesperados.
No decorrer da história, no auge de qualquer império, a guerra foi a regra, não a exceção. Entre 1500 e 1945, só a Europa experimentou mais de 200 conflitos armados significativos, com poucos períodos intercalados de paz. Os Estados Unidos gastaram 14,1% do seu PIB na Primeira Guerra Mundial e 37,5% na Segunda Guerra Mundial.
A ordem internacional liberal foi projetada para evitar que conflitos globais devastadores se repetissem, e foi extremamente bem-sucedida nessa tarefa. Desde 1945, o mundo não experimenta um conflito militar envolvendo diretamente duas grandes nações. Essa é uma anomalia conhecida como Longa Paz, e o poder de dissuasão da OTAN foi fundamental para esse resultado.
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Se os Estados Unidos se retirassem da OTAN, poupariam, com o financiamento da aliança, algo próximo de US$ 500 milhões por ano (0,05% do seu orçamento militar). Mas o Pentágono arriscaria perder o acesso a inúmeras instalações, portos, aeródromos e bases militares em toda a Europa, vitais para as operações dos Estados Unidos não apenas para frear o expansionismo dos seus adversários, como monitorar o Oriente Médio.
A quem interessa o desmantelamento disso tudo? Aos mesmos países que sonham com um isolamento dos Estados Unidos e um enfraquecimento da sua relação com os seus aliados, envolvidos em ameaças de anexação e guerra tarifária: a Rússia e a China.
Ocupar a posição de liderança da maior aliança militar da história só reforça o papel dos Estados Unidos como a grande superpotência global – o que recebe uma natural oposição dos seus adversários, que defendem uma nova ordem mundial, multipolar, onde diferentes centros de poder são distribuídos dentro do sistema internacional.
Sim: uma nova ordem mundial. Por décadas, a direita americana recorreu a essa expressão para denunciar um plano de subversão global liderado por bilionários sedentos por poder. Seria irônico se bilionários sedentos por poder, apoiados de forma tão entusiasmada por eleitores de direita, tentassem romper com a ordem baseada em regras, ridicularizando a ideia de conservar o que os conservadores sempre se comprometeram em proteger.
E o que veríamos no caso de uma completa desintegração da ordem vigente? Provavelmente um retorno das grandes potências.
Com mais potências competindo, cada região do planeta arriscaria virar palco de tensões – de disputas por recursos energéticos a conflitos étnicos. Ninguém protegeria os países pequenos de serem engolidos e anexados pelos grandes. Nós vimos isso na primeira metade do século 20.
Com cada potência buscando se proteger, desconfiando mesmo daqueles que foram os seus aliados no passado, o investimento em forças armadas certamente aumentaria no mundo, desviando recursos de outras áreas (como educação, saúde e infraestrutura) para uma corrida armamentista. E com um menor poder de coordenação internacional, menos eficiente seria o controle de armas nucleares e outros armamentos de destruição em massa.
Com blocos econômicos distintos, cada qual seguindo regras e padrões diferentes, empresas e países enfrentariam barreiras mais complexas e custos maiores para operar em múltiplos mercados – o que deixaria o mundo mais pobre e menos inovador.
Para os americanos, no melhor cenário, a nova ordem mundial seria apenas um longo desvio: o caminho mais distante entre a destruição da ordem baseada em regras e o reestabelecimento da ordem baseada em regras. No pior cenário, potências como China e Rússia se aproveitariam do vácuo deixado por Washington e moldariam o mundo a seu favor.
No fim, ajudar a destruir a ordem vigente – atacando aliados históricos, promovendo uma onda anti-liberal no comércio internacional, ameaçando anexação de território independente, prometendo limpeza étnica, menosprezando os direitos humanos, bajulando ditadores, titubeando em defender países aliados invadidos por adversários históricos, promovendo isolacionismo, desmantelando instituições que construíram o soft power e o hard power americano, apoiando partidos políticos europeus abertamente adversários da ordem vigente, se retirando de órgãos multilaterais desenhados para projetar o poder americano no mundo, sancionando tratados e tribunais internacionais – é exatamente o tipo de movimento que um líder revolucionário anti-americano faria nos Estados Unidos.
É o que Vladimir Putin faria se tivesse o poder americano por um dia.
Rodrigo da Silva, o autor deste artigo, é jornalista e criador do canal Spotniks, do YouTube. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 11.02.25