segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

A quadratura do círculo da reforma ministerial

A alta desaprovação popular de Lula pode contaminar ainda mais a prometida reforma ministerial e se tornar um perigo adicional para um governo já marcado pela disfuncionalidade

Além do risco de acelerar a adoção de medidas demagógicas e ampliar o arsenal de bobagens produzidas pelo governo, o derretimento da aprovação ao presidente Lula da Silva, radiografado pelas últimas pesquisas, tem pelo menos mais um efeito colateral significativo: fragilizar ainda mais a base de apoio do Executivo no Congresso e, consequentemente, contaminar a prometida reforma ministerial.

A tradicional cartilha que rege as relações em Brasília sugere que, com a popularidade em baixa, crescem as dúvidas sobre a musculatura política do presidente, sobretudo quando se olha para a sua sucessão em 2026, e sobem os custos da preservação de alianças, especialmente dos partidos de centro que compõem a coalizão governista. Mas o atual estágio da política brasileira não é regido apenas pelos códigos tradicionais. Se a disfuncionalidade do governo (com sua ineficiência crônica), da coalizão governista (ampla, heterogênea e fragmentada demais) e das relações com os demais Poderes (um Executivo enfraquecido, um Legislativo opaco e com poderes exacerbados pelo controle do Orçamento e um Judiciário politizado em demasia) já deixa mais penosa a vida de Lula, esse problema fica ainda mais sério diante da sua impopularidade.

Há a expectativa de que Lula faça mudanças tanto para trocar ministros com trabalho mal avaliado – e não são poucos, num governo cuja marca maior, até aqui, é a ausência de grandes marcas – quanto para reorganizar seus partidos aliados. Em outras palavras, como muitas reformas promovidas por Lula e seus antecessores, o manejo da coalizão multipartidária ancora as mudanças, pois é um modo de acomodar novos aliados, redistribuir cargos e orçamentos, fortalecer a base para aprovar agendas de interesse do Executivo, repactuar acordos ou preparar a coalizão para a próxima eleição. É do jogo. Mas essa reforma, se houver, terá também outra motivação: a ineficiência e mediocridade do ministério atual.

Como hábil prestidigitador, capaz de artimanhas para se manter no centro do universo e deliberar ao seu tempo e preferência, o presidente tem emitido sinais diversos ao sabor de suas conveniências: ora sugere que fará uma reforma ampla, ora diz que planeja mudanças pontuais. Como bom demagogo, Lula não vive sem ter a plena convicção de que é amado. Obcecado com a popularidade, inconformado com a maior desaprovação ao seu governo e ansioso pela eleição em 2026, o presidente parece escolher o caminho errado, ao intuir que precisa acelerar as pautas da esquerda.

Com uma agenda mais à esquerda do que deveria, e com a qual não foi eleito, Lula busca mirar tanto a disputa presidencial quanto moldar o seu legado – afinal, está perto dos 80 anos e não raro tem se mostrado inquieto sobre o seu futuro político. A aceleração de uma agenda de esquerda em prol de um legado lulista, contudo, tornará muito mais difícil para os partidos de centro aderirem, se não for por um preço muito mais alto do que o habitual. Na cosmologia do poder, isso significa mais recursos orçamentários e mais cargos para aliados – e maior prejuízo ao País. Vale tanto para as legendas centristas tradicionais, como MDB e PSD, quanto para o chamado Centrão, liderado pelo PP de Arthur Lira.

Se o apetite dos partidos é um fator de instabilidade adicional para o atual mandato, a concentração de poderes no PT vira um problema ainda mais grave na discussão de uma reforma ministerial. A coalizão de Lula tem hoje 18 partidos, e petistas dominam quase metade das pastas, incluindo os ministérios que funcionam perto do presidente, no Palácio do Planalto. É uma evidência da dificuldade crônica do PT de dividir o poder com aliados e da incapacidade do lulopetismo de aceitar que a volta ao poder, sacramentada com a eleição de 2022, não foi fruto das suas virtudes nem de sua agenda, mas de uma frente ampla temerosa dos riscos democráticos representados pelo bolsonarismo.

Lula precisará conciliar essas premissas aparentemente inconciliáveis. É a quadratura do círculo da sua reforma ministerial: um Executivo enfraquecido e impopular que espera agradar a aliados centristas enquanto deseja acelerar uma agenda de esquerda e resiste a dividir o poder. Não tem como dar certo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 03.02.25

O que dizem os ventos do hemisfério norte

É muito provável que a visão dominante entre as big techs conte com uma futura impossibilidade da vida na Terra

A coalizão das big techs com o governo Trump é um tema inesgotável. Estava precisamente pensando nelas quando estourou o caso da DeepSeek, startup chinesa que fez as empresas de tecnologia dos Estados Unidos e da Europa perderem US$ 1 trilhão em valor de mercado porque demonstrou que pode fazer mais na inteligência artificial com menos dinheiro.

A empresa chinesa tem seus pontos vulneráveis, e um deles é não responder a questões políticas proibidas pelo Partido Comunista. Mas não deixa de ser um incentivo para os que têm condições de buscar um caminho autônomo.

Quando aconteceu esse pequeno terremoto no Vale do Silício, eu refletia sobre uma frase enigmática de Elon Musk na posse de Donald Trump. Ele disse que a conquista de Marte salvaria a civilização. Já mencionei o desejo de Trump pela Groenlândia e cheguei à conclusão de que talvez ele não seja tão negacionista assim. Musk, que produz carros elétricos, conta com a colonização do espaço como alternativa ao nosso planeta.

É muito provável que a visão dominante entre as big techs conte com a futura impossibilidade da vida na Terra e pense uma fuga para a frente em duas direções: a colonização do espaço ou um avanço tecnológico que reformule completamente o planeta e o torne habitável, apesar de toda a destruição.

Em ambos os casos, os ecologistas que propõem uma revisão da forma de consumir e produzir são vistos como nostálgicos retrógrados. Há até intelectuais que consideram a ecologia o novo ópio do povo.

Nessa formulação meio science fiction, não só o mundo será remodelado pela tecnologia. Ela também ampliará a vida dos seres humanos e mais adiante os imortalizará, codificando a consciência em aplicativos para uma eventual reencarnação em corpos sintéticos.

O sonho de recriar um planeta por meio da tecnologia já foi mencionado por John Gray como uma espécie de solidão radical. Um exemplo do que nos espera pode ser encontrado no livro de Rachel Carson “Primavera silenciosa”. Inspirador de muitos ambientalistas, fala da desaparição dos pássaros numa área contaminada por agrotóxicos.

Claro que a tecnologia pode reproduzir o canto dos pássaros, o barulho da chuva e outros artifícios que já existem nos nossos telefones. Mas alguns problemas decorrem dessa fuga adiante, a produção desenfreada que esses teóricos veem não só como destino humano, mas também como base da felicidade.

Um deles é o tempo. A multiplicação de eventos extremos, o crescente número de refugiados do clima, os problemas de saúde e alimentação que decorrem do aquecimento — tudo isso não pode esperar uma utopia duvidosa do sonho de consumo ilimitado. Estou apenas alinhando a existência dessas posições para acentuar que nem sempre estamos lidando com negacionistas do tipo Jair Bolsonaro.

Muito possivelmente, os ventos do Norte nos trazem uma nova concepção a discutir, segundo a qual o aquecimento existe, mas é preciso produzir e esgotar os recursos planetários porque a tecnologia encontrará resposta, e uma fração da humanidade sobreviverá não só para desfrutar esse futuro solitário ou, como alternativa, se mudar para Marte.

É importante registrar que um setor da esquerda também adota uma teoria da aceleração. Ele combate os ambientalistas com o argumento de que é preciso acelerar o capitalismo em busca de uma alternativa. Frear a desgovernada máquina do crescimento econômico apenas nos prenderia ao passado, fantasioso e injusto.

Minha intuição a partir da frase de Musk e do interesse de Trump pela Groenlândia é que estamos diante de políticas que, de certa forma, foram antecipadas pela teoria, sobretudo nos Estados Unidos.

*Uma análise brilhante dessas correntes de pensamento encontra-se no livro dos brasileiros Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro “Há mundo por vir

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Publicado originalmente n' O Globo, em 03.02.25

sábado, 1 de fevereiro de 2025

O que o conflito na RD Congo tem a ver com smartphones?

República Democrática do Congo está sob ataque de grupos rebeldes no leste do país, uma região rica em minerais usados na fabricação de tecnologia de ponta. Civis já começaram a fugir para nações vizinhas.

Violência eclodiu em 27 de janeiro, um dia depois de a República Democrática do Congo romper relações diplomáticas com Ruanda (Foto: Samy Ntumba Shambuyi/AP Photo/picture alliance)

O aumento da violência na República Democrática do Congo provocou temores de instabilidade em larga escala em um dos países mais abalados por conflitos na África. Em 27 de janeiro, o grupo rebelde M23, apoiado por soldados da vizinha Ruanda, assumiu o controle de Goma, a maior cidade do leste do país. Com cerca de 1 milhão de habitantes, Goma desempenha um papel essencial na economia e na administração da RD Congo.

Na esteira da invasão, uma fuga em massa da principal prisão da cidade levou mais de 4 mil detentos às ruas, fazendo com que os moradores se trancassem em casa.

Na capital, Kinshasa, manifestantes responderam atacando as embaixadas de países como Bélgica, Holanda, Quênia, Uganda e Estados Unidos, exigindo que a comunidade internacional pressione Ruanda por seu suposto envolvimento no conflito.

Por que o conflito interessa ao resto do mundo

Rica em recursos naturais, a República Democrática do Congo tem metais e minerais como ouro, estanho e coltan que são essenciais para a fabricação de telefones celulares e baterias para veículos elétricos.

E é por isso que o conflito, aparentemente distante, pode repercutir no mundo inteiro. Inclusive no Brasil, onde 87,6% da população acima dos dez anos de idade usa smartphone, segundo o IBGE, e cada brasileiro tem em casa, em média, 2,2 aparelhos como computadores, smartphones, laptops e tablets, de acordo com um estudo de 2024 da Fundação Getulio Vargas. 

Esses minerais usados na produção de tecnologia de ponta desencadearam um ciclo de corrupção e derramamento de sangue em meio à disputa pelo controle do território por grupos armados, milícias locais e agentes estrangeiros.

A RD Congo tem sido abalada por conflitos há mais de 30 anos, desde o genocídio de Ruanda, em 1994.

Os conflitos armados já deslocaram mais de 7 milhões de pessoas somente dentro do país. Organizações de direitos humanos têm relatado atrocidades generalizadas, incluindo massacres, violência sexual e recrutamento de crianças como soldados.

Membros do grupo rebelde M23, vestindo roupas militares, caminham entre civis, inclusive crianças, após tomarem a cidade de Goma, no leste do Congo.Membros do grupo rebelde M23, vestindo roupas militares, caminham entre civis, inclusive crianças, após tomarem a cidade de Goma, no leste do Congo.

Em registro do dia 27 de janeiro de 2025, membros do grupo rebelde M23 caminham entre civis após tomarem a cidade de Goma, no leste do CongoFoto: STR/AFP

Mais de 100 grupos armados disputam controle da região

No centro da crise na RD Congo está o ressurgimento do grupo rebelde M23, liderado pela etnia tutsi, que ganhou poder rapidamente em 2012 e tomou a cidade de Goma, mas foi expulso pelo exército congolês e pelas forças da ONU em 2013.

O M23 voltou a pegar em armas em 2021, alegando agir para proteger os tutsis de discriminação e violência.

Já as autoridades congolesas afirmam que o grupo é apenas um representante de forças externas que buscam controlar os abundantes recursos minerais do país, especialmente nos territórios que fazem fronteira com Ruanda e Uganda.

Atualmente, há mais de 100 grupos armados tentando se instalar no leste da República Democrática do Congo. Os esforços para pacificar a região, a exemplo de um acordo de paz com os rebeldes do M23, assinado em Nairóbi, no Quênia, em 2013, fracassaram diversas vezes.

Qual é o papel de Ruanda?

O envolvimento de Ruanda na RD Congo é um ponto de tensão internacional. Oficialmente, autoridades ruandesas negam apoiar os rebeldes do M23. Mas, desde 2012, especialistas da ONU e de organizações de direitos humanos acusam Ruanda de apoiar o M23 com logística, armas e até mesmo pessoal.

Em parte, essa história começa no genocídio de Ruanda em 1994, quando 800 mil pessoas, principalmente da comunidade tutsi, foram massacradas por extremistas da etnia hutu. O genocídio terminou com o atual presidente de Ruanda, Paul Kagame, liderando uma força de rebeldes tutsis. Muitos hutus fugiram pela fronteira para a República Democrática do Congo.

Kagame alega ser necessário neutralizar as Forças Democráticas para a Libertação de Ruanda (FDLR), um grupo rebelde hutu que opera no leste da RD Congo. O argumento é que alguns membros desse grupo, que participaram do genocídio de 1994, representariam uma ameaça direta à segurança de Ruanda.

Já o governo congolês acusa Ruanda de usar o conflito como uma desculpa para explorar os recursos naturais, principalmente nas áreas controladas pelo M23. O comércio de minerais, incluindo o tráfico ilegal de ouro e coltan, é um negócio lucrativo que supostamente beneficia Ruanda e desestabiliza a RD Congo.

O diretor do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos HORN, Hassan Khannenje, disse à DW que não acredita que Ruanda vá deixar o vizinho em paz tão cedo.

"Ruanda esteve, está e sempre estará envolvida na República Democrática do Congo. O país é de interesse estratégico e nacional para Ruanda. Não se trata apenas de minerais, embora os minerais alimentem o conflito", disse Khannenje, acrescentando que a concorrência entre grupos rebeldes dão uma "justificativa adicional para ocupar partes da RDC".

As consequências diplomáticas têm sido graves. Em 26 de janeiro, a RDC rompeu com Ruanda. Os esforços regionais de mediação pouco progrediram.

O conflito pode se espalhar?

De acordo com a ONU, o conflito pode se transformar em uma crise regional mais ampla. Alguns especialistas, como Khannenje, dizem que isso é improvável.

"O que podemos ver talvez seja apenas uma escalada entre as partes que já estão no conflito – o governo da RD Congo e o M23 – e algum apoio maior de países da região ou de fora dela", afirma Khannenje.

Uganda, assim como Ruanda, também foi acusada de apoiar grupos armados no leste da RDC, embora negue as acusações. Em meio a isso, refugiados de Kivu do Norte, no leste do país, já estão fugindo para nações vizinhas, aumentando os temores de instabilidade nas fronteiras.

Sanções foram impostas aos líderes do M23, e houve advertências contra a interferência estrangeira. Mas não há resposta global ao conflito. Seu fardo e suas consequências são carregadas pelas nações africanas sozinhas, principalmente pelos mais de 100 milhões de habitantes da República Democrática do Congo.

Organizações humanitárias alertam que a violência pode levar à fome, ao surto de doenças e a mais deslocamentos em massa. Sem uma ação urgente, o conflito corre o risco de se transformar em uma tragédia de grande escala com consequências para toda a região.

Andrew Wasike, o autor, é Jornalista. Publicado originalmente pela Deutsche Welle, em 31.01.25 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

A ministra da guerrilha

Gleisi Hoffmann é cogitada por Lula a deixar o comando do PT para ocupar a Secretaria-Geral da Presidência – um agrado à esquerda e ao partido e uma afronta a Haddad e aos moderados

A repórter Vera Rosa informou neste jornal que a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, ocupará a Secretaria-Geral da Presidência, compondo a equipe do presidente Lula da Silva a partir da reforma ministerial. Oficialmente, entre as atribuições da pasta liderada atualmente pelo ministro Márcio Macêdo, está a interlocução do governo com os movimentos sociais, incluindo centrais sindicais, organizações como o MST, sindicatos e ONGs. Só oficialmente. Na prática, o provável embarque de Gleisi na Secretaria, passando a dar expediente diário no quarto andar do Palácio do Planalto, significa tudo menos a desejável melhora na qualidade da equipe ministerial de Lula. Não há meio-termo em relação a ela: Gleisi será a ministra da cisão enquanto o governo precisa de união, ou a porta-voz do desmonte, quando se requer reconstrução.

Só o convite feito a Gleisi representa mais do que a disposição do presidente em ter no Palácio uma petista radical, dando musculatura adicional a um grupo no qual se inclui o chefe da Casa Civil, Rui Costa, e o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha – isso num momento em que se esperaria de Lula e do PT um maior compartilhamento do poder com outros partidos que formam a coalizão governista. Se ministra for, Gleisi pode tornar-se ainda um símbolo de mais um constrangimento imposto ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Afinal, ela tem sido um ruidoso e virulento contraponto a Haddad e a qualquer premissa de responsabilidade fiscal. Coube a ela liderar o levante petista contra o próprio governo, aprovando um documento do partido que classificou a política fiscal de “austericídio” – uma pressão que, com a chancela do presidente Lula, desmontou qualquer esforço do ministro da Fazenda e da ministra do Planejamento, Simone Tebet, de pôr ordem nas contas do governo.

O arsenal de Gleisi é vasto e vai além dos ataques a Haddad. A ex-ministra da Casa Civil de Dilma Rousseff costuma funcionar como uma espécie de braço retórico armado de Lula da Silva. É nessa condição que frequentemente despeja declarações furiosas contra o Banco Central (pelo menos enquanto a instituição era presidida pelo inimigo preferencial dos petistas, Roberto Campos Neto), o mercado financeiro, o mundo corporativo, o agronegócio, o Congresso, a direita (inclusive a direita que não se enquadra no bolsonarismo fundamentalista), Israel, os evangélicos, a imprensa profissional e, agora, o presidente dos EUA, Donald Trump. Por outro lado, revela-se uma afável defensora de Nicolás Maduro, de Cuba e do Partido Comunista Chinês – aos quais costuma bajular enviando missões do PT ou indo pessoalmente para trocas que decerto geram dividendos políticos à esquerda de linhagem lulopetista e constrangimento ao restante do Brasil.

Com tais atributos, resta entender a natureza do convite feito por Lula a um nome que afrontou, desautorizou e deslegitimou seu ministro da Fazenda, mesmo sabendo que inexiste na história um governo forte com um ministro da Fazenda fraco; que Gleisi exibe um modus operandi de guerrilha contra tudo e contra todos que poderiam inspirar o governo a um padrão mínimo de racionalidade e eficiência; e que a presidente do PT tem como único mérito a defesa implacável de Lula, na alegria e na tristeza. Eis aí a natureza da possível escolha: agradar à esquerda do PT e resolver um problema do partido. Instalar Gleisi numa pasta do governo significa tirar dela o comando do processo eleitoral que escolherá, no fim de junho, o novo presidente do partido. O favorito de Lula, o ex-ministro e ex-prefeito de Araraquara Edinho Silva, é visto por Gleisi como um nome indesejável. O defeito de Edinho, na visão de Gleisi, é ser moderado, ter bom trânsito no mercado financeiro e em outros partidos e ser próximo de Haddad. Uma vez ministra, ela deixará o posto que ocupa desde 2017, substituída por um mandato-tampão até a eleição petista.

Eis aí uma artimanha tipicamente lulista – para o bem do PT e a ruína do País.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.01.25

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

O que você vai fazer pelo seu país?

Se dobrarmos a aposta nos populistas de direita e de esquerda em 2026, o Brasil vai naufragar. Não podemos continuar vivendo entre a omissão e a adulação


A polarização que consome o País. Temos que acabar com ela.

A qualidade da democracia pode ser mensurada por três indicadores: preservação da ordem, solidez do Estado Democrático de Direito e qualidade da educação básica. Nesses três quesitos, o Brasil está entre os piores do mundo democrático. Somos um dos países mais violentos do mundo, de acordo com o ranking da Organização das Nações Unidas (ONU). Responsável por 10% da taxa global de homicídios, apenas países em guerra contabilizam 44 mil assassinatos por ano, como ocorre no Brasil. Enquanto o crime organizado prolifera, o incompetente governo petista foi incapaz de unificar os sistemas de inteligência das polícias e endurecer as penas dos criminosos.

A nossa Justiça é lenta, parcial e corrupta, como indica o índice do World Justice Project. O País tem a segunda Justiça mais parcial do mundo (só perde para a Venezuela) e está no 114.º lugar (entre 142 países) no cumprimento do devido processo legal. Vivemos num país onde o que está escrito na lei e na Constituição pode ser deturpado pelo voluntarismo de um juiz ou pelos interesses corporativistas do Judiciário. A existência de inquéritos sem prazo determinado e sigilosos que violam as regras basilares do Direito à ampla defesa e ao devido processo legal; a anulação de sentenças de criminosos e corruptos confessos; o ativismo judicial que sepultou o equilíbrio constitucional entre os Poderes; a morosidade do Conselho Nacional de Justiça para apurar os escândalos de venda de sentenças nos tribunais regionais; e a escandalosa acumulação de supersalários, privilégios e mordomias que transformou o Poder Judiciário no mais caro do mundo.

A tragédia da educação envergonha o País. Mais da metade das nossas crianças não está devidamente alfabetizada e é incapaz de fazer operações básicas de matemática. O Brasil está entre os 15 piores do mundo na avaliação do aprendizado de jovens de 15 anos de idade em matemática, língua e ciência no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Sem educação básica de qualidade, não há igualdade de oportunidade. Cria-se um abismo econômico e social entre a parcela mais bem educada e aquela que não aprendeu nada. A massa dos desafortunados torna-se refém de políticas assistencialistas do Estado, do subemprego e das promessas infundadas de governos populistas.

Os populistas encantam o eleitor ao denunciar as mazelas do sistema político, mas eles são incapazes de prover soluções duradouras para os problemas prementes. Populistas têm alma de tirano. Lutam para subjugar as instituições aos seus caprichos, cooptar a Justiça, censurar os opositores e usar a democracia como mera fachada para legitimar o mando. Não estão interessados em reformar o Estado, criar um governo eficiente e deixar a livre economia funcionar.

Se dobrarmos a aposta nos populistas de direita e de esquerda em 2026, o País vai naufragar. Não podemos continuar vivendo entre a omissão e a adulação. A omissão é camuflada pela desculpa de votar no mal menor e apoiar o populista menos ruim. A adulação ocorre na falsa intimidade de jantares e de conferências para tentar influenciar governantes. Mas quando os malabarismos dos convescotes falharem e os populistas destruírem o País, a elite vai se mudar para os Estados Unidos e para a Europa e deixará um cadáver de nação para o povo. Foi assim que países como a Venezuela foram destruídos. Por isso, é hora de reunirmos os cidadãos de bem e agirmos – antes que seja tarde.

A polarização retrata a insatisfação popular com um Estado caro, ineficiente e falido. Cabe a nós deixar de nos iludirmos com os populistas e trabalhar desde já para eleger gente séria e competente para o Congresso e para a Presidência da República. Temos uma boa safra de governadores testados e preparados. É o caso de Ratinho Jr., Tarcísio de Freitas, Romeu Zema e Ronaldo Caiado, entre outros. O Brasil precisa de políticos com histórico de realizações e de defesa de valores democráticos. Duas décadas de governos populistas aceleraram a degeneração institucional do País. Perdemos competitividade, mercado, reputação internacional e confiança no Estado e nas nossas instituições.

Quando me perguntam o que podemos fazer para mudar o Brasil, sugiro seguir o exemplo de Martin Luther King. Sem dinheiro do governo ou apoio de ONG, ele começou sua peregrinação utilizando as ferramentas que tinha: a voz e os pés. Organizou a marcha da cidade de Selma a Montgomery (Alabama), e revelou ao longo das marchas sua capacidade extraordinária de liderar, inspirar, comunicar e mobilizar as pessoas em torno da defesa dos direitos civis. Martin Luther King mudou a história dos Estados Unidos sem exercer cargo público ou participar do governo. Apenas defendeu o que era certo e de maneira exemplar. Você também poder empregar o seu talento para promover mudanças no País. Responda à pergunta: o que você vai fazer pelo Brasil? Abandone a omissão e a adulação e comece hoje a construir o Brasil que queremos. Nós podemos mudar o País. O futuro é fruto das nossas escolhas e ações.

Luiz Felipe D'Avila, o autor deste artigo, é cientista político e autor do livro ‘10 Mandamentos – Do Brasil que Somos para o País de Queremos’. Foi candidato à Presidência da República, em 2024. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo,  em 29.01.25

Ai se eu te processo, Ai, ai se eu te processo

Fenômeno sintomático de nosso tempo, o lawfare verbal abusa da ameaça

O cantor Michel Teló, do sucesso 'Ai se eu te pego' - João Cotta /Divulgação

"Grupo de advogados vai acionar MPF contra Nikolas Ferreira por vídeo sobre Pix"; "Governo avalia processar criminalmente quem divulga fake news sobre o Pix"; "Bolsonaro diz que vai processar Haddad após fala sobre crise do Pix"; "Boulos diz que vai processar Nikolas Ferreira por fake news sobre fiscalização do Pix"; "Bruno Dantas ameaça jornalista após comentário sobre atuação no TCU".

"Pablo Marçal ameaça processar jornalista em entrevista ao vivo"; "Carlos Bolsonaro diz que vai processar Marçal por injúria"; "Bolsonaro diz que vai processar Lula por fala sobre mansão nos EUA"; "Boulos diz que vai processar Marçal sobre caso envolvendo homônimo"; "Michelle Bolsonaro diz que vai processar pessoas do PT por ‘ameaças’".

"Janja diz que vai processar ‘X’ após ataque hacker"; "Felipe Neto diz que vai processar Gustavo Gayer por divulgação de fake news"; "Yasmin Brunet diz que vai processar médicos após críticas e especulações sobre sua aparência"; "Thor Batista diz que vai processar quem o atacou na internet"; "Susana Vieira diz que vai processar quem falar mal dela"; "Susana Vieira ameaça processar quem lhe chamar de velha".

A sequência de manchetes recentes mistura embates políticos, jurídicos e pessoais muito diferentes. Algumas caricatas, outras dotadas de argumento jurídico talvez respeitável, as chamadas guardam em comum a escolha pela teatralização pública da ameaça jurídica.

O instinto da ameaça, que raramente se consuma em ação judicial e fica só no recado, dá sinais importantes sobre muita coisa. Não indica apenas modalidade do jornalismo declaratório, aquele desprovido de fato relevante ou análise, e ansioso por reportar declaração frívola. Não demonstra só a precariedade da comunicação não violenta para ter algum êxito em ambiente definido pela beligerância e incivilidade.

Não só demonstra ímpeto de usar o direito para intimidar, ou a crença de que conflitos podem ser vencidos pela ameaça de processo. Não só revela a ignorância de muita gente que, ao sacar a arma do "vou te processar", pode ser acusada de crime de ameaça: "Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave" (art. 147 do Código Penal). Estará sujeita à imprevisível interpretação judicial sobre o significado de "mal injusto e grave".

Esse coro de ameaças talvez seja sintoma de patologia social e jurídica que se intensifica em nosso tempo. O lawfare verbal e pré-judicial, uma espécie de judicialização informal do discurso público, precisa ser mais bem conhecido, suas causas e efeitos mais bem pesquisados.

Não basta processar, tem que ameaçar antes. O fenômeno não se confunde com a judicialização ou com a litigância predatória, que instrumentaliza a Justiça para violar a lei, ou usa o Judiciário como arma para fins espúrios. O lawfare pré-judicial usa a ameaça midiática, pura e simples, como arma. É também uma forma de predação e banalização do direito.

Enquanto o Judiciário não oferecer uma saída doutrinária e processual para neutralizar o eventual abuso do direito, ou o eventual crime de ameaça, seremos cada vez mais submetidos a esse ridículo jogral: "Nossa, nossa, assim você me mata, ai se eu te processo, ai, ai se eu te processo".

Conrado Hübner Mendes, o autor deste artigo, é Professor de direito constitucional da USP; doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 29.01.25

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Nunca foi tão bom ser um bilionário

Se os EUA continuarem elegendo um presidente bilionário, apoiado fartamente por outros bilionários, o lugar de destaque na festa de posse talvez tenha de ser aumentado

As duas cenas ocorreram no mesmo dia. Em Davos, nos Alpes suíços, a organização não governamental Oxfam divulgava aos participantes do Fórum Econômico Mundial seu relatório mostrando que a riqueza dos bilionários cresceu US$ 2 trilhões em 2024 e que o mundo está perdendo a guerra contra a desigualdade. Em Washington, Donald Trump tomava posse como 47.º presidente dos Estados Unidos tendo como convidados em lugar de honra alguns dos homens mais ricos do mundo.

Pode até ser que alguns desses multibilionários apoiem Trump por verem nele capacidade de tornar o mundo melhor para todos. O que interessa a todos eles, porém, é a possibilidade de o apoio ao presidente da maior potência econômica e militar do planeta facilitar seus negócios e torná-los ainda mais ricos. Naquela cena, se alguém estivesse preocupado com desigualdades não estava entre as figuras mais notadas. A depender de algumas das personalidades que terão grande destaque ao longo do governo Trump, por isso, o quadro apresentado pela Oxfam tenderá a piorar para quem não é bilionário.

“Nunca foi um tempo tão bom para ser um bilionário. Suas fortunas dispararam para níveis jamais vistos, enquanto as pessoas que vivem na pobreza em todo o mundo continuam a enfrentar várias crises”, afirma o relatório Às custas de quem: a origem da riqueza e a construção da injustiça no colonialismo, que a Oxfam divulgou em Davos. Fundada em 1942 por ativistas ingleses de Oxford para ajudar a população da Grécia ocupada pelos nazistas, a Oxfam é uma organização internacional que tem como objetivo combater a pobreza, a desigualdade e a injustiça. Atua no Brasil desde 1965.

A concentração da riqueza não chega a surpreender, muito menos no Brasil. Pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e estudos baseados nas declarações anuais apresentadas à Receita Federal, mesmo com a subnotificação do rendimento de parte dos mais ricos, vêm mostrando a imensa disparidade de renda entre os brasileiros.

O que surpreende, no mais recente relatório da Oxfam, é a velocidade com que aumenta a riqueza dos muito ricos. Eles ficam cada vez mais ricos e cada vez mais depressa. Sua riqueza aumentou três vezes mais rápido em 2024 do que em 2023. Por isso, agora se espera que haja cinco trilionários em uma década. O primeiro, lembra a Oxfam, foi identificado em 2023. Já o número dos que vivem na pobreza praticamente continua o mesmo desde 1990, por causa das crises econômicas, climáticas e de conflito. Se os Estados Unidos continuarem elegendo um presidente bilionário, apoiado fartamente por outros bilionários, o lugar de destaque na festa de posse talvez tenha de ser aumentado.

Outra conclusão do estudo da Oxfam é a de que a maior parte da riqueza dos bilionários não é conquistada em condições normais de mercado, que em geral premia os mais competentes. Essa riqueza é tomada, pois 60% vem de herança, favoritismo e corrupção ou poder de monopólio. “Nosso mundo extremamente desigual tem uma longa história de dominação colonial que beneficiou amplamente as pessoas mais ricas”, acrescenta.

Desde 1990, de acordo com o Banco Mundial, quase 3,6 bilhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza, o que representa 44% da humanidade. Enquanto isso, em uma simetria perversa, o 1% mais rico possui uma proporção quase idêntica, pois detém 45% de toda a riqueza.

Políticas sociais em áreas como educação, saúde, proteção social, direitos trabalhistas e tributação progressiva vêm sendo reduzidas na maioria dos países, o que leva a Oxfam a prever cenários piores no futuro: “Sem ações políticas urgentes para reverter essa tendência preocupante, é quase certo que a desigualdade econômica continuará a aumentar em 90% dos países”.

No Brasil, graças à retomada de programas de transferência de renda desativados ou destroçados no período 2019-2022, a pobreza foi reduzida em 2023, depois de muitos anos de aumento. O Programa Bolsa Família teve papel decisivo nessa mudança. A recuperação do mercado de trabalho também contribuiu para a redução da pobreza no País.

Os indicadores sociais continuam, no entanto, mostrando uma sociedade muito desigual e uma lenta redução das taxas de pobreza, quando não sua estabilidade. Mudar essa tendência implicaria políticas de distribuição de renda mais agudas, o que exige grande concordância política, difícil de ser alcançada.

“Reduzir a desigualdade, como questão abstrata, é algo que boa parte da população é a favor”, lembrou o doutor em Sociologia e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Pedro Ferreira de Souza, em entrevista recente ao jornal Valor Econômico. “Mas, na hora em que começa a mexer em questões específicas, as pessoas começam a gritar porque de fato é preciso impor perdas a determinados grupos. E grupos com muitos recursos. Reformas nesse sentido teriam efeito imediato sobre desigualdade.”

Jorge J. Okubaro, o autor deste artigo, é Jornalista. E também autor, entre outros, do livro "O Súdito (Banzai, Massateru!) - Editora Terceiro Nome. E ainda Presidente do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros (Jinmonken). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 28.01.25

Lula impopular é um perigo

Pesquisa aponta derretimento da aprovação ao presidente, sobretudo no Nordeste e entre a população de baixa renda, o que deve fazer o governo acelerar medidas demagógicas

Uma pesquisa da Genial/Quaest divulgada ontem trouxe más notícias para o governo do presidente Lula da Silva. Na comparação com o último levantamento, realizado em dezembro, a aprovação ao petista caiu 5 pontos porcentuais, de 52% para 47%, e pela primeira vez ficou atrás do porcentual dos que reprovam a atual gestão, com evidente viés de baixa para o governo.

Trata-se da mais significativa desaprovação ao trabalho de Lula desde o início do terceiro mandato, resultado até natural ante a corrosão constante de sua popularidade, que os petistas invariavelmente creditam aos culpados habituais – a alegada desordem deixada pelo antecessor, Jair Bolsonaro, as fake news e as big techs, a comunicação do governo e uma suposta incapacidade da população de perceber as virtudes do atual governo.

A notícia mais dura para o presidente Lula, porém, vem dos grupos em que a deterioração da popularidade apareceu com mais força: no Nordeste, tradicional reduto do presidente, onde o governo perdeu quase 10 pontos porcentuais de aprovação, e na população de baixa renda (-7 pontos) e renda média (-5 pontos). Mais: metade acredita que o País está na direção errada, e 65% acham que Lula não conseguiu cumprir suas promessas de campanha.

Ou seja, há uma fratura naquela que é a maior base social do presidente e, para piorar, o atual governo está produzindo frustração nos brasileiros em vez de incutir-lhes esperança de melhorar de vida. Um desalento que emerge não de alguma perversa conspiração da mídia ou do mercado financeiro, tampouco de uma eventual máquina de desinformação da extrema direita. É, isso sim, o retrato da vida real, cuja raiz é uma só: a inépcia de Lula e sua incapacidade de entender as aflições do Brasil que governa.

Não se gastaria tempo e esforço neste espaço se a revelação dos números servisse apenas para perturbar o humor presidencial, habituado aos aplausos frequentes que recebe dos sabujos palacianos. O problema vai além de Lula e dos morubixabas petistas, que até hoje têm a mais plena convicção de que as dificuldades com a popularidade decorrem de mentiras e desinformações que impedem que as ações do governo cheguem à população. Ocorre que ninguém que torce pelo Brasil pode sentir-se bem diante do fato de que apenas 25% dos brasileiros reconhecem que a economia melhorou no último ano e que, portanto, a percepção popular sobre a situação econômica continua majoritariamente negativa. Ou que apenas 39% acreditam que o País esteja na direção certa, que o aumento dos preços dos alimentos passou a ser uma tormenta e que a economia, mesmo malvista pela população, foi ultrapassada pela violência na lista de temas que inquietam os eleitores.

Tão sério quanto essas evidências é o risco embutido na pressa de Lula para mudar os números de sua popularidade e, sobretudo, garantir a viabilidade de sua reeleição em 2026. Afinal, se já é mau sinal quando as pesquisas de opinião pública ditam os rumos e a ansiedade de um governo e de um presidente, torna-se um perigo para a população ter um Lula obcecado com a popularidade, inconformado com a desaprovação e ansioso pela eleição. Para o presidente, como se sabe, é algo rotineiramente menor avaliar e aperfeiçoar programas, ajustar a gestão, corrigir rotas ou modelos que não mais funcionam. É o que fazem bons governantes. Mas, como bom demagogo, Lula tem a indisfarçável ambição de quem se enxerga um mítico representante dos interesses do povo e, como tal, em situações de crise, recuperar o amor popular significa escolher atalhos populistas, capazes de gerar resultados vistosos no curto prazo e devastadores no longo.

Sempre que precisou escolher entre a responsabilidade e a popularidade, Lula nunca titubeou. Donde se conclui que os números revelados pela Quaest certamente servirão de pretexto para ampliar o arsenal de estultices produzidas pelo governo, desde “intervenção” nos preços até guerra de araque contra as big techs. Serão dois longos anos pela frente.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.01.25

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Do jornalismo ao entretenimento

Um mundo sem jornalismo será um mundo sem democracia. E também sem liberalismo.

Elon Musk comemora durante discurso feito por Donald Trump um dia antes da posse (Alex Brandon / AP, 19.01.25)

Entendimento

Quase ninguém mais quer saber de buscar termos de convivência. Quase ninguém acha que precisa

Em outubro de 2024, o Instituto Gallup, dos Estados Unidos, publicou mais uma pesquisa sobre a credibilidade dos meios de comunicação na sociedade americana. Os resultados não foram bons: o prestígio da imprensa nunca esteve tão baixo. Apenas 31% das pessoas disseram ter confiança “grande” (“great deal”) ou “razoável” (“fair amount”) na maneira como jornais, televisão e rádio reportam os acontecimentos. É a pior marca já registrada. (https://news.gallup.com/poll/65 1977/americans-trust-mediaremains-trend-low.aspx.)

O êxodo é muito maior na direita do que na esquerda. Entre os adeptos do Partido Republicano, hoje um reduto do trumpismo galopante, somente 12% declararam confiar em órgãos de imprensa (eram 20% em 2018), ante 54% nas hostes do Partido Democrata (estes eram quase 80% em 2018). Até os anos 2000, não havia tanta distância entre um polo e outro: ambos se situavam no mesmo patamar, em torno dos 50%. Agora, o cenário é mais crispado.

No Brasil, a paisagem é quase idêntica. As facções que cerraram fileiras com o bolsonarismo abominam os repórteres e seus periódicos. Seus porta-vozes elogiam torturadores, execram a ciência, caluniam a universidade, hostilizam as artes, insultam a justiça e, last but not least, ofendem sistematicamente os jornalistas – e as jornalistas, de preferência.

Em todos os continentes, aumentam as multidões que aderem à onda anti-imprensa. Essas legiões não fazem mais distinções entre informação e propaganda, não têm a menor ideia do que separa o juízo de fato do juízo de valor e não dedicam nenhum respeito à verdade factual. Não raro, preferem abertamente a mentira.

Em resumo, o esvaziamento da confiança na imprensa é apenas a ponta do iceberg. Por baixo, prospera o triunfo da mentira, graças ao trabalho escravo de milhões de voluntários que espalham falsidades. Podemos comprovar o fenômeno diariamente pelos grupos de WhatsApp, especialmente os grupos de família e de turmas de amigos, que se tornaram uma estratégia dos agentes da extrema direita. Os tios e as tias do Zap, embora pacóvios, não são inocentes inúteis – eles sabem muito bem o que fazem e o que desfazem.

E aí? Como entender o cenário? Por que pessoas que até outro dia levavam uma vida pacata passaram a disseminar engambelações em período integral?

Em parte, as causas podem estar relacionadas à carência afetiva: quem posta sandices nas redes sociais suplica por elogios de meia dúzia de pares igualmente extremistas. De outra parte, é possível que a adesão à escalada desinformativa funcione como um jogo viciante, que gera dependência severa: os que se deixaram acometer dessa compulsão não conseguem parar e, para alimentar o vício, aceitam trabalhar de graça para as organizações antidemocráticas.

O que parece estar em marcha é uma crise epistêmica de enormes proporções. Os métodos de que dispúnhamos para produzir conhecimento sobre a realidade dão sinais de fadiga, porque perdem praticantes e interlocutores. A polarização, ou seja, a cisão que partiu ao meio a sociedade dita ocidental, mina as formas abstratas pelas quais interpretávamos coletivamente o mundo. O estatuto da verdade factual, que já foi o alicerce do melhor jornalismo que tivemos, cai em descrédito.

Só assim podemos entender por que grupos que plantam seus pés sobre o mesmo pedaço de chão, dentro de um mesmo país, habitam mundos imaginários tão díspares. O diálogo racional sobre os fatos deixa de ser possível entre esses grupos. Pior: deixa de ser desejável. Quase ninguém mais quer saber de buscar termos de entendimento ou de convivência. Quase ninguém acha que precisa. E, se o diálogo racional já não tem serventia para fazer pontes entre as “bolhas”, a imprensa não tem mesmo por onde escapar: é convidada a se retirar, como se fosse uma pregação anacrônica ou uma tecnologia ultrapassada, mais ou menos como a bússola e o astrolábio, que caíram em desuso depois da invenção dos dispositivos de georreferenciamento via satélite.

LUZES, OBSCURANTISMO. Foi no calor das revoluções liberais do final do século 18 que a imprensa entrou em cena. A ideia de que a sociedade precisaria contar com uma instituição não estatal para criticar publicamente o poder nasceu do liberalismo insurrecional, não nasceu da democracia. O substantivo “democracia” mal aparecia nos panfletos quando a liberdade de imprensa foi inventada.

Naquela fase, os redatores das folhas públicas eram ativistas. Eles não tinham a menor preocupação com objetividade, com reportagem precisa, com ouvir os dois lados de um debate. Suas finalidades eram conquistar a simpatia da incipiente opinião pública e pressionar o soberano. Ser jornalista era ser militante.

Foi só ao longo dos séculos 19 e 20 que as duas práticas se diferenciaram. À medida que o ordenamento social se modificava e que as liberdades dos negociantes cediam espaço para os direitos dos que não eram donos de riquezas, as causas do liberalismo passaram a ter que negociar com as demandas, agora, sim, da democracia em construção. A liberdade de imprensa deixava de ser entendida como uma prerrogativa burguesa e passou a ser vista como um direito da sociedade inteira. O direito à informação do público aflorou. A instituição da imprensa, sem abdicar de seu espírito crítico de origem liberal, assumiu o tríplice encargo de (1) fiscalizar as autoridades, (2) informar a sociedade com independência e (3) mediar o debate público.

Na primeira metade do século 19, as redações começaram a se profissionalizar. Os pesquisadores Michael Schudson e Leonard Downie Jr., no ensaio A Reconstrução do Jornalismo Americano, publicado na Columbia Journalism Review, em 2009, anotaram que, nos Estados Unidos, somente por volta dos anos 1820 os diários começaram a contratar profissionais regularmente remunerados. Logo adiante, a notícia bem apurada virou mercadoria e, acima disso, um bem público. Foi então que as melhores redações, como a do New

York Times, sentiram a necessidade de separar o relato factual (o noticiário) da opinião (os editoriais). Militância e jornalismo se separaram.

No nosso país, o processo foi mais lento. Apenas no início do século 20 o proprietário de O

Estado de S. Paulo, Julio Mesquita, num movimento pioneiro, retirou seu jornal da órbita do Partido Republicano, ao qual sempre fora ligado, e fez dele um título independente, com diversidade de pontos de vista. O Estado se tornou o diário mais sólido, mais influente e mais próspero do Brasil, como narra o historiador Jorge Caldeira em Júlio Mesquita e Seu Tempo (Editora Mameluco, 2015). O dono do Estado morreu, em 1927, aos 64 anos de idade, como um empresário de sucesso, rico, poderoso, invejado e temido, mais ou menos como William Randolph Hearst nos Estados Unidos, apesar das diferenças éticas e estilísticas que os distinguiam.

Nesse período, na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil, os autores das páginas impressas começaram a fazer o caminho de volta: saíam das redações para entrar na política. O próprio Hearst, que se elegeu deputado, concorreu à prefeitura e ao governo de Nova York na primeira década do século 20, mas fracassou. Em 1919, numa conferência famosa, “A política como vocação”, proferida na Universidade de Munique, o sociólogo alemão Max Weber afirmou que o jornalista era o “demagogo” da modernidade. Weber não empregou a palavra “demagogo” no sentido pejorativo, mas para enfatizar que os expoentes da imprensa, como os oradores que discursavam na ágora na Grécia clássica, dispunham dos meios para “conduzir” o povo pela palavra. Os jornais eram o centro da esfera pública e reinavam absolutos.

Então, o negócio do entretenimento, nascido de uma costela dos diários, entrou na briga. A palavra impressa passou a enfrentar a concorrência da imagem e, logo em seguida, da imagem em movimento. Atores de cinema também tiveram a chance de se projetar como líderes potenciais e alguns se deram muito bem. Ronald Reagan, Arnold Schwarzenegger e Donald Trump (protagonista do reality O Aprendiz) que o digam.

Com o advento das tecnologias digitais, o entretenimento teve um impulso ainda mais vigoroso. As redes sociais catapultaram comediantes à posição de chefes de Estado. As plataformas têm sido elogiadas porque turbinaram o fluxo de mensagens e ampliaram absurdamente as audiências, mas elas também trouxeram reveses. As inovações, atreladas à indústria do divertimento, aposentaram os relatos informativos confiáveis e anabolizaram atrações mais excitantes – e menos confiáveis. Os formatos discursivos do show business contaminaram a linguagem da política, de modo irreversível.

Dentro dessas turbulências, as empresas jornalísticas foram pegas no contrapé, sem saber como reagir. Na virada dos anos 1980 para os anos 1990, o jornalista Rodrigo Mesquita, o diretor da Agência Estado, passou a integrar o Media Lab no MIT e alertou para a letargia das redações. Não foi ouvido.

O modo como os jornais foram atropelados pelas inovações digitais pode dar a impressão de que a derrocada foi, antes de tudo, um descompasso tecnológico, mas a história real não é bem essa. O maior impacto da internet e seus passatempos sobre a circulação das notícias bem apuradas e bem editadas não foi meramente tecnológico, assim como não foi apenas econômico. O maior impacto se deu no plano da linguagem, das formas de representação, nas tramas do discurso. A internet e suas técnicas permitiram que o aliciamento emocional, característico do entretenimento, se impusesse sobre o argumento racional. Isso desnutriu o jornalismo, desnaturou a política e abriu caminho para as multidões que hoje têm prazeres gozosos com a difusão da mentira.

Veio assim uma alteração drástica da vida cultural. Os apelos sensuais do entretenimento tomaram para si latifúndios inteiros da linguagem. O pensamento, por sua vez, só conseguiu resistir, se é que foi capaz de resistir, em franjas exíguas. A imprensa, consequentemente, também encolheu. A crise atual do jornalismo só pode ser compreendida no quadro mais amplo da crise epistêmica – e esta, por sua vez, é inseparável da expansão predatória do entretenimento, que redundou na crise agônica da política democrática.

Ninguém ignora que a disputa do poder sempre jogou com a dissimulação e com recursos cênicos. No nosso tempo, entretanto, não é mais a política que instrumentaliza o recurso cênico, mas o recurso cênico que se apossa da política, até o ponto de desfigurá-la. A escala mudou a ordem dos fatores e desorganizou o equilíbrio entre eles. O efeito de circo e a dimensão teatral, que antes entravam na fórmula como um meio para amplificar a razão política, foram convertidos no veio dominante, no qual a retórica política se reduziu a um pálido papel de coadjuvante. O marqueteiro roubou o emprego do ideólogo.

Olhemos em volta. Quem é o narrador: o jornalismo ou a indústria da diversão? Quem é o comentador? Quem é o indutor? Quem dá o tom? A resposta é tão fácil quanto ácida. Quem traz as boas-novas ou as más notícias é o entretenimento, que assumiu de vez o posto que antes cabia às manchetes. O entretenimento, com seus hábitos, seus templos, seus cânones e seu fundamentalismo contente, é quem confere a forma social da religião do nosso tempo. Ele modula as narrativas, rege o debate público, que funciona como um reality show, e subjuga as pobres vozes jornalísticas, às quais só resta a condição humilhante de sair por aí mendigando cliques.

O negócio do entretenimento não fiscaliza o poder. Não precisa. Ele é o poder.

Conclusão? Ora, por favor. A conclusão inexiste. Uma sociedade que se nega a conhecer os fatos não é nada além de uma turba que renuncia à textura da política e se rende ao fanatismo. O que vem a seguir não é bem uma nova ordem, mas uma desordem obscura, sem paralelo com nada que já tenhamos visto. Um mundo sem jornalismo será um mundo sem democracia – e, ironia das ironias, será também um mundo sem liberalismo.

Internet

O maior impacto das inovações digitais se deu no plano da linguagem, das formas de representação, nas tramas do discurso.

Ordem dos fatos

Não é mais a política que instrumentaliza o recurso cênico, mas o recurso cênico que se apossa da política

Eugênio Bucci, o autor deste artigo, é Jornalista. Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S. Paulo - USP, articulista do jornal  O Estado de S. Paulo e ECA-USP e membro da Academia Paulista de Letras. Publicado em 16.01.25

A arte lulista de iludir

Lula avisou a ministros que pode desistir de disputar a eleição em 2026. É uma artimanha tipicamente lulista: o presidente não pensa em outra coisa que não seja se manter no poder

Na mesma reunião ministerial em que anunciou, sem rodeios, que “2026 já começou”, convertendo seu governo num insolente comitê de campanha, o presidente Lula da Silva também recorreu a uma de suas cartadas típicas, sobretudo em períodos pré-eleitorais: a arte de iludir, com a qual invariavelmente sugere sinais opostos a suas reais intenções para obter dividendos políticos no futuro próximo.

Na parte pública da reunião, Lula tratou de invocar mais uma vez a “defesa da democracia”, atribuindo a seu governo (ou melhor, a si próprio) a missão de liderar a resistência nacional contra a “volta ao neofascismo, ao neonazismo e ao autoritarismo”, segundo suas próprias palavras. Já no momento fechado do encontro, o presidente fez chegar aos ministros a ideia de que seu nome poderá não estar nas urnas em 2026. “Deus no comando”, teria dito, segundo relatos, creditando a incerteza a um conjunto de variáveis, entre elas a saúde principalmente. Ao cogitar a hipótese de desistir, Lula teria mencionado ainda recentes episódios que colocaram sua vida em risco, como o problema técnico na aeronave presidencial e a cirurgia na cabeça após uma queda no banheiro.

Noves fora as inevitáveis incertezas do destino, que impedem qualquer ser humano – mesmo aqueles convictos de seus poderes divinos, como Lula – de ter a mais plena segurança sobre o que fará e onde estará daqui a quase dois anos, não há dúvida de que o presidente não pensa em outra coisa senão continuar governando o Brasil e liderando a esquerda tradicional lulopetista. Nesse ponto não lhe falta convicção: para Lula, não só governar é estar no palanque, como ele se sente o único que efetivamente pode salvar o Brasil do “neofascismo” e do “neonazismo”, que é como ele qualifica o bolsonarismo.

A reação de ministros aliados, espontânea ou calculada, foi de “preocupação”. Providencialmente, integrantes da cúpula do PT difundiram a jornalistas as razões para tanto: hoje, segundo petistas, os principais nomes que podem vir a lhe suceder não teriam condições de representar o partido na corrida eleitoral. Seria o caso dos ministros Fernando Haddad, Camilo Santana e Rui Costa. Essa é a costumeira artimanha de lulistas, possivelmente inspirados no próprio Lula: difunde-se uma dúvida sobre a disposição do Grande Líder; faz-se chegar à militância o nome dos eventuais substitutos; conclui-se que nenhum tem condições de conquistar corações e mentes de eleitores; e, por fim, volta-se ao essencial, isto é, Lula precisa ser o candidato.

A prestidigitação lulista já ocorreu em outros tempos, mas rigorosamente nada o impediu até aqui de disputar sete eleições presidenciais, tornando-se o recordista de candidaturas na história de nossa república. Ensaiou desistir – apenas ensaiou, sublinhe-se – em 1998, quando meses antes já parecia certa a sua derrota para um imbatível Fernando Henrique Cardoso pós-Plano Real, e em 2002, quando impôs ao PT carta branca para ele e José Dirceu atraírem alianças para além dos satélites tradicionais da esquerda. Lula não hesitou em ser o candidato nem mesmo quando estava claro que sua candidatura seria barrada. Foi o caso de 2018, ano em que o lulopetismo quis ter o seu nome na urna mesmo com Lula preso. Coube a Haddad então cumprir o papel de boneco de ventríloquo na eleição.

A “vontade de Deus” a que Lula se referiu na reunião, portanto, parece ter muito mais a ver com seu método de fortalecer o próprio nome e manter-se como o único farol a iluminar o espectro da esquerda tradicional liderada pelo PT. É inegável que até aqui o estratagema deu certo para si mesmo. Resta saber se o demiurgo será bem-sucedido novamente. Há quem veja no recado uma forma de galvanizar apoios entre partidos, mas lideranças do Centrão já alertaram publicamente que, ao contrário, isso pode abrir espaço para defecções numa base já ideologicamente frágil. Pode também ser uma forma de colocar à prova uma providencial fragilidade dos seus substitutos, o que só revela o horizonte rarefeito na esquerda – enquanto na direita já existe uma profusão de nomes dispostos a herdar o espólio de Jair Bolsonaro, à sombra da liderança de Lula poucos emergem para valer. Assim caminha o lulopetismo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 27.01.25

domingo, 26 de janeiro de 2025

O sonegador agradece

Revogação de monitoramento do Pix só beneficia um grupo: o crime organizado

Após forte ruído nas redes sociais, o governo Lula se acovardou e optou por revogar instrução normativa da Receita Federal que ampliava o monitoramento de transações via Pix superiores a R$ 5 mil mensais (para pessoas físicas) e R$ 15 mil (para jurídicas) a fintechs e plataformas de pagamento, como, aliás, já ocorre com os chamados bancos tradicionais.

Com isso, perdeu-se uma oportunidade de atualizar uma regra que já existia antes mesmo da adoção exitosa do Pix, quando transações financeiras eram feitas por meio do hoje descontinuado DOC. “Corre-se o risco de abrir uma fresta em todo o sistema, por exemplo, de controle de lavagem de dinheiro, de fraude”, afirmou Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central, à revista Capital Aberto.

Loyola não é voz isolada. Em publicação recente, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco) também alertou que, com o recuo do governo, se compromete o combate ao crime organizado, uma vez que os dados de fintechs e plataformas de pagamentos, algumas das quais empresas de fachada a serviço de bandidos de alta periculosidade, ficarão de fora da base de dados da Receita.

É fundamental ressaltar que a maioria das fintechs é séria, tem no Pix um importante aliado na inclusão bancária de milhões de brasileiros, cumpre regras e coopera com os órgãos governamentais para que o sistema financeiro seja cada vez mais transparente e seguro.

Contudo, também há fortes indícios de que organizações como o Primeiro Comando da Capital (PCC) utilizavam fintechs que teriam movimentado bilhões de reais de origem suspeita. Esses dublês de “bancos digitais” dariam aos seus clientes delinquentes uma blindagem contra, por exemplo, bloqueios judiciais.

Investigadores e economistas ouvidos pelo Estadão afirmaram, em novembro passado, que a profusão de casos de fraudes envolvendo fintechs demonstra a necessidade de atualização do ambiente regulatório no qual elas operam. A instrução da Receita, infelizmente revogada, era um importante passo nessa direção.

Atente-se ainda para o fato de que o Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e Lavagem de Dinheiro. Ao revogar uma medida que ampliava o escopo de combate à sonegação, o País corre o risco de ter sua seriedade na luta contra o crime manchada internacionalmente, algo extremamente contraproducente porque a transnacionalização das organizações criminosas exige cooperação cada vez maior com parceiros externos.

Incapaz de explicar à população que a instrução era importante no combate à sonegação, e que exatamente por isso apenas sonegadores precisariam se preocupar com seus atos ilícitos, o governo, politicamente fraco, preferiu cancelar uma medida absolutamente correta.

Inovação brasileira que é motivo de orgulho nacional, além de interesse internacional, o Pix bate sucessivos recordes no País ano após ano. Apenas em 2024, o volume de transações foi de mais de R$ 26 trilhões, praticamente 2,5 vezes o Produto Interno Bruto (PIB) de 2023. Quanto mais abrangentes e transparentes forem as regras de monitoramento do Pix, melhor para todos os brasileiros, com exceção dos criminosos. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.01.25

O que Mauro Cid disse sobre Bolsonaro em seu primeiro depoimento à Polícia Federal

Ex-ajudante de ordens da Presidência narrou aos investigadores no primeiro anexo de sua colaboração premiada que o então presidente ‘trabalhava com duas hipóteses’: encontrar uma fraude nas eleições de 2022 ou convencer as Forças Armadas a aderir a um golpe; teor da delação foi revelado pelo colunista Élio Gaspari, da Folha de S. Paulo, e confirmado pelo Estadão

Michelle e Eduardo Bolsonaro durante evento em Washington, na noite anterior à posse de Donald Trump; ambos foram citados por Cid na primeira delação e não figuram entre os indiciados da PF.

No depoimento do primeiro anexo de sua delação premiada, em agosto de 2023, o tenente-coronel Mauro Cid narrou à Polícia Federal (PF) como aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) teriam divergido sobre a melhor estratégia para ser adotada após a derrota nas eleições de 2022.

O anexo aborda as divisões internas no núcleo duro de apoio ao ex-presidente. Como ajudante de ordens da Presidência, Mauro Cid prestava assistência direta a Bolsonaro e acompanhava o presidente em compromissos oficiais e reuniões. Ele crava no depoimento que o ex-presidente Jair Bolsonaro trabalhava com duas hipóteses. “A primeira seria encontrar uma fraude nas eleições e a outra, por meio do grupo radical, encontrar uma forma de convencer as Forças Armadas a aderir a um Golpe de Estado”, declarou à PF.

O teor do depoimento foi revelado pelo colunista Élio Gaspari, da Folha de S. Paulo, e confirmado pela reportagem. Os citados foram procurados pelo Estadão.

Os advogados Paulo Cunha Bueno, Daniel Tesser e Celso Sanchez Vilardi, que representam o ex-presidente, disseram estar “indignados” com “vazamentos seletivos” da delação, “enquanto lhe é sonegado acesso legal à integralidade da referida colaboração”.

“Investigações ‘semisecretas’ — em que às defesas é dado acesso seletivo de informações, impedindo o contexto total dos elementos de prova —, são incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, que nosso ordenamento busca preservar”, diz a nota.

Segundo Mauro Cid, uma ala “conservadora” defendia que Bolsonaro mandasse para casa os manifestantes bolsonaristas que acampavam próximo aos quartéis do Exército e se consolidasse como um líder de oposição. Era um grupo “de linha bem política”, conforme descrito pelo tenente-coronel. “Diziam que o povo só queria um direcionamento.”

As principais notícias e colunas sobre o cenário político nacional, de segunda a sexta.

Esse grupo seria formado pelos senadores Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e Ciro Nogueira (PP-PI), então ministro da Casa Civil, pelo advogado-geral da época Bruno Bianco e pelo Brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, então comandante da Aeronáutica.

O segundo grupo seria o dos “moderados”, que segundo Mauro Cid eram “totalmente contra” um golpe armado e temiam que aliados radicais de Bolsonaro levassem o então presidente a assinar uma “doideira”. Essa ala seria formada por Marco Antônio Freire Gomes, ex-comandante do Exército, e por outros generais da ativa que tinham contato com Bolsonaro.

“Apesar de não concordar com o caminho que o Brasil estava indo, com abusos jurídicos, prisões e não concordar com a condução das relações institucionais que ocorriam no país, entendiam que nada poderia ser feito diante do resultado das eleições, que qualquer coisa em outro sentido seria um golpe armado, que representaria um regime militar por mais 20, 30 anos”, afirmou Mauro Cid no depoimento à PF.

Havia ainda um outro grupo “moderado”. Eram aliados que defendiam que Bolsonaro deixasse o Brasil. São mencionados nominalmente o senador Magno Malta (PL-ES), o empresário do agronegócio Paulo Junqueira e o ex-secretário de Assuntos Fundiários Luiz Antonio Nabhan Garcia.Por fim, Mauro Cid apontou o último grupo, o dos “radicais”. O tenente-coronel afirma que havia uma divisão interna. Parte dos radicais queria achar uma fraude nas urnas. A outra parte “era a favor de um braço armado”.

O primeiro grupo - descrito como os “menos radicais” no organograma de Mauro Cid - “tentava encontrar algum elemento concreto de fraude”. Era composto pelo então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, pelo presidente do PL, Valdemar Costa Neto, pelo senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), pelo major da reserva do Exército Angelo Martins Denicoli, pelo general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e “por um grupo de pessoas que prestavam assessoramento técnico”.

Por fim, o braço “mais radical” é descrito como um grupo de pessoas “que se encontravam com presidente, esporadicamente, com a intenção de exigir uma atuação mais contundente”.

O tenente-coronel afirma que essas pessoas “romantizavam” o artigo 142 da Constituição Federal - dispositivo que regulamenta a atuação das Forças Armadas - como fundamento para o golpe e acreditavam que, se colocasse a ideia em prática, Bolsonaro “teria apoio do povo e dos CACs (Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores)”. “Tais pessoas conversavam constantemente com o ex-presidente, instigando-o para dar um golpe de Estado”, declarou Mauro Cid à PF.

Fariam parte desse grupo Filipe Garcia Martins, ex-assessor especial da Presidência, os ex-ministros Onyx Lorenzoni (Casa Civil) e Gilson Machado (Turismo), os senadores Jorge Seif (PL-SC) e Magno Malta, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e o general Mário Fernandes, apontado pela PF como autor do plano “Punhal Verde e Amarelo”.

O senador Magno Malta reiterou que nunca incentivou o ex-presidente a dar um golpe de Estado e informou que está à disposição para prestar esclarecimentos à Justiça.

Michelle e Eduardo Bolsonaro eram de grupo pró-golpe mais radical, afirmou Cid em delação premiada

“Minhas interações com Bolsonaro após as eleições eram pautadas em momentos de consolo, orações e leitura da Bíblia. Estou plenamente disposto a cooperar com as autoridades, buscando esclarecer quaisquer dúvidas que possam surgir. Acredito que a menção do meu nome está relacionada ao tempo que passei com o ex-presidente, mas reitero que não há fundamento para preocupações, pois não cometi nenhum crime”, disse Malta.

O senador Jorge Seif disse, em nota, que as declarações de Mauro Cid são “falaciosas, absurdas e mentirosas”.

“Nego veementemente que em quaisquer de meus encontros com o Presidente tenha abordado ou insinuado decretação de intervenção ou outras medidas de exceção”, diz a manifestação.

Filipe Martins é citado no depoimento como o responsável por levar a Bolsonaro um rascunho de decreto golpista para determinar novas eleições e prender os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, e “outras autoridades que de alguma forma se opunham ideologicamente ao ex-presidente”.

Mauro Cid afirma que Bolsonaro “recebeu o documento, leu e alterou as ordens, mantendo apenas a prisão do ministro Alexandre de Moraes e a realização de novas eleições devido a fraude no pleito”.

Michelle e Eduardo Bolsonaro eram de grupo pró-golpe mais radical, afirmou Cid em delação premiada

De acordo com o depoimento, após receber de Filipe Martins a versão com ajustes, Bolsonaro chamou os comandantes das Forças Armadas - Marco Antônio Freire Gomes (Exército), Carlos de Almeida Baptista Junior (Aeronáutica) e Almir Garnier Santos (Marinha) - para uma reunião. Segundo Mauro Cid, o então presidente “queria entender a reação dos comandantes das forças em relação ao seu conteúdo”.

“Nessa reunião com os generais o presidente apresentou apenas os ‘considerandos’ (fundamentos dos atos a serem implementados) sem mostrar as ordens a serem cumpridas (prisão do ministro Alexandre de Moraes e a realização de novas eleições)”, disse Mauro Cid. “O ex-presidente queria pressionar as Forças Armadas para saber o que estavam achando da conjuntura.”

O tenente-coronel afirmou no depoimento que o almirante Almir Garnier era a favor do golpe e disse que a Marinha “estava pronta para agir”, mas que precisariam da adesão do Exército, “pois não tinha capacidade sozinho”. Já comandante da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, era “terminantemente contra qualquer tentativa de golpe de Estado” e “afirmava de forma categórica que não ocorreu qualquer fraude nas eleições presidenciais”. O general Freire Gomes era, segundo Mauro Cid, um “meio-termo”. “Ele não concordava como as coisas estava sendo conduzidas; que no entanto, entendia que não caberia um golpe de Estado, pois entendia que as instituições estavam funcionando; que não foi comprovado fraude nenhuma.”

O acordo de colaboração de Mauro Cid esteve sob ameaça real de rescisão. A Polícia Federal estava insatisfeita por acreditar que ele estava omitindo informações. Pressionado, o tenente-coronel prestou um novo depoimento diretamente ao ministro Alexandre de Moraes, em novembro do ano passado, quando entregou o general Walter Braga Netto, que acabou sendo preso no final de 2024.

Nesse primeiro anexo de sua delação, Mauro Cid afirmou apenas que Braga Netto era o “elo entre os manifestantes e o ex-presidente”. Ao ser ouvido por Moraes, deu novas informações. O ex-ajudante de ordens declarou que Braga Netto entregou dinheiro aos “kids pretos” para financiar o plano de execução do próprio ministro Alexandre de Moraes, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e do vice Geraldo Alckmin, em 2022. Também acusou o general de tentar influenciar sua delação.

Leia a íntegra do primeiro depoimento de Mauro Cid:

O COLABORADOR MAURO CESAR BARBOSA CID, assessorado por seus advogados, manifestou intenção de colaborar, nos termos da lei 12.850/2013, com as investigações desenvolvidas no âmbito os Inquéritos Policiais 2020.0075332 - CGCINT/DIP/PF (Ing. 4781/DF) e 2021.0052061 - CGCINT/DIP/PF (Inq. 4874/DF), que tramitam no Supremo Tribunal Federal, relacionados ao seguintes tópicos: a) ataques virtuais a opositores; b) ataques às instituições (STF, TSE), ao sistema eletrônico de votação e à higidez do processo eleitoral; c) tentativa de Golpe de Estado e de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito; d) ataques às vacinas contra a Covid-19 e as medidas sanitárias na pandemia e; f) uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens, o qual se subdivide em: f.1) uso de suprimentos de fundos (cartões corporativos) para pagamento de despesas pessoais e; f.2) Inserção de dados falsos de vacinação contra a Covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde para falsificação de cartões de vacina; e f.3) Desvio de bens de alto valor patrimonial entregues por autoridades estrangeiras ao ex-Presidente da República, JAIR MESSISAS BOLSONARO, ou agentes públicos a seu serviço, e posterior ocultação com o fim de enriquecimento ilícito; g) outros tópicos que possam surgir no transcorrer da investigação.

A presente oitiva não exaure a coleta de dados relativa aos fatos apurados, em razão da dimensão da investigação referente aos eixos de atuação. O presente ato de colaboração será gravado em mídia audiovisual para garantir a fidelidade das informações prestadas, podendo seu conteúdo ser utilizado nas referidas investigações. Ademais, também será reduzido a termo como forma de facilitar o acesso ao conteúdo pelo juízo e demais atores. Inquiridoa respeito dos fatos investigados no presente ato, o senhor, na presença de seus advogados, reafirma a renuncia ao direito de permanecer em silêncio e o compromisso legal de dizer a verdade?

A Polícia Federal conduz investigação que apura a prática de atos relacionados a uma possível tentativa de execução de um Golpe de Estado e Abolição violenta do Estado Democrático de Direito ocorridos após o resultado do segundo turno das eleições presidenciais de 2022.

Nesse sentido, INDAGADO sobre os elementos que têm conhecimento em relação aos referidos fatos investigados, respondeu QUE depois que acabou o período eleitoral, o então Presidente JAIR BOLSONARO recebia diversas pessoas, sempre no Palácio da Alvorada; QUE as pessoas que visitavam o então Presidente formavam três grupos distintos; QUE tinha um grupo bem conservador, de linha bem política; QUE aconselhavam o Presidente a mandar o povo para casa, e colocar-se como um grande líder da oposição; QUE diziam que o povo só queria um direcionamento; QUE para onde o PRESDENTE mandasse, o povo iria; QUE o grupo era formado pelo Senador FLÁVIO BOLSONARO, o AGU BRUNO BIANCO, CIRO NOGUEIRA (então Ministro da Casa Civil) e o Brigadeiro BATISTA JUNIOR (então Comandante da Aeronáutica); QUE o outro grupo era formado por pessoas moderadas; QUE apesar de não concordar com o caminho que o Brasil estava indo, com abusos jurídicos, prisões e não concordar com a condução das relações institucionais que ocorriam no país, entendiam que nada poderia ser feito diante do resultado das eleições: QUE qualquer coisa em outro sentido seria um golpe armado; QUE representaria um regime militar por mais 20, 30 anos; QUE esse grupo era totalmente contra isso; QUE o grupo se subdividia em dois: QUE um primeiro grupo era composto basicamente por generais da ativa que tinham mais contato com o então Presidente da República JAIR BOLSONARO; QUE eram as pessoa que o então PRESIDENTE mais gostava de ouvir; QUE o grupo era composto pelo COMANDANTE DO EXÉRCITO GENERAL FREIRE GOMES; pelo GENERAL ARRUDA, chefe do DEC -Departamento de Engenharia e Construção; pelo GENERAL TEOFILO, chefe do COTER- Comando de Operações Terrestres; pelo GENERAL PAULO SERGIO, então Ministro da Defesa; QUE esse grupo temia que o grupo radical trouxesse um assessoramento e levasse PRESIDENTE JAIR BOLSOANRO assinar uma “doidera”: QUE o GENERAL FREIRE GOMES estava muito preocupado com essa situação, com que poderia acontecer com esse pessoal que ia para o Palácio da Alvorada; QUE estavam preocupados com o grupo radical que estava tentando convencer o então Presidente a fazer “alguma coisa”, um golpe: QUE havia um outro grupo de moderados que entendia que o ex-Presidente deveria sair do país; QUE o próprio colaborador sugeriu que o ex-presidente deveria sair do país; QUE o grupo era composto pelo PAULO JUNQUEIRA, empresário do agronegócio, que financiou a viagem do presidente para os EUA; por NABAN GARCIA, que ocupou algum cargo na secretaria de agricultura, e por fim o senador MAGNO MALTA que tinha uma posição mais radical e se juntou ao referido grupo entendendo que o presidente deveria deixar o país; QUE o terceiro grupo, denominado pelo colaborador como “radicais”, era dividido em dois grupos; Que o primeiro subgrupo “menos radicais” que queriam achar uma fraude nas urnas; QUE o segundo grupo de “radicais” era a favor de um braço armado. QUE gostariam de alguma forma incentivar um golpe de Estado; QUE queria que ele assinasse o decreto; QUE acreditavam que quando o Presidente desse a ordem, ele teria apoio do povo e dos CACS: QUE “romantizavam” o art. 142 da Constituição Federal como o fundamento para o Golpe de Estado: QUE o primeiro grupo que defendia a identificação de uma possível fraude nas umas era o que o ex-Presidente mais pressionava; QUE JAIR BOLSONARO queria uma atuação mais contundente do GENERAL PAULO SÉRGIO em relação à Comissão de Transparência das eleições montada pelo Ministério da Defesa; QUE JAIR BOLSONARO queria que o documento produzido fosse “duro”: QUE o grupo era composto pelo GENERAL PAZZUELLO, pelo PRESIDENTE DO PL VALDEMAR DA COSTA NETO, pelo MAJOR DENICOLE e por um grupo de pessoas que prestavam assessoramento tecnico: QUE nessa época após o segundo tumo, recebiam muitas informações de fraudes; QUE o presidente repassa as possíveis denúncias para os GENERAIS PAZZUELLO e PAULO SERGIO para que fossem apuradas; QUE o grupo tentava encontrar algum elemento concreto de fraude, mas a maloria era explicada por questões estatísticas: QUE as informações estatísticas foram tratadas pelo MAJOR DENICOLE: QUE O MAJOR DENICOLE era quem geralmente trazia os dados ao ex-presidente; QUE o grupo não identificou nenhuma fraude nas umas; QUE a única coisa substancial que encontraram foi a questão das umas antigas que ensejou a ação do PL; QUE o Senador HEINZ, que também integrava esse grupo, usava um documento do Ministério Publico militar que dizia que como o país estava em GLO, para garantia das eleições, o Senador entendia que as forças armadas poderiam pegar uma uma, sem autorização do TSE ou qualquer instancia judicial, para realização de testes de integridade; QUE o senador encaminhava esse entendimento tanto ao Colaborador, quanto ao ex-presidente JAIR BOLSONARO para que repassassem esse entendimento ao Ministro da Defesa; QUE o ex- presidente não encampou esse entendimento; QUE o ex-Diretor-Geral da PRF SILVINEI VAQUES era politizado; QUE ele comparecia a todos os eventos políticos; QUE ele esteve com o ex-Presidente por algumas ocasiões durante o período pré-eleitoral; QUE não informar o que tratavam; QUE a questão de compra de votos era um preocupação constante do ex-Presidente; que reclamava de maneira genérica; QUE não participava das reuniões entre o ex-Presidente e os Ministros e os Generais; QUE esse grupo tinha ligação com o Argentino; QUE quanto a parte mais radical, não era um grupo organizado, eram pessoas que se encontravam com presidente, esporadicamente, com a intenção de exigir uma atuação mais contundente do então Presidente; QUE uma dessas pessoas era FELIPE MARTINS, ex-assessor internacional do ex-presidente e ligado à área mais ideológica; QUE FELIPE MARTINS vinha acompanhado de um jurista, que não se recorda um nome; QUE o colaborador se recorda que o referido jurista escreveu livros sobre Garantias Constitucionais; QUE os encontros ocorreram em meados de novembro de 2022; QUE em um dos encontros o jurista também foi acompanhado de um padre; QUE foram mais de dois encontros dessas pessoas com o ex-Presidente JAIR BOLSONARO; QUE FELIPE MARTINS juntamente com esses juristas apresentaram um documento ao Presidente JAIR BOLSONARO, no Palácio da Alvorada; QUE o documento tinha várias páginas de “considerandos”, que retratava as interferências do Poder Judiciário no Poder Executivo e no final era um decreto que determinava diversas ordens que prendia todo mundo; QUE determina as prisões dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, dentre eles ALEXANDRE DE MORAES, GILMAR MENDES e outros; QUE determinava também a prisão do Presidente do Senado RODRIGO PACHECO e de outras autoridades que de alguma forma se opunham ideologicamente ao ex-presidente; QUE decretava novas eleições; QUE não dizia quem iria fazer, mas sim, o que fazer, QUE o ex-presidente recebeu o documento, leu e alterou as ordens, mantendo apenas a prisão do Ministro ALEXANDRE DE MORAES e a realização de novas eleições devido a fraude no pleito; QUE o colaborador teve ciência do documento quando FELIPE MARTINS apresentou ao colaborador o documento impresso e de forma digital para que fossem feitas as correções; QUE FELIPE MARTINS tinha uma versão digital em seu notebook, que levou para a reunião; QUE FELIPE MARTINS não alterou o documento, conforme pedido pelo então PRESIDENTE JAIR BOLSONARO, naquele momento; QUE alguns dias depois FELIPE MARTINS retomou juntamente com o jurista trazendo o documento alterado conforme solicitado pelo então PRESIDENTE JAIR BOLSONARO, no Palácio da Alvorada; QUE o presidente concordou com os termos ajustados e em seguida mandou chamar, no mesmo dia, os Generais, comandantes das forças; QUE participaram o ALMIRANTE GARNIER, GENERAL FREIRE GOMES e o BRIGADEIRO BATISTA JUNIOR; QUE nessa reunião com os Generais o presidente apresentou apenas os “considerandos” (fundamentos dos atos a serem implementados) sem mostrar as ordens a serem cumpridas (prisão do Ministro ALEXANDRE DE MORAES e a realização de novas eleições); QUE na reunião com as Generais, FELIPE MARTINS foi explicando cada item; QUE o colaborador participou da reunião, operando a apresentação no computador; QUE o ex-presidente queria pressionar as Forças Armadas para saber o que estavam achando da conjuntura; QUE queria mostrar a conjuntura do país: QUE o colaborador saiu da sala, não participando do restante da reunião QUE depois o GENERAL FREIRE GOMES relatou ao colaborador o conteúdo do que conversaram; QUE o ex-presidente apresentou o documento aos GENERAIS com intuito de entender a reação dos comandantes das forças em relação ao seu conteúdo; QUE o ALMIRANTE GARNIER, comandante da Marinha, era favorável a um intervenção militar, afirmava que a Marinha estava pronta para agir: QUE aguardava apenas a ordem do ex-presidente JAIR BOLSONARO; QUE no entanto, o ALMIRANTE GARNIER condicionava a ação de intervenção militar à adesão do Exército, pois não tinha capacidade sozinho; QUE o Brigadeiro BATISTA JUNIOR, comandante da aeronáutica, era terminantemente contra qualquer tentativa de golpe de Estado; QUE afirmava de forma categórica que não ocorreu qualquer fraude nas eleições presidenciais; QUE o GENERAL FREIRE GOMES, era um meio-termo dos outros dois Generais; QUE ele não concordava como as coisas estava sendo conduzidas; QUE no entanto, entendia que não caberia um golpe de Estado, pois entendia que as instituições estavam funcionando; QUE não foi comprovado fraude nenhuma; QUE não cabia às Forças Armadas realizar o controle Constitucional; QUE dizia que estavam “romantizando” o art. 142 da CF; QUE dizia que tudo que acontecesse seria um regime autoritário pelos próximos 30 anos, decorrente de um Golpe Militar, QUE o ex-Presidente teve várias reuniões com os Generais; QUE o ex- Presidente JAIR BOLSOANRO não queria que o pessoal saísse das ruas; QUE o ex- Presidente JAIR BOLSOANRO tinha certeza que encontraria uma fraude nas umas eletrónicas e por isso precisava de um clamor popular para reverter a narrativa; QUE o ex- Presidente estava trabalhando com duas hipóteses: a primeira seria encontrar uma fraude nas eleições e a outra, por maio do grupo radical, encontrar uma forma de convencer as Forças Armadas a aderir a um Golpe de Estado; QUE o ex-Presidente não interferia nos manifestantes que estavam nas ruas; QUE o ex-Presidente pediu apenas para que os caminhoneiros não parassem o país; QUE acredita que os militares não adeririam a uma ideia de golpe de Estado; QUE como não teve apoio dos Comandantes do Exército e da Aeronáutica, a proposta de FELIPE MARTINS não foi executada: QUE acredita que o ex- Presidente não assinaria esse documento; QUE as outras pessoas que integravam essa ala mais radical era composta pelo ex-ministro ONIX LORENZONE, pelo atual SENADOR JORGE SEIFF, o ex-ministro GILSON MACHADO, SENADOR MAGNO MALTA, DEPUTADO FEDERAL EDUARDO BOLSONARO, GENERAL MARIO FERNANDES (secretário executivo do General RAMOS); QUE GENERAL MARIO FERNANDES atuava de forma ostensiva, tentando convencer os demais integrantes das forças a executarem um golpe de Estado; QUE compunha também o referido grupo a ex- primeira dama MICHELE BOLSONARO; QUE tais pessoas conversavam constantemente com o ex- Presidente, instigando-o para dar um golpe de Estado; QUE afirmavam que o ex-Presidente tinha o apoio do povo e dos CACs para dar o golpe; QUE não sabe se essas pessoas levavam documentos para o ex-Presidente; QUE não presenciou todos os encontros dessas pessoas radicais com o ex-Presidente; QUE o GENERAL BRAGA NETO conversava constante com o ex-Presidente; QUE ele seria o elo entre os manifestantes e o ex-Presidente; QUE o GENERAL BRAGA NETO atualizava o ex-Presidente sobre as manitestações; QUE não sabe informar se o GENERAL BRAGA NETO tinha contato com AILTON BARROS; INDAGADO sobre pessoas que exerciam influência em relação às pessoas acampadas e que entraram no Palácio do Alvorada, responde QUE no dia 12/12/2022, após a prisão do CACIQUE SERERE, na saída do palácio da Alvorada, as pessoas de BISMARK e PAULO SOUZA, integrantes do canal do YouTube HIPÓCRITAS e OSWALDO EUSTAQUIO, com meo de também serem presos, ligaram para o ex-presidente JARI BOLSONARO; QUE JARI BOLSONARO mandou que autorizasem a entrada de BISMARK e PAULO SOUZA e OSWALDO EUSTAQUIO no Palácio da Alvorada; QUE a intenção era evitar que fossem presos; QUE após a advertência do colaborador de que a permanência de OSWALDO EUSTÁQUIO no Palácio da Alvorada poderia causar problemas, o ex-Presidente determinou que um carro da Presidência levasse OSWALDO EUSTÁQUIO para o local que estava hospedado em Brasilia/DF; QUE os integrantes do HIPÓCRITAS jantaram com o ex-Presidente no Palácio da Alvorada; QUE não se recorda se os referidos jornalistas dormiram no Palácio da Alvorada; QUE os integrantes do HIPÓCRITAS tinham contato direto com o ex-Presidente JAIR BOLSONARO; QUE entendiam que os CACs apoiariam o ex-Presidente em uma tomada de decisão, como um tropa civil em caso de um Golpe; QUE o Deputado Federal EDUARDO BOLSONARO tinha mais contato com os CACs.

Rayssa Motta e Fausto Macedo, os autores, são Jornalistas. Publicado originalmente pelo O Estado de S. Paulo, em 26.01.27