quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Sacola de dinheiro das emendas requer transparência

Que ao menos o nome do ‘padrinho’ e o destino das verbas sejam identificados publicamente

O plenário da Câmara dos Deputados — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

O vereador Francisquinho Nascimento quase conseguiu se livrar da prova. Quando os agentes da Polícia Federal chegaram a seu apartamento, em Salvador, na última terça-feira, ele atirou uma sacola pela janela. Deu azar. Os policiais recuperaram a sacola. Continha notas de R$ 200, R$ 100 e R$ 50, no valor exato de R$ 220.150,00.

Nascimento foi apanhado na Operação Overclean, coordenada pela Polícia Federal e pela Controladoria-Geral da União (CGU), órgão do governo federal. O objetivo era apurar um esquema de desvio de dinheiro de emendas destinado ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs). Segundo nota da CGU, investigações preliminares sugerem o possível desvio de R$ 1,4 bilhão em diversos contratos públicos.

Como a coisa funciona? Um deputado ou senador destina o dinheiro das “suas” emendas ao Dnocs. Algum órgão do ministério encaminha os recursos, obrigatoriamente. O dinheiro chega aos cofres do Dnocs e, nesse caso, parece ter sido usado não para obras, mas para encher o bolso de políticos e empresários.

Se fosse um caso isolado, já seria grave. Mas a investigação da CGU descobriu que R$ 5,5 bilhões de emendas foram destinados a organizações não governamentais. Numa análise por amostra, envolvendo dez organizações, a CGU verificou que pelo menos cinco entidades não tinham a menor condição de fazer nada, pareciam de fachada. A mesma investigação encontrou casos de obras não terminadas ou, pior, que nem começaram, mesmo já tendo recebido o dinheiro das emendas.

Claro que não se pode generalizar, e há mesmo pelo menos um ponto a favor do sistema de emendas. O parlamentar está mais perto das bases de seu estado, de modo que deve conhecer as necessidades da região. Mesmo assim, e mesmo que todo o dinheiro fosse bem utilizado, restaria um enorme problema para as finanças públicas.

Do Orçamento da União, 92% vão para despesas obrigatórias — basicamente, Previdência, pessoal e benefícios sociais. Com os restantes 8%, o governo federal mantém a máquina funcionando e investe. São as despesas discricionárias, entre as quais se incluem as emendas parlamentares, sobre as quais o Executivo não tem controle.

Segundo dados da Instituição Fiscal Independente, até setembro de 2024 a despesa discricionária total chegou a R$ 153 bilhões. E o gasto com as emendas parlamentares alcançou R$ 45,7 bilhões. O previsto para este ano todo passa dos R$ 50 bilhões. Em 2020, as emendas representavam 11,1% dos gastos discricionários. Neste ano, 17%.

O Orçamento da União é uma peça completa, montada de acordo com a orientação política do governo eleito, visando a atender as necessidades nacionais. Tem de ser aprovada pelo Congresso, que pode alterá-la, cortando certas despesas, acrescentando outras. É assim que funciona nas democracias. O Executivo propõe, o Legislativo aprova. O Congresso, portanto, já tem o poder sobre o Orçamento.

Mas deputados e senadores querem o que alguns líderes chamam de “Orçamento do Legislativo” — justamente aqueles R$ 50 bilhões, recursos para ser aplicados por cada parlamentar, conforme seu interesse político e eleitoral. É inédito o tamanho a que isso chegou. Há o sistema de emendas em alguns outros países, mas com valores mínimos.

Se não se consegue ao menos diminuir as emendas — a palavra final nisso é do próprio Congresso —, que ao menos o dinheiro seja aplicado com transparência e com critérios razoáveis. Que o nome do “padrinho” e o destino das verbas sejam identificados publicamente. E que o dinheiro seja liberado mediante a apresentação de um projeto mostrando como o recurso será aplicado.

É o que consta das regras estipuladas pelo ministro do STF Flávio Dino. Que foram mal recebidas no Congresso. O ministro também pediu que as emendas já pagas, nos últimos anos, fossem identificadas. O Congresso mandou dizer que, a esta altura, era impossível. Não é de estranhar, portanto, a bronca do ministro. Assim ele definiu:

— Bilhões de reais do Orçamento da Nação tiveram origem e destino incertos e não sabidos.

E querem continuar assim?

Carlos Alberto Sardenberg, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado original,ente n'O Globo, em 14.12.24

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Um general quatro estrelas na cadeia

Seja qual for o destino penal do general Braga Netto, sua prisão preventiva mostra a extensão da vergonha que o bolsonarismo causou às Forças Armadas

General Braga Netto na Polícia Federal, zona central do Rio, após ser preso

O País acordou ontem com a notícia da prisão de um general quatro estrelas da reserva, um desdobramento dramático do caso da suposta trama golpista contra o presidente Lula da Silva, investigada pela Polícia Federal (PF). É evidente que tudo ainda carece de maiores esclarecimentos, mas o episódio em si mesmo ilustra com clareza meridiana a dimensão da vergonha causada pelo bolsonarismo às Forças Armadas.

Por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), após consulta à Procuradoria-Geral da República (PGR), a Polícia Federal (PF) prendeu preventivamente o general de Exército da reserva Walter Braga Netto. O militar, segundo a PF, é suspeito de ser um dos líderes da tentativa de golpe de Estado urdida nos estertores do governo de Jair Bolsonaro para impedir a posse de Lula da Silva, plano que teria envolvido até o assassinato do atual mandatário, entre outras autoridades.

Moraes decretou a prisão preventiva de Braga Netto porque, ainda de acordo com a PF, ele estaria destruindo provas e, principalmente, coagindo testemunhas para tomar conhecimento do teor sigiloso do acordo de colaboração premiada firmado pelo tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro.

A serem verdadeiras essas acusações, haja vista que a prisão de Braga Netto foi ordenada por Moraes em grande medida pelos supostos novos elementos de prova que Mauro Cid teria fornecido ao STF em seu depoimento mais recente, prestado no dia 21 de novembro, está-se diante, de fato, de condutas típicas para a decretação da prisão preventiva. Por essa razão, Braga Netto foi mantido no cárcere após ser submetido à audiência de custódia, ocasião em que são verificadas as eventuais ilegalidades de uma prisão.

De todos os suspeitos de participar da intentona, Braga Netto, sem dúvida alguma, é o mais graduado a ser preso até agora. Acima dele só haveria o golpista maior, Jair Bolsonaro, o grande beneficiário do eventual sucesso daquele plano nefasto que teria sido colocado em marcha após sua derrota nas urnas em 2022, como aponta a PF. A regra no Brasil, como o passado demonstra, sempre foi o acobertamento de militares, da ativa e da reserva, suspeitos de terem cometido crimes comuns – à exceção, por óbvio, daqueles delitos cobertos pela Lei da Anistia, de 1979.

A prisão preventiva de Braga Netto, portanto, quebra essa rotina de leniência, para dizer o mínimo, com a apuração de crimes comuns envolvendo militares, fardados ou não, em que pese se tratar – e é fundamental frisar isso – de uma prisão cautelar, ou seja, decretada em sede de investigação, e não de antecipação de culpa nem muito menos de cumprimento de pena. Mas só isso, porém, já é algo inédito ao menos desde a redemocratização do País.

Se a prisão de outros militares de alta patente suspeitos de envolvimento na tentativa de golpe já não foram triviais, a de Braga Netto é histórica, na mais estrita acepção do vocábulo. Afinal, além de ele ser um general com quatro estrelas nos ombros a ir para a cadeia, sobretudo por suspeita de ter liderado uma tentativa de golpe de Estado, Braga Netto foi chefe do Estado-Maior do Exército, ministro da Casa Civil e da Defesa no governo Bolsonaro, candidato a vice na chapa do ex-presidente e, ademais, interventor na Segurança Pública do Rio de Janeiro, uma elevada posição de poder, malgrado o fiasco operacional da intervenção militar.

A prisão de um personagem como Braga Netto, alguém que, além de possuir o currículo acima, foi uma figura central na política brasileira nos últimos anos, é reveladora do desassombro com que membros do alto escalão do governo anterior parecem ter agido para se manter no poder a despeito da derrota eleitoral. Como sublinhamos nesta página há algumas semanas, o Brasil só terá paz quando todos os suspeitos de ter urdido o golpe de Estado forem julgados de acordo com as leis do mesmo Estado Democrático de Direito que tentaram abolir (ver Traidores da Pátria, 20/11/2024).

Desde a manhã de ontem, o general da reserva Walter Braga Netto viu consideravelmente reduzida a distância que o separa desse inevitável acerto de contas com a Justiça.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 15.12.24

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Mujica: 'Se você não tiver uma causa, a sociedade vai te enquadrar, e você vai passar a vida pagando contas'

"Uma narrativa falsa contra o Estado foi gerada aqui, porque não é o Estado que está falhando. 

O Estado é como uma caixa de ferramentas, não tem consciência. Quem está falhando são os seres humanos que administram o Estado.

Somos nós que não temos a cultura e a alma necessária para conduzi-lo bem.

Mas é legal dizer: "Ah, não, o Estado não presta". Nós é que não prestamos para administrá-lo!"

José Mujica nasceu em 20 de maio de 1935 em Montevidéu, no Uruguai

José "Pepe" Mujica aparece por uma porta, com as costas curvadas e o passo lento, mas com o desejo intacto de falar sobre suas paixões: a vida, a terra, a política...

Ele completou 89 anos em 20 de maio.

Na pequena sala, há uma luz fraca e estantes que se erguem do piso de cerâmica até o teto de zinco, transbordando de livros e lembranças de uma trajetória intensa.

O homem que na década de 1960 se juntou aos guerrilheiros Tupamaros, que mais tarde foi preso e sofreu tortura, que como presidente do Uruguai de 2010 a 2015 surpreendeu o mundo com seus discursos anticonsumo e sua vida austera, e que sobrevive a um câncer de esôfago, está sentado em uma poltrona.

"Tudo aconteceu comigo", reflete Mujica em entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

"Tenho que gritar: obrigado à vida."

Mujica diz que contar com a presença da esposa, a ex-senadora Lucía Topolansky, que conheceu quando era guerrilheira em 1971, é um "prêmio" na sua idade.

E também fala do "prêmio" que representou para ele a eleição de seu herdeiro político, Yamandú Orsi, como presidente do Uruguai em 24 de novembro, após uma grande votação do seu grupo político, o Movimento de Participação Popular (MPP).

A BBC News Mundo conversou com Mujica em sua chácara na zona rural de Montevidéu, onde paira no ar o aroma de jasmim, há caixas de milho e abóbora empilhadas, galos cantando e cachorros latindo.

BBC News Mundo - Como o senhor está se sentindo?

José Mujica - Um pouco cansado. Estou saindo de um tratamento que não sei quando vai acabar.

Fiz um tratamento contra o câncer que disseram ser muito eficaz, que havia eliminado (o câncer), mas fiquei com um buraco que precisa ser preenchido.

E, como sou velho, quase chegando aos 90 anos, a reprodução celular é muito lenta.

Por isso, não posso comer: como muito pouco pela boca, coisas pastosas. E me alimento com uma injeção por uma sonda pela manhã e outra à tarde. Vamos ver quando isso termina. Mas estou melhor do que antes.

BBC News Mundo - Há poucos dias, o senhor disse que está "lutando com a morte". Quão difícil é essa luta para alguém como o senhor, que já passou por quase tudo na vida?

Mujica - Sabe-se que a morte é inevitável. E talvez ela seja como o sal da vida.

Naturalmente, as chances de morrer se multiplicam com o passar dos anos. E se colocarmos a doença em cima disso...

Ela é uma senhora de quem não gostamos, e que não queremos, mas que inevitavelmente vai chegar em algum momento. Portanto, temos que nos resignar.

A morte 'é uma senhora de quem não gostamos, e que não queremos, mas que inevitavelmente vai chegar', diz Mujica. (Crédito da foto:Mariana Castiñeiras)

Todos os seres vivos são feitos para lutar pela vida: desde uma erva daninha, um sapo e até nós. Chega-se à conclusão de que isso serve para dar sabor à vida, pois, como dizia o velho Aristóteles: tudo o que a natureza faz é bem feito.

Eu teria que ser um crente fanático. Porque muitas vezes a morte estava rondando o leito onde eu estava. E consegui chegar até hoje.

E, apesar de todos os pesares, fiquei anos preso, tudo aconteceu comigo, e depois me tornei presidente.

Então, tenho que gritar: obrigado à vida.

Mas você tenta viver um pouco mais, não é? E bem, é isso que estou fazendo.

BBC News Mundo - O senhor diria que este é o momento mais difícil de todos pelos quais já passou?

Mujica - É provável que eu tenha vivido momentos mais difíceis, mas não estava ciente disso.

Uma vez levei um tiro em uma pista de boliche, mas era perto do Hospital Militar. Me levaram rapidamente. E o cirurgião de plantão era um companheiro. Dá para acreditar?

Me deram qualquer sangue, o que tinham em mãos, porque eu havia perdido muito sangue. E, no final, fui salvo.

BBC News Mundo - O senhor perdeu o baço aí...

Mujica - Perdi meu baço. Acho que deve ter sido o momento mais dramático que vivi, mas não tinha consciência disso.

Sei que me jogaram em algo, e eu fazia discursos bárbaros para eles: "Não me deixem morrer, sou um lutador social". Não tem nenhum sentido. Estava em choque.

BBC News Mundo - Que significado encontrou na vida?

Mujica - É a diferença notória que tem com as outras formas de vida. A vida humana, devido ao nosso desenvolvimento intelectual, nos permite em parte escolher uma causa para viver: dar um sentido à vida.

Esse é o prêmio de ter consciência. Mas não necessariamente o exercitamos. Às vezes, sim — às vezes, não.

Mujica foi libertado em 1985 pela ditadura militar uruguaia, depois de passar mais de 14 anos preso — ele foi submetido à tortura e tratamento desumano (Getty Images)

O que significa dar sentido à vida? É ter uma coisa principal que preencha os capítulos e as preocupações da nossa existência.

No meu caso, é o sonho de lutar por um mundo um pouco melhor. É uma preocupação sociopolítica.

Mas há tmbém a paixão dos cientistas, que passam 20 anos com uma molécula. Ou aqueles que cultivam uma arte.

Ter algo central como objetivo da nossa vida: muita gente faz isso, mas nem todo mundo faz.

Qual é o problema? Se você não definir um objetivo, uma causa, a sociedade de mercado vai te enquadrar e você vai passar a vida inteira pagando contas.

Em outras palavras, você é funcional para a mecânica do mercado, e acaba confundindo "ser" com "ter".

Agora, se você tem uma causa, isso é secundário, porque você vive pela causa.

BBC News Mundo - O senhor vem pregando contra o consumo há anos. Acha que é uma batalha perdida?

Mujica - Sim, por enquanto é uma semeadura intelectual.

A maior parte das nossas sociedades está sujeita à autoexploração, porque o que ganham tende a não chegar até elas, porque tudo é feito de tal forma que nunca chegue até elas.

E tem que conseguir mais, e trabalhar cada vez mais e mais, porque gasta cada vez mais. E com o que você paga? Com o tempo da sua vida, você gasta para produzir valor para poder pagar.

Quando sou livre? Quando escapo da lei da necessidade.

Se a necessidade me obriga a gastar tempo para obter meios financeiros com os quais tenho que pagar pelo consumo que tenho, não sou livre.

Sou livre quando dedico tempo da minha vida ao que gosto e ao que quero. Sim, porque é meu. É para isso que as pessoas têm menos tempo hoje em dia.

Costuma-se dizer: "Não quero que falte nada ao meu filho". Sim, mas idiota, você faz falta, porque nunca tem tempo para seu filho.

BBC News Mundo - Por onde passa a solução?

Mujica - Pela sobriedade no modo de viver.

BBC News Mundo - É algo individual, não uma mudança de sistema?

Mujica - Não pode ser imposto. Por isso digo que a única coisa que faço é semear.

Mas há também uma razão global.

Se todo o mundo subdesenvolvido chegar a consumir, nem precisa ser como os ianques, apenas como os europeus, o planeta não resiste.

Precisamos de três planetas. Não sou eu que digo isso - não há como viver em uma sociedade com tanto desperdício.

Podemos viver tranquilamente, mas se 8 bilhões de pessoas vão tomar banho em uma jacuzzi, precisamos de uma Amazônia. Você percebe? Não é possível.

A humanidade está desperdiçando uma quantidade absurda de coisas, e esse desperdício acaba se voltando contra nossa espécie. É um círculo vicioso.

Então, a sobriedade e a prudência são vantajosas por vários motivos.

Mas sei que estou em uma época em que as pessoas não vão me entender, porque a cultura do nosso tempo é uma conquista formidável do capitalismo.

Criou-se uma cultura subliminar em que todos nós temos que ser compradores compulsivos.

Todos os economistas do mundo estão sempre desesperados para que a economia cresça. Isso é imposto, tudo o que digo é contrário a isso.

BBC News Mundo - O senhor acha que vai haver um ponto de ruptura?

Mujica - Vamos ter que pagar pelo que estamos fazendo.

Não vou estar vivo, mas não se pode fazer nada acima da Terra; a natureza nos cobra. E ela começa a nos cobrar.

Mujica foi presidente do Uruguai de 2010 a 2015 e chamou a atenção por seu discurso anticonsumo e estilo de vida austero, além de reformas como a legalização da maconha (Getty Images)

A mudança climática não é insignificante. Este provavelmente vai ser o ano mais quente para nós, para o pequeno Uruguai.

BBC News Mundo - A natureza continua a te surpreender?

Mujica - A natureza nos deixa de boca aberta quando a observamos. Estou extasiado, para ser sincero.

Tem gente no campo que diz: 'Que tristeza, que solidão'.

É preciso ter olhos para enxergar.

Todas as formas de vida que lutam, indo e vindo, é uma coisa assustadora. Desde os pequenos vermes e as minhocas até os pássaros e tudo o que está acontecendo ao redor.

BBC News Mundo - Desde quando o senhor tem essa admiração pela natureza?

Mujica - Talvez desde sempre, porque fui criado em uma chácara, e aprendi a gostar dela e da terra.

Hoje estou ferrado, mas todos os dias, se posso, ando um pouco no trator, porque me encontro comigo mesmo.

Além disso, quando estava na prisão, passei quase sete anos sem livros, em uma sala menor do que esta. Me transferiam de quartel para quartel. Então, acabei contraindo o vício da misantropia, de falar comigo mesmo.

Isso era como uma autodefesa, nas condições em que eu estava, para não perder o juízo. Mas isso permaneceu comigo. Virou um hábito.

Então, fico fazendo as coisas, pensando constantemente e remoendo na minha cabeça. Você percebe? Isso transformou meu jeito de ser.

Tampouco posso escapar do que vivi. Como faço para sair disso agora?

BBC News Mundo - O senhor continua lendo?

Mujica -Sim, continuo lendo e leio sobre tudo. Veja... (apontando para o livro Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial, do historiador israelense Yuval Noah Harari).

BBC News Mundo - Harari. O senhor conversou com ele uma vez, não foi?

Mujica - Sim, conversei. Me abalou.

BBC News Mundo - Por quê?

Mujica - Me lembro de ele me dizer: "Tenho medo de que a humanidade não tenha tempo de limpar a bagunça que fez".

Como preocupação intelectual, é uma bomba-relógio. Lembro que ele encerrou a conversa com isso.

BBC News Mundo - E o que o senhor acha?

Mujica - Tenho uma sensação parecida com a dele, e espero estar errado.

BBC News Mundo - O senhor não acredita na capacidade do ser humano de se adaptar?

Mujica - Sim, acredito na capacidade, mas o fato é que é preciso adaptar o meio ambiente.

O medo é que a humanidade caminhe para uma espécie de Holocausto ecológico. Não porque ela não saiba; ela sabe há mais de 30 anos o que está acontecendo, e sabe o que precisa fazer.

Os cientistas disseram isso em Kyoto há cerca de 32 anos, e não estavam errados: os fenômenos adversos vão ser mais frequentes, mais profundos e maiores.

É o que está acontecendo.

De repente, há uma grande seca... ou de repente caem 400 milímetros de chuva em um curto espaço de tempo.

Mujica diz que ter sido criado em uma chácara despertou sua admiração pela natureza. Hoje ele continua morando na zona rural (Getty Images)

E eles também disseram o que precisava ser feito. Portanto, não se trata de falta de consciência. Não foi a ciência que falhou, foi a política que falhou, que não levou em consideração o que a ciência estava indicando.

O que vai acontecer? Não sei. Mas quando você tem um mandatário como (Donald) Trump, que nega as evidências, ou como (Javier) Milei e assim por diante, você diz: socorro!

BBC News Mundo - O senhor está preocupado com a reeleição de Trump e com o fenômeno dos movimentos da direita radical em todo o mundo?

Mujica - Sim, é claro. E especialmente esse negativismo.

Uma narrativa falsa contra o Estado foi gerada aqui, porque não é o Estado que está falhando. O Estado é como uma caixa de ferramentas, não tem consciência. Quem está falhando são os seres humanos que administram o Estado.

Somos nós que não temos a cultura e a alma necessária para conduzi-lo bem.

Mas é legal dizer: "Ah, não, o Estado não presta". Nós é que não prestamos para administrá-lo!

BBC News Mundo - Como a esquerda deve enfrentar estes fenômenos?

Mujica - Eu teria que revisar muitas coisas. Essas coisas que estou dizendo geralmente não são ditas pela esquerda. Ela defende o Estado com fanatismo, o que equivale a dizer que o Estado é perfeito. Mentira, porque nós não somos perfeitos.

Para ser um profissional da área médica ou de engenharia, é preciso passar vários anos na universidade, mas para ser um senador ou deputado ninguém te pede nada. Somos um bando de burros, muitas vezes. Como permitimos isso?

BBC News Mundo - Mas a alternativa seria impedir a ascensão de pessoas como você, que chegou ao poder sem passar pela universidade...

Mujica - Claro! Estou falando sobre o que vivenciei.

Mas não se trata de ir para a universidade; tem que haver uma medida de experiência, para ser comprovado, mais ou menos.

BBC News Mundo - A questão é quem mede...

Mujica - Acredito que a democracia, institucionalmente, está meio em crise porque o sistema representativo não pode representar as complexidades da sociedade atual.

Porque o desenvolvimento tecnológico e científico está tornando os diferentes setores cada vez mais complexos. E não é possível resumi-los em um Parlamento, em uma equipe de governo.

Há um sentimento no mundo inteiro, e nos países de democracia representativa, de uma desvalorização da democracia. Se agarram à democracia, e não se agarram aos pontos fracos e em como podemos superá-los.

'Dirigir o trator, uma atividade antiga de Mujica, continua sendo um de seus prazeres diários: 'Encontro comigo mesmo' (Getty Images)

A democracia é o melhor sistema que inventamos até agora, mas é uma porcaria, porque nos promete legalmente algo que está longe de ser concretizado.

Somos iguais perante a lei, sim, mas não somos iguais perante a vida: há alguns que são mais iguais.

Apesar de tudo isso, precisamos defender a democracia, porque até agora é o melhor que conseguimos alcançar; como disse (Winston) Churchill, "a melhor porcaria".

Como hipótese, vejo que no futuro diferentes governos vão ter de coexistir na sociedade, com um governo central, que não diz o que eles devem fazer, mas impede o que não devem fazer.

As questões de saúde vão ter um governo, as questões de educação vão ter outro. Porque são necessárias pessoas especializadas em diferentes setores, e não é possível resumir tudo em um único organismo.

Pelo menos, é o que indicam os gigantes transnacionais, que são verdadeiras equipes de gestão.

É uma hipótese, posso estar errado.

Vimos isso na pandemia.

Tínhamos o governo e formamos uma equipe de especialistas para nos assessorar. E, na realidade, esses caras deveriam estar no comando, não o governo e nós, porque não entendíamos absolutamente nada do que estava acontecendo.

BBC News Mundo - O que significa para o senhor ser de esquerda no mundo de hoje?

Mujica - É simples, você vê isso na história do Uruguai.

Nos últimos 40 anos de democracia, os salários não chegaram a aumentar 13% nos 25 anos em que os partidos conservadores governaram. E nos 15 anos em que a Frente Ampla governou, aumentaram 87%.

A diferença está na distribuição. Não é radical, não é uma mudança histórica, é uma mudança de distribuição.

BBC News Mundo - O senhor comentou isso no dia da eleição, e alguém respondeu que a Frente governou durante um período de boom das matérias-primas que permitiu um enorme impulso para a economia...

Mujica - Sim, isso foi verdade de 2005 a 2009, mas depois eclodiu a crise europeia. As coisas começaram a mudar. No entanto, os salários aumentaram.

BBC News Mundo - Quando começamos esta conversa, o senhor disse que teria que ser crente. A doença que superou fez com que o senhor olhasse para a religião de uma maneira diferente?

Mujica - Não, eu respeito as religiões até morrer. Porque de 60 a 65% da humanidade acredita em algo, e quem sou eu para ignorar essa realidade?

Minha explicação: é o amor pela vida, não podemos aceitar a morte e temos que inventar um além e tudo mais. Precisamos disso para viver.

Acredito que a vida é a aventura das moléculas, que não há nada para trás nem pela frente. O inferno e o paraíso é o que estamos vivendo.

Mas essa é a minha maneira de pensar, não é a da maioria. E tenho que respeitar a maioria.

BBC News Mundo - É reconfortante estar ao lado da sua companheira de vida, Lucía, nesta fase?

Mujica - Ah, é um prêmio. Se não fosse por Lucía, estaria sem nada.

BBC News Mundo - Por quê?

Mujica - Porque Lucía é muito mais que uma companheira. Ela cuidou de mim, me bancou e muito mais.

Sou um velho meio insuportável, e tenho consciência disso. Na melhor das hipóteses, sou meio irascível.

Não somos iguais, homens e mulheres, felizmente. Temos uma dependência da feminilidade.

E o amor na juventude é uma coisa. Mas, na minha idade, o amor é um doce hábito, é a maneira de evitar a solidão.

Recebi um prêmio, porque tenho quase 90 anos e ela tem cerca de 80, e somos autossuficientes. E juntos. Isso não é comum no mundo de hoje.

Aqui não tem trabalhadora doméstica, não tem Maria, não tem ninguém. Aqui somos dois idosos que se viram e convivem.

Mas tenho consciência de que devo grande parte da minha vida hoje a ela. Porque ela não é companheira; é enfermeira, é tudo.

'Na minha idade, o amor é um doce hábito', diz Mujica ao falar da esposa, Lucía Topolansky (Crédito da foto: Mariana Castiñeiras)

BBC News Mundo - O que significa esta vitória de Orsi, a quem o senhor impulsionou na carreira política?

Mujica - Para mim, pessoalmente, é um prêmio. Meus últimos 40 anos de militância estão resumidos nisso. E surge na reta final, quando estou fora da competição.

É um prêmio, se preferir, um prêmio de consolação, porque está chegando ao fim da partida. Mas, ainda assim, um prêmio.

Sempre achei que o melhor líder não é aquele que faz mais; é aquele que deixa um grupo que o supera com vantagem.

Passei a vida toda tentando promover e dar a eles oportunidades, porque tenho consciência de que as causas sociais e políticas são mais longas do que nossa vida.

E que a única maneira de terem uma certa validade é assimilando pessoas novas para levantar as velhas bandeiras e readaptá-las às conjunturas em que vivem.

BBC News Mundo - O que o senhor vai fazer agora? Já pensou no papel que vai desempenhar no governo de Orsi?

Mujica - Não, meu papel é dar a ele alguns conselhos.

Outro dia, ele veio bater um papo, e contei a ele um conselho que Alejandro Atchugarry (falecido ex-senador e ex-ministro do Partido Colorado), de quem éramos muito amigos, havia me dado.

Ele me pega em uma pista de boliche e me diz: "Olha, Pepe, agora que você se tornou presidente, não vai assinar nenhum documento que não tenha sido revisado por um bom advogado".

BBC News Mundo - Foi esse o conselho? Alguém poderia pensar que foi algo filosófico...

Mujica - Não, não, foi muito específico.

Porque na Presidência você tem centenas de papéis para assinar. A maior parte é bobagem, mas você não tem tempo para ler; você assina como um autômato.

Podem colocar uma casca de banana pra você escorregar.

E também disse a ele: "Consulte e converse com todos, mas certifique-se de que tenham votos mesmo, para que você não fique preso ao aparato de liderança de pessoas que não têm nem sequer o voto do papagaio. Como estamos em um regime representativo, ouça as pessoas que realmente têm votos, sejam elas amigas ou adversárias".

BBC News Mundo - O senhor falou do "prêmio" pela votação no Uruguai. Mas a nível internacional você teve muitos reconhecimentos. Qual você diria que é o seu legado, e como acha que vai entrar para a história?

Mujica - Primeiro, a história não existe. O que existe é um pouco de historieta. Porque as formigas vivem há muito mais tempo do que os seres humanos, e vão continuar vivendo quando os humanos não estiverem mais vivos.

Por isso, a história é relativa. É uma convenção humana, mas diante do jogo infinito da natureza, não é nada.

Em segundo lugar, meu legado não é nada, os companheiros que continuam lutando.

Depois sei que sou um velho meio maluco, porque filosoficamente sou um estoico pelo meu modo de vida e pelos valores que defendo. E isso não cabe no mundo de hoje, sou consciente disso.

Algumas pessoas me dizem: "você é marxista". Não, o estoicismo é mais antigo que o cristianismo, dá um tempo. É uma corrente antiga de filosofia, uma concepção de vida. É por isso que vivo com sobriedade.

E, como fui presidente, eles vêm aqui, veem esta casinha e me admiram. Mas não me seguem de maneira alguma.

BBC News Mundo - Não seguem seus hábitos...

Mujica - Claro que não. Então, eles me admiram. Dizem: 'Ele é coerente'.

Mas não faço isso pelo mundo; faço isso por mim. É a minha forma de defender a liberdade. Não quero perder tempo pagando parcelas.

Então, tudo isso vai ficar a cargo da organização política a que pertenço. Quando eu morrer, tudo permanece, e eles fazem o que quiserem. Tchau, acabou.

'Como fui presidente, eles vêm aqui, veem esta casinha e me admiram', diz Mujica (Getty Images)

BBC News Mundo - Olhando para trás, há algo importante que gostaria de ter feito diferente?

Mujica - Ah, sim, um monte de coisas.

É inconcebível que no Uruguai existam pessoas que tenham dificuldade para comer. E eu também tenho responsabilidade nisso. Poderia e deveria ter feito mais.

É um país produtor de alimentos, somos meia dúzia de gatos pingados, não faz sentido.

Sim, haveria coisas a serem feitas.

Gerardo Lissardy, o autor, é Jornalista. Publicado pela BBC News Mundo, em 1.12.24

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Como era plano de militares para dar golpe e matar Lula, Alckmin e Moraes, segundo a PF

 A Polícia Federal realizou uma operação na manhã de terça-feira (19/11) para cumprir mandados de prisão e busca e apreensão contra suspeitos de planejar um golpe de Estado no final de 2022 para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Alckmin, Lula e Moraes são citados em documentos sobre um possível plano para golpe de Estado (Getty Images)

Cinco pessoas foram presas com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF). Quatro são militares do Exército, integram forças de operações especiais e são conhecidos como "kids pretos".

Foram presos o general de brigada da reserva Mario Fernandes, o tenente-coronel Helio Ferreira Lima, o major Rodrigo Bezerra Azevedo e o major Rafael Martins de Oliveira.

O quinto indivíduo que teve a prisão decretada foi o policial federal Wladimir Matos Soares.

Dessa lista, o nome de Mario Fernandes é um dos mais conhecidos. Ele atuou como secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência no governo de Jair Bolsonaro e também exerceu a função de assessor do deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ), mas foi afastado do posto por determinação do STF.

Nos documentos que embasam a decisão divulgada nas últimas horas, estão detalhadas todas as evidências — trocas de mensagens por diferentes aplicativos, documentos, fotos, áudios, entre outros — e o trabalho de investigação que relacionou esse material.

Mas alguns nomes de documentos ou operações clandestinas que foram descobertas pela PF chamaram a atenção.

Intitulados "Copa 2022" e "Punhal Verde Amarelo", os planos envolviam o monitoramento, a prisão ilegal e até uma possível execução de três personagens centrais nessa história: Alexandre de Moraes, ministro do STF e então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE); Lula, à época presidente eleito; e Geraldo Alckmin (PSB), vice-presidente eleito.

Rafael Martins de Oliveira e Hélio Ferreira Lima teriam participado de uma reunião em 12 de novembro na casa do general Braga Netto, na companhia de Mauro Cid.

Braga Netto foi candidato à vice-presidência na chapa derrotada de Jair Bolsonaro em 2022.

Já Mauro Cid foi ajudante de ordens de Jair Bolsonaro durante a presidência e atualmente é delator.

Após o encontro em novembro, Oliveira teria enviado a Cid um documento em formato Word intitulado "Copa 2022" que detalhava as necessidades logísticas e financeiras para realizar a operação planejada para 15 de dezembro.

Um documento encontrado nos arquivos de Mário Fernandes planejava também instituir um "gabinete institucional de gestão da crise" que entraria em operação em 16 de dezembro de 2022, dia seguinte à operação "Copa 2022". Este gabinete, segundo a PF, seria chefiado pelo general Augusto Heleno e teria Braga Netto como coordenador-geral.

Mauro Cid prestou novo depoimento à PF na terça-feira (19/11). Segundo a CNN Brasil, ele negou que soubesse do plano para assassinar Lula, Alckmin e Moraes.

A PF apontou inconsistências no depoimento, e caberá a Alexandre de Moraes, do STF, avaliar se os benefícios ligados ao acordo de delação devem ser anulados por isso.

A operação 'Copa 2022'

Segundo documento do STF citando a apuração da PF, os investigados tinham "a finalidade de impedir a posse do governo legitimamente eleito e restringir o livre exercício da Democracia e do Poder Judiciário brasileiro".

Para isso, eles colocaram em marcha uma operação que teve "auge a partir de novembro de 2022" e avançou até o mês de dezembro, "como parte de plano para a consumação de um golpe de Estado, em uma operação denominada pelos investigados de 'Copa 2022'".

Ainda de acordo com a investigação, tal operação tinha "elementos típicos de uma ação militar planejada detalhadamente, porém, no presente caso, de natureza clandestina e contaminada por finalidade absolutamente antidemocrática".

Em 15 de novembro de 2022, o major Rafael Martins de Oliveira encaminhou para Cid, via WhatsApp, um documento protegido por senha intitulado "Copa 2022".

"Pelo teor do diálogo, seria uma estimativa de gastos para subsidiar, possivelmente, as ações clandestinas, que seriam executadas durante os meses de novembro e dezembro de 2022", aponta a petição no STF.

Esse mesmo nome, "Copa 2022", foi usado posteriormente como título de um grupo criado no Signal, um aplicativo de mensagens.

Esse grupo era composto de seis usuários — e cada um deles recebeu um país como codinome "para não revelarem sua identidade", segundo a PF.

Os codinomes escolhidos foram: Alemanha, Áustria, Brasil, Argentina, Japão e Gana.

Vale destacar que os chips dos números de celulares que aparecem no grupo de mensagens estavam cadastrados em nomes de terceiros, os quais se encontravam em outras regiões do país.

O documento do STF aponta que "as mensagens trocadas entre os integrantes do grupo 'Copa 2022' demonstram que os investigados estavam em campo, divididos em locais específicos para, possivelmente, executar ações com o objetivo de prender o ministro Alexandre de Moraes".

Um exemplo: no dia 15 de dezembro de 2022 às 20h33, a pessoa associada ao codinome Brasil informa um dos locais em que estava atuando.

Ele diz: "Estacionamento em frente ao gibão carne de sol [um restaurante]. Estacionamento da troca da primeira vez".

Em seguida, a pessoa associada ao codinome Gana informa que já estava no local combinado: "Tô na posição".

A troca de mensagens continua até que, às 20h57min, a pessoa de codinome Áustria diz: "Tô perto da posição. Vai cancelar o jogo?".

Segundo a PF, ele possivelmente queria saber se a ação contra Moraes seria cancelada.

Cerca de dois minutos depois, Japão, o suposto líder do grupo, respondeu: "Abortar... Áustria... volta para local de desembarque... estamos aqui ainda..."

A investigação da PF cruzou as informações fornecidas pelos envolvidos e também dados de chips de celular, de aluguel de carros e outras fontes para concluir que o grupo monitorava Moraes.

"A análise [...] permite concluir que é plenamente plausível que a pessoa de codinome Gana estivesse próxima a residência funcional do ministro Alexandre de Moraes."

O uso de termos específicos do ambiente militar e o detalhamento das ações sugere, de acordo com a investigação, que os envolvidos tinham treinamento e especialização em operações especiais.

O trabalho da PF apontou que o major Rafael Martins de Oliveira seria o líder da operação "Copa 2022".

Algumas das mensagens foram enviadas por Mauro Cid (à esquerda), ajudante de ordens de Bolsonaro (Reuters)

'Punhal Verde Amarelo'

A PF aponta que um documento com o plano do "Punhal Verde Amarelo" foi impresso por Fernandes no Palácio do Planalto em 9 de novembro de 2022.

Nessa mesma ocasião, os aparelhos telefônicos de outros investigados — Rafael Martins de Oliveira e Mauro Cid — também estavam conectados à rede que cobre o Palácio do Planalto.

Depois, esses papéis teriam sido levados ao Palácio da Alvorada, residência do então presidente Bolsonaro.

"O planejamento 'Punhal Verde e Amarelo' evidencia que, no tabuleiro das intenções antidemocráticas, vidas humanas eram descartáveis, inclusive de eventuais militares envolvidos na ação", diz o documento do STF.

No relatório, a PF diz que o documento tinha "características terroristas", no qual constam "todos os dados necessários para a execução de uma operação de alto risco".

"O plano dispõe de riqueza de detalhes, com indicações acerca do que seria necessário para a sua execução, e, até mesmo, descrevendo a possibilidade da ocorrência de diversas mortes", diz a PF.

Há, por exemplo, menções ao arsenal que seria utilizado na operação — que incluiria pistolas e armas comumente usados por policiais e militares, mas também armamentos de guerra mais pesados, como metralhadoras e lança-granadas.

A investigação aponta que, no documento, o codinome "Jeca" refere-se a Lula.

"Para execução do presidente Lula, o documento descreve, considerando sua vulnerabilidade de saúde e ida frequente a hospitais, a possibilidade de utilização de envenenamento ou uso de químicos para causar um colapso orgânico", revela a PF.

Já "Joca" seria Alckmin.

"Isso porque o texto aponta que na inviabilidade do '01 eleito', ou seja, Lula, 'sua neutralização extinguiria a chapa vencedora'. Como, além do presidente, a chapa vencedora é composta, obviamente, pelo vice-presidente, é somente na hipótese de eliminação de Geraldo Alckmin que a chapa vencedora estaria extinta".

Há ainda a menção a um terceiro nome, "Juca", descrito como "iminência parda do 01 [possivelmente Lula] e das lideranças do futuro gov [governo]", mas a PF não conseguiu identificar quem seria essa pessoa.

Já para o assassinato de Moraes, "foram consideradas diversas condições de execução", "inclusive com o uso de artefato explosivo e por envenenamento em evento oficial público", diz documento do STF, mencionando investigação da PF.

Uma das reuniões de planejamento da operação teria acontecido na casa do general Braga Netto, candidato à vice-presidente na chapa de Bolsonaro (Getty Images)

Reações

Após a divulgação dos fatos, autoridades e figuras públicas deram declarações.

O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Passos Rodrigues, disse que comunicou Lula e Alckmin pessoalmente sobre o que havia sido encontrado — e o presidente reagiu com "surpresa e indignação".

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), classificou como "extremamente preocupante" o fato de um grupo tramar os assassinatos de Moraes, Lula e Alckmin.

"Não há espaço no Brasil para ações que atentam contra o regime democrático, e menos ainda, para quem planeja tirar a vida de quem quer que seja. Que a investigação alcance todos os envolvidos para que sejam julgados sob o rigor da lei", declarou ele.

Ainda no Senado, Flávio Bolsonaro (PL-RJ), saiu em defesa dos investigados.

"Quer dizer que, segundo a imprensa, um grupo de 5 pessoas tinha um plano pra matar autoridades e, na sequência, eles criariam um 'gabinete de crise' integrado por eles mesmos para dar ordens ao Brasil e todos cumpririam?", escreveu ele no X (o antigo Twitter).

"Por mais que seja repugnante pensar em matar alguém, isso não é crime. E para haver uma tentativa é preciso que sua execução seja interrompida por alguma situação alheia à vontade dos agentes. O que não parece ter ocorrido", argumentou o senador.

Até a última atualização desta reportagem, o ex-presidente Bolsonaro e o ex-candidato a vice-presidente Braga Netto não haviam se pronunciado sobre o caso.

Editado e publicado originalmente por BBC News Brasil, em 19.11.24. Atualizado em 20.11.2024.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O cerco se fecha em torno de Bolsonaro

Apurações sobre plano para matar autoridades se aproximam um pouco mais a cada etapa de nomes do círculo mais próximo do ex-presidente, como Braga Netto e Augusto Heleno

Augusto Heleno, Mauro Cid e Braga Netto — Foto: Agência O Globo

Se, na semana passada, o ataque de um extremista à Praça dos Três Poderes foi o ato tresloucado que explodiu as conversas para uma anistia aos golpistas do 8 de Janeiro, as revelações estarrecedoras desta terça-feira sepultam qualquer tentativa de minimizar as tentativas de supressão da democracia naquele dia e nos meses que o antecederam. Os subordinados diretos de Jair Bolsonaro urdiram o assassinato de autoridades de primeiro escalão da República para manter o ex-capitão no poder.

A gravidade do que se tem até aqui é inaudita. Mas, como as investigações insistem em demonstrar, não é possível assegurar que tenhamos chegado a todos os fatos e a todos os envolvidos na trama. Os novos depoimentos do tenente-coronel Mauro Cid — personagem que permitiu que se desenrolasse o fio da meada da tentativa de melar a eleição e empastelar a democracia — e também dos cinco presos ontem mostrarão quem mais estava no plano, a mando de quem e com que grau de anuência e deliberação de Bolsonaro e de seus ministros mais próximos.

Como informei em meu blog, a prisão do ex-ministro da Defesa Walter Braga Netto ainda não foi pedida, mas por excesso de zelo da Polícia Federal em preencher os requisitos técnicos e jurídicos para embasá-la. Até aqui, a evolução das investigações tem se dado de fora para dentro, descrevendo círculos que vão ficando menores, até chegar ao núcleo decisório e político do golpismo.

Na operação de ontem, se chegou pela primeira vez à prisão de um general da reserva, Mário Fernandes, mas ainda com menos poder e proximidade com Bolsonaro que Braga Netto ou Augusto Heleno, de quem as apurações se aproximam um pouco mais a cada etapa. Diante do que veio à tona até aqui, com um plano impresso nas dependências do Palácio do Planalto em que se admitia a eliminação do então presidente eleito Lula, do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, é impossível dizer se haveria um limite ao que os bolsonaristas inconformados com a derrota estavam dispostos a perpetrar.

O ministro Paulo Pimenta foi feliz na escolha da palavra: foi por um detalhe que o Brasil, menos de 40 anos depois de reconquistar sua democracia, não assistiu a uma nova quartelada para suprimi-la. A extensão das tratativas e a abundância de rastros deixados explicam o nervosismo que se abateu sobre Bolsonaro, familiares e aliados nos últimos meses, desde a mobilização para o reiterado sequestro do Sete de Setembro para pregar contra o Judiciário até a campanha indecente pela injustificável anistia aos bagrinhos do 8 de Janeiro — mirando, evidentemente, não neles, mas nos fardados e em seus superiores, que estavam mergulhados até a cabeça na articulação para assassinar adversários e reinstalar o arbítrio no país.

Muito se tem discutido, também neste espaço, a respeito da extensão dos inquéritos sob a relatoria de Alexandre de Moraes. É possível encontrar argumentos jurídicos para questionar o fato de, sendo vítima dessa e de outras tramas sob investigação, ele continuar relatando os inquéritos. Nada disso, no entanto, é capaz de desviar o debate do que é central: não fosse a atuação firme e articulada da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e do Judiciário, a democracia teria soçobrado.

A Justiça formou sucessivas barreiras, primeiro no TSE, depois no Supremo, às ações do ex-presidente para se perpetuar no poder, primeiro tentando evitar as eleições de 2022 , depois com as maquinações que até aqui já têm as digitais de nomes de alta patente de seu entorno para impedir a diplomação, a posse e o governo de Lula.

O inquérito da tentativa de golpe pré-8 de Janeiro será concluído até o fim do ano. Não só não haverá anistia, como parece claro que os próximos alvos estão num círculo ainda mais restrito e nuclear.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 20.11.24

Depoimento de general é visto como ‘tiro de misericórdia’ em Bolsonaro e o fim da agonia do Exército

Ao confirmar a minuta do golpe, Freire Gomes entregou à Polícia Federal informações contra o ex-presidente com o peso de terem sido fornecidas por quem comandou a Força Terrestre

O presidente da República, Jair Bolsonaro participa das comemorações do Dia do Soldado, no Quartel-General do Exército, em Brasília, ao lado dos comandantes das Forças (da esq. para dir.), general Freire Gomes, almirante Almir Garnier e brigadeiro Carlos Baptista Júnior Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

O depoimento do general Marco Antonio Freire Gomes à PF é visto como o “tiro de misericórdia” contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. Não só pelas informações que revela, esclarece ou confirma, mas também pelo significado que tem a palavra do ex-comandante do Exército. Ela traz parte do peso institucional da voz do Grande Mudo da República. E a expectativa de ser o fim da agonia para a Força Terrestre.

Freire Gomes confirmou não só a discussão sobre a “minuta do golpe” com Bolsonaro e a participação em reuniões no Palácio do Planalto, onde a tentativa de subverter a ordem democrática era planejada. Ele corroborou o depoimento do tenente-coronel Mauro Cid, chefe da Ajudância de Ordens da Presidência da República, que assinou um acordo de delação com a Polícia Federal.

Cid atualizava o general sobre as discussões no Planalto. Às 15h30 do dia 9 de dezembro de 2022, ele contou que Bolsonaro fora pressionado “por vários atores a tomar uma medida mais radical”: as prisões dos ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do STF, além do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O tenente-coronel asseverou, no entanto, que Bolsonaro permanecia “na linha do que fora discutido com os comandantes das Forças e com o ministro da Defesa (Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira)”. “Hoje, ele mexeu muito naquele decreto, né. Ele reduziu bastante. Fez algo mais direto, objetivo e curto e limitado.”

Ouvido como testemunha, o general respondeu a todas as perguntas durante mais de oito horas. Contou que não desmontou os acampamentos em frente ao Exército por causa de Jair Bolsonaro. O general vivia um drama pessoal. Sua mãe, Maria Freire Gomes, estava enferma ao mesmo tempo em que o filho enfrentava outra situação que o deixava atormentado: as pressões do governo para que embarcasse em uma aventura. Gomes sabia que a maioria ordeira e silenciosa no Exército era contrária à bagunça institucional, que levaria à divisão da instituição, tão necessária ao golpe.

Em agosto de 2022, Freire Gomes pediu aos subordinados que os contatos com jornalistas, empresários e políticos ficassem restritos. Tentava afastar o Exército do ambiente polarizado da campanha eleitoral e fechar as portas dos quartéis para as vivandeiras que rondaram os bivaques em 2018. Em novembro, viu-se enredado no movimento nascido entre bolsonaristas que tinha o objetivo de emparedar Luiz Inácio Lula da Silva: passar o comando das Forças aos indicados pela nova gestão ainda sob Bolsonaro, como forma de mostrar que ninguém prestaria continência ao “ladrão”, como então se referiam ao presidente eleito.

No Planalto, acusavam o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, então comandante da Aeronáutica, de ter deixado vazar a informação, o que fez fracassar a trama – só o comandante da Marinha, Almir Garnier, que teria se colocado à disposição do golpe, se recusaria a comparecer à posse de seu sucessor, o almirante Marcos Olsen. Houve ainda a carta dos comandantes das Forças, em 11 de novembro, na qual diziam condenar excessos nas manifestações após o voto bem como as restrições à liberdade de expressão dos manifestantes que se aglomeravam então em frente aos quartéis.

O documento parecia dar aval aos que pediam a “intrervenção militar”. Freire Gomes afirmou que os acampamentos não foram desfeitos em razão de Bolsonaro. No dia 29 de dezembro, o comandante militar do Planalto, general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, mandou desmontar as barracas em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília. Não avisou Freire Gomes. Quando soube da ação do subordinado, Gomes telefonou para Dutra e o chamou de “maluco”. E cancelou a ordem.

É que o comandante tinha receio de que Bolsonaro usasse o incidente para justificar uma ruptura. Ou nomear outro general para seu lugar, que decidisse levar adiante o plano do golpe. Seus colegas de Alto Comando do Exército (ACE) sabiam que Freire Gomes não estava entre os mais decididos apoiadores da ideia de se garantir a legalidade, mas confiavam que ele se manteria com a maioria. De fato, 11 dos 16 generais do ACE não admitiam a hipótese de uma ruptura institucional para impedir a posse de Lula.

Os companheiros de Freire Gomes afirmam agora que, se ele entregasse Bolsonaro à Justiça ou denunciasse o golpe, não teria como provar a trama e seria ele mesmo destituído. Mesmo assim, há quem fale em omissão do general, que ao saber do intento urdido no Planalto, teria o dever de procurar o Ministério Público. Do ponto de vista legal, o desembargador aposentado Walter Maierovitch afirma que não. “A condição de subordinados do presidente descaracteriza o crime. A questão hierárquica se impõe. Encaminhar ou não a notícia-crime suscita apenas um debate ético ou ainda, moral, mas não o legal.”

Até as vésperas de seu depoimento, os bolsonaristas tinham a esperança de envolver Freire Gomes na investigação. O objetivo era um só: servir-se da figura institucional do ex-comandante para se colocar atrás do biombo da instituição, vender a imagem de que todo o Exército era o alvo da investigação da PF e, assim, poder contar com a solidariedade dos quartéis. Todo mau militar busca essa manobra: a proteção dos pares, dos quais empresta o respeito e a honra para suprir o que lhe falta.

Não é à toa que Bolsonaro nunca mais compareceu a solenidades de “seu Exército” depois que as investigações começaram a revelar a trama de deslealdades e de ofensas planejadas e executadas por antigos camaradas contra colegas, uma campanha que não poupou nem mesmo as famílias de quem zelou pelo profissionalismo e pela disciplina da tropa. De fato, o ex-presidente só é visto agora em solenidades da Polícia Militar de São Paulo, Estado governado por Tarcísio de Freitas.

Bolsonaro sumiu das cerimônias da Academia Militar da Agulhas Negras (Aman). Também não esteve no Comando Militar do Leste quando o general André Luis Novaes de Miranda passou o comando ao general Kleber Nunes de Vasconcellos – o general Walter Braga Netto, cujo teor abjeto das mensagens para o major Ailton Barros ainda era desconhecido, compareceu sozinho à cerimônia, no fim de 2023. Em situação não muito diferente está o general Augusto Heleno, o homem que falava o que não devia nas reuniões gravadas do Planalto e era repreendido por Bolsonaro.

E é melhor que seja assim, pensam os generais ouvidos pela coluna. Eles questionam: imagina depois de todas as mensagens reveladas o tamanho do constrangimento que seria ter em um mesmo palanque o ex-presidente e o comandante do Exército, Tomás Miguel Ribeiro Paiva? Como olhar na cara de Braga Netto depois que este chamou Freire Gomes de “cagão” e mandou oferecer a cabeça do comandante aos leões? O que esperar do ex-comandante diante da deslealdade em relação aos antigos companheiros?

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o governador de Sao Paulo, Tarcisio de Freitas (Republicanos), prestaram homenagens em 16 de outubro de 2023 a policiais da Rota que participaram da Operação Escudo.

Muita gente sabia que os artífices da campanha difamatória contra os generais legalistas em novembro e dezembro de 2022 tinham informações privilegiadas do Planalto. Ou seja, as revelações da PF apenas deram nomes aos bois. Agora, todos avaliam que o depoimento de Freire Gomes deve abrir as portas da cadeia para Bolsonaro. Nenhuma surpresa. Para os generais, o próprio ex-presidente e seus subordinados demonstravam ter consciência de que cometiam ilegalidades quando diziam em mensagens saber que seriam presos ou quando questionavam se as reuniões no Palácio estavam sendo gravadas.

É cada vez mais forte na caserna o sentimento de que o depoimento do ex-comandante deve acelerar também o fim das investigações e sepultar de uma vez qualquer tipo de pensamento intervencionista nas Forças Armadas. A instituição saiu arranhada depois de ser posta à prova pela coincidência de Bolsonaro ter chegado ao poder em 2018, justamente no momento em que seus colegas de turma e contemporâneos de AMAN dos anos 1970 ocupavam o Alto Comando do Exército. Muitos sabiam quem era o “Cavalão”, mas os laços de camaradagem impediam de vê-lo como aquilo que ele sempre foi: um mau militar.

Não se verá mais a Força Terrestre envolvida com urnas eletrônicas, com cloroquina ou com os extremistas de direita. Mas, para além de afastar os militares da política por meio do reforço da profissionalização e do controle civil objetivo, seria importante, segundo analistas ouvidos pela coluna, que a quarentena estudada pelo Congresso fosse aprovada. Ela deveria também atingir outras carreiras de Estado, como a magistratura e o MInistério Público. A República precisa preservar as instituições dos interesses políticos e pessoais de alguns de seus integrantes, uns movidos pela vaidade, outros por razões financeiras ou até mesmo pela obtenção de privilégios reservados ao exercício do poder.

Marcelo Godoy, o autor desta reportagem, atua na cobertura das relações entre o Poder Civil e o Poder Militar para o O Estado de S. Paulo.  Publicado originalmente em 04/03/2024 09h30.

Militares avaliam que Braga Netto e Heleno serão próximos alvos da Polícia Federal

 Ambos aparecem em depoimentos como os grandes coordenadores do golpe que um grupo de militares queriam consumar

A lista dos militares envolvidos no suposto golpe de Estado tramado por bolsonaristas com chance de passar um tempinho na prisão só cresce. E nas apostas dos militares, os generais Augusto Heleno e Walter Braga Netto estão com todo jeito de serem os próximos

Oficiais ficaram desconcertados com a operação da Polícia Federal que prendeu nas primeiras horas da manhã desta terça-feira um general reformado – ex-integrante do governo Jair Bolsonaro, três integrantes das Forças Especiais, chamados de “kids pretos”, e um policial federal por supostamente planejarem um golpe de Estado e o assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice, Geraldo Alckmin, e do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes.

Com as prisões de desta terça e mais as informações que o tenente coronel Mauro Cid, prestou em depoimento, aparecem dois nomes como fortes candidatos a penas mais graves ou até a prisão: Heleno e Braga Netto.

Ambos aparecem nos depoimentos como os grandes coordenadores do golpe que um grupo de militares queriam consumar, mas que não conseguiram por que o Alto Comando do Exército, em sua maioria, se posicionou contra. A decisão do ministro Alexandre de Moraes teve como base o inquérito da Polícia Federal, com mais de 200 páginas.

O documento descreve com riqueza de detalhes nomes, codinomes, celulares diálogos, ações, armamentos – tais como metralhadoras e uma espécie de bazuca que eles pretendiam usar – e celulares descartáveis, com os quais eles poriam o plano em ação. Também houve situações estranhas, como a do general reformado Mário Fernandes, que foi secretário-executivo da presidência da República no governo Bolsonaro e também ex-assessor do então ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Segundo as investigações, Fernandes imprimiu os planos no Palácio do Planalto. Já seu chefe, o ministro Luiz Eduardo Ramos, parecia desconhecer as atividades do subordinado e tão logo acabou o governo, saiu de viagem, percorrendo países europeus de moto com a mulher ou visitando estações de esqui, como mostra em fotos na redes sociais. Braga Netto, mal saiu de casa para fazer campanha para vereador e o general Heleno continua discretamente enfurnado em casa.

Por fim, se conclui da investigação que o plano só não deu certo por que o ex-presidente Jair Bolsonaro nunca teve a coragem necessária para ordenar que ação fosse posta em prática. Na prática, ele esperava que a população saísse para a rua, aclamando seu nome e pedindo que continuasse no poder, mesmo que para isso recorresse à uma eleição fraudada. A população ficou em casa.

Monica Gugliano, a autora desta reportagem, é repórter de politica d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 19.11.24, às 21,33 hs.

Traidores da Pátria

Revelação de audacioso plano para matar Lula da Silva, entre outras autoridades, mostra até onde os golpistas pretendiam chegar com seu furor delitivo para manter Bolsonaro no poder

Para militares, Braga Netto deve estar na lista das próximas prisões relacionadas à tentativa de golpe de Estado Foto: Marcos Corrêa/PR

É de indignar todos os democratas deste país, sejam quais forem as identidades político-ideológicas que possam distingui-los, a revelação de que autoridades do governo de Jair Bolsonaro e militares das Forças Especiais do Exército, além de um policial federal, teriam conspirado para assassinar, no fim de 2022, o então presidente eleito Lula da Silva, o vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que à época acumulava o cargo de presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Como se sabe, na manhã de ontem a Polícia Federal (PF) deflagrou a Operação Contragolpe, que culminou na prisão do general reformado Mário Fernandes, ex-secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência (2020) e atualmente assessor do deputado Eduardo Pazuello (PL-RJ). Além de Fernandes, outros três militares com formação em Forças Especiais, conhecidos no Exército como “kids pretos”, foram presos por suspeita de elaborar o plano homicida com vistas “à abolição violenta do Estado Democrático de Direito”: Rafael Martins de Oliveira, Rodrigo Bezerra de Azevedo e Hélio Ferreira Lima. O quinto envolvido diretamente na trama, também preso, é o policial federal Wladimir Matos Soares.

A tentativa de golpe de Estado urdida pelos inconformados com a democracia, uma súcia de civis e militares, da ativa e da reserva, todos do entorno de Bolsonaro, já era execrável por tudo o que se sabia a respeito da sedição até agora. Por meio da desqualificação do processo eleitoral, entre outras artimanhas, pretendia-se evitar a eleição de Lula da Silva como presidente da República. Malfadado esse desiderato, partiu-se, então, para o impedimento da posse. A rigor, o que a Operação Contragolpe fez foi mostrar ao País, com impressionante riqueza de detalhes, até onde esses golpistas pretendiam chegar com seu furor delitivo para manter Bolsonaro no poder, em afronta à vontade popular legitimamente consagrada pelas urnas em 2022.

Chamado no ninho golpista de “Punhal Verde e Amarelo”, como se patriota fosse, o plano dos militares liderados, do ponto de vista operacional, pelo general Mário Fernandes, ex-comandante de Operações Especiais do Exército (2018-2020), consistia, pasme o leitor, em envenenar Lula, “considerando a vulnerabilidade de seu atual estado de saúde e sua frequência a hospitais”. Alckmin, segundo consta, também seria envenenado. Já para matar Alexandre de Moraes, os golpistas pretendiam detonar explosivos durante uma cerimônia pública. Eis a dimensão da infâmia. Ainda segundo a PF, ao menos uma reunião para arquitetar o triplo homicídio teria sido realizada na residência do general Walter Braga Netto, então ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro pela reeleição. Este jornal apurou que a PF não tem dúvidas sobre o “envolvimento direto” de Braga Netto nessa trama mais do que antidemocrática, macabra.

Em um ofício de 221 páginas endereçado ao gabinete do ministro Alexandre de Moraes, relator do Inquérito 4.874, que investiga no âmbito do STF a ação das chamadas “milícias digitais antidemocráticas”, a PF detalhou como os militares sediciosos monitoraram os passos de Lula, Alckmin e do próprio Moraes para decidir como e quando agir. Resta claro que o País esteve muito próximo de ser tragado por uma convulsão política e social inaudita em sua história recente. E é lícito inferir que as consequências mais nefastas dessa extrema violência política, gravíssima por sua mera cogitação, só não se materializaram porque o Alto Comando do Exército não endossou a estupidez.

Mas que ninguém se deixe enganar. Se felizmente a intentona não foi adiante, o simples fato de frutificar entre os mais bem treinados militares do Exército esse ímpeto golpista em nada tranquiliza a Nação. O País só estará em paz quando, um por um, todos os traidores da Constituição, que, como dissera Ulysses Guimarães, também são traidores da Pátria, forem julgados por seus crimes sob a égide do mesmo Estado Democrático de Direito contra o qual se insurgiram.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 20.11.24

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Ditos e feitos de Janja

Atitudes de quem não tem cargo público podem, por vínculos familiares, atrapalhar ações de um governo


Janja no Festival Aliança Global, do G20, no Rio de Janeiro - Luis Robayo/AFP

Rosângela Lula da Silva, a Janja, soltou um f**k you para Elon Musk, criando uma dor de cabeça para o Itamaraty. O próprio Lula, que tenta driblar vários touros ao mesmo tempo nas negociações para a declaração final do G20, teve de vir a público para pedir que ninguém xingue ninguém.

Estou terminando de ler "O Mundo", de Simon Sebag Montefiori, livro ao qual ainda dedicarei uma coluna. O autor mostra com muitos exemplos que um ponto fraco dos regimes hereditários é a variação geracional. O filho de um grande monarca pode ser e frequentemente é um completo imbecil (casamentos consanguíneos ampliam essa possibilidade).Mesmo quando o contraste não é tão gritante, um bom governante pode ter como herdeiro um sujeito sem gosto ou aptidão para o poder. Sistemas políticos em que o líder é escolhido por um seletorado estão menos sujeitos aos caprichos da loteria cósmica. E quanto mais amplos o seletorado e o rol dos candidatos, menores as chances de interesses individuais, familiares ou setoriais darem as cartas.

Nesse contexto, o presidencialismo surgiu como uma melhoria em relação às monarquias hereditárias em que o soberano exerce o poder de fato. Mas presidentes ainda são em muitos aspectos tratados como reis por prazo fixo. O próprio entorno presidencial (família, amigos, conselheiros) ganha ares de corte.

O parlamentarismo aprofunda o processo de despersonalização do poder. O premiê é muito mais o gerente provisório de uma coalizão vencedora do que um indivíduo investido de poder político e simbólico em caráter pessoal. É só ver que prestamos muito mais atenção ao que diz e faz uma primeira-dama do que aos ditos e ações de consortes de premiês, que muitas vezes mal saem do anonimato.

Janja tem, como cidadã, o direito de dizer o que pensa e pode, como qualquer humano, falar mais do que deveria. Mas é ruim que atitudes de uma pessoa que não exerce função pública possam, por vínculos familiares, contaminar estratégias e ações de um governo.

O poder, a exemplo da burocracia, deveria ser tão impessoal quanto possível.

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. E autor de "Pensando Bem…". Este artigo foi publicado originariamente na Folha de S. Paulo, em 18.11.24

'Ainda estou aqui': por que caso da ditadura relatado no filme segue sem resolução no STF

Mais de meio século após o desaparecimento do deputado federal Rubens Paiva na ditadura militar, um dos episódios mais emblemáticos de violação de direitos humanos da história do Brasil, o país revisita o caso em duas frentes em buscas de respostas, enquanto, em uma terceira, ele segue sem desfecho.

À esq., foto de família com Eunice, Rubens e Babiu (filha caçula) no Rio em 1970 (à dir., cena do filme / Divulgação, Arquivo Pessoal de Vera Paiva)

No cinema, Ainda Estou Aqui, novo filme de Walter Salles que estreou nesta quinta-feira (7/11) em salas pelo Brasil, retrata os impactos da perda de Rubens Paiva sobre sua esposa, Eunice, e seus cinco filhos no Rio de Janeiro dos anos 1970, durante os anos de chumbo.

O longa, inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado, foi premiado como melhor roteiro no último Festival de Veneza e escolhido por unanimidade para representar o Brasil no Oscar no próximo ano.

Ao mesmo tempo, o governo federal reabriu uma investigação do caso sobre o que de fato aconteceu com Rubens Paiva.

O deputado foi cassado e preso em 1971 e dado como desaparecido. Sua morte, confirmada só 40 anos mais tarde, segue até hoje sem que os culpados tenham sido responsabilizados.

Isso porque a denúncia do caso, feita há uma década, está no Supremo Tribunal Federal (STF). A demora é tal que três dos cinco militares acusados pelo crime já morreram.

Depois de seis anos sem qualquer movimentação, em 24 de outubro deste ano o ministro Alexandre de Moraes, responsável pelo caso, determinou que a Procuradoria Geral da República se manifeste sobre o mérito do tema, informou à BBC News Brasil a assessoria de imprensa da corte.

Esse impasse está intimamente ligado ao debate sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia, que concedeu perdão tanto a perseguidos políticos quanto a agentes do Estado que cometeram crimes durante o governo militar.

No centro da questão, há uma discussão se os crimes daquele período podem ou não ser ainda punidos e, em última instância, a disposição da sociedade brasileira de acertar as contas com um dos períodos mais violentos de sua história recente.

Este é o cerne de Ainda Estou Aqui, diz Marcelo Rubens Paiva à BBC News Brasil, em que sua mãe, Eunice, interpretada por Fernanda Torres, é apresentada como uma mulher forçada a se reinventar diante da violência do Estado e a criar um novo futuro para sua família.

Seu livro e o longa derivado dele propõem mais do que uma reconstituição histórica. São uma reflexão sobre a impunidade e a resistência à revisão de crimes da ditadura militar, tema que permanece atual e controverso no país.

“O nosso papel como cineasta, escritor, roteirista, pessoa das artes é falar aquilo que os vencidos não conseguem falar”, diz o filho do deputado.

“Mostrar, denunciar, apontar, é muito complicado em um país que sofreu um processo de ditadura tão longo e que na redemocratização fez um pacto sinistro entre a sociedade civil e os torturadores.”

Selton Mello, que interpreta Rubens Paiva e Fernanda Torres, que interpreta Eunice, ao lado do diretor Walter Salles (Getty Images)

Por que caso Rubens Paiva está sem resolução no STF

Rubens Beyrodt Paiva nasceu em 1929, em Santos, São Paulo. Casado com Eunice Facciolla Paiva, era pai de cinco filhos: Vera, Maria Eliana, Ana Lúcia, Marcelo e Maria Beatriz.

Formado em engenharia, Paiva foi eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1962.

Durante seu tempo na Câmara dos Deputados, destacou-se como relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que investigava o financiamento de grupos que conspiravam contra o governo de João Goulart.

Com a instalação do regime militar, em 10 de abril de 1964, seu mandato foi cassado, levando-o ao exílio na Iugoslávia.

Após retornar ao Brasil em novembro do mesmo ano, Paiva estabeleceu-se com a família em São Paulo e, posteriormente, no Rio de Janeiro, em uma residência na Avenida Delfim Moreira, no bairro do Leblon.

Ele atuava como diretor-gerente de uma empresa de engenharia e fundações, cultivando relações com jornalistas e políticos de oposição.

No entanto, em 1971, Rubens Paiva foi sequestrado por agentes do regime militar e, conforme denúncia do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, morreu no antigo DOI-Codi, na Tijuca, na zona norte da capital.

Foi somente durante a Comissão Nacional da Verdade (CNV) que foi confirmada a morte de Rubens Paiva.

A comissão, instituída em 2012, no governo de Dilma Rousseff, tinha como objetivo investigar e documentar as violações dos direitos humanos durante a ditadura militar.

Durante a comissão, foi confirmado e esclarecido que Rubens Paiva foi torturado e morto em instalações militares.

Eunice em 1971, após sair da prisão, com os cinco filhos (Arquivo Pessoal de Vera Paiva)

Em 2014, a CNV apresentou informações sobre o caso do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva.

Em um relatório parcial divulgado no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, a CNV apontou o então tenente Antônio Fernando Hughes de Carvalho como um dos torturadores responsáveis pela morte de Paiva.

Essa revelação veio à tona com base no depoimento de uma testemunha, identificada apenas como "agente Y", que afirmou ter visto um dos militares pressionar o ex-deputado contra uma parede durante uma sessão de tortura no Destacamento de Operações de Informações (DOI).

Segundo o relatório, Rubens Paiva morreu em decorrência das torturas infligidas pelos militares. Apesar das novas provas, como recibos de pagamento de diárias que contradizem a versão de que José Antônio Nogueira Belham, comandante do Doi-Codi à época, estaria de férias durante a prisão e morte de Paiva, o destino final do corpo do ex-deputado ainda não foi esclarecido.

Cláudio Fonteles, ex-procurador geral da República e um dos coordenadores da Comissão Nacional da Verdade, explica que a recusa das Forças Armadas em abrir seus arquivos, mantendo a documentação sob sigilo, dificultou a investigação dos crimes.

Neste sentido, os depoimentos colhidos pela comissão tiveram um papel central.

“Nesses crimes antigos, as provas testemunhais são muito importantes”, pontua Marlon Alberto Weichert, procurador regional da República e coordenador do Grupo de Trabalho Memória e Verdade da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.

“Especialmente nos casos de graves violações a direitos humanos, onde as evidências da tortura se perdem um pouco com o tempo e a documentação até hoje é mantida sob sigilo.”

Em 2014, após investigações iniciadas em 2011, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou cinco ex-integrantes do sistema de repressão da ditadura militar pelo assassinato e ocultação do cadáver do deputado Rubens Paiva. As acusações incluíam homicídio doloso, ocultação de cadáver, associação criminosa armada e fraude processual.

Filme foi escolhido para representar o Brasil no Oscar (Divulgação)

Os denunciados foram José Antonio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza, Jacy Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos.

A Justiça Federal do Rio de Janeiro aceitou a denúncia, que foi mantida pelo Tribunal Regional da 2ª Região.

Esse desdobramento foi considerado um marco pelos membros do MPF, pois representou a primeira ação penal contra militares por homicídios ocorridos durante a ditadura. Os acusados solicitaram um habeas corpus à 2ª turma do TRF2, mas o pedido foi negado.

A defesa dos réus, então, recorreu ao STF alegando que a anistia já havia sido discutida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, que é um instrumento jurídico utilizado no Brasil para questionar atos do Poder Público que violem preceitos fundamentais da Constituição, como direitos humanos básicos.

Em 29 de setembro de 2014, apenas 19 dias após o julgamento do habeas corpus, o ministro-relator Teori Zavascki concedeu uma liminar para suspender o andamento do processo.

Zavascki faleceu em 2017 em um acidente de avião, e o processo foi paralisado. Em 2018, o caso foi encaminhado ao ministro Alexandre de Moraes, que sucedeu Zavascki e herdou os processos pendentes.

O deputado federal foi cassado logo após o golpe militar e preso após voltar de um exílio (Crédito Memorial da Resistência)

Lei da Anistia em xeque

Os rumos do caso Rubens Paiva está ligado a uma discussão sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia.

Esta legislação, decretada em 1979, durante a ditadura, ao conceder perdão geral aos crimes cometidos durante o regime, permitiu por um lado o retorno de exilados e a libertação de presos políticos.

Por outro, ressaltam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, impediu que agentes da ditadura que torturaram e mataram opositores do governo militar fossem processados.

“A transição controlada, dominada pelos militares, com as elites brasileiras, levou a esse modelo de impunidade e de esquecimento”, diz Weichert.

“Esses assuntos foram assuntos interditados, assuntos proibidos.”

Em 2010, o STF decidiu que a Lei da Anistia é constitucional, o que é questionado ainda hoje.

Para Claudio Fonteles, a Lei da Anistia é inconstitucional, porque contraria princípios fundamentais da Constituição Federal.

Ele argumenta que uma lei ordinária, como a Lei de Anistia, não pode, sob a ótica constitucional, anistiar crimes cometidos por aqueles que violaram o Estado Democrático de Direito, já que a Constituição é a base permanente da democracia e deve ser preservada acima de qualquer legislação infraconstitucional

“Manter essa lei é preservar a figura do torturador. Não colabora para a defesa da democracia e coloca uma pedra sobre esse assunto”, afirma Fonteles à BBC News Brasil.

Weichert argumenta que, apesar da decisão do STF ter declarado a Lei de Anistia constitucional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a considerou incompatível com a convenção americana sobre direitos humanos.

Eunice combateu a política indigenista do regime militar até o fim da ditadura (Arquivo Pessoal de Vera Paiva)

Exemplos de processos envolvendo o Brasil na CIDH incluem os casos da guerrilha do Araguaia (Gomes Lund), do jornalista Vladimir Herzog e Collen Leite, todos levados à Corte após a comissão ter realizado esse procedimento.

E decisões importantes, a Corte Interamericana declarou que tanto crimes contra a humanidade quanto graves violações de direitos humanos são imprescritíveis e não podem ser anistiados.

O fato de os próprios militares terem decretado a lei que perdoa os crimes cometidos por agentes do regime seria uma forma de “autoanistia”, defende Sergio Suiama, procurador da República do Ministério Público do Rio de Janeiro.

“Isso é inadmissível em casos de crimes contra a humanidade”, pontua Suiama.

O procurador destaca que isso tem travado o avanço de ações penais como a de Rubens Paiva.

"O caso de Rubens Paiva está suspenso devido a essa indefinição”, diz Suiama.

Segundo Suiama, o MPF já propôs mais de 40 ações penais, mas a maioria delas foi suspensa ou derrubada justamente porque o STF não julga essas arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).

“As provas reunidas durante a investigação do MPF, incluindo confissões de farsa em tentativas de fuga, permanecem sem análise de mérito, esperando por uma decisão que determine se esses crimes são ou não imprescritíveis".

Eunice e os cinco filhos em Brasília depois da posse de Rubens em 1963 (Arquivo Pessoal de Vera Paiva)

O advogado Rodrigo Roca, que representa os acusados de torturar e matar Rubens Paiva, questiona a argumentação de que os crimes da ditadura podem ser enquadrados como crimes contra a humanidade.

Segundo Roca, para ser um crime contra a humanidade, a conduta precisa ter sido voltada contra uma população civil, o que, segundo ele, não seria o caso.

“Uma conduta para ser considerada crime contra a humanidade, ela precisa se voltar contra a população civil como um todo. E não contra determinados grupos insurgentes. Isso legalmente, ou seja, tecnicamente, penso até que dogmaticamente, não poderia jamais ser tipificado como crime contra a humanidade”, diz.

O advogado avalia ainda que o processo movido pelo MPF que busca um desfecho para a morte de Rubens Paiva, iniciado durante o governo Dilma e na esteira das conclusões da Comissão da Verdade, teve um "viés político".

Segundo ele, sempre que um governo de esquerda chega ao poder, há um "recrudescimento desse movimento", que ele qualifica como "delírios”.

“É preciso se perguntar antes a quem isso vai interessar, qual é a relação custo-benefício de uma nova mobilização dessas, do governo, de alguns setores do judiciário, em torno de pessoas com questões jurídicas plenamente resolvidas, quer dizer, é uma perda para todos, é uma guerra sem vencedores”, acrescenta.

“Há um revolvimento de uma matéria jurídica já bem desgastada e resolvida do ponto de vista social. Caberia ao plano jurídico apenas aderir a essa consciência popular e por um fim nessa história”, acrescenta.

Novo filme é inspirado no livro do filho de Paiva, Marcelo Rubens Paiva

Governo reabriu investigação do caso

Em paralelo, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, reabriu o caso em abril deste ano.

O objetivo é investigar e produzir mais provas que comprovem o que aconteceu com Rubens Paiva.

Em agosto de 1971, o caso foi arquivado pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão antecessor do atual Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

A votação evidenciou divisões: enquanto membros ligados à ARENA (Aliança Renovadora Nacional) apoiaram o arquivamento, representantes do MDB e da OAB se posicionaram contra.

O então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, exerceu o voto de desempate, decidindo pelo arquivamento. A justificativa oficial baseou-se em informações falsas do Exército, que alegava que Rubens Paiva havia desaparecido após uma intervenção de desconhecidos durante sua detenção.

Essa versão foi desmentida posteriormente pela Comissão Nacional da Verdade. Ademais, um dos conselheiros que votou pelo arquivamento afirmou ter sido coagido a tomar essa decisão.

Segundo André Carneiro, vice-presidente do CNDH, a medida tem caráter administrativo, com possibilidades de contribuir com essa ação penal do MPF.

Carneiro afirma ainda que será produzido um relatório que conterá recomendações ao Poder Público específicas para o caso Rubens Paiva e também gerais sobre o direito à memória, à verdade e à Justiça. O documento deve ser entregue até o fim deste ano.

“Como existe um processo no STF, esse relatório será entregue ao MPF e compartilhado com o Supremo”, ressalta Carneiro.

“Esse caso é bastante simbólico.Tratava-se de um ex-deputado federal, alguém que não tinha vínculo com a luta armada. A forma como foi tratado revela a estrutura de funcionamento de espionagem e uma máquina de tortura no país.”

Marcelo Rubens Paiva reforça a importância de manter viva a memória do pai, seja por filmes, livros ou reportagens.

Para o escritor, a forma de impedir que a ditadura volte é colocar em evidência o aconteceu durante o regime — e isso inclui o assassinato de Rubens Paiva.

“Tem que mostrar o que é a ditadura, o que foi o AI-5, o que foi a tortura, o que foi o Estado autoritário”, diz Marcelo Rubens Paiva.

“É algo que não se deve defender jamais.”

Priscila Carvalho, do Rio da Janeiro para a BBC News Brasil, em 13.11.24 (Texto atualizado).