segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Com a direita fragmentada, esquerda no divã e centro no protagonismo, o que se pode esperar de 2026?

A esperança voltou à pauta e quem for o melhor portador dessa bandeira, colherá bons frutos

O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), celebra sua reeleição em um evento com o governador Tarcísio de Freitas Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Nestas eleições, observamos uma nova dinâmica política se erguendo no Brasil. Aquela direita que se consolidou a partir do bolsonarismo já não é mais a mesma. Ela se fragmentou, perdida entre um radicalismo messiânico e antissistema e a necessidade de fazer alianças que possam garantir governabilidade e resultados práticos para a população.

A esquerda, por sua vez, entra definitivamente no divã, buscando entender em que ponto parte dos seus antigos eleitores passaram a renegar políticas assistencialistas, buscando pautas mais aptas a ensinar a pescar do que a entregar o peixe. Uma receita que agora é mais vista como eleitoreira do que como ferramenta de desenvolvimento social.

A esquerda também se debate nos temas referentes à segurança pública, sem saber ao certo como estar em sintonia com os desejos por uma polícia e uma Justiça mais duras no combate à criminalidade.

Já o centro voltou ao protagonismo. Sobreviveu à polarização, se tornando o fiel da balança. O discurso agora em voga, de que as pessoas querem boas gestões, diplomacia e diálogo, caiu como uma luva para políticos que prezam pelas alianças e entendem que a construção democrática passa pela aceitação das diferenças e não pela exacerbação que divide a sociedade.

É um sintoma de que o eleitor está mais maduro e, perante uma direita e uma esquerda que se radicalizaram, o centro se torna uma via que pode se adaptar melhor às nuances de cada região do País, ganhando cores mais progressistas ou conservadoras, de acordo com o desejo dos cidadãos de cada estado, mas sem demonizar parte do eleitorado, sem julgar as pessoas ou taxá-las de “nazistas” ou “comunistas”. A regra agora é incluir, e não segregar.

Sergio Denicoli, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 28.10.28

É assim que o cérebro armazena palavras: agrupando-as por significado

Pesquisadores da Universidade de Harvard demonstraram que os neurônios no córtex pré-frontal distinguem as palavras pelo que significam, não pelo som que soam, e fazem isso da mesma forma na cabeça de qualquer pessoa.

No córtex pré-frontal existem neurônios individuais que codificam o significado específico das palavras em tempo real. (Kirk Sides - Houston Chronicle/Getty)

Na maioria das pessoas, o processo mental da linguagem é especialmente dominante no hemisfério esquerdo do cérebro. No lobo frontal desse hemisfério – na chamada área de Broca, em homenagem ao neurologista que a descobriu – estão os neurônios executivos da fala, que organizam as sequências ou sequências de palavras e frases e levam à laringe e assim em. vocal periférico centraliza as ordens para emiti-los. É o cérebro que nos permite falar, o cérebro da fala propriamente dito, enquanto o cérebro que nos permite compreender o significado das palavras e das frases está localizado no lobo temporal do mesmo hemisfério esquerdo - a chamada área de Wernicke, também em reconhecimento ao neurologista que foi seu descobridor -. Simplificando, então, podemos dizer que a área de Broca contém os neurônios que nos permitem falar, e a área de Wernicke contém aqueles que nos permitem compreender a fala, o significado do que falamos e do que as outras pessoas falam.

Mas esta simples dualidade parece agora complicar-se quando entra em acção o córtex pré-frontal, uma região do cérebro humano envolvida nas funções mentais mais elevadas , uma vez que também parece contribuir significativamente para a essência linguística das palavras, isto é, para a sua capacidade cognitiva. significado. Até agora, as análises de imagens do fluxo sanguíneo cerebral permitiram estabelecer mapas do significado das palavras em pequenas regiões cerebrais. Mas agora, o neurocirurgião Ziv Williams e os seus colaboradores da faculdade de medicina da Universidade de Harvard (EUA) foram mais longe, mostrando que no córtex pré-frontal existem neurónios individuais que codificam em tempo real o significado específico das palavras. É uma descoberta importante saber como o cérebro os armazena.

Como o cérebro torna a consciência possível

A exploração experimental realizada por estes investigadores consistiu na implantação de eléctrodos no cérebro de 10 pacientes submetidos a cirurgia para determinar a origem das suas crises epilépticas. Dessa forma, registraram a atividade individual de cerca de 300 neurônios de cada paciente no córtex pré-frontal do hemisfério esquerdo, dominante para a linguagem. Assim, registraram os neurônios que foram ativados e o momento em que o fizeram, quando os pacientes ouviram múltiplas frases curtas de cerca de 450 palavras. O que observaram foi que para cada palavra eram ativados dois ou três neurônios diferentes e que as palavras que ativavam o mesmo grupo de neurônios pertenciam a categorias semelhantes, como ações (verbos) ou pessoas.

Da mesma forma, observaram que palavras que o cérebro conseguia associar entre si, como “pato” e “ovo”, ativavam alguns dos mesmos neurônios , e aqueles que tinham significado semelhante, como “rato” e “camundongo”, causou padrões semelhantes de atividade neuronal. Eles também encontraram neurônios que respondiam a conceitos menos precisos ou abstratos, como “atrás” ou “acima”. É especialmente impressionante que os investigadores tenham conseguido determinar, a partir dos seus registos de atividade, não apenas os neurónios que correspondiam a cada palavra e à sua categoria, mas também a ordem em que foram pronunciadas. Embora não pudessem recriar as frases com exactidão, podiam saber, por exemplo, que uma frase continha um animal, uma acção e um alimento, nesta ordem. Tudo isso, como dizemos, baseado exclusivamente na atividade dos neurônios registrados.

Os pesquisadores afirmam que os neurônios do córtex pré-frontal distinguem as palavras pelo significado, e não pelo som, porque quando, por exemplo, uma pessoa ouve a palavra inglesa son (filho em espanhol), os neurônios associados à palavra são ativados. família, o que não acontece quando a palavra é sun (sol em espanhol), embora sua pronúncia seja a mesma em inglês.

Embora as observações tenham se limitado a uma pequena parte do córtex pré-frontal, a principal conclusão deste importante trabalho, publicado recentemente na prestigiada revista Nature , é que os significados das palavras estão agrupados da mesma forma em todos os cérebros humanos, que utilizam o mesmas categorias padrão para classificar e dar sentido aos sons. Tudo isso é um passo importante para saber como o cérebro armazena as palavras e seus significados. Além disso, o mistério de como o cérebro converte a atividade dos neurônios (matéria) em conhecimento semântico (imaginação) sempre sobrevive.

A massa cinzenta é um espaço que tenta explicar, de forma acessível, como o cérebro cria a mente e controla o comportamento. Os sentidos, as motivações e os sentimentos, o sono, a aprendizagem e a memória, a linguagem e a consciência, bem como as suas principais perturbações, serão analisados ​​na convicção de que saber como funcionam equivale a conhecer-nos melhor e a aumentar o nosso bem-estar e as relações com outras pessoas.

Ignácio Morgado Bernal, o autor deste artigo, é professor emérito de Psicobiologia no Instituto de Neurociências e na Faculdade de Psicologia da Universidade Autônoma de Barcelona. Publicado originalmente no EL PAÍS,em 28.10.24

'O que deu errado com o capitalismo?'

Essa pergunta é o título do novo livro do investidor Ruchir Sharma, banqueiro que passou quase toda a sua carreira em Wall Street.

O contraste entre Índia e Cingapura, onde viveu, formou o pensamento de Ruchir Sharma (Getty Images)

Ele trabalhou para algumas das maiores empresas do distrito financeiro de Nova York — uma experiência que, segundo ele, o colocou no ponto de vista ideal para observar como o dinheiro flui através da economia global.

Sua conclusão? O capitalismo de hoje não atingiu seu verdadeiro potencial.

Autor de livros de sucesso como The rise and fall of nations ("Ascensão e queda das nações", em tradução livre) e Breakout nations: In pursuit of the next economic miracles ("Nações emergentes: em busca dos próximos milagres econômicos"), Sharma é presidente da empresa de gestão de patrimônio Rockefeller Capital Management e fundador e diretor da empresa de investimentos Breakout Capital.

“Este livro é uma história revisionista do capitalismo”, diz Sharma sobre seu lançamento.

Parte do interesse do executivo em escrever sobre o assunto tem a ver com sua história pessoal.

O banqueiro cresceu na Índia nas décadas de 1970 e 1980, onde o cenário era “muito socialista”, lembra o autor, apontando exemplos como a nacionalização dos bancos.

"Cresci aspirando a ser capitalista" nesse contexto, conta o autor.

Sharma foi depois viver com a família em Cingapura, onde ficou impressionado com a liberdade econômica e a “prosperidade”, em contraste com o que via em seu país natal.

Esse contraste influenciou diretamente sua visão do mundo.

'O que deu errado com o capitalismo?', questiona o título de novo livro

Seu próximo destino foi os Estados Unidos, a maior economia do mundo.

Trabalhando nas entranhas do capital, Sharma começou a perguntar-se por que nos países ocidentais tantos jovens dizem que prefeririam viver no socialismo.

Por isso, ele começou a refletir sobre o que houve no sistema capitalista, a ponto de muitos terem se tornado céticos.

Em "O que deu errado com o capitalismo?" (no original, What went wrong with capitalism), o autor argumenta que parte da culpa recai sobre os gastos gigantescos dos governos, viciados em dívidas, e sobre os bancos centrais, ao estimularem a economia injetando dinheiro no sistema, em vez de deixarem que as forças do mercado restabeleçam o equilíbrio.

Ao mesmo tempo, salienta, "nas últimas décadas houve uma perversão do capitalismo".

"As pessoas que se beneficiam do capitalismo não deveriam ser os grandes beneficiários”, diz ele.

"Algo está errado quando vemos que as pessoas que mais prosperaram nos últimos 20 anos são as mesmas que têm grande acesso a financiamento. Houve uma explosão de bilionários."

Hoje, os Estados Unidos abrigam mais de 800 supermilionários (coletivamente, a riqueza deles chega a quase US$ 6 trilhões, segundo a Forbes), mais do dobro do que era antes da pandemia.

Algo está errado quando vemos que as pessoas que mais prosperaram nos últimos 20 anos são as mesmas que têm grande acesso a financiamento', diz Sharma (Getty Images)

Mas Ruchir Sharma afirma que, embora os supermilionários sejam um alvo óbvio para os críticos do aumento da desigualdade, existe um culpado mais oculto: a queda na produtividade.

Se as empresas produzirem mais, diz ele, o bolo econômico pode crescer para todos, permitindo que elas aumentem os salários sem causar inflação.

Ele critica que, nas últimas décadas, as chamadas “empresas zumbis" são mantidas vivas graças aos bancos centrais determinados a manter as taxas de juro baixas, como ocorreu ao longo da década de 2010.

Além disso, bancos em dificuldades e considerados grandes demais para falir têm sido apoiados por resgates governamentais, uma política da qual ele discorda.

'Os loucos anos 1920'

Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que tais ações eram consideradas prejudiciais à forma como o capitalismo deveria funcionar.

Revendo a história americana, Sharma volta à década de 1920, uma época que muitos associam a uma era glamorosa de jazz, à libertação nos costumes e à prosperidade crescente.

Contudo, após o fim da Primeira Guerra Mundial, entre 1920 e 1921, ocorreu uma profunda crise econômica que durou relativamente pouco, mas foi muito dolorosa. Ela foi antecessora da Grande Depressão de 1929.

A Grande Depressão de 1929 (foto) foi estudada em profundidade. Mas Sharma diz que devem ser tiradas lições da sua antecessora, a crise de 1920-1921 (Getty Images)

O empresário defende que há lições importantes sobre a política de não intervenção aplicada naquele momento.

Lições, aponta ele, que muitas vezes parecem ter sido esquecidas.

O que aconteceu nesses anos? Por que a política anti-intervenção foi tão ruim?

Os gastos e empréstimos do governo dos EUA dispararam durante a Primeira Guerra Mundial.

Mais tarde, à medida que a economia tentava adaptar-se aos tempos de paz, as pessoas correram para comprar bens que anteriormente eram racionados — e a inflação aumentou.

Além disso, as tropas que voltaram para casa aumentaram rapidamente a força de trabalho buscando emprego.

À medida que a recessão se instalou, os preços caíram e a atividade empresarial entrou em colapso, mas a Reserva Federal insistiu em aumentar os impostos.

Quase 500 bancos nacionais faliram em 1921, quando a produção industrial parou e o desemprego dobrou.

Isto pode parecer devastador, mas Sharma diz que a abordagem de não intervenção — deixar a crise continuar o seu curso, sem injetar dinheiro na economia e sem intervir para salvar os bancos — funcionou.

A abordagem permitiu que aqueles com fraco desempenho fossem eliminados da economia e que a crise terminasse em apenas 18 meses, argumenta.

“Temos uma prosperidade incrível após o período sem intervenção”, observa. “À medida que as pessoas aprendem a seguir sem intervenções, os fracos são escanteados.”

E na atualidade?


Ao contrário do que aconteceu naquele momento, em anos mais recentes, as respostas dos governos e dos bancos centrais às crises econômicas têm sido muito diferentes. (Getty Images)

Há o exemplo da crise de 2008, quando grandes bancos foram resgatados.

“A recuperação econômica [dessa crise] foi fraca. Muitos economistas pensaram que a lição foi que deveríamos ter feito mais”, diz Sharma.

Alguns anos depois, na pandemia de covid-19, no meio de uma brutal crise humana e econômica, mais uma vez as autoridades intervieram injetando grandes quantias de dinheiro.

“Os governos anunciaram grandes planos de isolamento social e geriram meios de estímulo. A ideia era a de que era melhor errar por excesso do que por falta de ação", afirma o autor.

“Sim, os governos devem intervir nas crises. Mas desta vez o estímulo foi tão grande que fez com que a inflação e também os preços dos ativos subissem.”

Ele se opõe, salienta, ao excesso de intervenção estatal e monetária.

Sharma diz que, até a década de 1970, as autoridades relutavam para intervir na economia e salvar o setor privado.

O problema é que agora "existe uma cultura de resgate".

Intervir em épocas de crise

Autor fez quase toda a carreira em Wall Street (Getty Images)

Do outro lado da balança, há muitos economistas que defendem intervenções econômicas em tempos de crise.

Um deles é Ben Bernanke, antigo presidente da Federal Reserve, o banco central dos EUA, que liderou o resgate ao banco de investimento Bear Sterns no início de 2008.

“Fiquei preocupado, mas senti-me muito confortável com a decisão”, disse Bernanke ao programa Marketplace da BBC, uma década após o resgate.

“Se o Bear Stearns tivesse falido de forma descontrolada, isso teria repercutido no sistema financeiro, causando muitos danos.”

Pouco depois, outros bancos de investimento ficaram à beira do abismo e Alistair Darling, então ministro da Fazenda do Reino Unido, interveio no maior resgate bancário da história britânica.

“Claro que é assustador, foi como uma catástrofe batendo na porta. Mas demorei um nanossegundo para pensar que não poderíamos deixar isso acontecer.”

Quem está certo então? Deveriam os políticos intervir e apoiar as empresas privadas em momentos de crise, ou a sociedade deveria aceitar o sofrimento a curto prazo para obter ganhos de produtividade futuros?

Por ora, Ruchir Sharma diz que alguns planos devem ser delineados, antes que a próxima crise chegue.

“Vamos traçar os limites agora”, diz ele, sugerindo que os governos tenham um roteiro caso ocorra uma crise financeira.

"Vamos fazer um plano hoje”, diz ele. “Não sinto que estejamos nos planejando."

Vivienne Nunis, a autora deste artigo, é jornalista do programa de rádio da BBC Business Daily e entrevistou Ruchir Sharma em Londres. Este texto foi adaptado a partir do programa de rádio. Publicado na BBC News, em 28.10.24

sábado, 26 de outubro de 2024

Os munícipes que não reclamam

Como uma obra literária inacabada, Graciliano Ramos não terminou o mandato em Palmeira dos Índios, mas seus relatórios deixam reflexões sobre o papel do prefeito


Graciliano Ramos, o Prefeito, famoso pelos seus Relatórios de Gestão

Na gestão em que se dedicaria a equilibrar as contas do município, enfrentar o desperdício e a ineficiência na administração, extinguir favores a compadres, pôr fim às extorsões que afligiam os mais pobres e, o mais inconveniente, relatar de forma clara e honesta o que fez e o que não conseguiu fazer durante o mandato, o prefeito de Palmeira dos Índios escreve, após o primeiro ano de trabalho: “Há descontentamento. Se a minha estada na prefeitura (...) dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos”.

O prefeito impopular, bem como o dono da autoavaliação seca, irônica e sobretudo literária, era Graciliano Ramos. O futuro romancista administrou Palmeira dos Índios, próxima a sua cidade natal, Quebrangulo, de janeiro de 1928 a abril de 1930, e no começo de cada ano escreveu relatórios de prestação de contas ao Conselho Municipal e ao governo de Alagoas. Desde aquela época os balanços da prefeitura chamaram a atenção da imprensa pela qualidade literária, e agora estão reunidos no livro O Prefeito Escritor: Dois Retratos de uma Administração (Record, 2024).

A leitura de texto tão burocrático, “com algarismos e prosa de guarda-livros”, interessa quase cem anos depois em primeiro lugar pelo que se pode antever do estilo do autor de Vidas Secas, já elogiado pelos contemporâneos dos relatórios. Em um trecho sobre os custos da administração, por exemplo, o prefeito escreve: “E lá se vão mais de trinta contos gastos sem uma varredela nas ruas, um golpe de picareta nas estradas, um professor, mesmo ruim, na Brecha ou no Anum”. Aos leitores atuais de Graciliano, interessa também o aspecto biográfico dos documentos, que ajudam a compreender o pensamento do homem que se tornaria preso político mais tarde. Por fim, para um público mais amplo, a leitura dos balanços interessa hoje porque muitos dos problemas que o prefeito escritor teve de lidar na Palmeira dos Índios do fim da década de 1920 o Brasil ainda enfrenta, como o patrimonialismo e o clientelismo.

No começo do mandato, diz um documento, o prefeito encontrou obstáculos dentro e fora da prefeitura: “Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro”. A dificuldade de arrecadação do município, o que o autor explica por serem todos, prefeitos e contribuintes, mais ou menos compadres, foi um dos desafios em que Graciliano teve sucesso durante a gestão, marcada pelo aumento da receita, mas também pela impopularidade.

Austero com uns, incluindo amigos e familiares, o prefeito registrou gastos com serviços públicos sanitários e de instrução, investiu nos subúrbios e aliviou a arrecadação dos mais pobres, estabelecendo “a equidade que torna o imposto suportável”. “Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.” Quanto aos prestadores de serviço da prefeitura, se não foram valorizados pelo gestor, ao menos constam nos relatórios exemplos de indignação com as remunerações pagas a eles (“uns pobres homens que se esfalfam para não perder salários miseráveis”).

O corte de gastos nem sempre era possível, como no contrato para o fornecimento de energia elétrica firmado em outra gestão, no qual a cidade pagava “até a luz da Lua”. “Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras”, graceja o prefeito. Se era obra importante mas prorrogável, ele adiava, a exemplo da construção do cemitério novo: “Os mortos esperarão mais um tempo. São os munícipes que não reclamam”. E enterrava os recursos na conservação.

“Aí está, em traços largos, o estado em que se encontra a Prefeitura de Palmeira do Índios”, conclui o prefeito no primeiro relatório. Do interior de Alagoas, os documentos chegaram até o editor Augusto Frederico Schmidt, no Rio de Janeiro, que imaginou que quem escreve um relatório de prestação de contas com tamanha graça deveria ter um romance na gaveta. E tinha mesmo. Caetés, o primeiro livro de Graciliano Ramos, foi escrito durante a gestão, e saiu pela editora de Schmidt em 1933. O romance, aliás, se passa em Palmeira dos Índios, e tem como protagonista um guarda-livros que deseja ser escritor e fazer parte da elite social da cidade.

Como uma obra literária inacabada, Graciliano não terminou o mandato, mas seus relatórios deixam reflexões sobre o papel do prefeito, esse cargo cada vez mais esquecido em relação às pautas de política nacional que dominam as conversas nos ônibus e padarias, mas fundamental para o lugar onde a vida acontece, ou seja, o município.

Matando-lhe “o bicho do ouvido”, as reclamações fizeram parte do começo ao fim da gestão do escritor, inclusive colaborando para a renúncia. Mas a indiferença da população à política local não ajudaria Graciliano a construir uma cidade mais próspera e justa. Pelo contrário, o prefeito escreve: “Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene. É exigente e resmungão”. A apatia política, em vez disso, tende a buscar soluções tão fáceis quanto falsas, não se importando em destruir o que não afeta mais. É melhor que reclamem.

Amanda Calazans, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em26. 10. 24

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

'Não tem que ter propaganda' de casas de apostas, diz diretora de saúde mental do governo sobre as 'bets'

Um levantamento feito pela consultoria Kantar Ibope e divulgado no início do mês pela revista Meio & Mensagem, aponta que, apenas em janeiro, as casas de apostas haviam injetado pelo menos R$ 2,4 bilhões no mercado publicitário do país em 2024.

 Imagem de tela de celular com campo de futebol e o termo 'Bet'

Na TV, no celular, no computador ou nos estádios brasileiros, as operadoras de apostas online, popularmente conhecidas no Brasil como "bets", são quase onipresentes. (Getty Images)


Mas para a diretora do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Sônia Barros, as empresas que atuam no ramo de apostas online não deveriam poder anunciar os seus serviços da forma como acontece agora.

"Não tem que ter propaganda [...] É a ausência de propaganda que faz mais efeito do que as caixinhas", disse Barros em entrevista à BBC News Brasil na semana passada.

A lei que regulamentou o funcionamento das chamadas "bets" no Brasil proíbe a publicidade desses serviços para crianças, não impõe proibições ou faixas de horário para a propaganda como ocorre com bebidas e cigarros.

Barros é doutora em Enfermagem, professora titular aposentada do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da USP e, desde 2023, comanda a diretoria de Saúde Mental do Ministério da Saúde

Na entrevista, Barros admite que o Brasil não estava preparado para o aumento na utilização das bets resultante da liberação em 2018 e da posterior regulamentação do setor feita durante o primeiro ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"O país como um todo não está preparado para esse aumento. Vemos, por exemplo, que o Congresso, que autorizou o jogo há quatro anos, agora está surpreso com a repercussão que isso tem na vida das pessoas", afirmou.

Ela diz ainda que o governo ainda não tem um diagnóstico sobre qual o tamanho da crise gerada pelo uso indiscriminado deste tipo de plataforma, embora dados do próprio ministério apontem para um aumento no número de atendimentos de pessoas relatando problemas com a compulsão pelos jogos.

Segundo a pasta, entre 2022 e 2023, houve um aumento de 53% no número de atendimentos relacionados a transtorno do jogo patológico no Sistema Único de Saúde (SUS).

Foram 1.290 atendimentos naquele ano contra 841 em 2022. Os dados parecem ainda mais alarmantes quando comparados ao registrado em 2018, ano em que as apostas online foram liberadas. Naquele ano, houve apenas 108 atendimentos, um número mais de 10 vezes menor que o registrado no ano passado.

Em meio às críticas geradas pelos casos de abuso e aumento do endividamento de usuários de apostas online, Barros admitiu que o governo não tinha um diagnóstico preciso sobre os impactos sociais e na saúde mental da população durante a regulamentação.

Ela disse, por exemplo, que o Ministério da Fazenda, que conduziu a regulamentação, não chegou a pedir um relatório sobre o assunto, mas que o Ministério da Saúde participou das discussões sobre o tema e conseguiu emplacar mecanismos que, segundo ela, reduziriam danos aos usuários.

Na entrevista, Barros também falou sobre as dificuldades para se encontrar soluções para as chamadas "cracolândias", o aumento no número de casos de "burnout" no país e os impactos da descriminalização do porte da maconha para uso pessoal.

Confira os principais trechos da entrevista:


Sônia Barros comanda a diretoria de Saúde Mental do Ministério da Saúde desde 2023 (Ag. Brasil)

BBC News Brasil – Qual é o tamanho do problema das bets no Brasil hoje em relação à saúde mental?

Sônia Barros - Nós não sabemos por que isso é um fenômeno novo para o Brasil. Os jogos, no Brasil, existem desde o século passado, mas com a abertura que foi feita em 2018 é que começamos a identificar o problema.

Temos muitos grupos de estudos que começaram a se dedicar a esse tema e nós, aqui no Ministério da Saúde, começamos a tentar identificar também quem é que está atendendo essa população dentro do SUS.

O que a gente conseguiu perceber é que houve um aumento no número de atendimentos, mas não podemos saber se houve aumento no número de pessoas atendidas.

Não podemos dizer que houve uma causalidade e que houve aumento no número de pessoas que nos procuraram. A gente supõe que sim, mas também supomos que, hoje, há uma preocupação maior em se fazer o registro, o diagnóstico, dada a visibilidade que o tema ganhou.

BBC News Brasil – O Brasil estava preparado para o avanço das bets?

Barros - O país como um todo não está preparado para esse aumento. Vemos, por exemplo, que o Congresso, que autorizou o jogo há quatro anos, agora está surpreso com a repercussão que isso tem na vida das pessoas.

Eu digo ‘surpreso’ considerando as declarações que a gente escuta. Esta gestão, logo no primeiro ano de governo, se preocupou em fazer uma regulamentação [das apostas online] porque [no passado] haviam sido autorizadas [as apostas online] sem qualquer regulamentação. Foi o jogo pelo jogo.

O Ministério da Saúde foi procurado já o ano passado pelo Ministério da Fazenda, que já nos trazia essa preocupação. Diziam: "Olha, nós vamos regulamentar e estamos preocupados com a saúde das pessoas".

Então, desde o ano passado, o Ministério da Fazenda nos convidou e tivemos a preocupação de contribuir para a regulamentação no sentido da prevenção, da redução de danos e encaminhamento [de pacientes] para o cuidado.

BBC News Brasil – Dados apontam que a senhora teria tido apenas duas reuniões sobre o assunto...

Barros – É um equívoco. Me reuni sobre o assunto uma vez no ano passado e, neste ano, pelo menos seis vezes. Houve outras reuniões. Em algumas, eu não estive, mas outros técnicos foram. Mas o que isso significa?

BBC News Brasil - O que queremos saber é: o quanto a saúde mental da população brasileira foi levada em consideração ao longo do processo de regulamentação?

Barros – Eu posso te afirmar que, sim. Foi [considerado]. Nós pudemos contribuir no processo de regulamentação fazendo sugestões, prevendo a possibilidade de redução de danos, das travas [para vetar apostadores vulneráveis].

BBC News Brasil – No conjunto de documentos preparatórios divulgados pelo Ministério da Fazenda via Lei de Acesso a Informação sobre a medida provisória que regulamentou o funcionamento das bets, não consta nenhum relatório elaborado pelo Ministério da Saúde nem pela sua diretoria sobre os potenciais impactos à saúde mental das pessoas por conta das bets. O governo deveria ter procurado vocês ao longo do processo para tratar deste assunto?

Barros - Mas nós fomos procurados e nós conversamos bastante com o ministério.

BBC News Brasil - E vocês elaboraram um parecer ou um relatório?

Barros - Não. Nós participávamos da discussão fazendo sugestões que foram perfeitamente acatadas.



Governo considera que ação na área das apostas deve ser na linha da 'redução de danos' (Getty Images)

BBC News Brasil - Quais sugestões?

Barros – Fizemos sugestões para criar mecanismos para ajudar a redução de danos e sobre a prevenção da patologia [transtorno do jogo patológico]. Eram sugestões sobre travas para jogadores com problemas e para permitir a autoexclusão de jogadores.

As sugestões foram acatadas. Não tem relatório porque não foram pedidos. O que nos interessava era poder contribuir para que as pessoas tivessem menos danos com a questão do jogo [...] Já que foi permitido, uma vez que ninguém consultou a população quando foi autorizado, a ideia é fazer o que for possível para reduzir ao máximo possível os efeitos negativos disso na vida das pessoas.

BBC News Brasil - Considerando que o jogo, esse tipo de jogo estava autorizado desde 2018, ainda que não regulamentado, quão necessário era ter um diagnóstico sobre o impacto das apostas online antes da regulamentação?

Barros – Acho que você deve perguntar ao Ministério da Fazenda, que é o responsável por essa regulamentação. O que nos cabe é o que estamos fazendo como, por exemplo, adotar medidas para expandir a rede [de atenção psicossocial] para poder atender as pessoas que tem um sofrimento mental por causa disso.

É importante lembrar o seguinte: o jogo causa sofrimento mental? Sim. Mas também precisamos entender que as pessoas procuram o jogo porque têm sofrimento mental e buscam [no jogo] algum tipo de alívio. Nós precisamos expandir a rede e estamos com projetos de capacitação de trabalhadores da rede de saúde mental.

Além disso, estamos planejando uma ampla campanha de divulgação para a prevenção com avisos em relação ao risco e aos danos que os jogos podem causar.

BBC News Brasil – Já há uma data para o início dessa campanha?

Barros – Ainda não saberia dizer porque estamos preparando isso de forma muito cuidadosa [...] A ideia é que ela ajude a prevenir situações, promova a saúde e mostre os riscos. É claro que, na sequência, vamos ter necessidade de outras capacitações, de outras campanhas, mas essas são as medidas mais emergenciais.

Estamos, também, priorizando a habilitação de novos serviços CAPS AD [Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas], que seriam os mais preparados para lidar com isso, considerando que o jogo pode ser considerado uma adição [vício].

É importante dizer, no entanto, que qualquer CAPS do Brasil, tem condições de atender pessoas com problemas relacionados aos jogos.

BBC News Brasil – Especialistas com quem conversei me disseram exatamente o contrário. Eles afirmam que os CAPS não são preparados para essa nova realidade e que não teriam expertise para tratar do transtorno do jogo patológico...

Barros - O transtorno de jogo patológico, como qualquer transtorno da adição, requer as mesmas medidas. E se alguém te disse diferente, eu desconheço. Você deve estar se referindo a entrevistas dadas por trabalhadores em saúde mental que disseram que não estamos preparados [para atender esse público]. Aí, é preciso ponderar.

Estamos saindo de um período de gestão em que os CAPS foram completamente desmobilizados e danificados de todas as formas. As pessoas não têm capacitação há muito tempo, os CAPS não tinham reajuste há muito tempo... saímos de uma situação caótica [...] Quando o trabalhador diz que não tem capacitação, isto é verdade e por isso estamos providenciando. O serviço tem limitações? Sim, sem dúvida.

Com relação ao tratamento [para jogo], nós fizemos uma revisão da literatura internacional sobre o assunto, que é muito recente, e não há diferença significativa para o tratamento de outras adições, como álcool e drogas.

É claro que cada pessoa tem sua singularidade, assim como cada problema de saúde mental tem a sua, mas não existem grandes diferenças de tratamento para a compulsão pela droga, álcool ou pelos jogos. São os mesmos tratamentos: psicoterapia e medicamentos, quando necessário.

BBC News Brasil – Esses especialistas também dizem que os governos vêm priorizando o viés de arrecadação em detrimento do impacto que as bets têm na saúde mental das pessoas. A senhora concorda com essa afirmação?

Barros - Acho que, mais uma vez, você tem que buscar o governo. Tanto aquele que liberou [gestão Michel Temer] quanto aquele que está regulamentando. 


Publicidade das casas de apostas é ponto a ser atacado, diz Sônia Barros (Getty Images)

BBC News Brasil – Mudando um pouco de assunto, dados divulgados pelo próprio Ministério da Saúde no primeiro semestre indicavam que apenas 38% dos municípios brasileiros tinham pelo menos um CAPS, que é uma das estruturas mais conhecidas do atendimento à saúde mental. O que explica esse vazio?

Barros - Neste momento, dos municípios que poderiam ter CAPS, aproximadamente 1.000 não têm. E não tem por que, muitas vezes, o município não pede ao Ministério da Saúde para implantar um CAPS. A gente vive pensando em formas de estimular um município a ter um CAPS.

Algumas vezes, isso ocorre porque o município já tem uma rede de atenção básica que acaba suprindo essa demanda de saúde mental. [Esses vazios] não existem porque nós não estimulamos ou não queiramos que os municípios tenham CAPS, mas somos entes federados e nós não podemos chegar num município e obrigá-lo a ter um CAPS. Isso tem que vir da autoridade municipal.

Tem também um outro fator: nós estávamos há quase 10 anos sem um reajuste nas verbas destinadas pelo governo federal à manutenção dos CAPS e isso é um desestímulo aos municípios. No ano passado, a gente fez uma recomposição e neste ano saiu outra e ainda deve sair mais uma neste ano.

BBC News Brasil – Neste ano, o tema das chamadas "cracolândias" ou "cenas de uso de drogas", voltou a pautar debates nas eleições municipais de São Paulo e de outras cidades. Por que é tão difícil encontrar uma solução para ele?

Barros - É difícil porque não está relacionado apenas ao uso da droga. Esse problema está relacionado a diversos fatores que têm a ver com a vida das pessoas e com a vida que, por vezes, é escolha dela, mas que também é determinada por outras circunstâncias. Para ter uma ação nesses grupos e segmentos é preciso ter uma ação intersetorial fortíssima.

É preciso incluir soluções de moradia, geração de renda, raça e gênero. Temos determinantes sociais agindo fortemente e determinando fortemente como essas pessoas vivem. Não é só por desejo delas. Temos um pensamento, e isso se aplica ao jogo, em que se pensa que o vício, seja sobre substâncias como drogas ou o jogo, é tido como um problema de caráter e não como uma doença.

BBC News Brasil – E qual é a estratégia do governo federal para esse assunto?

Barros - Nós estamos trabalhando em conjunto com a Secretara Nacional de Políticas de Drogas [vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública]. Nós cuidamos da política de atenção às pessoas [...] nós temos trabalhado com cenários para pensar em como reduzir ou dar alguma diretriz para essa questão das cenas de uso.

BBC News Brasil - Tem algum prazo para que essa estratégia seja lançada?

Barros - Não tem prazo porque pensar um projeto desse tipo implica encaminhamentos diferentes, como, por exemplo, para a questão da moradia. E isso o Ministério da Saúde não tem como resolver sozinho.

Estamos buscando essas parcerias [...] Enquanto isso, o que temos são os grupos que têm trabalhado com a população de rua, na redução de danos e tentando buscar residências para essa população. Sabemos que isso é uma medida ainda pequena e que precisa ser ampliada e que precisa ser vista como uma política maior.

BBC News Brasil - Nesse ano, o STF descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal. Quais os impactos já sentidos na rede de saúde pública em decorrência dessa decisão?

Barros – Não detectamos nada, por enquanto. Na semana passada, tive uma reunião com os coordenadores estaduais de saúde mental e com os que atuam nas capitais e não houve nenhum relato sobre isso.

Também não houve nenhum aumento na busca por atendimento. No entanto, como existe essa expectativa, o Ministério da Saúde e a Senad estão trabalhando conjuntamente para pensar em como vamos lidar com essa decisão [...] O que precisamos é pensar como será feito o encaminhamento do usuário.

O fato de que não haverá uma punição criminal não significa, necessariamente, que todo usuário pego com maconha será um problema de saúde.

BBC News Brasil – Qual sua avaliação sobre essa decisão do ponto de vista da saúde mental? A decisão foi satisfatória?

Barros - Acho que é uma situação que não tem bom nem mau, né? O que nós entendemos é que fazer o uso dessa quantidade de maconha, isto porque não estamos falando de todas as drogas, aparentemente não é prejudicial.

Lembrando sempre que a questão do uso de drogas ou do jogo envolve outras questões de sofrimento mental. Isso tem a ver com o que antecede esse uso. O que leva as pessoas a esse uso.

BBC News Brasil – Dados apontam que houve um aumento no número de casos da síndrome de burnout no Brasil. O Brasil saiu de 178 afastamentos laborais por burnout em 2019 para 421 em 2023. O Brasil vive uma epidemia de burnout?

Barros - Eu não creio que o Brasil viva uma epidemia de burnout. Temos que ver que muitas coisas aconteceram neste período. Desde um governo que, no meu ponto de vista, exaltava a violência e a tensão entre as pessoas, passando por uma epidemia [Covid-19] que matou muita gente [...] Foi um momento bastante crítico para se analisar. Há também o fato de que, agora, há mais gente estudando o tema e isso dá uma dimensão maior do problema. Mas não estou dizendo que o problema não existe. Estou apenas dizendo que ele começa a ter uma maior divulgação

BBC News Brasil – Gostaria de encerrar entrevista com mais uma pergunta sobre as bets. A senhora comparou o tratamento ao jogo compulsivo ao dado à dependência de drogas e álcool. Hoje, no Brasil, há regras rígidas sobre a publicidade para bebidas alcóolicas e cigarros. Qual deveria ser o limite para a publicidade das bets?

Barros - Do meu ponto de vista, deveria ser igual ao cigarro. Começou tirando as grandes figuras, as grandes imagens e depois proibiu.

BBC News Brasil – Na sua opinião, as bets deveriam ser proibidas de anunciar?

Barros - Deveria. A propaganda faz o que é papel dela que é seduzir e convencer o outro de que aquilo é um sinal de bem-estar, de estar bem na vida. Tudo o que ela produz é no sentido de criar uma imagem de que aquilo é só benefício. Veja as figuras que eles trazem [para fazer propaganda]. São todos bem-sucedidos. Não tem ninguém ruim de vida. É isso o que a propaganda traz.

Então, não tem que ter propaganda. É como no cigarro. Há um estudo que diz que o que faz efeito [sobre as pessoas] não é exatamente as imagens que estão nas caixinhas [de cigarro]. Aquilo, parece, não tem efeito sobre as pessoas. É a ausência de propaganda que faz mais efeito do que as caixinhas.

BBC News Brasil - E a senhora acha que há um ambiente para que isso de fato ocorra no Brasil?

Barros - Não sei dizer. Eu creio que haverá uma forte tendência a colocar limites e limites sobre quem faz [a publicidade] e como faz. Mas garantir se será banido, eu não sei dizer. Apesar do interesse do grande capital porque o comércio e os bancos estão dizendo que o dinheiro está "fugindo". É preciso saber quem vai ganhar essa queda de braço entre o capital internacional e as betas.

Leandro Prazeres, o autor deste  artigo, é repórter da BBC News Brasil em Brasília. Publicado em22.10.24.

'Precisamos odiar os ultraprocessados para deixar de comê-los', diz autor de best-seller sobre indústria de alimentos

O médico e escritor Chris van Tulleken defende que, em prol da saúde pública, alimentos ultraprocessados recebam o mesmo tratamento dado aos cigarros.

O médico Chris van Tulleken defende uma maior regulamentação sobre os alimentos ultraprocessados (Jonny Storey 2023). 

Infectologista do Hospital de Doenças Tropicais de Londres, professor da Universidade College London, no Reino Unido, e apresentador de alguns programas na BBC, ele também é autor do livro Gente Ultraprocessada - Por que Comemos Coisas que Não São Comida, e Por Que Não Conseguimos Parar de Comê-las (Editora Elefante).

A obra virou best-seller, ganhou prêmios e foi recentemente traduzida e lançada em português.

Mas as conexões do trabalho de van Tulleken com o Brasil são bem mais antigas.

Isso porque o conceito de ultraprocessados foi desenvolvido pela equipe liderada pelo epidemiologista brasileiro Carlos Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) — que, inclusive, assina o prefácio do novo livro.

O médico britânico confessa que duvidou do conceito de ultraprocessados de início e achava que os malefícios apontados nos estudos estavam relacionados apenas aos excessos de gordura, açúcar e sal presentes em muitos desses produtos.

Para colocar a ideia à prova, ele resolveu se submeter a uma pesquisa, em que radicalizou a própria dieta e passou a comer basicamente alimentos ultraprocessados.

Entre muitos outros detalhes e informações contidas no livro, ele detalha tudo que passou durante a experiência.

Em entrevista à BBC News Brasil, van Tulleken sugere que países e governos tomem ações mais contundentes para diminuir o consumo de ultraprocessados entre a população.

Na opinião dele, as grandes redes alimentícias vão destruir as culinárias tradicionais nos próximos 50 anos — e não há muito o que as pessoas individualmente possam fazer para mudar esse cenário (ou a própria dieta).

Confira os principais trechos da entrevista a seguir.

BBC News Brasil - Você tem uma formação em infectologia e virologia molecular. De onde surgiu o interesse acadêmico e científico pela alimentação?

Chris van Tulleken - Ainda como um jovem médico, trabalhei em países de renda baixa e média, especificamente na África Central e no Sudeste Asiático. E, como infectologista, testemunhei crianças morrendo por causa de doenças infecciosas.

Muitas dessas crianças morreram porque seus pais foram convencidos a comprar fórmulas infantis, muitas vezes sem condições financeiras, e eles não tinham acesso à água potável para prepará-las. Muitas vezes, eles também não sabiam como fazer o preparo dessas fórmulas.

Esse foi o meu primeiro contato com a indústria alimentícia, sobre a qual faria investigações no futuro.

Alguns anos depois, eu participei de alguns programas da BBC nos quais comecei a focar nos determinantes comerciais da saúde, ou como algumas corporações, principalmente as empresas que fabricam alimentos, afetam todos nós.

BBC News Brasil - Você se lembra da primeira vez que ouviu o termo “alimento ultraprocessado”?

Van Tulleken - Sim, isso aconteceu em 2009, quando uma produtora da BBC me encaminhou um artigo científico enquanto estávamos produzindo um documentário sobre obesidade infantil.

Esse artigo estava escrito metade em português, metade em inglês, e havia sido publicado num periódico de saúde brasileiro. Para mim, à época, não pareceu muito importante e ignorei o assunto por um longo tempo.

Quando finalmente li o artigo, senti que ali estava a explicação para tudo. Esse foi meu instinto.

Na sequência, fiz muitas outras leituras e transformei esse tema no meu objeto de pesquisa como cientista. Passados alguns anos, posso dizer que aquele meu instinto inicial estava correto e o conceito de ultraprocessado de fato explica como esses alimentos nos prejudicam

BBC News Brasil - No livro, você diz que duvidou do conceito de ultraprocessados, pois achava que os danos relacionados a muitos alimentos poderiam ser causados pelo excesso de sal, gordura e açúcar. Quais foram os motivos que levantaram essa suspeita?

Van Tulleken - Como mencionei, meu primeiro instinto foi que aquele conceito explicava tudo. Mas, num segundo momento, pensei: será que ele realmente é verdadeiro? Ou será que o prejudicial desses alimentos é o sal, o açúcar e a gordura?

É difícil explicar a emoção que senti nesse momento, mas foi um misto de curiosidade com ceticismo.


No livro lançado em português, van Tulleken detalha tudo que viveu quando fez uma dieta quase que completamente baseada nos ultraprocessados (Divulgação / Editora Elefante)

BBC News Brasil - Depois desses anos de pesquisa, na sua opinião, qual a forma mais simples de explicar o que é um ultraprocessado?

Van Tulleken - Se você pegar um alimento e precisar ler a lista de ingredientes, provavelmente estará diante de um ultraprocessado.

E, se nessa lista, aparecem ingredientes que você não encontra em qualquer cozinha ou despensa, definitivamente está diante de um ultraprocessado.

Esse conceito é uma maneira de descrever a maioria dos produtos que são feitos por corporações alimentícias transnacionais.

Há algumas exceções. A Nestlé, por exemplo, fabrica um cereal de trigo que não é tecnicamente um ultraprocessado.

Mas a maioria dos produtos que garantem dinheiro para Nestlé, Danone, Pepsico, Kraft Heinz, Coca-Cola, Mondelez e outras dessas empresas são ultraprocessados.

Estou conversando com você de um quarto de hotel e aqui na minha frente há um cesto com uma barra de castanhas, uma barra de chocolate, chicletes e um pacote de nozes e castanhas temperadas. Tudo isso é ultraprocessado.

BBC News Brasil - No livro, você faz comparações entre a indústria alimentícia e a indústria do tabaco, e também entre ultraprocessados e cigarros. Na sua visão, quais são as semelhanças e as diferenças entre esses dois setores e esses dois produtos?

Van Tulleken - Bem, essas indústrias não são apenas semelhantes. Elas são a mesma coisa.

Em meados dos anos 1980, uma das maiores companhias de cigarro do mundo, a RJ Reynolds, comprou a Nabisco, uma enorme empresa alimentícia.

Nessa mesma época, a Philip Morris [indústria tabagista] comprou a General Foods [de alimentos].

Falamos, então, dos mesmos conglomerados [embora essas empresas tenham sido desmembradas e mudado de mãos nas décadas seguintes]. Eles usam as moléculas testadas em laboratório para os cigarros, como os aromatizantes, nos alimentos. Eles usaram as mesmas técnicas de marketing e as mesmas redes de distribuição para vender comida que é viciante e danosa, do mesmo modo que fizeram com os cigarros.

Essa comparação, portanto, é muito legítima.

Hoje em dia, essas empresas são controladas pelos mesmos investidores institucionais e seguem se comportando de maneira parecida.

Para mim, é muito importante que as pessoas entendam que a indústria tabagista não é excepcional ou um caso único.

Comida, cigarro, álcool, apostas, combustíveis fósseis e remédios, todos eles são governados pelo mesmo rol. E todos precisam de algum tipo de regulamentação, com algumas nuances para casos específicos.

BBC News Brasil - Nós comumente pensamos que a obesidade está relacionada a uma conta matemática, que envolve o consumo de calorias, por meio da alimentação, e o gasto delas, através da atividade física. Essa equação faz sentido?

Van Tulleken - Quando pensamos em casos extremos, como um ciclista que faz o Tour de France ou um nadador olímpico, é claro que eles queimam mais calorias do que uma pessoa comum.

Mas ser mais ativo não altera de maneira significativa o número de calorias que você queima.

O que isso significa? Bem, se um brasileiro desistir de seu trabalho sedentário no Rio de Janeiro como médico ou jornalista e decidir viver na floresta, num estilo de vida ancestral, provavelmente ele não vai queimar muitas calorias a mais.

Essa observação parece contraintuitiva, eu sei, mas ela vem de estudos de altíssima qualidade.

O que as evidências recentes nos mostram é que um indivíduo, como eu, vai queimar 3 mil calorias por dia, independentemente se vivo como um caçador-coletor ou se decido investir na minha carreira de médico e escritor.

E isso explica o porquê de o exercício ser tão benéfico para nós. Quando fazemos atividade física, nós meio que “roubamos” essa queima de calorias de outras partes do corpo.

Ou seja, eu tenho que tirar energia que seria usada para outras coisas, como a ansiedade, a inflamação e a produção de altos níveis de hormônios reprodutivos.

O exercício é bom para nós porque gastamos menos energia com coisas como ansiedade ou inflamação. Mas ele não chega a modificar significativamente o número de calorias que queimamos.

No meu capítulo favorito do livro, explico que a maioria dos estudos que falam o contrário — ou seja, que nós queimamos mais calorias quando fazemos exercícios — foram patrocinados pela indústria das bebidas açucaradas.

Ou seja, nós temos evidências boas e independentes dizendo que o exercício não queima mais calorias — e um conjunto de estudos que diz o contrário, mas que foi financiado pela indústria das bebidas açucaradas.

BBC News Brasil - Ainda sobre essa questão, nos últimos anos vimos a ascensão e o aumento da popularidade de remédios para tratar a obesidade. No seu ponto de vista, esses fenômenos — aumento do consumo de ultraprocessados, crescimento da obesidade e surgimento de novos remédios para lidar com o excesso de peso — estão de alguma maneira interligados?

Van Tulleken - O interesse privado não faz dinheiro se resolver a crise da obesidade. Claro, haveria um grande benefício em termos de saúde pública e economia, mas isso não beneficia as corporações.

A indústria alimentícia nos vende comida que engorda porque eles precisam fazer isso. Essa é a única maneira deles lucrarem. Eles precisam vender alimentos que levam a um excesso de consumo, a um exagero, para que possam fazer mais e mais dinheiro.

Imagine uma empresa alimentícia que vendesse comida para satisfazer as pessoas. Ou seja, os consumidores não precisariam comprar grandes quantidades, apenas o necessário. Como essa companhia poderia competir?

Acredito que a indústria alimentícia precisa vender esses produtos para que elas próprias continuem a existir.

Nesse contexto, faz muito sentido que as empresas farmacêuticas proponham e vendam soluções para esse problema na forma de novos medicamentos.

A comparação que faço aqui é entre o cigarro, a quimioterapia e o câncer de pulmão.

Não é como se a indústria do tabaco e as farmacêuticas tivessem se reunido algum dia para combinar: olha, eu causo o câncer e você cria a cura para essa doença.

Claro, é muito importante celebrar a existência da quimioterapia, que ajuda a tratar muitos pacientes. Isso é excelente. Assim como é importante ter drogas antiobesidade, porque elas podem ajudar muitas pessoas.

Mas a quimioterapia não pode nos distrair da terrível tragédia de saúde causada pelo cigarro, que vai muito além do câncer.

O mesmo vale para os remédios que tratam a obesidade. Eles funcionam relativamente bem, mas não são a solução para todos os problemas relacionados àquilo que comemos. Essas drogas não curam a ansiedade, a depressão, o câncer, a inflamação, as doenças intestinais e os problemas cardiovasculares.

Não deveríamos nunca deixar as pessoas doentes para só depois cuidar delas. Seria muito mais barato e efetivo melhorar a dieta de crianças, regulamentar a indústria alimentícia e incentivar que todos vivam de forma saudável.

Isso é algo factível, basta apenas limitar o poder da indústria alimentícia.

O Dr. van Tulleken é professor na Universidade College London e apresentou programas na BBC (Jonny Storey 2023)

BBC News Brasil - No livro, você diz que não deseja passar recomendações de dieta ou mudar a alimentação de ninguém. Por que você tomou essa decisão?

Van Tulleken - O livro faz uma reflexão sobre o tema, mas não tem a pretensão de oferecer dicas práticas para o dia a dia. E o primeiro motivo disso é porque não existem soluções para o indivíduo.

Eu, inclusive, convido as pessoas a lerem o livro enquanto comem alimentos ultraprocessados. Ao final, muitos leitores me disseram que não queriam mais ingerir aquilo.

A verdade é que, mesmo assim, não existe uma solução. Por mais que a pessoa se sinta enojada com esse tipo de comida, é praticamente impossível evitá-la no dia a dia.

Você trabalha num escritório da BBC em Londres, e a comida vendida aí é ultraprocessada. Mesmo se você sair do prédio e decidir fazer uma refeição em algum estabelecimento nas proximidades, a grande maioria deles vai vender apenas ultraprocessados.

Esses alimentos estão nos postos de gasolina, nos aeroportos e praticamente em todo o lugar. Eles nos cercam, não importa onde vamos. E, muitas vezes, os ultraprocessados são a única comida que as pessoas conseguem pagar nos supermercados. Então, me parece um tanto cruel sugerir que elas deixem de consumi-lo.

Parte da minha decisão de não indicar mudanças de dieta vem dessa falta de esperança, de não achar muito gentil dizer às pessoas para mudar.

Estou verdadeiramente interessado no sistema alimentar. E desejo que o livro reduza a vergonha e o estigma que as pessoas sentem em relação à comida.

Eu conversei com muitos cientistas que trabalham na indústria alimentícia, e eles são muito claros ao dizer que fazem uma engenharia para alterar a comida, de modo que a gente não consiga parar de comê-la.

Então meu livro tem como objetivo dizer que o problema não está nas pessoas, mas em todo o sistema. Com isso, quero dizer que, se você não consegue deixar de comer esses produtos, não precisa se punir.

BBC News Brasil - Mas existe algum lugar do mundo em que essa regulamentação sobre os produtos ultraprocessados funciona? Na sua visão, quais seriam as maneiras de mudar esse sistema?

Van Tulleken - Chile, México e Argentina têm políticas públicas muito boas neste sentido. O Brasil também está desenvolvendo coisas interessantes.

Recentemente, dei uma palestra na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e um colega mexicano que estava na plateia comentou que, apesar de todos os alertas incluídos nas embalagens e de todos os impostos sobre ultraprocessados em voga no país, as pessoas ainda sofriam com obesidade.

Na minha visão, precisamos nos valer dos mesmos meios utilizados para o controle do tabaco. Precisamos de um sistema de alerta nas embalagens que seja maior que as logomarcas das empresas ou dos produtos. Precisamos taxar de forma agressiva os piores alimentos. Precisamos banir qualquer propaganda. E precisamos proibir a venda deles para as crianças.

Em última análise, precisamos pensar em maneiras de limitar o poder dessas corporações, porque esse sistema atual é ruim para todo mundo. É ruim para os negócios e para a economia. É ruim para quem é saudável ou quem sofre com doenças. É ruim para as empresas de pequeno e médio porte que fazem comida boa.

Ah, e também precisamos nos livrar dos conflitos de interesse.

No Reino Unido, o British Medical Journal acabou de publicar uma análise sobre o Comitê Científico Consultivo de Nutrição [um grupo que fornece subsídios para as políticas públicas sobre alimentação do país].

Os dados mostram que 65% dos membros do comitê receberam dinheiro de indústrias alimentícias, de empresas como Coca-Cola, Nestlé e Danone.

Ainda no Reino Unido, o Science Media Centre [um grupo que faz assessoria de imprensa relacionada a temas científicos] é ou já foi patrocinado por Nestlé e Procter & Gamble.

Temos departamentos de pesquisa e cientistas sempre citados pela imprensa que recebem verbas de Pepsico, Mars e Nestlé.

Há médicos, influencers e organizações de saúde, como a Fundação Britânica de Nutrição, que são financiadas por Coca-Cola e outras companhias.

Ou seja, enquanto não encararmos esse dinheiro da indústria alimentícia como algo sujo, não vamos acabar com todos esses conflitos de interesse.

BBC News Brasil - Você vê alguma diferença na forma de atuação dessas empresas alimentícias em países ricos e pobres?

Van Tulleken - O problema é global, acontece em todos os lugares. Vou te dar um exemplo prático. Em 2016, a rede de pizzarias Domino's abriu 1.281 novas lojas, ou uma a cada sete horas, a maioria delas fora dos Estados Unidos. Atualmente, a Índia possui ao redor de 1.500 unidades de Domino's.

No oeste da África, vemos o crescimento do Kentucky Fried Chicken (KFC) e de outras grandes redes de fast food. O mesmo acontece na China.

Em todos os lugares, crianças pequenas tomam cada vez mais fórmulas infantis, que são piores em termos de saúde quando comparadas à amamentação.

O projeto da indústria de alimentos ultraprocessados parece querer destruir todas as dietas tradicionais. Na Itália, as cafeterias viraram Starbucks e as pizzarias foram convertidas em Pizza Hut. O mesmo acontece no Brasil, no Reino Unido, nos Estados Unidos…

Mesmo lugares com culturas gastronômicas muito fortes, como Itália, França e Espanha, ficam cada vez mais vulneráveis.

Ou nós limitamos o poder dessas corporações da mesma maneira que fizemos com a indústria do tabaco, ou todas as dietas tradicionais serão destruídas nos próximos 50 anos.

Alimentos ultraprocessados representam 60% da dieta dos britânicos, calcula van Tulleken (Getty Images)

BBC News Brasil - Por que você decidiu submeter a si mesmo a uma experiência de consumo de ultraprocessados?

Van Tulleken - Bom, eu quis ser o primeiro paciente da pesquisa que estamos conduzindo sobre o assunto.

Sinceramente, eu não achei que o fato de aumentar o consumo de ultraprocessados mudaria algo em minha vida.

Mas, na prática, tive efeitos muito significativos na saúde, o que está totalmente alinhado com a literatura científica publicada sobre o assunto.

BBC News Brasil - Você detalha todos esses efeitos no livro, mas poderia dizer quais emoções sentiu durante a experiência?

Van Tulleken - A primeira semana foi bastante divertida. Mas, a partir da segunda, comecei a me sentir mais cansado, porque os ultraprocessados são muito salgados. E isso causa desidratação e constipação, pois eles também são pobres em fibras.

Ou seja, eu acordava, comia mais do que precisava e dormia de novo. Daí acordava durante a noite com vontade de ir ao banheiro, fazer xixi, e beber água. Mas parei de fazer cocô regularmente. Ou seja, minha bunda começou a doer e meu sono ficou cada vez pior.

Daí, como você come mais durante o dia, sente que não tem controle sobre a dieta. Me senti horrível nessa segunda semana de experiência.

Mas só percebi isso quando parei de ingerir comida ultraprocessada.

Nós vemos esse comportamento nas crianças. Quando estão com fome, elas não verbalizam esse sentimento. Elas simplesmente ficam mais nervosas, bravas e irritadas com todo mundo.

E eu senti o mesmo. Ficava furioso com meus familiares e me tornei uma pessoa difícil de conviver. Mas achava que o problema era sempre os outros, nunca eu mesmo.

Porém, no meio da experiência, uma cientista brasileira falou uma frase que mudaria tudo. Ela me disse: “Isso que você está comendo não é comida de verdade”.

Essa frase girou uma chave no meu cérebro. A partir daquele momento, não tive mais vontade de comer ultraprocessados.

Esse, aliás, foi outro motivo para convidar os leitores a continuar comendo ultraprocessados enquanto leem o livro.

BBC News Brasil - Mas, ao fim do experimento, você realmente conseguiu deixar de comer ultraprocessados?

Van Tulleken - Eu deixei de comê-los quase que completamente. Eventualmente até perdi peso, mas não posso prometer que isso vai acontecer com todas as pessoas.

No entanto, se você for capaz de eliminar os ultraprocessados, existe alguma evidência que isso pode ser útil para o processo de emagrecimento.

Mas, na minha opinião, a única maneira de eliminar os ultraprocessados de nossas dietas é começar a odiá-los.

Por isso que o livro foi escrito de um modo para que você odeie esse sistema alimentar, em vez de odiar a si próprio.

BBC News Brasil - E como foi a reação à publicação do livro no Reino Unido? Como as empresas mencionadas reagiram?

Van Tulleken - O livro se tornou popular no Reino Unido e sou muito grato por isso. E a indústria reagiu de duas maneiras diferentes.

O primeiro contato que recebi foi do McDonald's. Eles enviaram um email, que pensei ser um processo judicial ou uma liminar para recolher os livros das gráficas e das lojas.

Mas, na verdade, eles me fizeram um convite para virar embaixador da marca.

Na sequência, todas as empresas alimentícias me ofereceram enormes somas de dinheiro para dar palestras. Algo como US$ 50 mil [R$ 283 mil, na cotação atual] para conversar com eles por uma hora.

Obviamente, disse não para todos esses convites.

Logo depois, começaram a aparecer processos jurídicos e queixas legais contra a editora que publicou o livro.

Felizmente, o livro foi escrito com muito cuidado e passou por muitas leituras de diversos advogados antes da publicação. Então nenhum desses processos foi bem-sucedido.

Mas não deixa de ser estressante lidar com essas queixas e gastar horas para respondê-las.

André Biernath, o autor deste artigo, é repórter da BBC News Brasil em Londres.  Publicado originalmente em 19.10.24.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

O PT atrapalha o governo, o governo atrapalha o PT ou um atrapalha o outro?

Se Lula estivesse abafando, o governo fosse excelente e o PT desse um banho nas eleições municipais, vá lá; mas, como não é isso que ocorre, os erros do partido pioram a percepção geral sobre o terceiro mandato

Lula entre Dilma Rousseff, hoje chefe do Banco dos Brics, e Gleisi Hoffmann, que preside o PT  Foto: André Dusek/Estadão

Não foi à toa, convenhamos, que o presidente Lula decidiu antecipar a troca de comando do PT. Não faz sentido o partido do presidente da República, vira e mexe, bombardear o ministro da Fazenda e a política econômica, uma das raras áreas que vêm surpreendendo positivamente e dando boas notícias para, e sobre, o governo, apesar das dúvidas quanto à inflação e ao controle de gastos.

Faz menos sentido ainda que o PT classifique como “feito histórico” mais uma reeleição de Vladimir Putin, que invadiu a Ucrânia, envie sua presidente Gleisi Hoffmann e 30 petistas para badalar o regime chinês e trate a tragédia da Venezuela como normal, reconhecendo a vitória do ditador Nicolás Maduro no primeiro instante de uma eleição fraudada e depois ratificando o aval do Foro de São Paulo a essa “vitória”.

Se Lula estivesse abafando, o governo fosse excelente, o PT desse um banho nas eleições municipais e a direita terminasse como grande derrotada, vá lá, haveria um muxoxo daqui ou dali e pronto. Mas, como não é isso que ocorre, os erros do PT pioram a percepção geral sobre o terceiro mandato e irritam setores do próprio partido.

Sem candidato no Rio e em São Paulo, comendo poeira em Belo Horizonte e baixando a guarda em quatro das nove capitais do Nordeste, o PT ficou em nono lugar no número de prefeituras no primeiro turno, atrás do PSB e até do moribundo PSDB. Pode estar no fim a velha arquitetura da esquerda, com o PT no eixo e seus aliados, seus satélites.

O PT paulista é comandado pelos irmãos Tatto, que não deram bola para Guilherme Boulos (PSOL), candidato de Lula, e o do Rio está nas mãos dos polêmicos André Siciliano, Renato Machado e Quaquá. Em BH, o problema é outro: inanição. Enquanto isso, Pernambuco lidera a renovação na esquerda, com o prefeito de Recife, João Campos (PSB), e a governadora Raquel Lyra (ainda PSDB), na centro-esquerda. De quebra, Tabata Amaral (PSB-SP), namorada de João, é outra boa novidade nacional.

Afinal, o PT atrapalha o governo, ou o governo atrapalha o PT? Típico caso em que todo mundo briga e todos têm razão. Lula é maior do que o PT, dá todas as ordens e submete o partido à necessidade de apoio no Congresso, enquanto tropeça, ou some, em política externa, meio ambiente, educação, cultura...

Com a derrota petista em cidades paulistas importantes, Lula quer na presidência do PT o prefeito Edinho Silva, que não elegeu sua candidata em Araraquara, mas Gleisi investe no líder do governo na Câmara, José Guimarães (CE). Edinho Silva é mais forte, mas não há santo que faça milagre com governo e partido fora do prumo.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado, Rádio Jornal (PE) e do telejornal GloboNews em Pauta. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 21.10.24  

Duas notícias que se neutralizam

A política municipal transformou-se num bico de pena de um quadro federal lastimável. A maioria dos agentes políticos são néscios de dar dó

Brizola,Ulisses  (com D.Mora), Tancredo, FHC nas ruas pelas Diretás Já!

A boa notícia é que a eleição municipal assumiu uma tendência centrista, desfazendo a radicalização que ameaçava o País desde 1926; a ruim, é que esse resultado se deveu principalmente ao fato de a maioria dos eleitores terem se desinteressado pela política num grau nunca visto pelo menos desde o fim da 2.ª Guerra Mundial.

Fosse facultativo o nosso sistema de votação, dificilmente o comparecimento às urnas atingiria 40%. Que motivos podemos aventar para essa abrupta queda? Afirmo sem temor de errar que o principal motivo foi a qualidade mediana dos candidatos. Para chegar a essa conclusão, não precisamos evocar o pitoresco episódio do recurso a peças de mobiliário para aquecer o debate. Basta-nos observar que, no Brasil, a teratológica centralização do poder sempre reduziu a política municipal a um quase nada. Os candidatos, sim, têm muito apreço por ela, pois sabem que é um bom negócio plenamente compatível com um quase total ócio.

O segundo motivo é que o Brasil não consegue superar a entressafra política em que se meteu desde o fim do governo Fernando Henrique. No Congresso constituinte de 1987-1988, qualquer cidadão medianamente atento podia facilmente identificar, de uma ponta a outra do espectro político, no mínimo 20 figuras públicas de alta envergadura. Não estou aqui expressando uma preferência ideológica, mas apenas ressaltando que lá estavam Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Mário Covas, Afonso Arinos, Fernando Henrique Cardoso, Roberto Campos, Delfim Netto e outros mais. Ora, em nenhum país a política municipal produzirá políticos desse calibre, mas devemos admitir que, havendo lideranças de tal ordem, o nível não cairá a zero. Agora, sim, caiu a zero, e o eleitor, por ingênuo que seja, percebe claramente o quadro que tem diante de si. A política municipal transformou-se num bico de pena de um quadro federal lastimável. Entre o ponto inicial e o presente – desde o início da entressafra –, a maioria dos agentes políticos são néscios de dar dó.

Nunca é demais lembrar que o vácuo que se formou desde o fim da geração de homens públicos acima mencionados cresceu numa proporção monstruosa, à medida que forças políticas antes apegadas a um rançoso esquerdismo passaram a se apresentar como um centro. O marco zero desse processo foi a campanha eleitoral de 2002, quando o PT decidiu amenizar sua tradicional carranca lançando um documento intitulado Carta ao povo brasileiro, que também poderia ser designado como carta aos banqueiros, ou aos empreiteiros. O passo seguinte, já com o iniciático Lula da Silva ocupando o Palácio do Planalto, foi recorrer à infecciosa expressão “herança maldita” a fim de inquinar a obra de governo de Fernando Henrique Cardoso, que lograra a proeza de estabilizar uma superinflação que já durava 33 anos. O episódio do “mensalão”, de 2005, podemos deixar de lado, por não merecer figurar nem nesse contexto de pura falcatrua. Nos anos seguintes, beneficiado pelo crescimento do comércio mundial e, especialmente, pelas compras da China, Lula não teve dificuldade em posar de estadista e menos ainda, with a little help from his friends, em emplacar Dilma Rousseff no Planalto, esse sim um golpe de misericórdia que traria em seu rastro um brutal retrocesso econômico e um Mr. Hyde (Jair Bolsonaro) para fazer o contraponto com o Dr. Jekyll, ou seja, Lula e o PT, configurando-se, assim, a famigerada polarização de 2016, que debilitou de vez nossa crônica anemia para enfrentar uma tragédia do tamanho da covid-19.

Voltemos, pois, à boa notícia. Vem de priscas eras o ditado de que certos males vêm para bem. A mediocridade dos candidatos e a indiferença dos eleitores na eleição municipal deste ano parecem realmente ter desfeito a polarização iniciada em 2016. Temos tempo para encontrar um ou mais candidatos de centro, dotados do mínimo indispensável de energia, lucidez e tirocínio, e para repensar a fundo nossa estratégia de crescimento econômico.

Mesmo se todos esses milagres acontecerem, outro personagem precisa ser acordado de sua letargia. Falo, evidentemente, do eleitorado. A maioria dos cidadãos precisa compreender que seu papel político não pode ser ignorante e preguiçoso como tem sido ao longo dos séculos. Em última análise, ele é o arrimo que teremos de edificar para sobrestar crises do tamanho das que já começam a bater à nossa porta. Desvistam-se de seus preconceitos e revejam a transição levada a cabo na África do Sul em 1990-1994. Ao tomar posse em 1990, o presidente Frederik Willem de Klerk, dirigindo-se aos descendentes de ingleses e aos afrikaners – as duas castas racistas que dominaram o país durante séculos –, virou o país de ponta-cabeça. Pronunciando, sem ser interpelado, um discurso de 45 minutos, firmou a posição de que a partir do dia seguinte não haveria mais apartheid nem segregação, e que todos os cidadãos adultos teriam o direito de voto, instituindo-se, assim, a democracia representativa. No Brasil, é imperativo formarmos gente desse calibre nos próximos cinco ou, no máximo, dez anos.

Bolívar Lamounier, o autor deste artigo, é sócio da Consultoria Augurium, membro da Academia Paulista de Letras e da Academia Brasileira de Ciências. Publicado ooriginalmente n'O Estado de S,. Paulo, em 19.10.24

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

O preocupante aumento da violência política

A sociedade e seus representantes precisarão encontrar meios de desarmar os ânimos, desconstruir a polarização e obliterar a infiltração do crime organizado no poder público

Um levantamento do Observatório da Violência Política e Eleitoral (OVPE), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, identificou 455 casos de violência contra lideranças políticas do Brasil de janeiro a 16 de setembro deste ano. À medida que o pleito se aproxima, os incidentes aumentam. Entre julho e 16 de setembro, foram 15 homicídios. No período eleitoral crítico, daqui até o segundo turno, a tendência é de aumento.

A violência política tem se intensificado nos últimos ciclos eleitorais. Segundo levantamento do Estadão, a média de mortes por motivações políticas nos primeiros dez ciclos da redemocratização foi de 52. Em 2020, ao menos 72 brasileiros foram assassinados por motivações políticas. Só as agressões contra lideranças computadas pelo OVPE já são maiores que em 2020 e 2022.

Duas causas parecem alavancar essa escalada. Uma é da ordem da cultura política: a intensificação da polarização e da intolerância e a naturalização da truculência como meio de ação política. A outra é um problema sistêmico de segurança pública: a expansão e complexificação do crime organizado e sua infiltração no Estado.

Divergências são naturais e desejáveis em uma democracia. Mesmo certos graus de polarização são normais. Processos deliberativos e ciclos eleitorais culminam inevitavelmente em momentos em que é preciso decidir “sim” ou “não”, “contra” ou “a favor”. O problema é quando essas polarizações – necessárias, circunstanciais e localizadas – se degeneram em polarizações estruturais, generalizadas e perniciosas, e a pluralidade de esferas sociais passa a ser determinada pela clivagem político-ideológica.

Nas democracias esse processo de radicalização ocorre de cima para baixo. Políticos de ofício têm incentivos para promover atitudes polarizadas, forjando “batalhões” leais e permanentemente mobilizados. Em contrapartida, esses batalhões exigem de seus representantes um alinhamento cada vez mais estrito às linhas partidárias e desmoralizam os moderados. Cria-se um círculo vicioso entre elites políticas radicais e massas militantes radicalizadas, que esvazia o centro, amplia a distância entre os polos e intensifica a hostilidade entre eles.

Essa clivagem única degrada o processo democrático, impossibilitando interações, consensos e compromissos; disseminando desconfiança nas instituições e no jogo democrático; e incentivando o sensacionalismo e o tribalismo. Adversários políticos se tornam inimigos existenciais. A desumanização do “outro” propicia as condições para violências de todo tipo, desde a segregação até a eliminação.

Mas possivelmente a principal causa do aumento da violência é a infiltração do crime organizado na máquina pública. A atuação das facções e milícias passa pelo financiamento de campanhas de aliados, intimidação e extorsão de eleitores, ameaças a políticos, corrupção de agentes de Estado e captura de contratos públicos.

As forças de segurança precisam organizar núcleos específicos que investiguem permanentemente as relações promíscuas entre a política e o crime. Os partidos precisam aprimorar mecanismos de controle para identificar e afastar criminosos ou agregados do crime organizado.

Quanto à violência política “passional”, por assim dizer, a Justiça Eleitoral pode aprimorar as condições de segurança nos ciclos eleitorais, especialmente nos dias das eleições. Mas desarmar os ânimos não é tarefa de um dia, e a responsabilidade é de todos: de cada cidadão, das organizações civis, mídia, instituições públicas e, especialmente, elites políticas. Um desenho institucional de prevenção e mitigação deve considerar melhorias no sistema da Justiça Eleitoral e uma infraestrutura para a paz, incluindo pactos e códigos de conduta, comitês suprapartidários e campanhas e sistemas de alerta.

A responsabilidade final é do eleitor. A menos que puna hoje, nas urnas, os autoritários que instrumentalizam a retórica da demonização, do “vale-tudo” no “nós contra eles” e, sobretudo, os que apelam às vias de fato, amanhã não só seu voto pode ser tolhido, como a sua própria vida.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.09.24