sexta-feira, 27 de setembro de 2024

O passado brasileiro do pai de Kamala Harris

O economista Donald Jasper Harris já tinha uma carreira internacional respeitada quando chegou ao Brasil em 1990.

Donald Harris com Kamala em 1965

Nascido na Jamaica e naturalizado americano, Harris era professor da renomada Universidade Stanford, na Califórnia, e tinha entre suas publicações o livro Capital Accumulation and Income Distribution (“Acumulação de Capital e Distribuição de Renda”, em tradução livre), de 1978.

A viagem ao Brasil fazia parte de uma bolsa do programa Fulbright e incluía a participação em seminários e conferências em universidades brasileiras. Ao longo daquela década, ele passaria várias temporadas no país, e ainda é lembrado por alunos e colegas com quem conviveu.

“Ele sempre passou a impressão de ser pessoa muito receptiva com os alunos”, diz à BBC News Brasil um dos ex-estudantes, Jorge Thompson Araujo, que era mestrando em Economia quando fez um curso ministrado por Harris em 1990, na Universidade de Brasília (UnB).

O então estudante conviveu com Harris na sala de aula e em alguns eventos sociais em Brasília, dos quais contemporâneos lembram que ele frequentava bares e restaurantes perto do campus, na Asa Norte, e participava de churrascos com os colegas.

“Ele era introvertido, mas simpático”, diz Araujo, que hoje é consultor do Banco Mundial, em Washington, e pesquisador colaborador sênior da UnB.

Neste mês, a trajetória profissional do economista ganhou atenção nos Estados Unidos, depois que seu nome foi mencionado no debate presidencial. Ele é pai da vice-presidente americana, Kamala Harris, candidata democrata à Casa Branca.

Ao responder uma pergunta no debate de 10 de setembro, o ex-presidente Donald Trump, candidato republicano, citou o economista.

"Todo mundo sabe que ela é marxista. Seu pai é um professor marxista de economia. E ele a ensinou bem”, disse o republicano.

Kamala Harris, que sempre deixou claro que apoia o capitalismo, não respondeu à provocação, nem citou o pai durante o debate. Mas o episódio renovou a curiosidade sobre o trabalho de Donald Harris.

Interesse pelo Brasil

Aos 86 anos de idade, Donald Harris mantém o título de professor emérito da Universidade Stanford, de onde se aposentou em 1998

O interesse do economista pelo Brasil vem de desde, pelo menos, a década de 1960.

Em 1966, ele assinou uma resenha sobre o livro Diagnosis of the Brazilian Crisis, título da edição em inglês de Dialética do Desenvolvimento, do economista brasileiro Celso Furtado.

“É uma contribuição refrescante à literatura sobre subdesenvolvimento”, avaliou Harris, afirmando que representava “uma tentativa séria de um economista latino-americano de lidar com os problemas da região por meio do desenvolvimento crítico e aplicação de estruturas analíticas existentes.”

Em 1974, ele publicou o artigo Um Post Mortem à Parábola Neoclássica na revista Pesquisa e Planejamento Econômico (PPE), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Araujo lembra que seu orientador de mestrado, Joanílio Teixeira, foi quem organizou a ida de Harris a Brasília.

Em 2021, em entrevista ao site da UnB, Teixeira, que atualmente é professor emérito da universidade, contou que chegou a hospedar Harris em sua casa por alguns meses.

A rotina acadêmica de Harris no Distrito Federal incluía pesquisas, trabalho com professores da UnB e um curso baseado em seu livro Capital Accumulation and Income Distribution, do qual Araujo participou em 1990.

“Ele condensou o material [do livro e de suas pesquisas] e fez uma série de seminários”, recorda o ex-aluno.

“O trabalho dele é extremamente sério, rigoroso. As aulas eram muito bem dadas, muito claras, mas difíceis. Dava trabalho entender e absorver aquele material, não era nada fácil.”

As aulas eram ministradas em inglês.

“Havia um pouco de barreira linguística. Na época, não era tão comum [os alunos] serem fluentes em inglês”, lembra Araujo. “Acho que às vezes afetava um pouco a interação dos alunos com ele.”

Jorge Thompson Araujo foi aluno de Harris em 1990, na Universidade de Brasília (UnB), e diz que o economista era simpático e receptivo com os estudantes

Harris era reconhecido por suas críticas à teoria econômica neoclássica, escola dominante em Stanford e outras universidades renomadas. Em Brasília, encontrou um ambiente com mais diversidade de linhas de pensamento.

“Ele sempre foi bem heterodoxo em economia. Crítico às teorias econômicas mainstream [dominante]”, ressalta Araujo.

“E Stanford era — e ainda é — um departamento bem mainstream, com presença de economistas heterodoxos muito reduzida.”

Segundo Araujo, economistas de diferentes correntes conviviam na UnB.

“Obviamente, sempre tinha algum tipo de discordância, mas aquilo não gerava mal-estar. Acho que esse ambiente deixou Harris mais à vontade, acho que ele se sentia bem lá.”

Nas confraternizações, Araujo diz que Harris “parecia um gentleman”, sempre sorridente e acessível, deixando os interlocutores à vontade. Mesmo assim, sua presença intimidava o então estudante.

“Eu ficava um pouco sem jeito de falar com ele. Primeiro, pela importância que ele tinha na área. E segundo, porque na época eu não dominava o inglês tão bem”, lembra.

Professor popular

Aos 86 anos de idade, Donald Harris mantém o título de professor emérito da Universidade Stanford, de onde se aposentou em 1998. Ao longo de sua carreira, ele ganhou projeção internacional e se destacou como crítico da economia ortodoxa.

Doutor em Economia pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, começou a lecionar em Stanford em 1972, após ter sido professor na Universidade de Wisconsin, em Madison, na Universidade de Illinois e na Universidade Northwestern (também em Illinois).

Harris era um professor popular em Stanford. Em reportagem de 1976, o The Stanford Daily, jornal publicado pelos estudantes da universidade, o descreveu como “um estudioso marxista”.

Segundo o jornal, ele teria sofrido resistência inicial a receber "tenure" (a estabilidade no emprego concedida a alguns professores universitários nos Estados Unidos) porque era "carismático demais, um flautista mágico que desviava os estudantes da economia neoclássica”.

Os alunos pressionavam por maior diversidade racial e intelectual no corpo docente. Donald Harris acabou se tornando o primeiro professor negro a receber “tenure” no Departamento de Economia de Stanford.

“Ele foi líder no desenvolvimento do novo programa em ‘Abordagens Alternativas à Análise Econômica’ como campo de estudo de pós-graduação”, diz sua biografia no site da universidade.

“Durante anos, ministrou o popular curso de graduação ‘Teoria do Desenvolvimento Capitalista’.”

Segundo a universidade, Harris explorava “a concepção analítica do processo de acumulação de capital e suas implicações para uma teoria de crescimento da economia” e buscava explicar “o caráter intrínseco do crescimento como um processo de desenvolvimento desigual”.

Enquanto lecionava em Stanford, Harris percorreu dezenas de países, fazendo pesquisas, consultorias, seminários e palestras como convidado.

Ele prestou consultoria a diversas agências e organizações internacionais, como a ONU e o Banco Mundial, a governos e fundações privadas.

Na Jamaica, seu país natal, ele atuou diversas vezes como consultor de política econômica para o governo e teve papel importante na elaboração de uma estratégia de crescimento.

Em 2021, foi agraciado com a Ordem do Mérito por sua contribuição ao desenvolvimento nacional.

Segundo sua página no site da universidade, Harris se aposentou para “se dedicar de forma mais ativa” ao seu “antigo interesse” no desenvolvimento de políticas públicas para promover o crescimento econômico e a equidade social.

Casamento e separação

Kamala Harris e a irmã, Maya (dir.), foram morar com a mãe após o divórcio dos pais quando eram crianças (Getty Images)

Quando começou a viajar ao Brasil, o economista já estava separado havia décadas da mãe de Kamala Harris, Shyamala Gopalan, uma cientista nascida na Índia, autora de pesquisas influentes sobre o papel dos hormônios no câncer de mama e que morreu em 2009.

A vice-presidente costuma dizer que foi criada pela mãe, e raramente menciona o pai. Uma exceção foi seu discurso na Convenção Nacional Democrata, em agosto, quando aceitou oficialmente a nomeação para concorrer à Presidência.

“No parque, minha mãe dizia: ‘Fique por perto’. Mas meu pai dizia, sorrindo: ‘Corra, Kamala, corra. Não tenha medo. Não deixe que nada a impeça’”, lembrou.

“Desde muito cedo, ele me ensinou a não ter medo.”

A plateia aplaudiu, mas Donald Harris não estava entre os presentes. A democrata repetiu, como já havia contado anteriormente, que seus pais se conheceram quando participavam do movimento pelos Direitos Civis nos anos 1960.

Donald e Shyamala faziam pós-graduação na Universidade da Califórnia, em Berkeley, na época um centro de ativismo estudantil. Eles integravam um grupo de estudos formado por alunos negros, onde se discutia história africana e a experiência afro-americana.

Apesar de não ser negra, Shyamala, sendo indiana, era considerada nos Estados Unidos uma pessoa de cor, e logo se integrou ao grupo. Donald e Shyamala casaram em 1963, um ano depois de se conhecerem.

Kamala nasceu em 1964, e sua irmã, Maya, em 1967. A vice-presidente lembra de acompanhar os pais em eventos do movimento por direitos civis quando era criança.

Entretanto, quando ela tinha cinco anos de idade, o casamento chegou ao fim.

“Eu sabia que eles se amavam muito, mas parecia que tinham se tornado como água e azeite”, escreveu a democrata em seu livro The Truths We Hold (“As Verdades que defendemos”), de 2019.

Alguns anos depois da separação, em 1972, Shyamala entrou com pedido de divórcio. Em seu livro, Kamala Harris disse que o pai continou sendo parte de sua vida, e que ela e a irmã passavam fins de semana e férias de verão com ele.

“Mas foi minha mãe quem assumiu a responsabilidade pela nossa criação. Ela foi a maior responsável por nos moldar como as mulheres que nos tornaríamos”, disse.

Relação com a Jamaica e o Brasil



Araujo ainda guarda uma carta que recebeu de Donald Harris alguns anos depois de ter estudado com ele.

Em um texto publicado em 2019 no site Jamaica Global Online, Donald Harris disse que a interação com as filhas “chegou a um fim abrupto em 1972”, após uma batalha pela custódia.

O relacionamento teria sido “colocado dentro de limites arbitrários” impostos pelo tribunal.

“Mesmo assim, persisti, nunca desistindo do meu amor pelas minhas filhas ou abandonando minhas responsabilidades como pai”, escreveu o economista, que dedicou seu livro de 1978 a Kamala e Maya.

Ele lembrou de visitas à Jamaica com as filhas ainda pequenas. Além de mostrar o lugar onde cresceu, ele queria que, quando fossem mais velhas, entendessem “as contradições econômicas e sociais num país ‘pobre’, como a impressionante justaposição de pobreza e riqueza extremas”.

Também escreveu que queria ensinar às filhas “que o céu é o limite para o que se pode alcançar com esforço e determinação” e que é importante “não perder de vista os que ficam para trás devido à negligência ou abuso social e falta de acesso a recursos ou ‘privilégios’”.

Donald Harris não costuma comentar a trajetória política da filha nem dar entrevistas, e não respondeu aos pedidos da BBC News Brasil de participação nesta reportagem.

Uma das últimas vezes em que se pronunciou publicamente sobre Kamala foi em 2019.

Na época, ao responder em uma entrevista se já havia fumado maconha, a então senadora disse: “Metade da minha família é da Jamaica, você está brincando comigo?”

Seu pai não gostou da brincadeira e publicou uma declaração em um site da Jamaica, afirmando que ele e sua “família jamaicana” gostariam de se “distanciar categoricamente” dos comentários.

Disse ainda que seus antepassados deveriam estar “se revirando no túmulo ao ver o nome de sua família, sua reputação e sua orgulhosa identidade jamaicana sendo conectados, brincando ou não, com esse estereótipo”.

Araujo acompanha a corrida presidencial americana desde Washington e lamenta ter perdido contato com o ex-professor. Ele conta que, poucos anos depois do encontro em Brasília, quando já estava na Inglaterra fazendo doutorado, usou material de Harris em sua pesquisa.

“Mandamos o trabalho para ele, e ele foi muito positivo, disse que gostou”, conta Araujo. “Ele respondeu com uma carta, que guardo até hoje.”

Araujo considera a participação de Harris na vida acadêmica em Brasília uma grande contribuição ao Departamento de Economia da universidade, mas também acha que as temporadas no Brasil tiveram impacto positivo em Harris.

“Embora não possa comprovar, penso que a passagem dele pelo Brasil o ajudou a ver a perspectiva do desenvolvimento econômico num país grande. E acho que isso ajudou a enriquecer sua visão sobre o desenvolvimento.”

“Foi uma via de mão dupla”, diz Araujo.

“Não só a UnB se beneficiou da presença dele, mas ele também se beneficiou de trabalhar com economistas brasileiros, estar no Brasil e se expor às questões socioeconômicas do Brasil.”

Alessandra Corrêa, de Washington-DC para a BBC News Brasil, em 26.09.24

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Convite à corrupção

Cada vez que se abre uma fresta da caixa-preta das emendas parlamentares, transbordam indícios de ilicitude. Mas corrupção criminal é só um aspecto da corrosão sistêmica em curso

A Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou ao Supremo Tribunal Federal (STF) três deputados do PL – Josimar Maranhãozinho (MA), Bosco Costa (SE) e Pastor Gil (MA) – por desvio de emendas parlamentares. O trio é acusado de agir para desviar uma parcela de R$ 1,6 milhão de repasses ao município maranhense de São José de Ribamar. A investigação partiu de uma denúncia de extorsão de 2020 do então prefeito do município, Eudes Sampaio. Segundo a PGR, os deputados cobrariam uma quantia de 25% dos recursos transferidos ao município por meio de emendas.

O processo corre sob sigilo e, por óbvio, é preciso esperar a sua conclusão. Mas não é o primeiro e tudo indica que não será o último. O fato é que as emendas parlamentares, tal como foram reconfiguradas, ou melhor, desfiguradas, são um campo fértil à improbidade e à corrupção.

Considere-se o caso das “transferências especiais”, normatizadas em 2019. Por essa modalidade, apelidada “emenda Pix”, os parlamentares doam recursos da União diretamente aos Estados e municípios, sem a necessidade de indicar a sua destinação ou celebrar convênio. Uma vez transferido, o dinheiro passa a pertencer ao ente federado, que pode gastá-lo praticamente como bem entender e não está obrigado a prestar contas ao governo federal. Como disse a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo em uma ação protocolada no STF que questiona a constitucionalidade dessas emendas, elas criam um verdadeiro “apagão fiscalizador contábil no Estado brasileiro”.

Não surpreende que as emendas Pix tenham se tornado o recurso mais usado por parlamentares para mandar dinheiro para seus redutos. No ano passado, dos R$ 25,6 bilhões liberados pelo governo federal para esse fim, R$ 6,4 bilhões foram direcionados por meio das emendas Pix.

No ano eleitoral de 2022, elas foram usadas, por exemplo, para bancar shows sertanejos em cidades sem infraestrutura. Entre 2020 e 2023, a cidade que mais recebeu esses recursos, Carapicuíba (SP), pagou mais caro por asfalto e reformas de praça, enquanto obras em escolas ficavam paralisadas ou atrasadas. No ano passado, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo alertou que 80% dos municípios não têm prestado contas de como essas verbas foram executadas.

Uma auditoria da Controladoria-Geral da União sobre os 10 municípios que mais receberam emendas conforme a proporção da população, entre 2020 e 2023, mostrou que todos são pequenos, sem órgãos de fiscalização adequados e que boa parte dos recursos foi destinada a obras que nem sequer começaram e não servem às principais demandas municipais. O Estadão apurou que, das 30 cidades que lideram o ranking de emendas per capita naquele período, 80% têm zero transparência sobre sua execução.

A cada vez que a imprensa ou órgãos de fiscalização conseguem abrir uma fresta da caixa-preta das emendas, os indícios de irregularidades transbordam. Só o deputado Josimar Maranhãozinho é alvo de mais duas investigações envolvendo malversação de emendas. Uma delas pode ter desviado R$ 15 milhões de verbas destinadas à Saúde no Maranhão.

A corrupção no sentido estritamente criminal é só o aspecto mais ultrajante da corrupção sistêmica em curso através das emendas. Mesmo quando não há desvio de recursos públicos para enriquecimento privado, as emendas corrompem as políticas públicas, porque são repassadas sem critérios técnicos e conformes aos objetivos da União e às necessidades de Estados e municípios; corrompem a governabilidade, porque podem ser utilizadas pelos parlamentares para satisfazer seus interesses paroquiais negligenciando a disciplina partidária; corrompem a competição democrática, porque são utilizadas para abastecer redutos eleitorais dos congressistas como um Fundo Eleitoral complementar.

Para dar só uma ideia das consequências dessa pulverização do Orçamento, dos R$ 194 bilhões em emendas ao Orçamento feitas desde 2019, os congressistas destinaram apenas 0,02% para ações de combate a incêndios. É emblemático: enquanto o “feirão de emendas” corre solto em Brasília, o fogo corre solto no Brasil.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 23.09.24

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Quanto ganha um vereador?

Em todo o Brasil há 58,2 mil vereadores, segundo o levantamento mais recente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), realizado em 2020, quando foi realizada a última eleição municipal.

Em São Paulo, o salário bruto dos 55 vereadores é de R$ 18.991,68  (Crédito,Richard Lourenço/Rede Câmara)

Mas o valor que eles ganham varia muito.

Um vereador de uma capital brasileira pode ganhar, por exemplo, salário bruto de mais de R$ 20 mil.

Enquanto isso, em um município pequeno, um vereador pode receber menos de R$ 2 mil.

Esse abismo salarial existe devido às regras estabelecidas pela legislação brasileira para a remuneração de parlamentares.

O quanto os vereadores de uma determinada cidade ganham depende de dois fatores principais:

A quantidade de habitantes do município;

O salário de deputado estadual no Estado desta cidade.

Isso porque a legislação estabelece um limite para a remuneração dos vereadores em relação ao que ganha um deputado estadual.

Esse teto varia de 20% a 75% do salário do deputado, e o percentual aumenta de acordo com o número de habitantes de uma cidade.

Mas o valor pago é definido na prática pelas Câmaras Municipais — ou seja, são os próprios vereadores que batem o martelo sobre quanto eles próprios ganham.

Em São Paulo, a maior cidade do país, com 11,4 milhões de habitantes, o salário bruto de cada dos seus 55 vereadores é de R$ 18.991,68, conforme o Portal da Transparência do município.

Em Salvador, que tem 2,4 milhões de habitantes, 43 vereadores e o maior salário do Brasil para este cargo, são R$ 24.759,74 mensais, segundo o Portal da Transparência.

Já em Delfim Moreira, cidade de 8 mil habitantes no interior de Minas Gerais, um vereador recebe um salário mínimo, segundo dados do Tribunal de Contas de Minas Gerais.

Como os salários de vereadores são definidos

Em Delfim Moreira (MG), vereadores recebem um salário mínimo

A Constituição Federal estabelece que os salários de ocupantes de cargos, funções e empregos públicos, como os políticos, não podem ultrapassar o ganho mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que atualmente corresponde a R$ 44 mil.

É o chamado teto constitucional, que também vale para ministros de Estado, vice-presidente e presidente.

A Constituição estabelece ainda uma proporcionalidade entre os valores que são pagos a políticos com mandatos ativos de cada nível em cascata, do mais alto para o mais baixo.

Assim, o salário dos parlamentares do Congresso — senadores e deputados federais — pode chegar no máximo ao teto constitucional.

No nível imediatamente seguinte, nos Legislativos estaduais, os deputados podem receber no máximo 75% do valor pago a deputados federais.

Por sua vez, o salário de um deputado estadual determina o mínimo e o máximo que um vereador pode receber.

O piso é de 3% do valor pago a um deputado estadual. Já o valor máximo varia conforme o tamanho da população da cidade:

20% do salário de deputado estadual em cidades com até 10 mil habitantes;

30% em cidades com mais de 10 mil e até 50 mil habitantes;

40% em cidades com mais de 50 mil e até 100 mil habitantes;

50% em cidades com mais de 100 mil e até 300 mil habitantes;

60% em cidades com mais de 300 mil e até 500 mil habitantes;

75% em cidades com mais de 500 mil habitantes.

Para se ter uma ideia do que isso significa na prática, no Estado de São Paulo, o mais populoso do país, onde os deputados estaduais recebem R$ 33.006,39 atualmente, um vereador pode receber:

Em cidade de até 10 mil habitantes: até R$ 6.601,28;

Em cidades de mais de 10 mil e até 50 mil habitantes: até R$ 9.901,92;

Em cidades de mais de 50 mil e até 100 mil habitantes: até R$ 13.202,56;

Em cidades de mais de 100 mil e até 300 mil habitantes: até R$ 16.503,20;

Em cidades de mais de 300 mil e até 500 mil habitantes: até R$ 19.803,83;

Em cidades de mais de 500 mil habitantes: até R$ 24.754,79.

“Dentro desses critérios [de tamanho do município e proporção do salário de um deputado estadual], a legislação estabelece que as Câmaras podem definir os salários, ou seja, os próprios vereadores definem seus salários”, resume Sérgio Simoni, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP).

O advogado André y Castro Camillo, consultor jurídico da União dos Vereadores do Brasil (UVB), frisa que municípios com tamanhos semelhantes podem ter salários distintos, porque os municípios têm "autonomia legislativa, econômica e administrativa concedida constitucionalmente."

O valor final precisa seguir as normas estabelecidas para os subsídios dos vereadores, com base no tamanho da cidade e dos salários dos deputados estaduais.

A Constituição Federal também estabelece que o total de recursos usados com os salários dos vereadores não pode ultrapassar 5% da receita municipal do ano anterior.

Além disso, cada Câmara Municipal não pode usar mais de 70% da sua receita com salários, o que inclui neste caso todos os servidores e os parlamentares.

O número de habitantes determina ainda o número de vereadores de cada cidade.

A legislação permite até 9 vereadores em cidades com menos de 15 mil habitantes.

Já o número máximo é de 55 vereadores em cidades com mais de 8 milhões de habitantes.

É possível, segundo a Constituição, que um vereador acumule uma função privada com o cargo público.

Mas essa outra atividade precisa ser compatível para que a função pública não seja prejudicada. Ou seja, o vereador não pode deixar de cumprir suas funções como parlamentar em detrimento da outra ocupação.

Cada caso precisa ser avaliado, porque as funções de um vereador podem variar conforme o Regimento Interno de cada Câmara Municipal, aponta o Tribunal de Contas de Minas Gerais.



Vereadores de Salvador têm o maior salário entre legisladores municipais no país (Getty Images)

Como saber o salário do vereador de sua cidade

A legislação diz que todas as cidades têm a obrigatoriedade de tornar os gastos públicos transparentes, o que incluem os salários dos parlamentares locais.

Isso precisa ser feito principalmente por meio do Portal da Transparência de cada município.

Portanto, é possível acessar o site da Câmara Municipal e procurar pelas informações que incluem os subsídios dos parlamentares locais.

Mas não é bem assim que ocorre na prática em todos os municípios.

Em diversas cidades, o eleitor tem dificuldades para localizar o salário pago ao legislador municipal no portal.

“A Lei de Acesso à Informação determina que o acesso a informações, como os salários, precisa ser fácil e amplo aos eleitores. Mas, na prática, há dificuldades e descumprimento dessas normas”, diz o advogado André y Castro Camillo, da UVB.

“Publicizar esses valores é um dispositivo constitucional”, acrescenta.

O advogado afirma que o eleitor pode buscar a ouvidoria da Câmara Municipal, por meio de telefone e e-mail disponibilizados nos sites, caso encontre dificuldades com o site, e questionar o valor bruto do salário dos parlamentares, por se tratar de um gasto público.

Se não receber a informação adequada ou perceber alguma irregularidade, diz o advogado, o eleitor pode registrar denúncia em órgãos de fiscalização, como o Tribunal de Contas do Estado (TCE), e relatar a falta de transparência em atender ao pedido de informação.

Publicado originalmente pela  BBC News, em 19.09.24

Hildegarda de Bingen, a santa que descreveu orgasmo feminino pela 1ª vez e 'inventou' fórmula da cerveja

Platão disse que quem inventou a cerveja era um homem sábio. Ele estava errado. Na verdade, foi uma mulher. Uma pessoa sábia, sim, mas uma mulher.

A cerveja atual, à base de lúpulo, foi inventada pela abadessa beneditina alemã Hildegarda de Bingen, que também é conhecida como a primeira mulher a descrever o orgasmo feminino, canonizada apenas em 2012.(Crédito,Getty Images)

As mulheres não são apenas responsáveis pela descoberta, mas suas contribuições ao longo da história da cerveja foram cruciais para o desenvolvimento da bebida, e para a construção da concepção cultural do uso que fazemos dela hoje.

O livro The Philosophy of Beer (A filosofia da cerveja, em tradução livre) oferece uma história interessante de uma das bebidas mais consumidas no mundo, cuja produção remonta milhares de anos atrás. Mas que começou a passar por um processo de popularização mundial a partir do fim da Idade Média, quando era produzida em mosteiros europeus e transportada por navios que buscavam novos horizontes comerciais.

Mas qual é, de fato, a origem, da cerveja?

Há pouco mais de 7.000 anos, a fabricação de cerveja começou a se desenvolver na Mesopotâmia; eram as mulheres que misturavam grãos de cereais com água e ervas para fazer uma bebida com fins nutricionais.

Elas cozinhavam a mistura e, dessa mistura intuitiva, para aplacar a fome, surgia um caldo que fermentava espontaneamente.

Logo começaram a desenvolver suas habilidades em torno desse líquido turvo, espesso, mas altamente nutritivo, que também era capaz de iluminar o espírito.

Desde então e por centenas de anos, seu grau de conhecimento fez com que as mulheres fossem as únicas que podiam produzi-lo e também comercializá-lo. Elas eram responsáveis por sua produção e comercialização. Elas ainda eram responsáveis e as licenças e os equipamentos para produzi-lo eram delas.

E assim foi até a Idade Média, quando na Europa as licenças passaram para os nomes dos maridos.

A mudança legal da licença pode ter tido a ver com o fato de que, naquela época, a cerveja era um bem muito precioso e, embora fosse fabricada para consumo doméstico, o excedente era vendido para obter uma renda familiar extra. Assim, elas continuaram a trabalhar, mas o produto não era mais delas. E nem o dinheiro que ele rendia.

A versão mais difundida da origem da cerveja atual afirma que ela foi inventada por monges. No entanto, quando os monges viram o potencial do que as famílias e, em especial, as mulheres, já estavam fazendo, decidiram investir no cultivo de cereais para criar novas misturas e comercializá-las.

A versão mais difundida da origem da cerveja atual afirma que ela foi inventada por monges (Getty Images)

Entretanto, apesar desse monopólio clerical, a cerveja como a conhecemos hoje também foi inventada por uma mulher.

Foi na Idade Média que a fabricação de cerveja sofreu uma mudança substancial com a adição do lúpulo, um parente próximo da cannabis, cujas flores dão à bebida seu amargor característico e propriedades conservantes que permitem que ela seja armazenada por muito mais tempo.

A abadessa Hildegarda de Bingen (1098-1179), a versão feminina de Leonardo da Vinci, foi responsável pela descoberta que provocou essa mudança radical na fabricação de cerveja.

Essa boa mulher, que combinou sua função de mestre cervejeira com a de teóloga, escritora, compositora musical e botânica (em sua obra Physica, ela descreveu mais de 200 plantas), entre outras habilidades, acabou sendo canonizada pela Igreja Católica. Embora isso tenha levado doze séculos.

Em 2011, o Papa Bento 16 acrescentou Hildegarda ao catálogo de santos católicos, e um ano depois a nomeou “quarta Doutora da Igreja Católica”, depois de Santa Teresa, Santa Catarina e Santa Teresa de Lisieux.

Uma santa que descreveu o orgasmo

Além de sua notável contribuição para a cerveja, essa freira de clausura nos legou também uma outra “descoberta” prazerosa: a primeira descrição escrita conhecida de um orgasmo feminino.

Ao contrário de escritores da época, como seu contemporâneo Constantino, o Africano, que em seu Liber de coitu descreveu todos os tipos de prazeres carnais sem mencionar as mulheres, Hildegarda foi a primeira a ousar afirmar que o prazer não era obra de Satanás, que residia no cérebro e que as mulheres também o sentiam.

No Book of Causes and Remedies of Diseases, a carismática abadessa de Binguen escreveu que o sexo não era fruto do pecado e que o prazer sexual era uma questão de dois, e descreveu o momento do clímax e da ejaculação de um casal em termos inequívocos:

Assim que a tempestade da paixão surge em um homem, ele é lançado nela como uma pedra de moinho. Seus órgãos sexuais são então, por assim dizer, a forja à qual a medula dá seu fogo. Essa forja, então, transmite o fogo para os órgãos genitais masculinos e os faz queimar poderosamente.

E sua parceira está longe de ser um recipiente insensível:

Quando a mulher se une ao homem, o calor do cérebro da mulher, que tem prazer nele, faz com que ele sinta o prazer da união e ejacule seu sêmen. E quando o sêmen cai em seu lugar, esse calor muito forte do cérebro o atrai e o retém consigo mesmo, e imediatamente o rim da mulher se contrai e fecha todos os membros que, durante a menstruação, estão prontos para se abrir, assim como um homem forte segura uma coisa em sua mão.

Esse tratado médico foi publicado há doze séculos. A verdade é que, somente por isso, ela merecia ser uma santa.

*Manuel Peinado Lorca, o autor deste artigo, é professor emérito de Ciências da Vida e diretor do Jardim Botânico Real da Universidade de Alcalá (Espanha).   **Este artigo foi publicado no site The Conversation e reproduzido por BBC News, sob a licença Creative Commons,  em 14.09.24 

sábado, 14 de setembro de 2024

Governo está atordoado diante do fogo

Há pelo menos 12 ministérios que têm ou deveriam ter o que fazer num plano nacional de combate imediato aos incêndios

Incêndio atinge vegetação perto da Rodovia Presidente Dutra, na altura de Barra Mansa, no interior do RJ — Foto: Domingos Peixoto

O Supremo Tribunal Federal é uma Corte constitucional. É um poder independente, que deve decidir, nas mais diversas situações e casos, se a Constituição é ou não cumprida. Portanto foi com certo espanto que tomamos conhecimento, nesta semana, de uma ordem executiva de um ministro do STF, Flávio Dino. Determinava que o governo federal enviasse mais bombeiros militares para atuar nas regiões afetadas pelos incêndios. Mandava também que se deslocassem mais equipamentos e veículos para apoiar os esforços da Força Nacional.

Onde estava a questão constitucional?

O Executivo também é um Poder independente, a que cabe justamente a função de executar políticas e tocar a administração. Governar, enfim. Não cabe ao STF determinar se bombeiros deveriam atuar aqui ou ali. Mas determinou. E o governo cumpriu. Dois dias depois da ordem de Flávio Dino, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, convocou 150 bombeiros para as ações de combate aos incêndios. Portanto dentro do prazo de cinco dias dado pelo STF.

Sabe-se que isso criou certo mal-estar no governo federal. Compreensível. Dino entrara na seara do Executivo e, mais, determinando algo que obviamente o governo já deveria estar fazendo. Mostrou a todo mundo que o governo falhava num momento gravíssimo de emergência nacional. E falhava em questões elementares, como a mobilização de bombeiros. O que fazia o ministro da Justiça? Esperava ordem do STF?

Não há crise, apressaram-se todos a dizer. É normal, disseram, pois o STF tem amparo legal para esse tipo de determinação executiva. Tem mesmo — e isso vem do tempo da pandemia, quando o governo Bolsonaro não era apenas incompetente na atuação sanitária de combate à transmissão de Covid-19. Era ostensivamente contra as medidas. E as sabotava.

Ameaça à saúde pública, à saúde de todos e de cada brasileiro, poderia ser interpretada, como foi, como descumprimento pelo governo de uma obrigação constitucional. Decorrendo daí a capacidade do STF de determinar medidas que contribuíssem para o cumprimento executivo daquela obrigação constitucional. “Saúde é dever do Estado.”

Dada a explicação, a coisa ficou ainda pior para o governo Lula. Dino deixou o Ministério da Justiça faz pouco tempo, chegou ao Supremo pelas mãos de Lula. Não é, portanto, um adversário. E ficamos assim: o juiz do STF precisou recorrer a uma prerrogativa instituída para barrar os desmandos de Bolsonaro para determinar mais eficiência ao governo Lula, de que fazia parte há até pouco tempo.

E, quer saber? Dino tem razão.

No complexo e confuso governo Lula, há pelo menos 12 ministérios que têm ou deveriam ter o que fazer num plano nacional de combate imediato aos incêndios. E que deveriam estar preparados para a emergência climática caracterizada hoje por uma seca severa — prevista por especialistas e mesmo por integrantes do governo.

Apanhado no meio da crise, o governo passou a especular sobre medidas que já poderia ou deveria ter tomado. Por exemplo: a criação de uma Autoridade Climática, com amplos poderes para enfrentar o presente e o futuro. A ministra Marina da Silva propõe isso faz tempo. Ficaria dentro de seu Ministério do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas.

Deu problema político. Não da grande política — uma discussão sobre poderes e alcance de tal Autoridade. A questão foi outra: onde e com que partido ficaria? Ainda agora, quando a ideia voltou à tona, já surgiram especulações sobre nomes para comandar a talvez futura Autoridade. Um ambientalista? Ou um representante da Frente Parlamentar da Agropecuária?

Também se tratou de um arcabouço jurídico da emergência climática — pois é, não tinha. E até entrou na pauta o horário de verão, ainda em análise, segundo fontes do governo. Repararam? Nenhuma ideia nova. Apenas expõe um governo atordoado, o mesmo que ficou atordoado com a epidemia de dengue.

Se bem que apareceu uma ideia nova, de Lula: treinar os 70 mil recrutas que entrarão no Exército para o combate aos incêndios.

Agora vai.

Carlos Alberto Sardenberg,o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 14.09.24

O Brasil apodrece e o desconforto é físico, político e moral

E o governo fala em asfaltar a BR-319 e protesta contra lei antidesmatamento da União Europeia

Poluição na cidade de São Paulo - Danilo Verpa - 12.set.24/Folhapress

Na manhã da segunda-feira (9), São Paulo registrou a pior qualidade do ar em todo o planeta, superando metrópoles como Ho Chi Minh, no Vietnã, e Lahore, no Paquistão.

O Brasil pega fogo. A fumaça e a destruição ambiental se espalham. Sem orientação sanitária, a população sofre os efeitos da seca, da poluição e do calor.

Assim como os rios Tietê e Pinheiros e a baía da Guanabara apodreceram diante do olhar complacente de autoridades de diferentes linhagens ideológicas, governo e Congresso são espectadores da tragédia climática, vendo-a como algo inexorável, natural ou divino.

É necessário (além da crítica jornalística) que, diante da "pandemia" de incêndios, o ministro Flavio Dino, do STF, aplique um polido puxão de orelhas.

O governo então se move em relação às queimadas, porém ressuscita a ideia temerária de asfaltar a BR-319, no coração da Amazônia, e protesta contra lei antidesmatamento da União Europeia que pode prejudicar exportações brasileiras.

Desenvolvimento sustentável (que satisfaz necessidade do presente sem comprometer necessidade futura) é ficção ou slogan.

A expansão das energias eólica e solar promove desmatamento da caatinga, bioma único, protegido pelo Estado brasileiro. Como é energia limpa, há relaxamento no licenciamento ambiental. Vegetação nativa é destruída para instalação de fazendas solares. Poluição sonora de turbinas eólicas afeta sono e audição de moradores locais, gerando ansiedade e depressão. Turbinas promovem também a matança de aves, ameaçando espécies em extinção. Empresas sustentáveis criam cemitérios clandestinos para descarte de cata-vento e painel solar.

O Brasil apodrece.

Entre 2012 e 2023, o número de pessoas que vivem nas ruas de São Paulo aumentou 16,8 vezes, passando de 3.842 para 64.818 habitantes.

Segundo o Datafolha, 23 milhões de brasileiros convivem, na vizinhança, com milicianos e facções criminosas.

Escolas públicas do complexo da Maré, no Rio de Janeiro, permaneceram pelo menos 15 dias totalmente ou parcialmente fechadas nas últimas semanas por conta de operações policiais: quase 20 mil alunos afetados por falta de ensino, insegurança alimentar e traumas psicológicos.

O setor de apostas esportivas cresceu 734% desde 2021. Movimenta bilhões, faz nascer um novo e vil "empresariado", favorece a lavagem de capitais e patrocina a maior parte dos times de futebol. Compromete 20% do orçamento de famílias mais pobres. Faz crescer o vício e o endividamento. Segundo a Fecomercio-SP, 20% dos apostadores deixam de pagar contas para jogar. O governo se vê diante de extraordinária fonte de arrecadação e recomenda que o jogador aposte com responsabilidade.

Cai o ministro dos Direitos Humanos, acusado de ser predador sexual.

Ministro bolsonarista do STF pega carona em jatinho de "empresário" do setor de apostas e vai para a Grécia comemorar, em luxuoso superiate, o aniversário de cantor sertanejo que tem bens bloqueados pelo Judiciário por suposto envolvimento no escândalo de lavagem de dinheiro da tal "influenciadora", atualmente presa.

O planeta é finito. O calor é desértico. A destruição ambiental parece irreversível. Fumaça e fuligem cobrem os céus do continente. O Brasil apodrece. O desconforto é físico, político, moral.

Luís Francisco Carvalho Filho, o autor deste artigo, é Advogado criminal  e, ainda,  autor dos livros "Newton" e "Nada mais foi dito nem perguntado". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 13.09.24

Posso fazer post com apoio a candidatos? As regras para as redes nas eleições municipais

Eu escolhi meu candidato para as eleições municipais de 2024. Gosto de suas propostas e quero compartilhar com meus amigos nas redes. Posso, então, fazer um post demonstrando o meu apoio?

Celular em cima da bandeira do Brasil (Crédito,Getty Images)

A resposta simples é "sim", mas nem sempre.

Nas eleições do Brasil, em algumas situações, as regras para propaganda eleitoral na internet são diferentes daquelas aplicadas à campanha na rua.

O advogado especialista em direito eleitoral Fernando Neisser, professor da Fundação Getúlio Vargas, explica que as pessoas podem fazer nas redes campanha a favor de qualquer candidato, contanto que não sejam pagas para isso.

Essa regra vale desde 2009, por meio de uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral.

"No Brasil, a gente tem a ideia de uma certa 'meritocracia digital'. Ou seja, os candidatos só podem atrair apoiadores para fazer campanha a seu favor nas redes de forma gratuita e voluntária. É proibido pagar, seja para fazer postagem a favor, para divulgar um corte de vídeo ou compartilhar um material", conta Neisser.

A determinação é diferente quanto às campanhas de rua, em que as campanhas podem contratar pessoas para distribuir santinhos, por exemplo, desde que as contas sejam prestadas diante da Justiça Eleitoral.

Na internet, uma pessoa até pode ser contratada pela campanha para administrar as redes sociais de um candidato. Mas ela não pode fazer isso usando os seus próprios perfis.

Impulsionamento de posts

Apesar de qualquer cidadão poder demonstrar seu apoio nas redes, ele não pode impulsionar posts políticos.

Isso é: pagar para que sua publicação chegue a mais usuários por meio de ferramentas do Instagram ou TikTok, por exemplo.

Só quem pode contratar impulsionamento são os candidatos, os partidos ou as coligações.

"As pessoas só podem se manifestar organicamente", ressalta o advogado Fernando Neisser

Também não se pode divulgar fake news, ofensas a outros candidatos ou criar bots para propaganda em massa. Isso pode resultar em multas que chegam a até R$ 30 mil.

Em 2022, o TSE distribuiu R$ 940 mil em multas por fake news durante as eleições presidenciais.

Postagens de apoio podem ser feitas em perfis de pessoas físicas, mas não de pessoas juridicas (Getty Images)

Influencers x empresas

Neisser explica que uma nova resolução que cuida de propaganda eleitoral editada pelo TSE no começo de 2024 deixa claro que não importa o número de seguidores que alguém tenha.

"Essa pessoa segue sendo cidadã e pode fazer propaganda a favor dos seus candidatos, desde que não receba por isso", diz o advogado.

A única observação que deve ser feita, diz o especialista, é que a página deve pertencer à própria pessoa física.

"Se aquele perfil se tornou uma empresa, se aquilo pertence a um CNPJ, ainda que seja de propriedade daquele influenciador, aquela página passa a ser considerada uma página empresarial e não pode ter campanha eleitoral", defende Neisser.

"O que importa é: no nome de quem aquela página está registrada junto à plataforma? Eu posso ser influenciador, ter mil seguidores, mas se a página está no nome de uma empresa, não pode. Se é uma página grande, com milhões de seguidores, mas está no meu CPF, pode."

Mesmo sem ter CNPJ, qualquer página que pareça ser de empresa, como uma loja de roupas ou uma doceria online, também está vetada da propaganda eleitoral, pois está atraindo pessoas por meio da prestação de um serviço.

"Isso quer dizer que eu não posso fazer propaganda em página pertencente à empresa, ainda que seja uma empresa da qual eu seja sócio ou da qual seja proprietário", completa o advogado.

Quem está vetado?

Os funcionários públicos podem se manifestar sua preferência eleitoral sem problemas, desde que seja fora de horário do expediente.

Campanha nas ruas tem menos restrições, mas distribuição de brindes e boca de urna são vetados (Getty Images)

Boca de urna

No dia da eleição, a regra da boca de urnas vale para as ruas e para as redes, ainda que no espaço digital a fiscalização seja muito difícil.

No domingo 6 de outubro, quando os brasileiros irão às urnas, é permitido o uso de camisetas e adesivos do seu candidato, mas, a partir da meia noite do sábado para o domingo, é proibido pedir votos.

Isso é um crime com pena que pode variar de seis meses a um ano de detenção ou multa no valor de mais de R$ 15 mil.

Durante toda a campanha, também não é permitido fazer propaganda eleitoral em locais como repartições públicas, escolas ou templos religiosos. Além disso, o tamanho dos cartazes colocados em bens particulares não pode ultrapassar meio metro quadrado.

Distribuir brindes como camisetas, bonés ou qualquer outro item que possa ser interpretado como uma tentativa de compra de votos também é crime passível de penalização: pode ser uma multa variando entre R$ 1.064 a mais de R$ 53 mil, ou até de reclusão, que pode chegar a 4 anos.

Se o candidato beneficiado por alguma dessas práticas ilegais for considerado responsável ou conivente, ele pode até ter o registro de sua candidatura ou seu mandato, caso eleito, cassado.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 13.09.24

Humanidade conquistou 'poderes divinos', mas pode acabar em Armagedom

Uma série de revoluções tecnológicas em curso — na genética, na biotecnologia, na inteligência artificial — estão dando à humanidade um poder que antes era considerado apenas dos deuses: de usar engenharia para redesenhar a vida e para interferir no planeta em uma escala inimaginável antes.

Jamie Metzl é autor de livros sobre tecnologia; na foto, ele discursava como especialista no Congresso dos EUA em investigação sobre a origem da covid. (Getty Images)

Um mundo em que as pessoas comem carnes produzidas não em fazendas, mas em laboratórios, sem necessidade de uso intensivo de terras, água e fertilizantes.

Com uma medicina que não precisa esperar sintomas de doenças para começar a diagnosticar pacientes — já que as doenças são detectadas por biomarcadores muito antes de se tornarem fatais.

Ou um mundo em que toda a energia e materiais utilizados nas indústrias são cultivados por seres humanos, e não retirados da Terra.

Esse mundo utópico é descrito pelo autor americano Jamie Metzl em seu livro Superconvergence: How the Genetics, Biotech, and AI Revolutions Will Transform our Lives, Work, and World (“Superconvergência: como as revoluções da genética, da biotecnologia e da IA transformarão nossas vidas, nosso trabalho e o mundo”, em tradução livre).

Metzl é considerado um autor futurista — alguém que monitora o estado atual das tecnologias e busca tendências que vão orientar o progresso da humanidade.

Segundo ele, o futuro descrito acima pode parecer utópico e distante, mas está mais próximo do que imaginamos, já que muitas tecnologias estão perto do alcance da geração atual de cientistas.

Para Metzl, a humanidade está alcançando o feito de Prometeu — figura da mitologia grega que roubou o fogo dos deuses do Olimpo e deu aos mortais esse poder.

Segundo essa ideia, uma série de revoluções tecnológicas em curso — na genética, na biotecnologia, na inteligência artificial — estão dando à humanidade um poder que antes era considerado apenas dos deuses: de usar engenharia para redesenhar a vida e para interferir no planeta em uma escala inimaginável antes.

No entanto, apesar de seu entusiasmo com as revoluções tecnológicas, Metzl se mantém cético e às vezes até mesmo horrorizado com alguns avanços.

Em seu livro, ele diz que se a humanidade não aprender a controlar a tecnologia, sobretudo com cooperação internacional e transparência, “iremos nos desviar para o Armagedom”.

Um exemplo desse perigo, segundo ele, aconteceu há seis anos.

Em 2018, o cientista chinês He Jiankui anunciou ter alterado o DNA dos embriões de duas bebês para torná-las resistentes ao HIV, caso elas entrassem em contato com o vírus.

A edição genética tem o potencial de prevenir que doenças hereditárias sejam transmitidas de pais para filhos.

Mas especialistas temem que modificações em genomas de embriões não apenas causem danos aos indivíduos, mas levem futuras gerações a herdar essas modificações de efeito ainda pouco conhecido.

O caso chocou a comunidade científica internacional. Um estudo posterior apontou que pessoas com a mutação genética que He tentou recriar têm probabilidade significativamente maior de morrer ainda jovens.

He Jiankui foi condenado a três anos de prisão na China.

Jamie Metzl participou do comitê consultivo de especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre edição do genoma humano que analisou o caso.

Geneticista chinês He Jiankui anunciou que havia editado genes de dois bebês (Getty Images)

Para ele, esse episódio ilustra o perigo envolvido em novas tecnologias: a falta de transparência internacional e governança pode levar laboratórios a desenvolverem tecnologias perigosas e fora de controle. Isso pode acontecer em qualquer indústria — da engenharia genética a armas de destruição de massa.

Jamie Metzl tem experiência no mundo da política. Formado em História e Direito, ele trabalhou em diversos órgãos dos EUA: Conselho de Segurança Nacional dos EUA, Departamento de Estado e Comitê de Relações Exteriores do Senado — além de ter servido como Oficial de Direitos Humanos da ONU no Camboja. Seu livro anterior — Hackeando Darwin — foi publicado no Brasil.

Para ele, boa parte das soluções necessárias hoje para a humanidade não são mais tecnológicas, e sim políticas.

Preocupado com a falta de debate público sobre as tecnologias, ele criou o OneShared.World, um movimento global que propõe ações coletivas para lidar com o que chama de os desafios mais urgentes do mundo.

Nesta entrevista, ele conversou com a BBC News Brasil sobre os diversos riscos e oportunidades envolvendo as revoluções tecnológicas. E comentou sobre temas que vão desde as vacinas para covid até o desmatamento do Cerrado brasileiro.

BBC News Brasil: Você fala que hoje, para a maioria das pessoas, é a melhor época para se estar vivo e esse é um tema central do seu livro. Por que você está tão otimista com o momento atual e com o que está por vir em seguida?

Jamie Metzl: Se pegarmos qualquer medida de bem-estar humano, estamos melhores do que nossos ancestrais em praticamente qualquer momento da história.

Estamos vivendo de forma mais saudável, por mais tempo, somos mais educados, temos maior acesso a ferramentas e habilidades que nos permitem fazer mais. E essas tendências estão quase que todas se movendo na direção certa.

Estamos desenvolvendo essas capacidades quase divinas de fazer coisas ainda melhores. Nem tudo melhorou, mas a maioria está melhorando.

Mas esse otimismo também requer um pouco de pessimismo – e de ansiedade com o que pode dar errado caso não acertemos com a transição. Ninguém deve ser um otimista ou um idealista cego. Isso seria perigoso.

Se acertarmos nas nossas decisões, poderemos ter um futuro de grande abundância, sem bilhões de pessoas vivendo em extrema pobreza, onde todos têm acesso à educação, saúde e nutrição de qualidade — essas ferramentas que podem construir um planeta mais sustentável para humanos e para a vida como um todo.

Por outro lado, se errarmos, temos agora a capacidade de provocar dano incrível em uma escala planetária.

BBC News Brasil: No livro, você fala sobre os benefícios da biotecnologia para o futuro. Mas você fala bastante sobre o caso de cientistas chineses que em novembro de 2018 anunciaram que tinham conseguido editar genes humanos. Nesse caso, você não achou que isso era uma boa coisa. Por que você criticou esse episódio, que parece um pouco o futuro que você prevê no seu livro?

Metzl: Meu livro anterior, Hackeando Darwin, falava sobre o futuro da engenharia genética humana, o que inclui edição de genes. E eu sempre acreditei que os humanos poderão em algum ponto do futuro editar os genomas de embriões pré-implantados para eliminar os riscos de doenças terríveis e potencialmente fatais. E talvez fazer até mais do que isso. Mas isso não significa que estamos prontos para fazer isso agora.

Em 2018, quando o cientista chinês He Jiankui anunciou que tinha editado o genoma de dois bebês, eu fiquei horrorizado. Só porque temos a capacidade de fazer algo, não significa que devemos fazer.

Acho que o que Jiankui fez equivale a uma espécie de experimentação no estilo de Nuremberg, que é completamente inaceitável. Precisamos ser extremamente críticos de pessoas que estão assumindo riscos desnecessários, e isso é ainda mais sensível quando é feito com pessoas.

BBC News Brasil: Mas quem pode dizer quando estaremos prontos para fazer isso?

Metzl: Sim, é uma questão essencial. O maior desafio do mundo é que nossos maiores problemas são globais e comuns, incluindo de governança das tecnologias revolucionárias. Não temos estruturas suficientes de governança, e isso é fundamental. Temos alguns processos e temos a ONU. Temos padrões estabelecidos por cientistas.

Mas se você olha para o caso da China, o que He Jiankui fez foi inicialmente apoiado pelo governo chinês. He Jiankui foi saudado como um herói pela imprensa chinesa.

Mas quando começou uma onda de repercussão internacional, o governo e a imprensa da China mudaram de lado, e ele acabou preso por três anos como resultado das suas ações.

Precisamos fazer tudo que for possível para estabelecer padrões nacionais e internacionais de governança dessas tecnologias.

Edição de genes é tecnologia que já está ao alcance da humanidade, mas Metzl acredita que ainda é preciso debater mais o assunto (Getty Images)

Está claro que o mundo está cheio de “buracos negros” de regulação, o que vemos em vários tratamentos não-licenciados com células tronco que são banidos na Europa e nos Estados Unidos. As pessoas estão indo para o Caribe e para a Ásia Central em busca desses tratamentos. E acho que muitas pessoas estão sendo prejudicadas por isso.

Precisamos estabelecer fundamentos de sistemas de governança que nos ajudem a administrar essas tecnologias de Prometeu que temos.

BBC News Brasil: Sua posição sobre as origens da Covid se tornou famosa: você foi um dos primeiros a sugerir que o vírus pode ter surgido em um laboratório, e não ocorrido naturalmente em um mercado de comida. É um assunto ainda polêmico entre cientistas e mesmo dentro da Organização Mundial da Saúde (OMS). Qual é sua visão sobre isso?

Metzl: Sim. Tenho uma visão bastante forte de que existem evidências avassaladoras que apontam para uma origem da Covid relacionada a pesquisas. Ainda não temos uma resposta completa para isso. E o único motivo é que o governo da China fez de tudo para evitar uma investigação científica e forense completa.

Na minha opinião, houve um acidente de pesquisa, e não uma tentativa deliberada de criar uma arma biológica. Acredito que deveríamos estar cobrando sem parar do governo chinês maior acesso para uma investigação completa sobre as origens da Covid.

A revista The Economist estima que houve 28 milhões de mortes em excesso por causa da Covid, dezenas de trilhões de dólares em prejuízo econômico, centenas de milhões de pessoas, se não mais, que caíram na pobreza. Se dissermos “ah, é só a China sendo a China, vamos deixar isso para lá”, a China ou qualquer outro Estado autoritário terá todo incentivo para repetir isso.

BBC News Brasil: Nos dois casos – da Covid e da edição de genomas – estamos falando de um mesmo país: a China. Você acredita que a forma como a China lida com ciência e pesquisas é um obstáculo para a sua ideia de superconvergência?

Metzl: Sim. Acredito que a comunidade científica chinesa está fazendo contribuições incríveis para o mundo em saúde, agricultura e muitas outras áreas. E sou grato por essas contribuições. Mas acredito que o Partido Comunista Chinês (PCC) está usando a ciência e a tecnologia como meio para seu fim de ultrapassar os outros países rumo à liderança mundial.

A combinação da ideologia do PCC com o tremendo poder da ciência chinesa é uma ameaça fundamental para a comunidade global e toda a humanidade.

Para Metzl, evidências apontam que covid surgiu por causa de acidente em laboratório na China, e não em mercado

A China, por conta de seu tamanho e ambições, está se tornando uma ameaça à humanidade. E não precisa ser assim. Acho que é fácil imaginar um mundo em que a China desempenha um papel bem mais construtivo.

Sou um grande crítico da China, mas também sou muito crítico do meu próprio governo, os Estados Unidos.

BBC News Brasil: Qual é sua crítica aos EUA?

Metzl: Os EUA são a maior superpotência científica do mundo. O Instituto Nacional de Saúde (NIH, em inglês) faz um trabalho incrível de financiar ciência de base. E essa ciência se difunde pelo mundo. No caso dos bebês CRISPR [caso do geneticista chinês He Jiankui], se você olhar para a ciência de base que está por trás disso, muito dela foi financiada pela NIH. No caso da Covid também.

O problema é porque vivemos em um mundo onde a ciência é aberta, essas capacidades são difundidas por todo o planeta, e essas tecnologias são repassadas intencionalmente ou não.

Para cientistas que são éticos mas podem estar trabalhando em Estados autoritários, é inevitável que a política desses Estados se misture com a pesquisa científica.

BBC News Brasil: Então se no caso da China, você diz haver pouca transparência, no caso dos EUA haveria transparência demais, que pode prejudicar o mundo?

Metzl: É difícil responder a isso porque vivemos em um mundo de ciência aberta. Nós nos beneficiamos disso. É por isso que temos esses incentivos para os cientistas. No momento em que eles descobrem algo, eles publicam um artigo que é submetido a revisão por pares para avaliar se aquilo é válido ou não.

O problema é que integramos a China no mundo da ciência aberta como se fosse o Canadá ou a Suíça.

BBC News Brasil: A Covid parece ser um bom exemplo dos desafios que a humanidade tem em controlar seus “poderes quase divinos”, que você menciona no livro. Por um lado, a humanidade produziu vacinas em tempo recorde, mas do outro lado surgem esses problemas de governança, confiança pública e transparência. Como você avaliaria a humanidade nesse teste?

Metzl: É o ponto central de tudo. Mesmo no nível pessoal das nossas vidas, nossas melhores e piores qualidades são duas faces de uma mesma moeda.

A Covid mostrou os benefícios milagrosos das nossas habilidades. Fomos capazes de desenvolver, a partir do genoma sequenciado de um vírus, uma vacina de mRNA completamente funcional em apenas 11 meses. Foi inacreditável.

Isso abriu caminho para vários outros tratamentos, seja contra câncer ou muitas outras coisas. Deveríamos estar gratos que, enquanto humanidade, conseguimos fazer isso juntos. E, ao mesmo tempo, essas tecnologias nos permite fazer coisas com consequências terríveis.

A questão que fica é: como otimizamos as coisas que queremos e minimizamos os riscos para evitar o que não queremos. É esse o jogo. E não é impossível. Mas requer que muito trabalho seja feito agora.

BBC News Brasil: No caso da Covid, foi um sucesso?

Metzl: Acho que não fomos bem. Fomos no caso do desenvolvimento das vacinas. Mas na distribuição das vacinas, não fomos bem. Certamente os EUA precisariam ter feito mais para compartilhar as vacinas.

Também não empoderamos a OMS, que poderia ter tido um papel mais ativo. Não construímos uma OMS assim. E não é culpa dos líderes da OMS, é culpa nossa. Eu acredito que toda a pandemia de Covid poderia ter sido completamente evitada.

Acredito que essa foi uma pandemia política, e fracassamos em reagir à crise.

BBC News Brasil: No seu livro, você fala sobre bem-estar animal e vegetarianismo, dizendo que a tecnologia pode ajudar mais pessoas a ter acesso à comida de uma forma mais sustentável e eficiente. Você acha que a agricultura está mesmo se tornando mais sustentável e ecológica?

Metzl: Temos mais consciência ambiental do que no passado. Temos maior noção das implicações negativas do aquecimento global e mudanças climáticas. Mas como em todas as áreas, estamos tendo dificuldades em tomar as medidas necessárias para mudar nossa trajetória.

Muito mais precisa ser feito. Temos 8 bilhões de humanos, em breve seremos 10 bilhões. Todos precisam ser alimentados. Todos têm direito a alimentação de qualidade, para si e suas famílias. Cabe a nós fazer isso. Mas precisa ser feito de uma forma ecológica e sustentável.

Carne artificial, criada em laboratórios, poderia ser uma forma de se reduzir o aquecimento global no futuro, segundo o autor (Getty Images)

E não estamos fazendo isso. Para isso, as ferramentas da genética e biotecnologia podem nos ajudar a aumentar a produtividade da nossa agricultura.

Vivemos em um mundo com aumento contínuo na produtividade da agricultura e uma produção global de alimentos em massa, que triplicou em 70 anos.

O Brasil fez um excelente trabalho, mas também estamos vendo no Brasil as consequências de precisarmos de tanta terra, tanta água e tantos fertilizantes.

A questão é como podemos melhorar, conseguir alimentos de alta qualidade mas com menos necessidade de terra, água e fertilizantes.

Um caminho é continuar desenvolvendo melhores variedades de sementes. Podemos reduzir nossa dependência em fertilizantes sintéticos pensando em formas diferentes de dar nutrientes às plantas e manipulando microbiomas.

E precisamos pensar a pecuária de forma diferente. Nós humanos, assim como a espécie anterior a nós, temos comido carne por muito tempo e isso é parte da nossa identidade e nossa cultura. Mas eu acho que seria saudável para os humanos comermos menos alimentos baseados em animais. Seria bom para o clima se todos virassem vegetarianos.

Eu mesmo não sou vegetariano e não estou pedindo aos brasileiros para serem. Mas podemos conseguir produtos animais de outras formas, sem continuar desmatando a floresta amazônica para pecuária.

A taxa de conversão calórica de plantas para gado para humanos é de 30. Uma vaca precisa consumir 30 calorias em plantas para produzir uma caloria de bife. Isso não é eficiente. Por isso, as novas ferramentas de cultura de célula ou de carne cultivada vão utilizar céulas-tronco de animais saudáveis, crescê-las, expandir essas células e criar produtos animais em bioreatores.

Pode não parecer algo natural para muitas pessoas, mas a pecuária industrial também não é normal, se olharmos para a nossa experiência histórica.

Estamos nos primórdios deste tipo de tecnologia. A maioria de nós nem se importa com o que está na carne que comemos. Mas poderíamos ter um produto biologicamente idêntico que usa menos água, menos fertilizantes, menos energia, menos impacto ambiental e talvez sendo até mais seguro, saudável e nutritivo.

Ainda poderíamos ter o produto premium e pagar mais por ele — como carne de maior qualidade ou outros produtos animais.

Eu não acho que as pessoas estejam preparadas para uma mudança radical, em sair de como vivemos hoje para amanhã estarmos vivendo como os Jetsons.

Mas acho que é possível mudar os sistemas que usamos agora.

No caso de combustíveis fósseis, eles foram um tremendo sucesso para humanos no passado e nos permitiram fazer coisas incríveis, possibilitando que se pusesse fim a abusos horríveis, como a escravidão.

O aquecimento global é, de certa forma, uma consequência do sucesso da humanidade. Mas ele criou outros problemas. Se resolvermos esse problema, talvez isso gere outros problemas.

BBC News Brasil: No caso do Brasil, muitas pessoas são céticas quanto aos benefícios da tecnologia na agricultura. Por um lado, é inquestionável o ganho de produtividade que se teve no campo. Mas por outro, a tecnologia permitiu que se plantasse no Cerrado, e hoje ele se tornou um dos biomas mais desmatados no Brasil. A tecnologia parece ter piorado a situação do Cerrado.

Metzl: Muitos dos brasileiros que estão infelizes com o papel da tecnologia no desmatamento só existem por causa da revolução verde. O motivo que temos 8 bilhões de humanos é a revolução verde.

Quando ela aconteceu no México nos anos 1950, o país estava passando por fome, que afetava milhões de pessoas. O país não tinha comida para alimentar sua população e em poucas décadas havia tanta comida que o México começou a exportar grãos.

Mas a tecnologia nos ajuda a resolver problemas e acaba criando novos problemas. Por isso, quando cometemos erros, precisamos ter sistemas para identificar o que aconteceu de errado e nos responsabilizar pelos erros.

Agricultura no Cerrado se beneficiou com maior tecnologia, mas ela também provocou aumento no desmatamento (Getty Images)

Eu escrevo no meu livro como os humanos quase acabaram com várias espécies de baleia porque aperfeiçoamos tanto as formas de matar. Se não fosse a ONU dizer que precisamos de mecanismos de controle, muitas dessas espécies teriam sido extintas.

BBC News Brasil: No caso do Cerrado, qual seria uma boa solução? É possível aumentar ainda mais a produtividade sem expandir o uso de terras?

Metzl: Se diminuirmos nossa dependência em produtos animais, precisaremos de menos gado. Digamos que consigamos substituir 50% da carne que os humanos consomem hoje. Ou seja, 50% viriam de carne cultivada (em laboratório) e 50% de animais abatidos. Ainda teríamos acesso a bifes de qualidade, mas precisaríamos de muito menos gado e terras. A Terra quer se repovoar com vida selvagem, são os humanos que estão colocando pressão no planeta através do desmatamento.

Duas coisas são necessárias: uma é essa parte da demanda. A outra é a governança.

Governos precisam fazer um trabalho melhor na proteção de espaços naturais.

BBC News Brasil: Você acha que as pessoas já estão prontas para consumir carne artificial? Me parece que é algo que os consumidores ainda não estão preparados.

Metzl: A tecnologia para se criar carne cultivada existe e está avançando rapidamente, mas não está em um estágio em que possa competir com produtos animais “naturais”. Não em termos de custo e escala. Acho que ainda é preciso investir muito para se ganhar escala.

Precisamos lidar com o sucesso que foi a agricultura industrial. A boa notícia é que essa agricultura não é a que praticamos desde sempre. Nessa escala, ela existe há menos de cem anos. E podemos mudar isso.

BBC News Brasil: Em seu livro, você pinta um cenário de um futuro em que a humanidade controla poderes quase como deuses. Qual é o cenário ideal que você vê para a humanidade, em que os desafios foram vencidos?

Metzl: Quando eu estava escrevendo o livro, meu pai foi diagnosticado com câncer neuroendócrino, o mesmo que matou Steve Jobs. Ao contrário de Jobs, eu fui atrás de tudo que é tecnologia que pudesse combater esse câncer. Eu insisti que fizéssemos um sequenciamento das células de câncer e acabamos encontrando uma mutação.

E encontramos um tratamento para bloquear a habilidade desta célula de se reproduzir, um tratamento que praticamente nunca tinha sido usado neste câncer. Isso funcionou por um ano e meio, mas parou de funcionar porque o câncer evoluiu.

Sequenciamos as células de novo e achamos outra mutação.

Meu pai, pelo diagnóstico que recebeu, deveria ter seis meses de vida. Desde então ele já viu o Kansas City Chiefs ganhar dois Super Bowls. Ele foi ao bat mitzvah [comemoração judaica] de sua neta. Ele e minha mãe estavam no lançamento do meu livro em Nova York.

É um exemplo pequeno. As pessoas têm medo de um apocalipse com inteligência artificial. Esses medos não são necessariamente sem fundamento. Mas vivemos em um mundo mediado pela tecnologia. A agricultura é uma forma de biotecnologia.

Qual é minha visão para um futuro melhor? Viver com mais saúde, talvez por mais tempo, com vidas mais robustas, onde transformamos nosso sistema saúde baseado em sintomas de doença para algo preventivo e proativo.

Onde cultivamos comida para que todos no planeta tenham acesso a maior qualidade de nutrição, utilizando menos terra e água e coisas que dilapidam grande parte do nosso planeta.

Onde transformamos nosso modelo de transformação de materiais industriais, em que cortamos ou cavamos coisas da natureza, e passamos a cultivá-los.

Nossa espécie consegue viver em partes do universo que são inóspitas para nós.

O principal desse momento da humanidade nesse planeta é que depois de quatro bilhões de vida, uma espécie finalmente consegue usar engenharia para criar inteligência e redesenhar a vida. O que vai definir se fomos bem-sucedidos ou não é se saberemos usar sabiamente essas capacidades de Prometeu.

Daniel Gallas, o autor desta reportagenm trabalha para a BBC News em Londres. Publicado originalmente em 14.09.24

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Orçamento em frangalhos

Pelo que se vê, as emendas parlamentares fabricadas para abastecer currais eleitorais de congressistas não só continuarão sem nenhum critério técnico, como poderão ser turbinadas

A pedido do Supremo Tribunal Federal (STF), a Controladoria-Geral da União (CGU) realizou uma auditoria nos 10 municípios mais beneficiados, per capita, por emendas parlamentares que constituíam o chamado “orçamento secreto”, vetado pela Corte, e depois pelas emendas que substituíram esse mecanismo e mantiveram a opacidade. O resultado da amostra, entre 2020 e 2023, indica que desvios, atrasos e desperdício de dinheiro não são exceção, mas regra.

Pelo visto, a falta de transparência na destinação dos recursos é característica imprescindível desse instrumento para os objetivos dos parlamentares envolvidos: distribuir verbas sem critério para melhorar as chances eleitorais de si mesmos e de aliados políticos – isso sem falar na avenida de oportunidades para corrupção.

Diante das evidências de que o espírito dessas emendas é intrinsecamente antirrepublicano e antidemocrático, fica cada vez mais claro o acerto do Supremo em colocar um freio na distribuição desse dinheiro. Nada do que foi arrolado pela CGU respeita o que vai na Constituição.

Há de tudo ali, desde truques para mascarar os envolvidos na transferência dos recursos até a escandalosa desnecessidade por parte de quem os recebe. Um caso exemplar chamou a atenção dos auditores: para a minúscula Pracuúba (AP), destinou-se polpuda verba para construir nada menos que quatro campos de futebol, para usufruto de pouco mais de 5 mil habitantes – que já dispunham de campos de futebol. Isso não é desvio; é padrão.

Para a surpresa de ninguém, dos dez municípios que mais receberam dinheiro, cinco são do Amapá, Estado do senador Davi Alcolumbre, virtual eleito para voltar à presidência do Senado. Consta que sua habilidade na administração das emendas é um dos fatores que o tornaram favorito na eleição.

Na última década, as emendas parlamentares saltaram de 4% do Orçamento discricionário para 23%, tornaram-se obrigatórias e se diversificaram. Especialistas cansaram de alertar que esses repasses, distribuídos sem equidade, transparência ou critérios que garantam sua integração às metas da União e às necessidades locais, degradam as políticas públicas porque são pulverizados, pressionam os cofres públicos porque drenam recursos dos ministérios e geram riscos de corrupção porque não são fiscalizados. Finalmente, distorcem a competição democrática, porque abastecem redutos de alguns parlamentares em detrimento de outros, tornando-se um cobiçado complemento do Fundo Eleitoral.

Ainda assim, sob a conivência de Executivos fracos, os congressistas criaram doações aos caixas de Estados e municípios – as emendas “Pix” – e repasses sem transparência por apadrinhados de líderes do Parlamento – o “orçamento secreto”. Este último foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2022, mas continuou a ser operado sob as Emendas de Comissão. Tamanho foi o destempero que, em agosto, o STF, cumprindo sua função de guardião da Constituição, suspendeu os repasses até que o Congresso criasse parâmetros de “eficiência, transparência e rastreabilidade”.

Mas, como reza uma máxima do cinismo político, consagrado no romance O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa, é preciso que tudo mude se queremos que tudo permaneça como está. Temendo retaliações do Parlamento, o STF articulou com caciques do Legislativo e do Executivo um insólito “acordo”, que, em tese, deveria garantir as tais “eficiência, transparência e rastreabilidade”. Mas já se vê que a pizza, ainda no forno, não cheira bem. Conforme apurado pelo Estadão, as emendas de comissão podem virar obrigatórias; os recursos poderão bancar obras regionais, e não nacionais; o volume de emendas poderá ser turbinado; e as emendas “Pix” serão, na essência, mantidas.

Assim, nesse acordo, o Judiciário evita mais desgastes; o Executivo, com sua base parlamentar diminuta, garante ao menos um naco das emendas para seu PAC; e as bancadas fisiológicas seguem abastecendo seus currais eleitorais – quando não seus bolsos. A turma de Brasília superou até o célebre cínico da obra de Lampedusa: ao que parece, tudo mudará, mas para ficar ainda pior do que já estava.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 13.09.24

Não é apenas autocracia, é corrupção

A regra predominante é a falta de transparência, como ocorreu no recente processo eleitoral e o papel da autoridade eleitoral obscura e tendenciosa.

Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, em evento público em Caracas, em 9 de setembro. Palácio Miraflores (Reuters)

Tudo o que aconteceu na Venezuela em torno do ato eleitoral fraudulento e repressivo de 28 de julho é gravíssimo. E embora tenha recebido alguma atenção do mundo, a sobrevivência política de Nicolás Maduro indicaria que este impulso democrático tem sido insuficiente. Porque, além disso, o regime passou, impunemente, para uma fase mais dura de perseguição e repressão contra a oposição política e o jornalismo independente.

Sendo assim, não há dúvida de que a imagem “democrática” de Maduro e do seu regime é seriamente afetada. Particularmente em termos de algo crucial como a sua legitimidade democrática – e legalidade. Entretanto, o mundo observa, espantado, enquanto o autocrata consolida o seu estatuto como tal. Depois de mudar a data do Natal, as pessoas esperam ansiosamente e se perguntam: o que farão a seguir? Trocar a noite pelo dia? O número de meses? Tudo pode acontecer dada a impunidade de que Maduro tem beneficiado, contra todas as probabilidades.

Mas há uma questão que acaba por ser, na realidade, a outra face do autoritarismo “madurista”, que é a corrupção. Considerando o monitoramento realizado por organizações independentes como a Transparência Internacional sobre os graves “pecados” contra os valores e direitos democráticos, há uma corrupção muito grande e contínua. Que nos anais da história da corrupção na América Latina ocuparia provavelmente um espaço e lugar preferencial e particularmente volumoso.

Grande corrupção: sem precedentes

Dada a escassez de informações provenientes de fontes oficiais, nada mais justo e pertinente do que levar em conta as informações e investigações realizadas pela Transparência Internacional na Venezuela, que as realiza desde 2018.

Assim, detectou-se, por exemplo, que até março de 2023 haveria pelo menos 220 casos de desvio de bens públicos venezuelanos anunciados por órgãos do sistema de justiça. Embora a magnitude total dos casos e do dinheiro roubado possa ser superior aos relatados, o que já se sabe (61% dos casos registados) equivale a montantes espectaculares: sete vezes as reservas internacionais da Venezuela, estimadas em 9.532 milhões para Março de 2023, segundo dados do o Banco Central da Venezuela.

O montante de dinheiro comprometido ascenderia a 68.311 milhões, um valor que poderia ser uma espécie de recorde mundial no roubo de recursos públicos através da corrupção. De acordo com o registo e sistematização destes casos, a maior parte deles teria um carácter essencialmente “transnacional”. De acordo com o que a Transparência Internacional identificou a partir dos casos abertos, “…até agora, pelo menos 146 destes casos estão a ser processados ​​nos sistemas judiciais de 26 países terceiros e 74 na Venezuela”.

Corrupção e direitos humanos

Em relação a estes casos investigados na Venezuela, não há informação oficial sobre o andamento das investigações, nem certeza dos valores públicos comprometidos. Descobriu-se, no entanto, que, de acordo com a Transparência Internacional, a maioria dos casos envolve pessoas “que se opõem ao Governo, que estiveram nas suas fileiras, mas são tratadas como traidoras ou que colaboraram com os sistemas de justiça de outros países”. .” Muito pão, enfim, para fatiar.

Como observa com precisão a Transparência, “relatórios internacionais têm mostrado a relação e o impacto da corrupção na garantia dos Direitos Humanos, em sectores como a saúde, a alimentação, a educação, a qualidade dos serviços públicos como a água potável, a electricidade, bem como nas oportunidades de desenvolvimento”. , superando a pobreza e a desigualdade.” Questões críticas, portanto, nas quais órgãos de proteção como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos são chamados a assumir um papel de liderança.

As vítimas e a “cruzada” contra a corrupção

Quando a corrupção é grande e de “alto nível”, como neste caso, tem consequências e repercussões na vida das pessoas. Não apenas nos grandes balanços das contas nacionais. Sinistro paradoxo: numa situação como a de um país com enorme riqueza como a Venezuela, a crescente corrupção - e o enriquecimento - de alguns impacta diretamente as vidas - e o empobrecimento acelerado - não de algumas pessoas, mas de milhões.

A partir disso, promove-se o maior processo migratório latino-americano da história: pelo número de pessoas que emigraram e pelo seu impacto, basicamente na América Latina e em países como Colômbia e Peru. Com mais de 8 milhões de venezuelanos agora deslocados/refugiados na América Latina, como destacou a Transparência Internacional, “ocorreu a maior migração na região e uma das mais altas do mundo”.

É verdade que no início de 2023, o Governo venezuelano, em conjunto com o Ministério Público, promoveu a chamada “cruzada” contra a corrupção. Era mais barulho do que qualquer coisa . Isso tocou alguns funcionários de alto nível. Mas por ter sido mais superficial e “pontual” do que profundo, muitos interpretaram que as ações levadas a cabo foram, mais do que tudo, um passo que visava uma espécie de “expurgo interno”, e não tanto uma investigação séria e séria. profundidade.

De qualquer forma, o que fica evidente é que a regra que prevalece é a falta de transparência. Este foi o caso do recente processo eleitoral e do papel da autoridade eleitoral obscura e tendenciosa. E foi também o caso no processo da chamada “cruzada” com a pouca – ou nenhuma – informação que mais tarde se soube sobre as causas e os montantes saqueados.

Diego Garcia-Sayan, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado pelo EL PAÍS, em 13.09.24


quinta-feira, 12 de setembro de 2024

O Congresso está de costas para o Brasil

Só a troca de comando na Câmara e no Senado está no radar dos parlamentares. Que se dane o País em chamas. Em gabinetes fechados, o único assunto é a manutenção do orçamento secreto

O Congresso virou de costas para o Brasil. Indiferentes ao que acontece em um país com tantas carências e, como se isso não bastasse, ora é consumido por queimadas que envolveram milhões de brasileiros numa gigantesca nuvem de ar irrespirável, deputados e senadores se fecharam em conchavos de gabinete que envolvem, fundamentalmente, a distribuição farta e descompromissada de dinheiro público – mais especificamente, o destino de bilhões de reais em emendas parlamentares a partir de fevereiro de 2025, quando haverá a troca de comando na Câmara e no Senado.

Está-se tratando de muito dinheiro. Um tanto capaz de mesmerizar os parlamentares até fazê-los esquecer as razões pelas quais receberam um mandato de representação e quem, afinal, deveriam representar. Em 2024, emendas parlamentares de toda espécie terão correspondido a mais de 20% das despesas discricionárias no Orçamento da União (quase R$ 45 bilhões). E, por mais que o Supremo Tribunal Federal aja para impor o respeito à Constituição e à moralidade pública, ninguém aposta que esse montante será menor no ano que vem.

O presidente Lula da Silva está perdido no enfrentamento da tormenta climática e até hoje segue devendo ao País um plano de governo digno do nome. O que o petista tem feito até aqui, na verdade, não significa muito mais do que espasmos de voluntarismo e uma mal-ajambrada reedição de seus velhos cacoetes como expoente do que se pode chamar de nacional-passadismo. E sempre, claro, de olho na próxima eleição, não nos melhores interesses do Estado brasileiro.

Diante dessa governança tíbia, em particular no enfrentamento da crise ambiental, não é pouco o que o Congresso poderia fazer dentro das atribuições que lhe são dadas pela Constituição. Mas o Congresso não está nem aí, absorto em interesses que nada têm a ver com os verdadeiros interesses da sociedade. No radar do Congresso, a mobilizar todos os partidos, está apenas a manutenção do orçamento secreto, seja qual for a conformação técnica que essa indecência venha a ter de tempos em tempos. É nesse sentido que a eleição para as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado ganhou singular importância. Nesses arranjos, uma inaceitável “anistia” – na verdade, impunidade – aos golpistas do 8 de Janeiro passou a servir de instrumento de chantagem contra os candidatos à sucessão de Arthur Lira (PP-AL) na Câmara como o primeiro passo para a anistia do golpista em chefe, Jair Bolsonaro.

Esqueçamos as medidas que poderiam ser tomadas pelo Poder Legislativo para mitigar os efeitos da tormenta climática para a população. Às favas os projetos de lei que regulamentam a reforma tributária. Fica para as calendas uma discussão séria em torno de uma agenda de reformas mais amplas para destravar o crescimento do País e promover o bem-estar geral dos brasileiros. Nada disso parece interessar ao Congresso. Além das eleições municipais, é claro, o único tema que eletriza a esmagadora maioria dos deputados e senadores, se não todos, é a sucessão na Câmara e no Senado, pois desse novo arranjo de poder depende a fluidez dos dutos subterrâneos por onde corre a dinheirama das emendas parlamentares, longe de quaisquer controles republicanos.

Não se vê, no horizonte imediato, qualquer disposição por parte dos parlamentares em assumir suas responsabilidades como mandatários, como se fossem representantes de si mesmos – no máximo, de uma casta de dirigentes partidários que instrumentalizam as legendas para jogar com os interesses coletivos da Nação enquanto, à sorrelfa, tocam seus próprios negócios.

O Congresso é o locus por excelência dos grandes debates nacionais. No entanto, o que se vê é uma Câmara e um Senado totalmente distantes das reais necessidades do País. Em meio a tantos problemas que afetam a vida de milhões de brasileiros e mantêm o Brasil muito aquém de suas potencialidades, essa indiferença chega a ser aviltante. Se nada mudar, como não parece que vá mudar, se o interesse público não for colocado no centro das atenções de deputados e senadores, o Brasil continuará refém de uma elite política que, para além dos males que já causa à representação, abre uma avenida para aventureiros dispostos a pôr tudo abaixo sem oferecer nada de bom no lugar.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 12.09.24

Kakebo: o antigo método japonês para controlar gastos e poupar dinheiro

 "O que é mais importante: ganhar mais dinheiro ou controlar o seu dinheiro?", pergunta a japonesa Zun.

"Eu acho que é mais importante controlar o dinheiro que você tem disponível, e gastá-lo com cuidado e sabedoria. E acho que isso te leva a uma vida divertida."

O kakebo foi criado no século passado para ajudar as mulheres a administrar o orçamento doméstico (Getty Images)

Zun, mãe de quatro filhos, é adepta há 12 anos do kakebo — um método simples para controlar dinheiro criado no Japão em 1904.

Neste método, basta papel, caneta e perseverança.

A tarefa pode ser trabalhosa, especialmente no começo — mas esse também é um dos motivos do sucesso, dizem os especialistas.

Primeiro, você deve registrar suas despesas diárias, semanais ou mensais em diferentes categorias.

Por exemplo: renda (salário, rendimentos, pensões); despesas essenciais (moradia, transporte, alimentação, serviços domésticos e medicamentos); lazer (restaurantes, compras, academia etc) e extras (presentes, shows, viagens etc.).

Ou: necessidades, desejos, lazer e gastos imprevistos.

Você pode estabelecer quantas categorias precisar e também usar cores diferentes, para torná-las visualmente mais atraentes.

Ao subtrair as necessidades, o que sobra pode ser separado entre “poupar” e “gastar bem”.

O método foca em gastar e poupar de forma consciente. Ajuda a mudar nossa atitude em relação ao orçamento ao nos ensinar a “gastar bem” para “poupar bem”.

O ato de escrever com papel e caneta também é parte fundamental da prática. Pesquisas sugerem que escrever à mão ajuda o cérebro a processar informações de uma forma mais detalhada e cuidadosa.

Alguns também defendem que o uso de dinheiro é melhor do que cartão, pois o ato físico de entregar cédulas e notas te deixa mais sob controle.


                              

Usar anotações à mão e dinheiro físico ajudam no método (Getty Images)

"Eu acho que mais informações passam pela minha cabeça quando estou fazendo anotações à mão. Te ajuda a refletir sobre o que você comprou e se você está gastando muito dinheiro. Além disso, você pode voltar para o seu histórico de gastos [nas anotações]", diz Zun.

"Quando aquilo que eu queria muito era caro, eu normalmente desistia de comprar e escolhia no lugar várias coisas mais baratas e similares. Mas, ao olhar para os gastos totais, eu percebi que eu poderia ter comprado o que eu realmente queria. Isso me estimula a gastar meu dinheiro de uma maneira mais pensada."

Ao avaliar quanto, como e com o que gastamos o dinheiro, podemos fazer um balanço respondendo a quatro perguntas-chave:

Quanto dinheiro você guardou?

Quanto dinheiro você gostaria de guardar?

Quanto dinheiro você está realmente gastando?

O que você mudaria no próximo mês para melhorar?

A consultora financeira Harumi Maruyama recomenda testar o método por pelo menos três meses — a partir de quando geralmente se começa a ver os resultados, diz ela.

"O kakebo te ajuda a administrar seus gastos mesmo com um orçamento limitado e a parar de gastar de forma desenfreada. Eu acho que o kakebo é a base do orçamento doméstico", diz Maruyama.

"Mesmo se o orçamento é curto, eu já vi muitas pessoas conseguirem controlar os gastos e guardar dinheiro."

A consultora sugere que o kakebo se torne um ritual diário, de pelo menos cinco minutos, praticado mais ou menos no mesmo horário do dia.

"Ou você pode escrever uma vez por semana, ou quando você gasta algo", diz.

Origem do termo

O kakebo é uma palavra japonesa para "livro de contas domésticas", e suas origens remontam a 1904, de acordo com Fumiko Chiba, autora do livro Kakebo: A arte japonesa de poupar dinheiro.

Chiba conta em seu livro que a criadora desse método foi Hani Motoko, considerada a primeira mulher jornalista no Japão. A intenção dela era encontrar uma maneira de ajudar as donas de casa a administrarem a economia familiar de maneira eficiente.

"Embora o Japão seja uma cultura tradicional em muitos aspectos, o kakebo foi uma ferramenta libertadora para as mulheres, porque lhes dava controle sobre as decisões financeiras", escreve Chiba em seu livro.

Hoje, apesar do fato de já existirem vários aplicativos de celular para controlar receitas e despesas, esses livros de contas ainda são comercializados no Japão.

Eles geralmente são vendidos no início de cada ano e, de acordo com Chiba, são bastante populares.

Publicado originalmente porBBC News,  em 12.09.24. *Com informações do vídeo da BBC Reel "Kakeibo: The Japanese art of saving money"