quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Liberdade de expressão?

Você pode – e deve – criticar o STF. Há muito o que questionar na corte. Só o que não dá para dizer é que o que aconteceu com o Twitter foi mordaça

No tempo da ditadura, sinais de emissoras exóticas chegavam livremente aos rincões da pátria armada e fardada. Em ondas curtas, a Rádio Moscou ressoava com seu português escorreito em todo o território nacional, dos igapós amazônicos às roças de Nuporanga. E não era só ela. Junto, vinham também as locuções da Rádio Pequim, da Rádio Tirana e da Rádio Bulgária. Comunismo na carótida, calafrios na caserna. As autoridades se inquietavam: como bloquear a radiofrequência da Cortina de Ferro?

Não havia como. Veteranos da radiodifusão lembram até hoje que os militares tentavam usar engenhocas para atrapalhar o som das invasoras, ao menos nas regiões ditas estratégicas, mas a manobra não dava certo. Vetaram peças de teatro, canções de protesto, revistas de mulheres nuas, filmes sortidos, telenovelas picantes e romances de esquerda, mas fracassaram indigentemente no projeto de emudecer as estações alienígenas. Falta de vontade não foi.

Agora, o mundo é outro, já sabemos. Você quase não encontra mais aparelhos de rádio de ondas curtas, e, quando os encontra, não vê ninguém de ouvido colado na geringonça. Tudo ficou diferente. Só uma coisa não mudou: desafiando a lei da evolução natural das espécies, os apoiadores do golpe de 1964 ainda andam por aí, preservadíssimos, e não escondem de ninguém a saudade que sentem da ditadura, da tortura e da censura – ridícula, mas teimosa.

Essa turma andou alvoroçada ao longo da semana. Ao saber que a plataforma denominada X, antes conhecida como Twitter, foi banida de celulares e computadores por uma decisão judicial, voltou a enxergar fantasmas. As assombrações são as mesmas de antigamente, mas as aparições sobrenaturais vieram com os sinais trocados. Antes, o espectro do comunismo era externo, vinha de fora para dentro. Agora, é interno, vem da sede do Supremo Tribunal Federal (STF) e se irradia mundo afora. Antes, a proteção da liberdade marchava de coturno sobre o mármore branco do Palácio da Alvorada. Agora, mora longe e atende pelo nome de Elon Musk. Ectoplasmas reencarnados e revirados.

Fantasmagorias reversas. Nas suas alucinações miasmáticas, as viúvas do AI-5 são tragadas por mirações aterrorizantes. Veem a magistratura dos nossos tempos perpetrando à luz do dia a malvadeza que a magistratura de meio século atrás não foi capaz de perpetrar na escuridão: bloquear de uma canetada a comunicação do adversário exógeno. Mas como assim? Os saudosistas não se conformam e se contorcem de inveja: “Como é que os poderes da democracia são mais efetivos que os nossos na tirania de 1970?”. Não engolem o desaforo histórico: “Deram no X o sumiço que a gente não conseguiu dar na Rádio Moscou!”.

Para não passar recibo de que tudo não passa de dor de cotovelo auriverde, a claque tardia da ditadura extinta inventou que seu problema não é ciúme, mas o compromisso raivoso que ela teria com a “liberdade de expressão”. É isto mesmo: estamos vendo a bandeira da “liberdade” ser desfraldada pelas forças que sempre a conspurcaram. Não que os apoiadores do arbítrio mudaram – apenas repaginaram a própria vaidade. Eles, que ontem só admitiam a crítica se fosse “construtiva”, hoje se declaram favoráveis à manifestação do pensamento e até do não-pensamento. Principalmente do segundo.

É curioso, antropologicamente curioso. Você nunca vai ver este pessoal respaldando a liberdade de expressão dos moradores de rua, das mulheres pró-aborto, da população trans, dos trabalhadores pobres, dos quilombolas e dos indígenas, pois, segundo denunciam energicamente, esses setores, além de preconceituosos e intolerantes, são uns ongueiros mancomunados com as potências que só querem roubar nosso nióbio e nosso grafeno. Não, os saudosistas não se deixam engrupir. Eles têm lado. Defendem a liberdade de gente desprotegida, das vítimas indefesas da brutalidade togada. Combativos, prestam sua solidariedade pungente ao estropiado mártir da democracia: Elon Musk, este, sim, um injustiçado.

Os nostálgicos do arbítrio se converteram em musketeiros aguerridos. São todos por Musk, e estão convencidos até o bolso de que Musk sempre será por todos eles. Embalados pelos pesadelos das mil e uma noites de aquecimento global, não se lembraram de acordar para os fatos e para a realidade. Fatos: o ex-Twitter saiu do ar porque se negou a cumprir uma decisão judicial – decisão ratificada, por unanimidade, pela Primeira Turma do STF. Realidade: nenhum Poder Judiciário, em nenhum país conhecido ou desconhecido, poderia ter tomado outra atitude. Era preciso resguardar a autoridade judicial de um país soberano. Fato e realidade: isso não teve nada que ver com ataque à “liberdade de expressão”.

No mais, você pode – e deve – criticar o STF. Há muito o que questionar na corte. Só o que não dá para dizer é que o que aconteceu com o Twitter foi mordaça. Não há ninguém censurado aí, nem o pobre perseguido Elon Musk, que segue discursando à vontade. Mais que discursando, segue abusando de seu poder econômico, mas isso é outra conversa.

Eugênio Bucci, oo autor deste artigo,  é Jornalista e Professor na Universidade de S. Paulo - USP.Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.09.24

Guia das eleições municipais 2024

Falta pouco para o primeiro turno das eleições municipais deste ano, que ocorre no domingo de 6 de outubro.

Os eleitores vão às urnas para escolher prefeitos, vice-prefeitos e vereadores nas 26 capitais brasileiras e nas outras mais de 5,5 mil cidades do país. (Getty Images)

O segundo turno, caso necessário, acontece no último domingo do mês, dia 27 de outubro, somente nas cidades com mais de 200 mil eleitores.

Com base principalmente em materiais informativos divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e pelos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), a BBC News Brasil responde abaixo a perguntas sobre as eleições deste ano.

Como votar nas eleições?

É importante se preparar com antecedência não só para escolher bem seus candidatos, mas também para saber seu local de votação. É possível descobrir isso no site do TSE ou no aplicativo e-Título. Os TREs também oferecem atendimento presencial e por telefone ao público.

O TSE estimula que o eleitor leve junto consigo para a urna uma colinha eleitoral com os números de seus candidatos.

Com quantos anos posso votar?

Já pode votar quem tem 16 e 17 anos, mas nesses casos, o voto é facultativo. A partir dos 18 anos, o voto é obrigatório. Essa regras valem para idades atingidas na data da votação.

O voto também é facultativo aos maiores de 70 anos e aos analfabetos.

Posso votar em outra cidade?

Todo eleitor tem seu domicílio eleitoral, que na prática, é um município. Não é possível estar vinculado a mais de um domicílio eleitoral ao mesmo tempo.

Nas eleições municipais não há possibilidade de voto em trânsito, como ocorre nas eleições para presidente da República e governador.

Portanto, quem não estiver no seu domicílio eleitoral e não puder votar deverá justificar a ausência no dia da votação.


Nas eleições municipais não há possibilidade de voto em trânsito (Getty Images)

Posso votar com o RG?

De acordo com o site do TSE, o eleitor que souber seu local de eleição pode votar apenas com um documento oficial com foto, sem exigência do título de eleitor.

Com ou sem título em mãos, são aceitos como documento oficial com foto: carteira de identidade, passaporte, carteira de categoria profissional reconhecida por lei, certificado de reservista, carteira de trabalho ou carteira nacional de habilitação.

Também é possível usar o e-Título. Mas essa possibilidade só é válida se a sua foto aparecer no aplicativo. Caso não esteja aparecendo, não será considerado válido para votar.

Certidões de nascimento e casamento não valem como documento para votar.

Posso usar o celular na hora do voto?

O eleitor não poderá ingressar na cabine de votação portando celular, máquinas fotográficas e filmadoras. Caso descumpra essa regra, pode ter de pagar multa de até R$ 15 mil e ser preso. Nada de selfies ou gravações do voto na urna, portanto.

Se eu votar só para um dos cargos em disputa, meu voto é invalidado?

Não. Cada voto é contabilizado separadamente e um não invalida os demais.

Qual a diferença entre voto branco e nulo?

Não há diferença entre voto branco e voto nulo para a contagem dos votos, ambos são excluídos da totalização dos resultados.

O eleitor vota em branco quando pressiona a tela branca da urna eletrônica e confirma. Já o voto nulo ocorre quando há erro de digitação. Se o eleitor digitar um número que não corresponda a partido ou candidato, o voto é anulado.

Quando sai o resultado das eleições?

Como a votação é feita por meio da urna eletrônica, o processo de apuração é relativamente rápido.

A apuração começa a ser divulgada a partir das 19h de Brasília.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 05.09.24

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

O que está em jogo na disputa entre Musk e o STF

Bilionário não indicou representante do X no Brasil após fechamento de escritório em reação a pressão da Corte por remoção de conteúdos. Ministro Moraes responde com bloqueio de contas, e Musk recorre.

Elon Musk e Alexandre de MoraesFoto: Slaven Vlasic/Getty Images/La Nacion/Ton Molina/picture alliance/dpa

No mesmo dia em que o X (ex-Twitter) bateu o pé e anunciou que não cumpriria a ordem judicial do Supremo Tribunal Federal (STF) para indicar um representante legal no Brasil, o bilionário Elon Musk, dono da rede social, viu outra empresa sua, a Starlink, ter suas contas bloqueadas nesta quinta-feira (29/08) por ordem do ministro Alexandre de Moraes.

O bloqueio foi justificado como necessário para quitar multas impostas pelo STF ao X por descumprimento de ordens judiciais anteriores, para remoção de conteúdos da plataforma.

Segundo o portal g1, a Starlink recorreu da decisão nesta sexta-feira alegando não ser parte do processo contra o X, e queixando-se de não ter tido seu direito à ampla defesa e ao devido processo legal respeitado.

A Starlink é um braço da SpaceX, empresa de exploração espacial de Musk, e que fornece serviços de conexão à internet em áreas remotas via satélite.

Antes do bloqueio, na quarta-feira, Moraes havia dado prazo de 24h a Musk para indicar um representante legal do X no Brasil, sob pena de "imediata suspensão" da plataforma em caso de descumprimento e não pagamento das multas. O prazo venceu na noite de quinta. 

A intimação havia sido postada pela conta do STF no próprio X, em resposta a uma postagem de 17 de agosto da equipe de relações governamentais internacionais da empresa, que anunciava o fechamento do escritório no Brasil e acusava Moraes de não "respeitar a lei ou o devido processo legal".

Na ocasião, a plataforma afirmou que a decisão foi uma resposta ao que chamou de "ameaça" e "censura" por parte do ministro, que cobrava a plataforma pelo não cumprimento de ordens judiciais anteriores que impunham à plataforma a retirada de conteúdos da rede social.

Algumas das contas alvo de bloqueio judicial eram de bolsonaristas, como o senador Marcos do Val (Podemos-ES).

O fechamento do escritório do X no Brasil, porém, não impactou o funcionamento da plataforma.

É a primeira vez que o STF intima alguém via redes sociais, segundo informado pelo próprio tribunal ao portal g1.

Musk acusa há meses Moraes de ser autoritário em decisões para retirada de perfis da plataforma. O ministro, por sua vez, alega que age para conter a disseminação de discursos de ódio e de movimentos golpistas que ameaçam a democracia no país, como foi visto nas vésperas dos ataques de 8 de janeiro de 2023.

Disputa ganhou nova dimensão com relatório no Congresso americano

A disputa entre Musk e Moraes se intensificou em abril, com a publicação de um relatório do Congresso americano que lista uma série de "demandas de censura" de Moraes.

O relatório, produzido por uma comissão presidida pelo deputado republicano Jim Jordan, ligado ao ex-presidente Donald Trump, foi elaborado com base em documentos internos da plataforma disponibilizados por Musk, e que revelariam supostos abusos em decisões do ministro. 

Segundo o documento, o STF e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ambos presidido por Moraes, pediram à plataforma X que suspendesse ou removesse quase 150 contas de críticos do governo brasileiro.

Moraes supostamente ordenou que as plataformas de mídia social removessem postagens e contas mesmo quando "muito do conteúdo não violava as regras [das empresas]" e "muitas vezes sem dar uma razão", aponta o relatório.

O texto afirma ainda que a "censura dirigida" não é um problema restrito aos governos "em terras distantes", e acusa a administração de Joe Biden de silenciar os críticos do governo.

O relatório foi divulgado a menos de sete meses das eleições presidenciais nos Estados Unidos. Trump é o candidato republicano 

As eleições presidenciais nos Estados Unidos estão marcadas para novembro, e Trump é o candidato republicano à Casa Branca. Pelo Partido Democrata, a candidata é a vice de Biden, Kamala Harris.

Milícias digitais

Em abril, Moraes determinou a inclusão de Musk como investigado no inquérito que apura a ação de milícias digitais que atentam contra a democracia. O magistrado apontou que viu indícios de obstrução de Justiça e incitação ao crime nas ações de Musk e determinou multa diária de R$ 100 mil para cada perfil que a empresa reativar de forma irregular.

Musk usou a sua plataforma para chamar o ministro de "ditador brutal" e afirmou que iria descumprir ordens judiciais brasileiras de bloqueio de perfis criminosos na rede social. A plataforma voltou a mostrar publicações de perfis bloqueados por ordem judicial, como o da juíza aposentada Ludmila Grilo e do apresentador Monark, conforme informou a agência de checagem Aos Fatos. 

O perfil no X do canal Terça Livre, do ativista de extrema direita Allan dos Santos, recebeu o selo dourado na rede, mesmo com uma ordem judicial que havia determinado o bloqueio da conta em  setembro de 2021.

Após protagonizar briga com o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil, o empresário Elon Musk, dono da rede social X (ex-Twitter), virou alvo do inquérito das milícias digitais (Foto: Alain Jocard/AFP [M])

Articulação internacional

No início de março, o deputado federal Eduardo Bolsonaro conduziu uma comitiva de deputados brasileiros para Washington (EUA), onde conversaram com parlamentares republicanos sobre como o Brasil se tornou uma "ditadura de esquerda".

Eles foram convidados para participar em uma audiência na Comissão Tom Lantos de Direitos Humanos na Câmara dos Representantes, mas tiveram que mudar os planos quando o democrata James P. McGovern, um dos dois copresidentes da comissão, vetou o evento.

Em nota à Agência Pública, McGovern afirmou que os republicanos estariam "usando o Congresso dos Estados Unidos para apoiar os negacionistas eleitorais da extrema direita que tentaram dar um golpe no Brasil".

O que está por trás da briga 

As suspensões desses perfis haviam sido determinadas em 2022, ano da campanha à presidência da República, e em 2023, quando houve osatos golpistas de 8 de janeiro, em Brasília. 

Em 2022, a Justiça brasileira tomou medidas mais proativas para conter ameaças à democracia. Alexandre de Moraes virou a face mais conhecida desse processo porque era o relator do inquérito sobre as milícias digitais antidemocráticas e é o atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). 

O ministro determinou, no âmbito das investigações, que as redes sociais bloqueassem alguns alvos desses inquéritos, afirmando que esses investigados utilizavam as plataformas para práticas irregulares.

Perto do segundo turno, o TSE publicou resolução determinando que as plataformas digitais deveriam remover conteúdos inverídicos em até duas horas, sob pena de multa de R$ 100 mil por hora, um fato sem precedentes na Justiça brasileira. 

Essas decisões jurídicas de dois ou três anos atrás receberam críticas por terem uma redação muitas vezes ambígua, que não deixa clara a extensão do poder de polícia da Justiça Eleitoral.  

Não há informações públicas sobre todas as ações judiciais que motivaram as críticas de Musk contra Moraes. O X informou que havia sido proibido de informar quais contas foram retidas e qual tribunal ou juiz emitiu a ordem, mas em agosto publicou na rede social alguns documentos que chamou de "ordens secretas" de Moraes.

VPN e Starlink

Musk ainda sugeriu como burlar um eventual bloqueio da rede social no Brasil, o que não seria um fato inédito no país. Em 2015 e em 2016, por exemplo, juízes de primeira instância determinaram o bloqueio do Whatsapp depois que a empresa se negou a conceder informações para investigações policiais. O mesmo aconteceu com o Telegram no ano passado. 

"Para garantir que você ainda pode ter acesso à plataforma X, baixe um VPN", disse o empresário em uma publicação. "Usar um VPN é muito fácil", completou.  

Ferramentas de Virtual Private Network (VPN) são serviços que mascaram a origem do acesso à internet. Ele faz com que usuários pareçam estar outro país, driblando bloqueios locais. 

Caso a Justiça brasileira determine o bloqueio do X, outra questão se impõe. Musk também é dono da Starlink, empresa de internet via satélite que tem no Brasil um de seus principais mercados. 

Segundo levantamento feito pela BBC News Brasil, a empresa é líder entre os provedores de banda larga fixa por satélite na Amazônia legal, com antenas instaladas em ao menos 90% municípios da região. 

O professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade, alertou ao podcast Café da Manhã que esse seria "um segundo debate, que a gente ainda não enfrentou no Brasil, que é um provedor de internet descumprir ordens de bloqueios de plataformas." 

Reações 

Todo o embate ocorre enquanto o Congresso discute um projeto de lei para regulamentar as plataformas digitais, o chamado PL das Fake News, retirado da pauta da Câmara por falta de acordo entre parlamentares e pressão das plataformas. A União Europeia já aprovou uma norma desse tipo, que entrou em vigor em janeiro.

A briga aumentou a pressão pela regulamentação das redes sociais no Congresso. O relator do projeto de lei, deputado Orlando Silva, afirmou, em sua conta no X: "É impossível continuarmos no estado de coisas atual. As Big Techs se arrogam poderes imperiais. Descumprir ordem judicial, como ameaça Musk, é ferir a soberania do Brasil. Isso não será tolerado! A regulação torna-se imperativa ao Parlamento."

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, divulgou nota para afirmar que decisões judiciais podem ser objeto de recursos, mas jamais de descumprimento deliberado. 

Barroso diz que é público e notório que "travou-se recentemente no Brasil uma luta de vida e morte pelo Estado democrático de Direito e contra um golpe de Estado, que está sob investigação nesta corte com observância do devido processo legal".

 "O inconformismo contra a prevalência da democracia continua a se manifestar na instrumentalização criminosa das redes sociais", afirmou.

Sofia Fernandes para Deutshe Welle. Texto atualizado em 30.08.24

'Bilionário arrogante': 5 conflitos de Elon Musk no exterior

O embate entre Elon Musk e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), não foi o único caso em que o dono da rede social X entrou em conflito com autoridades de outros países.

A lista de conflitos e polêmicas envolvendo Musk é longa

No caso mais recente, Musk foi chamado de "bilionário arrogante" pelo premiê da Austrália pela relutância da sua rede social em tirar do ar por completo imagens de um esfaqueamento em uma igreja.

As polêmicas envolvendo o bilionário e suas empresas fizeram o jornal New York Times escrever, em outubro de 2022, antes da conclusão da compra do Twitter, que Musk emergia como "um ator novo e caótico no palco da política global".

"Embora muitos executivos bilionários gostem de tuitar a sua opinião sobre assuntos mundiais, nenhum deles chega perto da influência e da capacidade de Musk de causar problemas", disse a reportagem.

No Brasil, o embate entre Musk e a Justiça brasileira ganhou contornos mais dramáticos depois que Alexandre de Moraes intimou o dono do X a indicar em 24h quem é o representante legal da empresa no Brasil. Caso a ordem não seja cumprida, é prevista "pena de imediata suspensão" da mídia social.

A intimação, assinada por Moraes, foi postada pela conta do STF na própria rede social X (antigo Twitter), em resposta a uma postagem da equipe de relações governamentais internacionais da empresa, a Global Government Affairs.

A seguir, relembre cinco dos principais conflitos envolvendo Musk e suas empresas, nos quais ele se manifestou sobre assuntos como o conflito Israel-Hamas e a guerra da Rússia contra a Ucrânia.

1. Austrália: acusação de censura após Justiça ordenar remoção de vídeos

O primeiro-ministro australiano Anthony Albanese chamou Elon Musk de “bilionário arrogante” após um tribunal do país ordenar na segunda-feira (22/4) que a rede social X impedisse a circulação de vídeos do ataque a uma igreja em Sydney na semana passada.

A rede social disse que cumpriria a decisão, sinalizando de que haveria uma contestação legal à medida, mas Musk usou um meme para acusar o governo australiano de censura.

Nesta terça-feira (23), Albanese disse à emissora ABC News que Musk “pensa que está acima da lei, mas também acima da decência comum”.

Na semana passada, a comissária de segurança eletrônica da Austrália, Julie Inman Grant, ameaçou o X e outras empresas de mídia social com pesadas multas se não removessem os vídeos do esfaqueamento na igreja, classificado como um ataque terrorista pela polícia local.

O X argumentou que a ordem "não está dentro do escopo da lei australiana".

Grant conseguiu uma liminar contra a rede social sob o argumento que o X estava permitindo que usuários fora da Austrália continuassem acessando as imagens.

“Acho extraordinário que o X tenha optado por não obedecer e esteja tentando se defender”, disse Albanese em uma entrevista coletiva.

Em uma série de postagens, Musk escreveu: “Gostaria de aproveitar um momento para agradecer ao primeiro-ministro por informar o público que esta plataforma é a única verdadeira”.

Anteriormente, ele também criticou pessoalmente a comissária de segurança eletrônica, descrevendo-a como a "comissária da censura australiana".

Albanese defendeu Grant, dizendo que ela estava protegendo os australianos.

“A mídia social precisa ter responsabilidade social. Musk está demonstrando não ter nenhuma”, disse ele.

O X terá 24 horas para cumprir a decisão da Justiça de segunda-feira, com nova audiência sobre o assunto prevista para os próximos dias.

2. União Europeia: investigação do X e crítica à suspensão de contas de jornalistas

A União Europeia (UE) anunciou em 2023 uma investigação da rede social X, de Musk, para apurar suposta propagação de conteúdos terroristas e violentos, além de discurso de ódio, após o ataque do Hamas a Israel.

Na ocasião, o X disse ter removido centenas de contas afiliadas ao Hamas da plataforma.

Em dezembro daquele ano, a União Europeia formalizou que suspeita que o X tenha violado as suas regras em áreas que incluem o combate ao conteúdo ilegal e à desinformação.

O comissário digital da UE, Thierry Breton, expôs as supostas infrações em uma postagem na rede social. Breton disse que o X também era suspeito de violar suas obrigações de transparência.

Na ocasião, a empresa disse que estava "cooperando com o processo regulatório" e afirmou que é "importante que este processo permaneça livre de influência política e siga a lei".

Em outro episódio, Musk foi criticado pela União Europeia, pelas Nações Unidas, além de governos, por ter banido contas de jornalistas na rede social.

Na ocasião, a subsecretária-geral da ONU, Melissa Fleming, disse que "a liberdade da mídia não é um brinquedo".

"Uma imprensa livre é a pedra angular das sociedades democráticas e uma ferramenta fundamental na luta contra a desinformação prejudicial", disse ela.

A comissária da UE, Vera Jourova, ameaçou a rede social com sanções sob a nova Lei Europeia de Serviços Digitais, que, segundo ela, exige "o respeito da liberdade de imprensa e dos direitos fundamentais".

Elon Musk proferiu ataques ao Judiciário brasileiro e pediu impeachment de ministro Alexandre de Moraes

3. Ucrânia e o 'plano de paz' de Musk

Outra postagem de Musk o colocou no meio de uma discussão sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia.

Em outubro de 2022, ele usou o Twitter para sugerir um "plano de paz" para o conflito, em formato de enquete, que indignou autoridades ucranianas.

A tradução da enquete é a seguinte:

"Paz Ucrânia-Rússia:

-Refazer eleições de regiões anexadas sob supervisão da ONU; a Rússia sai se essa for a vontade do povo.

-Crimeia formalmente parte da Rússia, como tem sido desde 1783 (até o erro de Khrushchev).

-Abastecimento de água à Crimeia assegurado.

-A Ucrânia permanece neutra."

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, criou sua própria enquete no Twitter, na qual perguntava aos seguidores: "Qual @elonmusk você gosta mais?"

As opções: "Aquele que apoia a Ucrânia" e "Aquele que apoia a Rússia".

A enquete de Musk veio depois de ele ter postado uma imagem fazendo referência ao presidente ucraniano, em formato de meme, com a mensagem: "Quando já se passaram cinco minutos e você não pediu um bilhão de dólares em ajuda".

4. Delaware (EUA) e a guerra de Musk

Em uma polêmica mais recente, Elon Musk está em pé de guerra com o Estado americano de Delaware.

"Nunca registre sua empresa no Estado de Delaware", escreveu o bilionário americano em mensagem no X, em 30 de janeiro.

Duas de suas empresas, Neuralink e SpaceX, anunciaram que não teriam mais sede fiscal no Estado americano.

Em meados de fevereiro, soube-se que a Neuralink – que trabalha para conectar cérebros humanos a computadores – registraria seu endereço legal em Nevada (onde X, outra empresa de Musk, já tem sede), e a empresa aeroespacial SpaceX, no Texas.

Resta saber o que acontecerá com a Tesla, motivo pelo qual Musk quer cortar qualquer vínculo com Delaware.

No fim de janeiro, uma juíza de Delaware anulou o pacote salarial que Musk receberia da empresa, de US$ 56 bilhões, o maior pagamento concedido a um CEO de uma empresa de capital aberto na história.

A decisão veio após uma ação judicial movida por acionistas que consideraram o pagamento excessivo. A juíza concordou com eles.

Foi a partir daí que Musk iniciou sua campanha para convencer outras empresas a não estabelecerem domicílio legal no Estado.

Uma batalha difícil, no entanto, pois o Estado há décadas é considerado bastante atraente pelo setor empresarial.

Mais de 60% das empresas que compõem o índice Fortune 500, que inclui as 500 maiores empresas americanas, estão registradas em Delaware. Estamos falando de gigantes como Google, Amazon, Facebook, LinkedIn, Visa, MasterCard ou Walmart, entre muitos outras.

E mais de 1,6 milhão de empresas de todo o planeta têm sede legal no Estado (entenda mais nesta reportagem).

5. Bolívia: 'Daremos golpe em quem quisermos'

Em um episódio anterior à compra do Twitter, Musk usou a rede social, em 2020, para criticar um pacote de estímulo do governo dos Estados Unidos no contexto da pandemia de coronavírus.

Ele dizia que o pacote não atendia aos "melhores interesses do povo".

Em seguida, um perfil respondeu a Musk que não se tratava de "melhor interesse do povo" o governo dos EUA "organizar um golpe contra Evo Morales" para Musk "obter o lítio" (material usado na fabricação de baterias na Tesla) da Bolívia.

Morales havia renunciado em 2019, em meio a uma mobilização social que, somada ao motim de grande parte dos policiais bolivianos e ao pedido de renúncia feito pelas Forças Armadas, acabou por destituí-lo do poder.

Musk, então, respondeu, em ano eleitoral na Bolívia: "Nós daremos golpe em quem quisermos. Lide com isso".

Publicado originalmente por BBC News, em 29.08.24

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Em entrevista a Luciano Huck, Zelensky se diz disposto a devolver terras russas recém-ocupadas pelas tropas de seu país

Na conversa com o apresentador, presidente ucraniano disse que vai propor até novembro um plano de paz para encerrar o conflito


O apresentador Luciano Huck vai a Ucrânia e entrevista o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky — Foto: Divulgação / Exclusiva para O GLOBO

Os alarmes agudos soaram a partir das 3h. Sirenes nas ruas, alertas no celular, chamados nos alto-falantes do hotel, o alerta veio de todos os lados. Parecia um filme, mas era vida real. Hóspedes e funcionários foram prontamente encaminhados ao abrigo antiaéreo, no subsolo. Camas dobráveis tinham sido improvisadas, lado a lado. Mas como conseguir desligar, que dirá dormir?

Contexto: Rússia ataca Ucrânia com mais de 200 mísseis e drones, e Zelensky fala em 'uma das maiores' ofensivas da guerra

Tropas identificadas: Ucrânia acusa Bielorrússia de aumentar contingente militar na fronteira entre os dois países

Minha primeira madrugada em Kiev, capital da Ucrânia, foi em claro, à mercê de um dos mais amplos e intensos ataques aéreos que a Rússia lançou desde o começo da guerra. Foram 127 mísseis e 109 drones, a maioria deles tendo como alvo instalações de infraestrutura. A estratégia de Vladimir Putin é clara: a Rússia tenta destruir os serviços de água e energia antes do início do rigoroso inverno europeu.

Por volta das 10h, quando o impacto do bombardeio ainda não era totalmente sabido, fomos autorizados a deixar o abrigo. Para minha surpresa, o presidente Volodymyr Zelensky manteve a agenda e me recebeu logo em seguida para uma entrevista exclusiva. Fui à Ucrânia para ouvi-lo e ver de perto o que está acontecendo na terra de 3 dos meus 4 avós, onde estão minhas raízes familiares.

O conteúdo completo da conversa com Zelensky sobre os mais de mil dias de resistência armada (e também sobre família, rotina no cargo, saúde mental, seu passado nos palcos e TV, judaísmo etc.) e os detalhes da minha viagem de ancestralidade pela Ucrânia em breve serão compartilhados na forma de um documentário na plataforma do Globoplay. Mas, em função do ataque russo de ontem e das declarações tempestivas de Zelensky, um trecho merecia ser publicado de imediato.

O quão distantes estamos do fim da guerra? O senhor tem um plano para a paz?

Tenho. Não posso dividir agora os detalhes, mas farei isso em breve. Nós sabemos o que é preciso.

É um plano para a vitória ou um plano para a paz?

Temos um plano de paz, que pretendo apresentar até novembro. Mas a pergunta que fica é: os russos concordarão?

O senhor está disposto a sentar-se com Putin para debater esse caminho para a paz?

Estou seguro de que a maioria dos países vai apoiar o plano que eu vou apresentar. E nós queremos os russos participando. Eles precisam estar no tratado de paz. É por isso que estou preparando um plano que vai pressionar o Putin a sentar e terminar a guerra.

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Rússia ataca Ucrânia com mais de 200 mísseis e drones, e Zelensky fala em 'uma das maiores' ofensivas da guerra

O senhor está disposto a devolver terras russas, se eles devolverem terras ucranianas?

Sim. Nós não precisamos da terra deles.

A recente incursão armada na cidade russa de Kursk mudou a posição da Ucrânia: de defensora de um ataque em seu território a também invasora do país vizinho. Quais são as implicações disso para a busca de uma solução pacífica para o conflito? O senhor invadiu a Rússia para ter uma moeda de troca?

São muitas as razões, é uma operação grande e ainda não acabamos. Você me pergunta se estamos prontos para devolver a terra deles se eles nos devolverem a nossa, e a resposta é sim. Mas a pergunta é: eles estão prontos? E para mim a resposta é que Putin não está pronto. Este é um momento muito importante da guerra. É muito importante que todo mundo abra os olhos porque Putin não está pronto. Isso significa que ele não valoriza seu povo. Não é sobre nós. É sobre ambição. Toda esta guerra é sobre a ambição de uma única pessoa.

O presidente dos EUA, Joe Biden, que foi um grande aliado seu até agora, está saindo de cena. Na semana passada, a convenção do Partido Democrata oficializou a candidatura da vice dele, Kamala Harris. E não podemos ignorar que há chances reais de Donald Trump ser eleito. Ele já disse que, no cargo, acabará com a guerra em 24 horas, o que significa o corte total do apoio à Ucrânia. O vice da chapa republicana, J.D. Vance, vai além: ele defende o congelamento das fronteiras como estão hoje, com a Rússia anexando as áreas que ocupou, e que os EUA deveriam se preocupar com a China, e não com a Rússia, e mandar armas para Taiwan, e não para a Ucrânia. Como o senhor enxerga a eleição nos EUA?

Eu estou preparando um plano vitorioso para a paz e preciso que alguns pontos desse plano comecem a ser mostrados ao mundo. E a primeira pessoa que eu vou procurar é o presidente Biden. Talvez eu também divida esse plano com Kamala Harris e com Trump, já que não sabemos quem vai ganhar.

O Brasil se nega a tomar partido abertamente na guerra, alegando neutralidade. O presidente Lula disse recentemente que “não há razão para procurar culpado na guerra”. O que o senhor acha disso?

Isso é apenas retórica política. Não é uma fala honesta. Não é honesta nem conosco nem com o povo brasileiro. Porque todo mundo sabe quem iniciou essa guerra. A equipe dele trouxe uma resolução para nós, antes do do “encontro pela paz” que organizamos, mas o Brasil não quis vir, o presidente Lula não quis vir. Foi uma pena. Eu me reuni com o time dele algumas vezes, mas até agora eles não se uniram a nós na busca de uma solução. Por outro lado, eles se somaram ao plano chinês. O primeiro-ministro Modi, da Índia, esteve aqui há dois dias e me perguntou: qual seu pensamento sobre o plano chinês? E eu disse que não é um plano. É apenas uma declaração política, só para dizerem que não estão alheios à guerra —mas é apenas algo no papel. Eu entendo apenas propostas concretas e honestas. Eu falo pelas nossas vítimas, pelos nossos mortos. Então, se você quer nos ajudar a parar a guerra, ou nos ajudar a fazer com que o Putin pare com a guerra, nós temos que nos unir.

O Brasil é uma liderança importante do Sul Global. Que mensagem o senhor mandaria para Lula e para o meu país?

Tive uma reunião com o presidente Lula e vi que ele me entendeu. Porque tivemos um diálogo muito bom, realmente bom. Estou agradecido por isso, mas ele vive as narrativas da União Soviética. É uma pena. Ele pensa na Rússia como se hoje ainda existisse a União Soviética. A China é um país democrático? Não. E o que dizer sobre o Irã? É um país democrático? Não. E o que dizer da Coreia do Norte? Eles não são países democráticos. Então, o que o Brasil, um grande país democrático, faz nessa companhia? Eu não consigo entender esse círculo de países. É normal quando você tem relações econômicas, mas estamos falando sobre uma guerra, não é sobre relações econômicas. É sobre geopolítica, é sobre valores, é sobre pessoas. É sobre democracia, propósito e liberdade. O que um país democrático e livre como o Brasil está fazendo junto com países que não respeitam estes valores? Quem vai ganhar essa queda de braço? O Brasil vai engolir esses quatro aliados ou esses quatro aliados vão engolir o Brasil?

Publicada n'O GLOBO, em 27.08.24

Onde está o líder da ‘frente pela democracia’?

Lula, que se elegeu prometendo defender a democracia, segue incapaz de denunciar a ditadura companheira de Maduro, mesmo diante da farsa oficializada pela Justiça venezuelana


Arthur Lira vai ao ataque contra Executivo e Judiciário em meio a tensões entre poderes Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

O roubo das eleições venezuelanas foi oficializado. A Suprema Corte declarou, sem mostrar qualquer evidência, a vitória de Nicolás Maduro. Pela lei venezuelana, as atas das urnas são públicas. Mas a presidente da Corte, uma ex-vereadora pelo partido de Maduro, não só anunciou que agora são secretas, como também que o candidato da oposição, Edmundo González, será punido pelo “crime” de divulgá-las.

Em entrevista ao New York Times, Juan Carlos Delpino, um membro isento do Conselho Nacional Eleitoral tolerado pelo regime para negociar a suspensão das sanções, declarou não haver nenhuma evidência da vitória de Maduro. Através da insubordinação de oficiais locais, a oposição divulgou registros de mais de 25 mil urnas, 80% do total. Observadores independentes atestaram a vitória esmagadora da oposição, com pelo menos 67% dos votos.

Não resta nenhuma dúvida sobre a vontade do povo venezuelano, e o sigilo imposto pela Corte equivale a uma confissão de culpa. A farsa eleitoral acabou. Começa agora a farsa da legitimação do regime e da criminalização da oposição.

Governos responsáveis e comprometidos com a democracia, à esquerda e à direita, já denunciaram o novo teatro. O presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, disse que “o regime de Maduro confirma o que a comunidade internacional tem denunciado: fraude”. O presidente esquerdista do Chile, Gabriel Boric, anunciou que seu país “não reconhece esse falso e autoproclamado triunfo de Maduro & cia.”, vocalizando sua solidariedade à oposição em sua luta pela “democracia, justiça e liberdade”.

Já o presidente Lula da Silva continua a cumprir ciosamente seu papel no jogo de sombras de Maduro. Junto ao presidente esquerdista da Colômbia, Gustavo Petro, Lula declarou que continua a “aguardar” a divulgação das atas, condenando quaisquer sanções internacionais.

Ainda na semana passada, seu chanceler de facto, Celso Amorim, voltou a falar em “novas eleições”. A outra proposta ventilada foi a de um “governo de coalizão nacional”. A primeira equivale a um reconhecimento tácito da fraude eleitoral. A segunda foi fabricada para “salvar as aparências” enquanto se espera que uma nova crise internacional mude o foco das atenções e deixe o dito pelo não dito. A prova é que não houve qualquer tentativa de diálogo com a oposição a propósito dessas “soluções”.

A fraude eleitoral começou bem antes do pleito. Enquanto opositores eram presos, candidaturas eram cassadas e imigrantes eram impedidos de votar, Lula estendia o tapete vermelho a Maduro, edulcorava sua “narrativa” contra os “inimigos” da Venezuela e lançava aos quatro ventos especulações filosóficas sobre a “relatividade” da democracia. Após as eleições, quase 30 opositores foram mortos e cerca de 2 mil foram detidos. O PT celebrou essa “festa da democracia”, enquanto os eufemismos do presidente oscilaram entre “nada de anormal” até no máximo “um regime desagradável”.

Dizer que Lula – e a reboque, o Brasil – foi o “idiota útil” da vez seria tentador, e errado. Lula continua a ser, como sempre foi, utilíssimo para Maduro e seus suseranos – a China e a Rússia –, mas não é idiota e sabe bem o que quer: uma ditadura alinhada ao tal “Sul Global” ao invés de uma democracia eventualmente simpática a Washington. Pouco importa que isso pulverize quaisquer resquícios da pretensão do Brasil a liderar uma integração da América Latina e desmoralize qualquer autoridade do País como protagonista de um movimento internacional pelo fortalecimento das democracias. A esse ponto, a “aliança em defesa da democracia” contra a “extrema direita” que Lula pretende encenar após a Assembleia Geral da ONU em setembro é uma piada de mau gosto que as lideranças sérias certamente se esquivarão de protagonizar.

Os brasileiros, por ora, não têm essa opção, e terão de esperar até 2026, e contar com uma candidatura decente da oposição, para pôr fim à tragicomédia de erros que é a tal “frente ampla democrática” de Lula. Mas as eleições municipais não deixam de ser uma oportunidade para ensinar ao lulopetismo que no Brasil a democracia não é “relativa”.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 27.08.24

domingo, 25 de agosto de 2024

Congresso e a democracia

Deputados e senadores, na última semana, se excederam no trabalho de demolir a confiança em deputados e senadores

Câmara vazia na promulgação da PEC da Anistia — Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

A sessão estava tão vazia que o senador Eduardo Gomes, um dos presentes, ironizou: “está difícil achar lugar no plenário”. Nem os presidentes das duas casas compareceram. Naquela ausência, e da maneira mais rápida possível, o deputado Marcos Pereira promulgou a PEC da Anistia. Por ela um poder político, dominado por homens brancos, perdoava-se por não ter cumprido a lei que mandou investir em candidaturas de pessoas negras. De cambulhada, os partidos davam a si mesmos perdão de todas as dívidas tributárias. Os partidos poderão pagar sem juros e sem multas o muito que devem à Receita. Tudo havia sido aprovado à sorrelfa, em 20 minutos.

Eles escondem seus rostos, eles dissimulam suas práticas, eles não comparecem à promulgação de seus próprios atos, mas continuam com seu projeto 8 de janeiro. Deputados e senadores nessa última semana se excederam no trabalho de demolir a confiança em deputados e senadores. Foi uma semana de esforço concentrado, em que parlamentares legislaram para si próprios e usaram o poder para ameaçar outros poderes.

A semana havia começado com um almoço em que o deputado Arthur Lira chegou enfezado e o senador Rodrigo Pacheco cooperativo. Isolado, Lira fez que cedeu no almoço servido no Supremo para pôr ordem na farra de emendas pix, pizza, rachadinhas, individuais, de bancada, de comissão, impositivas. Através delas e seus expedientes o Congresso tem subvertido o princípio de que, na divisão de papeis entre os três poderes, cabe ao executivo executar o Orçamento.

Ao voltar do almoço no STF que traçou uma linha de recuperação da institucionalidade, Lira abriu sua caixa dos horrores. De lá sacou duas propostas de ameaça ao Supremo. Uma delas chega a ser bizarra de tão inconstitucional. Daria ao Congresso o poder de reverter decisões do Supremo. A outra, que tem mais apoio, é a de limitar decisões monocráticas dos ministros do Supremo. Para que ficasse claro que era uma ofensa, e não uma proposta de aperfeiçoamento, a deputada Caroline de Toni entregou a análise da admissibilidade a um investigado pelo Supremo por atos golpistas, deputado Filipe Barros. Era uma provocação. Filipe Barros é suspeito de quebrar sigilo de investigação federal para entregá-la ao ex-presidente Jair Bolsonaro, de disseminar mentiras e promover ataques aos ministros do STF. Caroline, por sua vez, foi escolhida para a honrosa Comissão de Constituição e Justiça para tentar achar uma brecha que anistie Bolsonaro de seus ataques à democracia. E, também, pelas suas posições extremistas contra as vacinas e a favor favor do homeschooling.

O ato do Congresso sobre decisões monocráticas poderá ter efeito bumerangue. São incontáveis os parlamentares já beneficiados por decisões individuais dos ministros quando algo supostamente fere os seus direitos e garantias. Em setembro de 2023, o ministro Gilmar Mendes determinou à Polícia Federal que destruísse todos os áudios captados por ordem da Justiça Federal em Alagoas que pudessem atingir Arthur Lira. A operação Hefesto investigava suspeitas de irregularidades na compra de kits de robótica pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Gilmar havia anulado as provas que mandou destruir. Monocraticamente. Seguiu entendimento do PGR de que se a investigação envolvia deputado não poderia ter sido feita na instância estadual.

O Congresso dedicou-se na semana passada ao esforço concentrado em seus próprios interesses. A CCJ do Senado aprovou o mais forte ataque à lei da ficha limpa, diminuindo o tempo da inelegibilidade de políticos condenados. O projeto nasceu na Câmara e foi de autoria da deputada Dani Cunha, filha de Eduardo Cunha, que a lei beneficiará, antecipando o fim do seu tempo de afastamento da política, de 2027 para 2024. Assim, em causa própria, ou usando os poderes para ameaçar outros poderes, o Congresso continua o trabalho de desmonte interno. O prédio foi fisicamente atacado por golpistas no 8 de janeiro. Lá dentro propostas têm frequentemente atacado um bem imaterial, a confiança na instituição do Parlamento. Isso é mais demolidor.

Sou da geração que viu o Congresso ser fechado por tropas e tanques. Trago na memória a sensação do ar grosso e seco tentando chegar aos pulmões quando isso aconteceu. Tenho, por isso, uma enorme paciência com os erros dos parlamentares. Mas a maioria do país é mais jovem e pode achar que o Congresso não vale seu preço.

Míriam Leitão, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 25.08.04.


quarta-feira, 31 de julho de 2024

É assim que funciona uma ditadura

Oposição jamais teve a chance de derrotar Nicolás Maduro no voto. Do início ao fim, o ditador fraudou o processo eleitoral e intimidou os venezuelanos para se aferrar ainda mais ao poder

Para surpresa de ninguém, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), um simulacro de Justiça Eleitoral na Venezuela que há anos se submete às ordens do Palácio de Miraflores, declarou a vitória de Nicolás Maduro na eleição presidencial de domingo passado. Segundo o órgão chavista, o ditador teria recebido 51,2% dos votos válidos, ante 44,2% dados ao oposicionista Edmundo González Urrutia. Qualquer número poderia ter sido chutado, pois a eleição, evidentemente, foi uma fraude.

Maduro não sobreviveria politicamente se fosse exposto ao ar das liberdades individuais e da soberania da vontade popular. Ciente disso, mais uma vez, o caudilho exerceu seu controle total sobre o Estado e suas instituições na Venezuela. Do início ao fim, o processo eleitoral foi conspurcado. Nesse sentido, a oposição jamais teve a chance real, por mínima que fosse, de derrotar Maduro nas urnas. É assim, afinal, que funciona uma ditadura.

O grande mérito de Urrutia e María Corina Machado – hoje a principal líder da oposição ao chavismo, a mulher que teria enfrentado Maduro caso não tivesse sido cassada pelo regime sob a falsa alegação de corrupção – foi ter reafirmado para o povo venezuelano e para o mundo, tal como uma anticandidatura, que a assim chamada “democracia” na Venezuela é uma farsa. “Todas as regras foram violadas”, afirmou Urrutia ainda na noite de domingo. Maduro não demorou para se autoproclamar oficialmente o vencedor, em clara demonstração de desdém com as preocupações da comunidade internacional.

A fim de não correr o menor risco de ser defenestrado do poder pela força das urnas, o que teria acontecido não fosse o recurso à fraude, Maduro cometeu uma pletora de arbitrariedades ao longo dos últimos meses, a começar pela cassação sumária de todas as candidaturas que, em dado momento da campanha eleitoral, cresceram como uma ameaça real a seus interesses.

Diversos oposicionistas foram presos – e os que não foram sofreram a brutal intimidação do regime antes, durante e depois do pleito. No dia da eleição, as temidas Milícias Bolivarianas, conhecidas como “Coletivos”, circularam em suas motos pelas seções eleitorais de Caracas armadas até os dentes, mostrando aos eleitores até onde ia, de fato, sua liberdade de escolha. Cerca de 4,5 milhões de venezuelanos exilados e aptos a votar no exterior foram impedidos por Maduro de exercer seus direitos políticos.

Jamais se tratou de uma eleição justa na Venezuela, em que pese a demonstração de união das forças de oposição ao regime ter representado a melhor chance de derrotar o chavismo nos últimos 25 anos. A rigor, Maduro se proclamou vitorioso em uma eleição na qual foi derrotado.

Não surpreende que o CNE tenha resistido a fornecer as atas de votação das seções eleitorais à oposição e aos escassos observadores internacionais presentes na Venezuela. Esses documentos, que poderiam atestar que Urrutia foi o grande vencedor das urnas, talvez jamais vejam a luz do dia.

Por meio de nota, o governo brasileiro saudou o “caráter pacífico da jornada eleitoral” na Venezuela, de resto um teatro para iludir incautos de que a reeleição de Maduro teria transcorrido dentro da mais absoluta normalidade democrática. Mas ao menos cobrou a publicação das atas de votação, gesto classificado pelo Itamaraty como “um passo indispensável para a transparência, credibilidade e legitimidade do resultado do pleito”. Já é alguma coisa, sobretudo em se tratando do governo de Lula da Silva, aquele para quem há “excesso de democracia” na Venezuela chavista.

Enquanto o Brasil tenta se equilibrar entre suas obrigações constitucionais de defesa da democracia e os compromissos ideológicos de Lula com o chavismo, outros governos foram muito mais firmes. Os EUA, por exemplo, manifestaram “sérias preocupações de que o resultado anunciado não reflita a vontade ou os votos do povo venezuelano”. E o insuspeito presidente do Chile, Gabriel Boric, que é de esquerda, disse que “é difícil de acreditar” na vitória de Maduro. Quem preza verdadeiramente a democracia também não acredita.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.07.24

O custo insustentável do populismo

O populismo da Câmara nos levará a pagar um dos IVAs mais altos do mundo para financiar os regimes fiscais especiais que a reforma deveria ter eliminado

O propósito da reforma tributária é introduzir o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) para simplificar as regras, acabar com a cumulatividade dos tributos e taxar mais a renda do que o consumo. O País convive com um dos piores e mais disfuncionais sistemas tributários do mundo. No Brasil, a judicialização tributária representa 75% do PIB, enquanto a média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é 0,28%. Mas a regulamentação da reforma na Câmara dos Deputados mostrou que tantos os políticos como a iniciativa privada estão dispostos a renunciar aos princípios da reforma para salvaguardar seus privilégios. Quando o populismo e a safadeza se encontram na Praça dos Três Poderes, o resultado é desastroso para o País.

Ao fatiar a relatoria da reforma e conduzir uma discussão açodada e rasa, o presidente da Câmara, Arthur Lira, abriu as portas para os lobbies do corporativismo. Da Zona Franca de Manaus ao produtor de carne, os regimes especiais garantiram os seus privilégios tributários. Como não tem almoço grátis, a conta desses benefícios será repassada para todos os brasileiros em forma de aumento de imposto. O populismo da Câmara nos levará a pagar um dos IVAs mais altos do mundo para financiar os regimes fiscais especiais que a reforma deveria ter eliminado!

O Senado tem o poder de rever o projeto da Câmara, mas parece difícil esperar algo virtuoso de uma Casa que acabou de aprovar uma das propostas mais imorais do ano. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, inventou um falso problema (a dívida “inafiançável” dos Estados) para resolver uma questão política (a dívida de Minas Gerais), cuja solução é de seu interesse eleitoral (ele aspira a ser candidato ao governo de Minas em 2026). O “socorro” aos Estados é uma bomba fiscal que pode custar R$ 28 bilhões ao ano, agravando a já periclitante situação fiscal do País.

O populismo do Senado é uma afronta aos Estados que promoveram um ajuste fiscal exemplar, como foi o caso do Espírito Santo, Mato Grosso, Pará e Mato Grosso do Sul, entre outros. O “problema” da dívida dos Estados se resume a São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. São Paulo tem a maior dívida, mas possui receita suficiente para pagar o serviço da dívida e honrar suas obrigações financeiras. O Rio de Janeiro é um Estado governado há décadas por populistas que não se envergonham de dar calote nos credores e recorrer à União para pagar suas dívidas. Esse foi o caso recente da privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae). O governo carioca não pagou os bancos e obrigou a União a pagar os empréstimos do Estado com bancos. Trata-se de um ato de safadeza política, endossado pelo Supremo Tribunal Federal.

O desastre financeiro do Rio Grande do Sul e Minas Gerais é fruto da trágica herança de governos populistas. Os governadores Romeu Zema e Eduardo Leite estão trabalhando duro para resolver o rombo financeiro deixado pelos seus antecessores. Leite conseguiu um aval da União, suspendendo por três anos o pagamento da dívida do Estado para atender às demandas urgentes da reconstrução do Rio Grande do Sul, castigado pela pior enchente da sua história. Já o governador Zema vem esbarrando no populismo da Assembleia Legislativa mineira, que insiste em postergar a privatização das estatais como a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) e Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig).

Nenhum país do mundo avançou com a agenda de reformas quando o populismo e a safadeza ditam a política de Estado. O legado do populismo no Brasil é trágico. Somos o país com uma das maiores cargas tributárias do mundo. Possuímos a menor taxa de crescimento econômico entre os principais países emergentes e estamos entre os 20 piores países do mundo na atração de investimento. Populistas são fiscalmente irresponsáveis e não se cansam de sabotar a economia de mercado, debilitar a democracia e cercear as liberdades individuais, jogando o País numa espiral de insegurança jurídica, imprevisibilidade e descrédito. Esperar algo positivo de populistas é plantar vento para colher tempestade, como ilustra a vã esperança dos incautos que votaram em Lula da Silva.

As únicas pessoas que podem mudar essa realidade somos nós, por meio das nossas escolhas. Há 30 anos, elegemos um estadista para a Presidência da República que concebeu o Plano Real, sepultou a hiperinflação e promoveu uma ousada agenda de reformas que incluiu privatização, quebra de monopólio estatal, Lei de Responsabilidade Fiscal e restauro da dignidade do exercício da Presidência da República. Infelizmente, o legado do presidente Fernando Henrique Cardoso foi sepultado por duas décadas de governos populistas.

Precisamos urgentemente eleger lideranças políticas que estejam dispostas a resgatar a credibilidade da democracia, a confiança nas instituições e a crença nas virtudes do livre mercado. Temos de nos mobilizar para livrar o Brasil do populismo, do nacional-estatismo e do Estado ineficiente. Se fracassarmos nessa missão, os nossos filhos viverão sob ditaduras. Está na hora de transformarmos a nossa indignação em ação política.

Luiz Felipe D'avila, o autor, é cientista político, autor do livro "10 Mandamentos - do País que somos para o Brasil que Queremos". Foi candidato à Presidência da República.

Aprendiz de Fidel

Como franquia da ditadura cubana, chavismo aprendeu a sufocar os que ousam se lhe opor. Com apoio chinês e russo, Maduro parece querer transformar a Venezuela de vez numa nova Cuba


O ditador Nicolás Maduro decidiu dar uma banana para a comunidade internacional e fechar ainda mais seu regime de opressão, que há 11 anos subjuga os venezuelanos de todas as formas pelas quais um povo pode ser subjugado por seu próprio governante. Suas ações nesse sentido são inequívocas desde aquele farsesco ato de “diplomação” encenado no Conselho Nacional Eleitoral (CNE), um quintal do Palácio de Miraflores, horas após o pleito. Ali se ouviu a coda da ópera-bufa que apresentou Maduro como um legítimo candidato que teria triunfado sobre os adversários dentro das regras do jogo democrático, e não como o tirano sanguinário que ele é.

Maduro parece determinado a transformar a Venezuela em um Estado pária perante a comunidade das nações democráticas, entre as quais o Brasil. E ele só se movimenta com tamanho desassombro, malgrado todas as consequências políticas e econômicas que podem advir de seu novo golpe contra a soberania popular, porque conta com o imprescindível apoio da China e, a reboque, da Rússia, dois países que, como é notório, tratam as liberdades individuais e os direitos fundamentais dos cidadãos como excentricidades ocidentais.

Enquanto Estados Unidos e União Europeia se uniram para manifestar desconfiança em relação às condições da “vitória” de Maduro, China e Rússia foram rápidas na direção diametralmente oposta. Vieram de Pequim e de Moscou as mais importantes entre as escassas manifestações de apoio ao ditador venezuelano nas horas que se seguiram à proclamação do resultado pelo CNE no domingo passado.

A China de Xi Jinping, que conta com o petróleo da Venezuela para sustentar seu crescimento econômico, saudou Maduro e disse estar “disposta a enriquecer a associação estratégica com o país”. Ato seguinte, a Rússia do delinquente Vladimir Putin, outro capacho de Pequim, felicitou o ditador sul-americano e afirmou acreditar que “a associação estratégica” entre Moscou e Caracas se desenvolverá “em todas as áreas” a partir de agora. Engana-se quem pensa que essa coincidência de expressões empregadas foi mera obra do acaso.

Hoje, a Venezuela está para a China e Rússia como Cuba já esteve para a então União Soviética na década de 1960 – um posto avançado a serviço dos interesses chineses e russos contra os interesses americanos na América Latina. Não é força de expressão: é sabido que o regime chavista há tempos é uma franquia da ditadura cubana, que forneceu a Hugo Chávez e a Nicolás Maduro sua eficientíssima tecnologia de repressão a dissidentes, tanto políticos quanto militares. Maduro, devotado aprendiz de Fidel Castro, pretende se aferrar ao poder assim como o longevo ditador cubano.

Eis o teatro geopolítico que tem autorizado Maduro a não só desafiar, como a humilhar os países da América Latina e do Caribe que ousaram desconfiar de sua fajuta vitória ou guardar, no mínimo, um providencial silêncio nesse momento de crise, como fizeram Brasil e Colômbia, em que pese a hora grave impor uma condenação inequívoca da violência em curso no país vizinho.

No caso do Brasil, em particular, Maduro tem sido especialmente agressivo, tanto do ponto de vista retórico como militar. Recorde-se que, há poucos dias, o ditador recomendou que o presidente Lula da Silva tomasse um “chá de camomila” após o brasileiro se dizer “assustado” diante da ameaça feita pelo ditador companheiro de que haveria um “banho de sangue” na Venezuela caso ele não fosse reeleito. Ademais, Maduro segue inabalável em suas agressões contra a soberania da Guiana, mantendo tropas na região de fronteira com o Brasil.

A bem da verdade, Maduro sabe muito bem com quem está lidando ao se portar com esse misto de petulância e desdém pelo governo brasileiro. Fiel à tradição petista de condescendência com o chavismo, Lula afirmou ontem à noite que “nada tem de grave ou de anormal” na suspeitíssima eleição na Venezuela. De fato, sob a sanha persecutória e a sede de poder de Maduro, normal é ver os cadáveres de quem se opõe ao regime estendidos nas ruas, como já se vê. E isso é apenas o começo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 31.07.24

Barroso diz que decisões do STF atrapalharam combate à corrupção no paí

Presidente do tribunal afirma que ter sido voto vencido não 'impele a tratar com desrespeito pessoas que pensam de maneira diferente'

O ministro do STF, Luís Roberto Barroso, em evento nesta terça-feira (30) promovido pela Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro - Michael Félix/Divulgação ABL

O presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Luís Roberto Barroso, afirmou nesta terça-feira (30) que decisões da corte atrapalharam o combate à corrupção no país.

Ele citou três decisões contrárias à Operação Lava Jato em que foi derrotado nas votações do plenário.

O ministro fez referência ao fim de prisão em segunda instância, à submissão do afastamento do então senador Aécio Neves (PSDB) ao Senado e à anulação de sentenças em razão da ordem de fala de delatores nos processos.

"O Supremo anulou o processo contra um dirigente de empresa estatal que tinha desviado alguns milhões porque as alegações finais foram apresentadas pelos réus colaboradores e pelos réus não colaboradores na mesma data, sem que isso tivesse trazido nenhum prejuízo. Também acho que atrapalhou o enfrentamento à corrupção", disse Barroso durante palestra na sede da ABL (Academia Brasileira de Letras), no Rio de Janeiro.

O ministro, no auge da Lava Jato, era um dos principais defensores de bandeiras da operação no Supremo. Ele chegou a se desentender publicamente com críticos da investigação, como Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, durante sessões da corte.

No evento desta terça, Barroso disse também: "Portanto houve algumas decisões do Supremo em matéria de enfrentamento à corrupção que não corresponderam à expectativa da sociedade. Porém, como disse, o fato de eu discordar não me impele a tratar com desrespeito a posição das pessoas que pensam de maneira diferente".

Sobre a prisão de réus condenados em segunda instância, barrada em julgamento em 2019, afirmou que o Brasil hoje contraria "o padrão mundial" e que os processos "muitas vezes se eternizam e prescrevem".

Barroso destacou outras decisões, com as quais concorda, que também provocaram polêmica e geraram reações em setores da sociedade. Mencionou a autorização de aborto para fetos anencéfalos, a equiparação da homofobia ao crime de racismo e o reconhecimento da união civil entre casais homossexuais.

Disse, porém, que nenhuma das decisões foi tomada visando a aprovação popular da corte. Para ele, "a importância de um tribunal não pode ser aferida em pesquisa de opinião pública, porque existem na sociedade interesses conflitantes e sempre haverá queixas e insatisfações".

O presidente do tribunal defendeu a participação de ministros em eventos bancados por empresários no exterior. Ele disse haver "preconceito contra a livre iniciativa, contra empresários" e declarou que os magistrados também participam de encontros com outros atores sociais, como sindicalistas, indígenas e advogados.

"Aqui o Eduardo Maneira, meu querido amigo, vive me convidando para evento da OAB. Quando eu vou lá, eu acho que eu é que estou fazendo por ele, não ele está fazendo por mim. Vou com muito gosto, mas a gente está dando quando vai participar de um evento, fazer um palestra. Não está recebendo", disse Barroso.

Ele afirmou também: "'Ah, mas eles pagaram a passagem'. Só faltava eu ter que pagar a passagem para ir atender o evento da OAB. Portanto eu acho que há uma certa incompreensão, uma certa má vontade em relação a esse tema, porque, quando vai ao congresso da OAB, não tem problema".

Ministro diz que recusou ida a Paris por viagem ao Acre

Em entrevista após o evento, o presidente do Supremo disse não descartar a criação de um código de conduta para ministros do tribunal. "Não descarto a ideia. Não chamaria de um código de conduta, mas talvez de uma consolidação de princípios já praticados, mas que não custa nada colocar no papel."

Nos últimos meses, houve episódios que desgastaram a corte, como o pagamento de R$ 39 mil em diárias para um segurança do ministro Dias Toffoli por uma viagem ao Reino Unido que incluiu ida à final da Champions League, em junho.

Barroso disse ainda no evento ter recusado um convite para participar da cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris para visitar escolas públicas no Acre.

"Eu tinha um convite para ir na abertura das Olimpíadas de Paris, mas eu tinha mesmo me comprometido a ir a Rio Branco, no Acre, e a Porto Velho, aproveitando o recesso para encontrar juízes, e eu sempre visito escolas públicas, e eu não quis desmarcar. Me considerei um pouco um mártir do direito. Não fui a Paris, mas fui muito bem recebido, com carinho e alegria, em Rio Branco e em Porto Velho. Mas eu queria dizer que eu fui às Olimpíadas 2016, abertura aqui no Rio."

Eu tinha um convite para ir na abertura das Olimpíadas de Paris, mas eu tinha mesmo me comprometido a ir a Rio Branco, no Acre, e a Porto Velho, aproveitando o recesso para encontrar juízes, e eu sempre visito escolas públicas, e eu não quis desmarcar. Me considerei um pouco um mártir do direito

Presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre viagens de ministros

Ele também afirmou ver, "como todos os cidadãos democratas do mundo, com grande preocupação o que está acontecendo na Venezuela", em referência às suspeitas de que Nicolás Maduro fraudou a eleição do último fim de semana. Durante a palestra, o magistrado criticou a tentativa de reimplantação do voto impresso no Brasil, defendida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus apoiadores.

"Se essas pessoas achavam que podiam invadir a sede dos três Poderes, imagina o que não fariam nas sessões eleitorais em que achassem que fosse perder", afirmou.

Presidente do tribunal afirma que ter sido voto vencido não 'impele a tratar com desrespeito pessoas que pensam de maneira diferente'

O presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Luís Roberto Barroso, afirmou nesta terça-feira (30) que decisões da corte atrapalharam o combate à corrupção no país.

Ele citou três decisões contrárias à Operação Lava Jato em que foi derrotado nas votações do plenário.

O ministro fez referência ao fim de prisão em segunda instância, à submissão do afastamento do então senador Aécio Neves (PSDB) ao Senado e à anulação de sentenças em razão da ordem de fala de delatores nos processos.

"O Supremo anulou o processo contra um dirigente de empresa estatal que tinha desviado alguns milhões porque as alegações finais foram apresentadas pelos réus colaboradores e pelos réus não colaboradores na mesma data, sem que isso tivesse trazido nenhum prejuízo. Também acho que atrapalhou o enfrentamento à corrupção", disse Barroso durante palestra na sede da ABL (Academia Brasileira de Letras), no Rio de Janeiro.

O ministro, no auge da Lava Jato, era um dos principais defensores de bandeiras da operação no Supremo. Ele chegou a se desentender publicamente com críticos da investigação, como Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, durante sessões da corte.

No evento desta terça, Barroso disse também: "Portanto houve algumas decisões do Supremo em matéria de enfrentamento à corrupção que não corresponderam à expectativa da sociedade. Porém, como disse, o fato de eu discordar não me impele a tratar com desrespeito a posição das pessoas que pensam de maneira diferente".

Sobre a prisão de réus condenados em segunda instância, barrada em julgamento em 2019, afirmou que o Brasil hoje contraria "o padrão mundial" e que os processos "muitas vezes se eternizam e prescrevem".

Barroso destacou outras decisões, com as quais concorda, que também provocaram polêmica e geraram reações em setores da sociedade. Mencionou a autorização de aborto para fetos anencéfalos, a equiparação da homofobia ao crime de racismo e o reconhecimento da união civil entre casais homossexuais.

Disse, porém, que nenhuma das decisões foi tomada visando a aprovação popular da corte. Para ele, "a importância de um tribunal não pode ser aferida em pesquisa de opinião pública, porque existem na sociedade interesses conflitantes e sempre haverá queixas e insatisfações".

O presidente do tribunal defendeu a participação de ministros em eventos bancados por empresários no exterior. Ele disse haver "preconceito contra a livre iniciativa, contra empresários" e declarou que os magistrados também participam de encontros com outros atores sociais, como sindicalistas, indígenas e advogados.

"Aqui o Eduardo Maneira, meu querido amigo, vive me convidando para evento da OAB. Quando eu vou lá, eu acho que eu é que estou fazendo por ele, não ele está fazendo por mim. Vou com muito gosto, mas a gente está dando quando vai participar de um evento, fazer um palestra. Não está recebendo", disse Barroso.

Ele afirmou também: "'Ah, mas eles pagaram a passagem'. Só faltava eu ter que pagar a passagem para ir atender o evento da OAB. Portanto eu acho que há uma certa incompreensão, uma certa má vontade em relação a esse tema, porque, quando vai ao congresso da OAB, não tem problema".

Em entrevista após o evento, o presidente do Supremo disse não descartar a criação de um código de conduta para ministros do tribunal. "Não descarto a ideia. Não chamaria de um código de conduta, mas talvez de uma consolidação de princípios já praticados, mas que não custa nada colocar no papel."

Nos últimos meses, houve episódios que desgastaram a corte, como o pagamento de R$ 39 mil em diárias para um segurança do ministro Dias Toffoli por uma viagem ao Reino Unido que incluiu ida à final da Champions League, em junho.

Barroso disse ainda no evento ter recusado um convite para participar da cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris para visitar escolas públicas no Acre.

"Eu tinha um convite para ir na abertura das Olimpíadas de Paris, mas eu tinha mesmo me comprometido a ir a Rio Branco, no Acre, e a Porto Velho, aproveitando o recesso para encontrar juízes, e eu sempre visito escolas públicas, e eu não quis desmarcar. Me considerei um pouco um mártir do direito. Não fui a Paris, mas fui muito bem recebido, com carinho e alegria, em Rio Branco e em Porto Velho. Mas eu queria dizer que eu fui às Olimpíadas 2016, abertura aqui no Rio."

Eu tinha um convite para ir na abertura das Olimpíadas de Paris, mas eu tinha mesmo me comprometido a ir a Rio Branco, no Acre, e a Porto Velho, aproveitando o recesso para encontrar juízes, e eu sempre visito escolas públicas, e eu não quis desmarcar. Me considerei um pouco um mártir do direito

Ele também afirmou ver, "como todos os cidadãos democratas do mundo, com grande preocupação o que está acontecendo na Venezuela", em referência às suspeitas de que Nicolás Maduro fraudou a eleição do último fim de semana. Durante a palestra, o magistrado criticou a tentativa de reimplantação do voto impresso no Brasil, defendida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus apoiadores.

"Se essas pessoas achavam que podiam invadir a sede dos três Poderes, imagina o que não fariam nas sessões eleitorais em que achassem que fosse perder", afirmou.

Italo Nogueira, do Rio de Janeiro. originalmente para a Folha de Paulo (edição impressa), em 31.07,24

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Biden anuncia plano para reformar a Suprema Corte dos EUA e limitar mandatos de juízes; Kamala declara apoio à medida

Analistas apontam como improvável a aprovação do plano, em meio à corrida eleitoral

O presidente dos EUA, Joe Biden, em discurso à nação após deixar corrida eleitoral — Foto: Evan Vucci / AFP

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou nesta segunda-feira um plano urgente de reforma da Suprema Corte do país, que busca acabar com a vitaliciedade dos magistrados no cargo e impor um código de ética. O projeto ambicioso, nos últimos meses de mandato de Biden, também conta com o apoio da vice-presidente e candidata democrata, Kamala Harris, que declarou apoio ao projeto.

Biden se absteve por muito tempo de atender a pedidos para reformar o tribunal, composto por nove juízes que ocupam o cargo de forma vitalícia. A composição atual é desfavorável aos interesses dos democratas, uma vez que inclui seis ministros conservadores, três deles nomeados pelo ex-presidente Donald Trump, com ratificação do Congresso.

A possibilidade de uma presidência impor influência indevida às gerações futuras". Também pretende impor um código de ética que seja "obrigatório", com aplicação garantida e semelhante ao dos juízes da instância federal.

O presidente deve abordar o plano durante um discurso na Biblioteca e Museu Presidencial Lyndon B. Johnson em Austin, nesta segunda-feira, em seu primeiro compromisso público desde que anunciou sua decisão de abandonar a campanha presidencial na semana passada.

Espera-se que Biden repita o argumento antecipado pela Casa Branca, e que proponha um processo no qual cada presidente nomearia um juiz a cada dois anos, para passar 18 anos no tribunal.

Suprema Corte dos EUA, em Washington — Foto: Drew ANGERER / AFP

Ativistas do direito ao aborto protestam em frente à Suprema Corte dos EUA que, dominada por conservadores, revogou a decisão histórica de 1973 conhecida como "Roe x Wade", que consagrava o direito da mulher ao aborto e disse que os estados individuais podem permitir ou restringir o procedimento por conta própria — Foto: OLIVIER DOULIERY / AFP

Manifestantes pró-escolha e antiaborto se reúnem do lado de fora da Suprema Corte dos EUA em Washington — Foto: MANDEL NGAN / AFP

Em uma declaração enviada por sua campanha, a vice-presidente Kamala Harris, única candidata democrata a espera de confirmação, elogiou os esforços para mudar o tribunal e disse que era uma parceira no esforço.

— O presidente Biden e eu acreditamos fortemente que o povo americano deve ter confiança na Suprema Corte — disse a presidente. — Essas reformas populares ajudarão a restaurar a confiança na corte, fortalecer nossa democracia e garantir que ninguém esteja acima da lei.

Biden criticou decisões recentes da Corte que causaram controvérsia, incluindo a que anulou o precedente da decisão do caso Roe v. Wade, de 1973, que garantia o direito ao aborto em nível federal. Em um artigo de opinião no The Washington Post, o presidente disse que a decisão do tribunal de conceder ampla imunidade a presidentes por crimes cometidos no cargo foi um exemplo de tomada de decisão "perigosa e extrema" que colocou o povo americano em risco.

"O que está acontecendo agora não é normal e prejudica a confiança do público nas decisões do tribunal, incluindo aquelas que afetam as liberdades pessoais", escreveu Biden.

Steven Schwinn, especialista em direito da Universidade de Illinois em Chicago, explicou à AFP que Biden tem "quase zero" chance de aprovar seu plano e que provavelmente procura "sensibilizar a opinião pública" e colocar a Suprema Corte como uma questão eleitoral. (Com AFP e NYT)

Publicado originalmente por O Globo, com agências internacionais — Washington, em 29.07.24

Vitória de Nicolás Maduro na Venezuela é mais uma farsa do regime chavista

Ao longo de duas décadas, o regime chavista tem manipulado os processos eleitorais de modo a desacreditá-los e induzir a oposição a boicotar as votações

O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, acena para apoiadores em Caracas, Venezuela Foto: Juan Barreto/AFP

A ditadura venezuelana montou uma aparente fraude eleitoral acompanhada de uma versão fantasiosa de “ataque de hackers” ao sistema de transmissão dos resultados da votação para justificar a suspensão dos envios das atas, o enquadramento da oposição em crime de “terrorismo” e o recrudescimento da repressão contra protestos populares,

Ao anunciar uma improvável vitória do autocrata Nicolás Maduro por 51,2% dos votos, ante 44,2% para o representante da oposição, Edmundo González, o presidente do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), Elvis Amoroso, afirmou ter resolvido “problemas causados por agressões ao sistema, que causaram atrasos”. E que solicitou ao procurador-geral Tarek Saab, um dos braços da repressão do chavismo, “investigações contra o sistema eleitoral e contra seções e funcionários”.

Em geral quando se frauda uma apuração eleitoral, o sistema é derrubado da internet, enquanto se inserem os números escolhidos pelo regime. Aconteceu por exemplo na própria Venezuela na eleição para a Assembleia Constituinte, que eu cobri, em 2017. Dessa vez, os chavistas inovaram: aproveitaram a queda do sistema para enquadrar líderes oposicionistas pelo grave crime de terrorismo.

Em seguida, Maduro discursou em frente ao Palácio Miraflores, sede da presidência, numa trama claramente coreografada. “O fascismo na Venezuela, a terra de Bolívar e de Chávez, não passará hoje nem nunca”, prometeu ele. “O povo de Cristo foi mais forte frente aos demônios e demônias”, continuou, numa aparente referência a María Corina Machado, a única líder de oposição feminina, cuja candidatura foi impedida pelo regime.

“A Venezuela sofreu ataque de hackers durante a noite”, assegurou o ditador. “Não vou revelar o autor. Ataque doméstico ao sistema de transmissão do Conselho Nacional Eleitoral porque os demônios não queriam a certificação da nossa vitória. Já sabemos o mandante”, afirmou Maduro, causando um frio na espinha de quem conhece os métodos violentos de seu regime. “O Ministério Público vai entregá-lo para fazer justiça para o povo venezuelano.”

Segundo ele, trata-se de pessoas feias. “As pessoas belas estão aqui, cheias de amor, patriotismo e cristianismo”, disse ele, elogiando a multidão de chavistas reunidos para festejar a “vitória” do ditador, no poder desde 2013, e do regime, que já dura 25 anos. Reforçando a intimidação, Maduro advertiu: “Não vamos permitir que essas pessoas provoquem uma espiral de violência. O povo quer tranquilidade, estabilidade”.

María Corina Machado já está impedida de deixar o país, por uma condenação que também a tornou inelegível, embora tenha sido escolhida por nove partidos a candidata da oposição unida. Portanto, não tem a opção do exílio para escapar da prisão, como fizeram Juan Guaidó, que está em Miami, Leopoldo López, Julio Borges e Antonio Ledezma, que estão em Madri, para citar apenas alguns expoentes da oposição.

Machado discursou logo depois, ao lado de González. Ela afirmou que, segundo as atas que haviam recebido, González venceu com 70% dos votos, ante 30% para Maduro. “Essa é a verdade, maior margem de vitória na história”, festejou a líder oposicionista. Ela afirmou que foram retirados fiscais de centenas de mesas, nas quais era impedida a impressão das atas. Jornalistas presenciaram alguns desses incidentes, em que policiais e militantes dos “coletivos” chavistas impediram o acesso dos fiscais da oposição aos locais de apuração dos votos.

Machado rebateu a acusação de que oposicionistas teriam atacado o sistema para impedir a transmissão. “Os principais interessados na chegada das atas somos nós”, argumentou ela. “Por que acham que interromperam o envio das atas? Todos sabem o que aconteceu. Sabemos que essas pessoas são capazes de qualquer coisa, mas isso não é qualquer coisa, é violar a soberania popular. Não podem fazer isso, não com a informação que nós temos”, afirmou Machado, referindo-se às atas da contagem dos votos.

A líder da oposição, María Corina Machado, participa de uma coletiva de imprensa ao lado do candidato presidencial Edmundo González, em Caracas, após a divulgação dos resultados 

A líder da oposição, María Corina Machado, participa de uma coletiva de imprensa ao lado do candidato presidencial Edmundo González, em Caracas, após a divulgação dos resultados  Foto: Federico Parra/AFP

“Toda a comunidade internacional, até os que foram aliados em algum momento, sabem o que aconteceu”, disse Machado, numa aparente referência ao Brasil. O assessor especial da presidência Celso Amorim acompanhou a votação em Caracas. Antes do anúncio dos resultados, Amorim havia se declarado contente com o transcurso da votação.

Ao enviar Amorim, o governo Lula se obrigou a emitir um veredicto do processo eleitoral venezuelano. Dificilmente denunciará a fraude com todas as letras, ao julgar pela complacência diante da declaração de Maduro, de que a eleição brasileira não é auditável. Se Lula e Amorim recebem em silêncio um questionamento da legitimidade da eleição do próprio presidente, numa calúnia idêntica à que Jair Bolsonaro fez, por que desafiaria a legitimidade da eleição de Maduro?

Machado fez também um apelo às Forças Armadas, cooptadas pelo chavismo. “Os militares sabem, porque estiveram lá na primeira fila e viram as pessoas”, disse ela. “O dever das Forças Armadas é fazer que se respeite a soberania popular expressa nos votos. Isso é o que esperamos.” É improvável. Os generais venezuelanos estão inteiramente envolvidos no regime, e em seus crimes.

A líder oposicionista também rejeitou a ameaça de Maduro de reprimir as manifestações. “O que não vamos aceitar é dizer que a defesa da verdade é violência”, avisou ela. “Violência é ultrajar a verdade.” Machado, que diz que a oposição contou com 1 milhão de funcionários, num país onde restaram 23 milhões de habitantes, voltou a pedir que os mesários e testemunhas não saíssem das seções eleitorais enquanto não tivessem as atas impressas.


A líder da oposição, María Corina Machado, abraça apoiadores após votar em Caracas, Venezuela  Foto: Matias Delacroix/AP

Ela convocou os manifestantes a saírem de casa com suas famílias, incluindo parentes idosos. “Quem sai com a família não quer violência”, justificou. “Nos próximos dias, continuaremos anunciando ações para defender a verdade. Iremos até o fim. Nosso movimento cívico, popular e pacífico não será interrompido.” É improvável que os venezuelanos se exponham à truculência da polícia, dos milicianos irregulares do regime, e ao risco de prisão. Atualmente há 305 presos políticos na Venezuela, dos quais 130 desde janeiro.

Boca-de-urna realizada pela empresa especializada americana Edison Research indicou vitória de González por 65% a 31%. Os números são consistentes com outras pesquisas independentes nos dias anteriores, que indicavam a vitória do candidato da oposição unida por uma margem de 25 a 50 pontos porcentuais.

Ao longo de duas décadas, o regime chavista tem manipulado os processos eleitorais de modo a desacreditá-los e induzir a oposição a boicotar as votações. Com isso, bastava inflar o dado do comparecimento, para dar uma aparência de legitimidade às eleições.

Foi assim na primeira reeleição de Maduro, em 2018, quando o CNE anunciou vitória dele com 68% dos votos e comparecimento de 46%, o mais baixo da história da democracia da Venezuela, instaurada em 1958. A União Europeia e a Organização dos Estados Americanos, entre outros, denunciaram fraude no processo. Isso deve se repetir agora.

 

O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, participa de um compromisso de campanha ao lado da primeira-dama, Cillía Flores, em Caracas, Venezuela  Foto: Fernando Vergara/AP

Vieram a invasão da Ucrânia e as sanções dos Estados Unidos e da União Europeia contra o petróleo e gás da Rússia. Aumentou o interesse do Ocidente de levantar as sanções contra o petróleo venezuelano. Com mediação da Noruega e aval do Brasil, o governo e a oposição firmaram em outubro o Acordo de Barbados, que previa a realização de eleições livres e justas, incluindo a libertação dos presos políticos.

O acordo foi firmado dia 17 de agosto. Cinco dias depois, Machado foi eleita nas primárias da oposição unida, com 92% dos votos.

Como parte do incentivo, para o regime, os Estados Unidos voltaram , por cerca de quatro meses, a comprar o petróleo venezuelano. Calculo que o regime tenha obtido US$ 1 bilhão em vendas extras de petróleo.

Já no início do ano, no entanto, ficou claro que o governo venezuelano não cumpriria sua parte no acordo. Machado foi inabilitada no fim de janeiro. Ela escolheu para seu lugar a professora Corina Yoris que, por ter o mesmo nome, atrairia os seus votos. O regime vetou também. Ela indicou então o diplomata aposentado Edmundo González, de 74 anos.

Um venezuelano segura um cartaz de apoio a Edmundo González no Rio de Janeiro  Foto: Bruna Prado/AP

O regime aceitou, porque imaginou que os votos da oposição se diluiriam entre os candidatos de diversos partidos, e que a população se sentiria desencorajada a votar, como em 2018. Entretanto, a oposição se mobilizou em torno do nome de González. Os candidatos de outros partidos pediram a retirada de seus nomes das cédulas, mas o CNE os manteve, na tentativa de dispersar os votos da oposição e confundir os eleitores.

Nos comícios da oposição, policiais e militantes dos coletivos bloqueavam o acesso de ruas e avenidas para dificultar a checada dos participantes. Só havia cartazes de propaganda eleitoral de Maduro. A imprensa, o Judiciário, o Ministério Público e o Parlamento são controlados pelo regime. E agora, a fraude está consumada. Maduro gostaria de normalizar as relações com os Estados Unidos e a União Europeia, e vender mais petróleo. Mas não ao ponto de sacrificar sua perpetuação no poder.

Lourival Sant'Anna, o autor deste artigo, é colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.07.24