sexta-feira, 5 de julho de 2024

A memória conspurcada

O País sem memória não está apenas no passado, mas também no presente. E, talvez contraditoriamente, está presente para jamais ser esquecido

O Brasil é um país sem memória. E o trágico é que os equívocos do passado podem nos levar a não errar no presente e, igualmente, a nos fazer acertar no futuro.

Aqui, tudo (ou quase tudo) nos leva a esquecer. Indago: quem se recorda da renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República em 1961, aos sete meses de governo, mesmo tendo sido eleito por avassaladora maioria? Ou quem se recorda do veto dos três ministros militares à posse do vicepresidente João Goulart ou da Campanha da Legalidade, iniciada no Sul pelo então governador gaúcho Leonel Brizola e que logo se estendeu a todo o País?

Ou quem se lembra do golpe militar de 1.º de abril de 1964, que durou 21 anos, nos quais os governantes eram “eleitos” pelos donos do poder, desde o ditador de turno até os governadores e prefeitos das capitais estaduais? O voto popular foi suprimido ou incinerado, os partidos políticos foram abolidos. Instituiuse a censura à imprensa e demais meios de comunicação. A tortura aos presos políticos transformou-se em método de interrogatório.

Poderá dizer-se que “tudo aconteceu em outro século” e que, por isso, pertence a “um passado remoto”, fácil de esquecer. Resquícios do golpe (que há pouco completou 60 anos) só foram abolidos, no entanto, com a campanha das “diretas já”. Mesmo assim deixaram marcas que perduram até hoje, tais quais a atual enxurrada de mais de 30 partidos que nada (ou quase nada) representam e que mais parecem meros aglomerados de gente em busca de poder pessoal.

Nos tempos do governo Bolsonaro, um de seus filhos-parlamentar chegou a sugerir a reimplantação do Ato Institucional n.º 5, que, nos tempos da ditadura, suprimiu o habeas corpus e outros direitos constitucionais, levando ainda à cassação de direitos políticos de centenas de brasileiros e à destituição de integrantes do Supremo Tribunal Federal. As restrições à livre imprensa tornaram-se ainda mais férreas e absurdas quando censores ocuparam as redações dos jornais (inclusive do Estadão), ditando aquilo que poderia ser ou não ser publicado.

Mais ainda: os jornais foram proibidos de publicar “espaços em branco” que mostrassem o que havia sido cortado pelo censor. Para deixar clara a insânia dos cortes da censura, este jornal publicava trechos do poema Os Lusíadas, de Luís de Camões, num desafio à ferocidade da censura, para que os leitores entendessem que naqueles espaços deviam estar as notícias censuradas.

Os censores chegaram ao absurdo de proibir que se publicassem informações sobre uma epidemia que assolou São Paulo naquela época… A falsa justificativa inventada pela censura era de que a divulgação da epidemia poderia “criar pânico” na população.

Essa e outras perigosas tolices inventadas pela censura generalizada faziam parte, porém, da forma de governar o País nos tempos da ditadura… Seria isso aquilo que o filhoparlamentar do ex-presidente Jair Bolsonaro acreditava ser útil à democracia? Ou teria a memória conspurcada ou que só cultivava o horror, tal qual erva daninha?

Esse país sem memória, porém, não está apenas no passado, mas também no presente. E, talvez contraditoriamente, está presente para jamais ser esquecido.

Três fatos recentes levam a pensar assim. Primeiro, uma ação que tramita no Supremo Tribunal Federal e que leva ao pagamento de quase R$ 1 bilhão a juízes, procuradores e promotores federais. O “penduricalho” irá render a cada beneficiado cerca de R$ 2 milhões.

O absurdo, porém, é que o caso tramita há anos no Supremo Tribunal Federal sob a justificativa (ou pretexto) de que os juízes, procuradores e promotores federais têm “acúmulo de trabalho” ou trabalham em mais de uma comarca. Até aqui, pela regra em vigor, nenhum funcionário federal poderia receber mais do que um ministro do Supremo.

O ponto de partida para a criação dos “penduricalhos” de agora foi uma lei do Congresso Nacional, sancionada em 2015 pela então presidente Dilma Rousseff, que beneficiava juízes com “excesso de trabalho”. Posteriormente, a lei foi estendida aos juízes estaduais.

A soma de absurdos estendeu-se agora ao Projeto de Lei n.º 1.904 de 2024, em tramitação na Câmara dos Deputados, que equipara o aborto ao crime de homicídio. No entanto, em termos de Direito, o mais negativo é que, de fato, punese a vítima e se isenta o “criminoso”. Talvez mais grave ainda é que, de um modo geral, não se impõe ao homem nenhuma responsabilidade pela gravidez, recaindo tudo somente na mulher.

O terceiro ponto a não esquecer se origina na decisão do Supremo Tribunal Federal de liberar o uso da maconha para “uso pessoal”. Até 40 gramas, qualquer pessoa, jovem, adulta ou idosa, pode portar e consumir a perigosa cannabis, que, por sua vez, abre portas ao consumo de drogas ainda mais perversas.

A Suprema Corte esqueceu-se de que a relação entre consumidores e narcotraficantes é biunívoca. Um não existe sem o outro. O narcotraficante existe porque há quem consuma. E vice-versa.

Outra vez, vale dizer que somos um país sem memória. •

Flávio Tavares, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor,  Prêmio Jabuti 2000 e 2005,  Prêmio APCA 2004. Professor aposentado da Universidade de Brasília. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.07.24.

Suprema Corte embala o sonho de Trump

Trump sempre quis exercer o poder como bem entender, sem freio. Obviamente, digam o que disserem os republicanos da Corte, não foi com isso que os fundadores dos EUA sonharam

ASuprema Corte dos Estados Unidos decidiu, por 6 votos a 3, que ex-presidentes da República não podem ser investigados e julgados criminalmente por seus atos no exercício do cargo. A decisão diz respeito ao caso que envolve o ex-presidente Donald Trump, acusado de ter tentado reverter o resultado da eleição de 2020, na qual foi derrotado por Joe Biden.

Os seis votos vencedores foram dos ministros indicados por presidentes republicanos (três deles por Trump), enquanto os três votos derrotados foram dos ministros indicados por presidentes democratas, o que explicita a dimensão política do debate: para os republicanos, a decisão da Suprema Corte respeita a Constituição e a separação de Poderes; para os democratas, a decisão viola a Constituição e cria um Poder – o Executivo – acima dos demais.

Essa divisão evidente mostra que não houve debate, e sim uma disputa politicamente motivada, cujo desfecho refletiu apenas e tão somente a aritmética – aparentemente há seis juízes dispostos a defender Trump a qualquer custo e há apenas três dispostos a condená-lo de modo implacável. Eis a miséria do debate público atual, nos Estados Unidos e em praticamente todo o mundo: não parece haver mais a possibilidade de um consenso sobre aspectos basilares da vida em sociedade e sobre o funcionamento do Estado – inclusive, ou principalmente, sobre a própria Constituição, espécie de contrato fundamental da relação entre indivíduos, sociedade e Estado.

O fato incontornável, contudo, é que a questão da imunidade presidencial é decisiva para as eleições presidenciais deste ano nos Estados Unidos, razão pela qual seu componente político é central. Um revés para Trump na Suprema Corte possivelmente o alijaria da disputa eleitoral, e não é de hoje que aquele tribunal evita tomar decisões que possam resultar na inelegibilidade de quem quer que seja.

Recentemente, por exemplo, a Suprema Corte rejeitou uma decisão judicial que havia retirado Trump da cédula eleitoral das primárias republicanas no Estado do Colorado por seu envolvimento na invasão do Capitólio em janeiro de 2021, em que seus seguidores pretendiam impedir a certificação da vitória de Biden. É interessante observar que essa decisão foi unânime – ou seja, todos os ministros da Suprema Corte, sejam republicanos ou democratas, entenderam que nenhum Estado, individualmente, pode impedir candidaturas presidenciais.

Mas o caso da imunidade presidencial reivindicada por Trump está em outro patamar. Sua intenção evidente é escapar de punição por seus crimes, a começar pela tentativa de destruir a democracia dos Estados Unidos, sobre a qual há inúmeras e inquestionáveis evidências.

Quando os formuladores da Constituição americana imaginaram o instituto da imunidade presidencial, não o fizeram para impedir que os presidentes, uma vez fora do cargo, fossem imunes a processos por crimes, sobretudo crimes contra a democracia, e sim para dar ao presidente da República conforto jurídico para tomar suas decisões de Estado, muitas das quais impopulares, duras e eventualmente violentas, sem se preocupar com eventuais processos no futuro.

Tentar reverter o resultado de uma eleição por meio de fraude e uso da força, como fez Trump, não está, ou não deveria estar, entre as atribuições oficiais de um presidente, mas, na prática, foi isso o que a Suprema Corte decidiu. Doravante, portanto, presidentes americanos são considerados formalmente inimputáveis, mesmo que atentem contra a democracia.

Era exatamente o que os pais da República americana queriam impedir. Pois não há nada mais contrário ao espírito da República que ter um chefe de Estado acima da lei, algo próprio da monarquia – em que o rei encarna a soberania e a lei, razão pela qual não pode ser sancionado de nenhuma maneira.

É com isso que Trump sempre sonhou: cometer crimes sem ser punido e, na condição de presidente, exercer o poder como bem entender, sem qualquer tipo de freio. Obviamente, digam o que disserem os republicanos da Suprema Corte e sejam quais forem as nuances jurídicas da decisão, não foi com isso que os fundadores dos Estados Unidos sonharam.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 05.07.24 

PF indicia Bolsonaro em inquérito das joias sauditas

Ex-presidente é suspeito dos crimes de lavagem de dinheiro, associação criminosa e apropriação de bem público. Outras 11 pessoas também foram indiciadas, incluindo Mauro Cid, Fabio Wajngarten e Frederick Wassef.

Versão inicial diz que joias eram presente para ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (Foto: Douglas Magno/AFP)

A Polícia Federal (PF) indiciou nesta quinta-feira (04/07), o ex-presidente Jair Bolsonaro na investigação que apura se ele teria se apropriado indevidamente de joias milionárias presenteadas ao governo brasileiro quando ele ainda estava na Presidência da República.

Os crimes que constam no indiciamento de Bolsonaro são associação criminosa, lavagem de dinheiro e peculato (apropriação de bens públicos).

Outras 11 pessoas também foram indiciadas, entre estas, o ex-ministro de Minas e Energia de Bolsonaro, Bento Albuquerque; o ex-secretário de Comunicação e atual advogado do ex-presidente, Fabio Wajngarten, e o também advogado Frederick Wassef. Eles respondem por crimes como peculato, associação criminosa e lavagem de dinheiro.

A lista de indiciados também inclui o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel do Exército Mauro Cid (por associação criminosa, peculato e lavagem de dinheiro) e seu pai, o general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid (lavagem de dinheiro e associação criminosa).

Bolsonaro sempre negou quaisquer irregularidades. Seu advogado Paulo Cunha Bueno optou por não se manifestar até ter acesso ao documento da PF.

O relatório final com conclusões e detalhes sobre os indiciamentos – no qual não há pedidos de prisão preventiva ou temporária dos indiciados – será encaminhado ao ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal (STF), relator do caso.

O magistrado deve então enviar o caso à Procuradoria-Geral da República (PGR), que vai decidir se há evidências suficientes para pedir o indiciamento de Bolsonaro, ou se o caso deve ser arquivado ou se serão necessárias novas diligências.

Se PGR decidir pela denúncia, os procuradores podem modificar a lista de crimes atribuídos ao indiciado para mais ou para menos. Na próxima etapa, caberá ao STF decidir se torna os acusados réus, se arquiva ou encaminha os casos à primeira instância.


As joias apreendidas pela Receita Federal no aeroporto de Guarulhos (Foto: Amanda Perobelli/REUTERS)

Relembre o caso das joias

O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro teria tentado trazer ao Brasil de forma ilegal joias inicialmente avaliadas em cerca de R$ 5 milhões que teriam sido presentes da Arábia Saudita ao ex-presidente e a sua esposa, Michelle Bolsonaro.

As joias foram apreendidas quando uma comitiva do governo Bolsonaro retornava ao Brasil após uma viagem oficial à Arábia Saudita, em outubro de 2021. As peças estariam na mochila de um militar que era assessor do então ministro de Minas e Energia, Bento Alburquerque.

Segundo o documento da Receita Federal no aeroporto de Guarulhos, o militar da comitiva de Bolsonaro disse não ter nada a declarar, mas, ao passar pela alfândega, um fiscal solicitou que ele colocasse sua mochila no raio-x, onde "observou-se a provável existência de joias". A bagagem então foi revistada, e os agentes encontraram um par de brincos, um anel, um colar e um relógio com diamantes. Os objetos foram apreendidos.

De acordo com o documento, o militar informou o ocorrido ao ministro Bento Alburquerque, que tentou liberar as peças alegando se tratar de um presente para a então primeira-dama, Michelle Bolsonaro. A Receita, porém, manteve a apreensão.

Em depoimento à PF, Albuquerque mudou sua versão e negou que tivesse conhecimento sobre o destino final das peças.

O que justificou a apreensão

De acordo com a lei, para entrar no país com mercadorias adquiridas no exterior com valor superior a 1 mil dólares (pouco mais de R$ 5,4 mil), o viajante deve declarar o bem e pagar um imposto de importação equivalente a 50% do valor do produto. Caso tenha omitido a declaração, para a liberação do bem, além do pagamento do imposto é aplicada uma multa adicional de 25% do valor.

Dessa forma, para reaver as joias, Bolsonaro deveria desembolsar cerca de R$ 12 milhões.

Uma alternativa para a entrada legal das joias no Brasil, sem o pagamento de impostos, seria por meio de uma declaração do governo de que as peças eram um presente oficial para o Estado brasileiro. Nesse caso, porém, as joias passariam a ser propriedade do Estado.

Tentativas de reaver as joias

O governo Bolsonaro teria feito várias tentativas de recuperar as joias, mobilizando os Ministérios da Economia, Minas e Energia e das Relações Exteriores. Numa delas, em 3 de novembro de 2021, o Ministério de Minas e Energia teria pedido a intervenção do Itamaraty no caso. A Receita, porém, informou que isso só seria possível se fosse feito o pagamento do imposto e da multa.

Em outra tentativa de recuperar as peças ainda em 2021, o governo Bolsonaro teria alegado que as joias seriam analisadas para incorporação "ao acervo privado do Presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República". A justificativa aparece num documento divulgado nas redes sociais pelo ex-chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social Fabio Wajngarten, após a revelação do caso.

Um ofício do gabinete de Bento Albuquerque também de 2021 pedia a liberação dos "presentes retidos", ao alegar ser "necessário e imprescindível que seja dado ao acervo o destino legal adequado". O documento, no entanto, não menciona o destino que seria dado às joias.

Poucos dias antes do fim do governo, em 28 de dezembro de 2022, outra tentativa de recuperar as joias teria sido feita. O próprio Bolsonaro teria enviado um ofício para a Receita pedindo a liberação dos bens.

No dia seguinte, um funcionário do governo foi a Guarulhos para tentar, sem sucesso, recuperar as peças, argumentando que elas não podiam ficar retidas devido à iminente mudança de governo.

Em dezembro de 2022, Bolsonaro também teria conversado por telefone como então chefe da Receita Federal Júlio Cesar Vieira Gomes sobrea liberação das joias.

Gomes teria pressionado os servidores de Guarulhos para liberarem a entrega das peças ao ex-presidente.

Bolsonaro não cumpriu ritos 

A Receita Federal informou que não foram cumpridos os ritos necessários para incorporar ao patrimônio da União as joias trazidas da Arábia Saudita, apesar de ter orientado o governo Bolsonaro sobre o processo para a regularização das peças.

"A incorporação ao patrimônio da União exige pedido de autoridade competente, com justificativa da necessidade e adequação da medida, como por exemplo a destinação de joias de valor cultural e histórico relevante a serem destinadas a museu. Isso não aconteceu neste caso", afirmou a Receita em nota. "Não cabe incorporação de bem por interesse pessoal de quem quer que seja, apenas em caso de efetivo interesse público."

O órgão informou ainda que o prazo para a regularização dos objetos terminou em julho de 2022, e destacou que todos os brasileiros, "independentemente de ocupar cargo ou função pública", estão sujeitos às mesmas leis aduaneiras.

"Na hipótese de agente público que deixe de declarar o bem como pertencente ao Estado brasileiro, é possível a regularização da situação, mediante comprovação da propriedade pública, e regularização da situação aduaneira. Isso não aconteceu no caso em análise, mesmo após orientações e esclarecimentos prestados pela Receita Federal a órgãos do governo", diz a nota.

Mais presentes da Arábia Saudita

Outros presentes enviados pela Arábia Saudita teriam sido entregues a Bolsonaro. Documentos mostram que um pacote com relógio, caneta, abotoaduras, anel e um tipo de rosário islâmico não foi interceptado pela Receita Federal em outubro de 2021.

Os objetos estariam na bagagem de outro integrante da comitiva de 2021 e só foram repassados para o ex-presidente em novembro do ano passado. As peças foram entregues pelo então assessor especial do Ministério de Minas e Energia Antônio Carlos Ramos de Barros Mello.

A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro teria recebido pessoalmente um segundo pacote de joias da Arábia Saudita trazido pela comitiva, de acordo com o depoimento de uma funcionária do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) à Polícia Federal.

As joias teriam entrado ilegalmente no país em outubro de 2021 na bagagem de Bento Albuquerque. De acordo com o depoimento da então coordenadora do GADH Marjorie de Freitas Guedes, em meados de outubro de 2021, foi aberto um processo no sistema referente aos trâmites relacionados aos presentes. O cadastro, porém, foi aberto ainda antes da comitiva do Ministério de Minas e Energia ter retornado ao Brasil da Arábia Saudita. 

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 05.07.24

A volta do Ministério do Vai Dar M...

Episódios nebulosos têm provocado ‘déjà- vu’ em quem acompanhou de perto escândalos das últimas gestões petistas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, durante cerimônia em Santarém (PA) em 2023 — Foto: Ricardo Stuckert/PR

A ideia foi imortalizada no primeiro governo Lula, por sua pertinência e autoria: deveria ser criado um Ministério do “Vai dar Merda”. A proposta vinha de Chico Buarque, entusiasta da chegada do PT ao poder, temeroso do desgaste que os tropeços poderiam causar ao projeto de esquerda. Passados 18 meses de seu terceiro mandato, Lula deveria pensar seriamente na sugestão.

Nos últimos meses, uma série de episódios nebulosos tem provocado déjà-vu em quem acompanhou de perto os escândalos das últimas gestões petistas. Primeiro, foram as acusações contra o ministro Juscelino Filho, indiciado por organização criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção passiva. Trata-se de um clássico do patrimonialismo nacional: quando era deputado, ele destinou emendas para construir estradas no Maranhão que beneficiaram propriedades suas e de sua família.

No celular do empreiteiro responsável pela obra, a Polícia Federal identificou uma troca de mensagens em que Juscelino pede ao empresário que realize depósitos para terceiros, e este responde com os comprovantes dos repasses. Numa conversa paralela, o empreiteiro diz que o valor seria descontado da obra de pavimentação. Apesar dos indícios, Lula optou por não demitir o aliado.

Para auxiliares, Lula espera que Juscelino tome a iniciativa de deixar o governo

O caso de Juscelino é apenas o mais avançado. Em meio à tragédia do Rio Grande do Sul, o governo decidiu importar 263 mil toneladas de arroz. O leilão foi vencido por empresas que faziam de tudo, menos trabalhar com o cereal — eram de locação de veículos, produção de queijos e polpas de fruta. As vendas seriam parcialmente intermediadas por companhias de um ex-assessor do secretário de Política Agrícola do governo federal. Foi preciso o escândalo dominar as redes sociais para o Planalto cancelar a compra.

Não foi a única movimentação nebulosa envolvendo a tragédia gaúcha. No último domingo, o colunista do GLOBO Lauro Jardim revelou que um grão-petista, o ex-presidente da Câmara Marco Maia, tem visitado prefeituras sugerindo a contratação de certas empresas para tocar obras emergenciais. Ele integra a equipe de Paulo Pimenta na Secretaria de Reconstrução do RS. Maia foi alvo de delações na Operação Lava-Jato, e seu processo foi arquivado por falta de provas.

O grupo dos reabilitados da Lava-Jato que voltaram a flanar em Brasília é grande. Os irmãos Joesley e Wesley Batista, que de investigados se converteram em bombásticos delatores, estão com tudo. Semanas atrás, chamaram a atenção por um lance intrigante. Arremataram, por R$ 4,7 bilhões, 12 usinas térmicas da Eletrobras na região amazônica. Elas estavam à venda havia um ano, mas não despertavam interesse de nenhum grupo. O motivo: a principal cliente delas é a distribuidora Amazonas Energia, que está inadimplente, com dívida acumulada de R$ 9 bilhões. O mercado só compreendeu a decisão dois dias depois, quando o governo editou uma Medida Provisória para socorrer a Amazonas Energia, cobrindo os pagamentos que ela deveria fazer às usinas recém-compradas pelos Batistas. Os custos da operação serão pagos por todos os consumidores.

Até mesmo a Secretaria de Comunicação da Presidência, que deveria trabalhar para melhorar a imagem do governo, passou a desgastá-la. Na semana passada, o Tribunal de Contas da União identificou indícios de “graves irregularidades” na licitação que contratou quatro empresas de assessoria e gestão de redes sociais. O resultado do pregão, com gastos de até R$ 197,7 milhões, era conhecido antes da abertura dos envelopes.

Os seguidos escândalos que atingiram os governos Lula e Dilma foram o principal motor do antipetismo que viceja no país. Ainda que Lula evite o tema, passar a impressão de que há preocupação com o combate à corrupção é importante para um pedaço do eleitorado que o apoiou em 2022 e foi determinante para derrotar Bolsonaro. A onda recente de casos heterodoxos mostra que, se nada for feito, o governo terá apostado mais na sorte que na sensatez para não ser atingido por um grave escândalo. Depois, não adianta culpar o juiz.

Paulo Celso Pereira, o autor deste artigo, é Jornalista e editor executivo do GLOBO.  Publicado originalmente em 03.07.24

terça-feira, 2 de julho de 2024

Antes da eleição, governo acelera repasse de R$ 30 bi em emendas

Volume é o maior da história para um período pré-eleitoral

Em um acordo com o Congresso, o governo deve pagar até R$ 30 bilhões em emendas parlamentares antes das eleições municipais de outubro. O volume é o maior da história para um primeiro semestre de ano e para um período pré-eleitoral. O montante inclui recursos distribuídos sem critérios técnicos, emendas Pix e verbas remanescentes do orçamento secreto. Em 2024, até a semana passada, foram pagos R$ 20,9 bilhões. A lei eleitoral proíbe o pagamento de emendas a menos de três meses antes da eleição, período que começa no próximo dia 6. A exceção são repasses para obras executadas anteriormente. Manobras do Congresso com aval do governo, porém, mudaram a forma de pagamento de emendas neste ano, gerando dribles à lei eleitoral e tornando a regra inócua. O Palácio do Planalto afirmou que o objetivo é viabilizar obras e acelerar o atendimento à população nos municípios.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve pagar até R$ 30 bilhões em emendas parlamentares antes das eleições municipais deste ano. Se confirmado, o montante será o maior volume de recursos da história durante um primeiro semestre do ano e em um período pré-eleitoral. Procurado pela reportagem, o Palácio do Planalto afirmou que o objetivo é viabilizar obras e acelerar o atendimento à população nos municípios.

O Executivo federal resolveu, em acordo com o Congresso Nacional, repassar uma quantia equivalente a 60% das emendas previstas para 2024 antes das eleições de outubro, uma dimensão que não tem precedentes em anos anteriores. O valor inclui recursos distribuídos sem critérios técnicos, emendas Pix e heranças do orçamento secreto.

LEGISLAÇÃO. A lei eleitoral proíbe o pagamento de emendas três meses antes da eleição, período que começa no próximo dia 6, com exceção de repasses para obras executadas anteriormente.

Manobras do Congresso com aval do governo, porém, mudaram a forma de pagamento de emendas neste ano, gerando dribles à lei eleitoral e tornando a regra inócua, conforme o Estadão antecipou.

Em nenhum período anterior foram disponibilizados tantos recursos para serem gastos em plena campanha eleitoral. Desde o início do ano até a semana passada, foram pagos R$ 20,9 bilhões em emendas, somando recursos incluídos no Orçamento de 2024 e herdados de anos anteriores. Há, no montante pago, R$ 1,7 bilhão de emendas do orçamento secreto deixadas pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

O valor de emendas deve subir até sexta-feira. A quantia final ainda dependerá dos desembolsos da União. Há, por exemplo, R$ 5 bilhões que estão prontos para pagamentos e outros R$ 5 bilhões que estão na fila, mas ainda não foram processados. Parlamentares e prefeitos pressionam pelos repasses nesta semana de reta final, enquanto o governo controla o caixa.

‘DETURPAÇÃO’. “As emendas parlamentares têm produzido três impactos problemáticos: risco de corrupção, deturpação de políticas públicas e impacto eleitoral”, diz o gerente de Pesquisa da Transparência Internacional no Brasil, Guilherme France. “Se vamos continuar com um modelo de ampla destinação de recursos via emenda parlamentar, e não parece que o Congresso vai abrir mão, precisamos que esses recursos sejam destinados com adequação dos critérios técnicos de alocação, transparência e fiscalização.”

Nesta mesma semana, a Câmara dos Deputados deve pautar para votação os projetos de regulamentação da reforma tributária, enviados pelo governo Lula. Liberar emendas em períodos de votações estratégicas no Congresso é uma prática do Executivo federal para agradar a parlamentares com recursos do Orçamento da União. Isso aconteceu em diversas ocasiões no ano passado, conforme o Estadão mostrou, e se repete agora, ainda mais por conta das eleições municipais.

‘ATENDIMENTO’. Procurada pela reportagem, a Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, que cuida da relação com o Congresso e do pagamento de emendas, afirmou que o calendário de liberação, definido ainda em fevereiro, tem “o objetivo de viabilizar obras e acelerar o atendimento à população nos municípios”.

A pasta afirmou que, até o dia 5 de julho, o governo vai totalizar R$ 21,5 bilhões em emendas pagas relativas às transferências especiais (emendas Pix) e transferências para saúde e assistência social – foram R$ 14,9 bilhões até 28 de junho. O governo não antecipou qual valor pretende quitar de outros tipos de recursos.

“As emendas parlamentares têm produzido três impactos problemáticos: risco de corrupção, deturpação de políticas públicas e impacto eleitoral”. Guilherme France Gerente de Pesquisa da Transparência Internacional no Brasil

DECRETOS. Inicialmente, o Congresso queria obrigar o governo Lula a respeitar um calendário de pagamento de emendas neste ano. O presidente vetou essa proposta, mas em troca negociou um cronograma diretamente com os parlamentares e assinou um decreto em fevereiro que, na prática, atendeu o desejo dos políticos.

Em maio, Lula assinou um novo decreto ampliando os recursos destinados a emendas no primeiro semestre. O acordo ficou ainda mais custoso para os cofres públicos. Se o veto fosse derrubado, o governo seria obrigado a pagar R$ 16 bilhões em emendas no primeiro semestre deste ano, mas pode acabar pagando praticamente o dobro. 

Daniel Weterman, Jornalista, originariamente de Brasília-DF para O Estado de S. Paulo,  em 02.07.24.

‘Emenda Pix’ retrata nossa miséria democrática

‘Emendas Pix’ servem para qualquer coisa, não raro coisa ruim para o interesse público. Neste ano, têm servido como espécie de Fundo Eleitoral paralelo, adicionando insulto à injúria

O Brasil é um país peculiar no que concerne a seu arcabouço de expedientes à disposição daqueles que não enxergam o mandato eletivo senão como um meio de perpetuação do patrimonialismo e do clientelismo que marcam a ferro quente a história nacional. As chamadas “emendas Pix” são dos mais notáveis desses instrumentos que mantêm o País preso ao atraso. O esquema é a materialização da esculhambação em que se tornou o manejo do Orçamento por estas bandas – retrato fiel do estado da democracia no País.

Como se sabe, as “emendas Pix” são transferências descomplicadas de dinheiro público, daí o apelido, ordenadas por um parlamentar para a conta de um Estado ou município. Não há critério objetivo, controle técnico ou vinculação a políticas públicas que orientem essas operações obscuras. Quando muito, sabe-se o nome do deputado ou senador que patrocina o envio da dinheirama e o ente federativo de destino. E só. O que é feito dos recursos dos contribuintes despendidos à margem de fiscalização só Deus e as consciências de parlamentares, governadores e prefeitos podem dizer.

Precisamente por essa esbórnia financeira, as “emendas Pix” servem para qualquer coisa – em geral, coisa ruim para o interesse público. Como o Estadão revelou, neste ano eleitoral, as “emendas Pix” passaram a ser usadas como uma espécie de Fundo Eleitoral paralelo, adicionando insulto à injúria. Num ardil para driblar a legislação eleitoral e uma decisão do Tribunal de Contas

da União (TCU), o governo Lula da Silva, decerto pressionado pela cúpula do Congresso, decidiu liberar R$ 4,25 bilhões em “emendas Pix” – mais da metade dos R$ 7,7 bilhões previstos para esse tipo de emenda em 2024 – a tempo de serem usados antes das eleições municipais. Para dar a dimensão do descalabro, o Fundo Eleitoral oficial soma R$ 4,9 bilhões este ano.

Sem o devido escrutínio, nada tem impedido que esse dinheiro seja usado para favorecer candidaturas de prefeitos que concorrem à reeleição ou para turbinar as de aliados, nos casos em que o incumbente já esteja no segundo mandato. Trata-se, portanto, da violação do princípio da paridade de armas nas eleições. Ademais, é uma dupla corrupção, tanto do processo orçamentário, que há de ser absolutamente transparente, como da própria democracia representativa, que deve consagrar pelo voto direto os candidatos da preferência dos eleitores entre aqueles que puderam competir em igualdade de condições. Como se isso não bastasse, as “emendas Pix” ainda servem para enriquecimento ilícito.

O problema, é claro, não está na participação do Congresso no processo decisório que vai definir como o Orçamento será disposto. Há meios apropriados, legais e republicanos de os parlamentares destinarem recursos públicos para cidades e projetos de seu interesse, o que é rigorosamente legítimo numa democracia. O problema é a falta de transparência que está no cerne das “emendas Pix”. Se o interesse primordial dos deputados e senadores fosse destinar verbas orçamentárias para financiar políticas públicas em seus redutos eleitorais, não haveria necessidade de conceber um novo mecanismo para isso, pois aí estão as emendas individuais, de bancada e de comissão. A gênese das “emendas Pix”, portanto, mal esconde a sua finalidade pervertida a priori.

Não foi por outra razão que, em janeiro passado, o TCU determinou que Estados e municípios agraciados com “emendas Pix”, enfim, prestassem contas da disposição desses recursos públicos. Até então, as “emendas Pix”, reveladas em 2020 por este jornal, já somavam impressionantes R$ 11,3 bilhões gastos sem transparência ou fiscalização, como se o Tesouro fosse uma espécie de caixa eletrônico a serviço exclusivo dos parlamentares.

Se o orçamento secreto, também revelado pelo Estadão, já é uma aberração por si só, as “emendas Pix” conseguem ser ainda mais obscenas, num país onde há tantos cidadãos carentes de tudo. Porém, mais do que lamentar esse longevo festim à custa dos contribuintes, é o caso de perguntar: afinal, onde está o Ministério Público Federal?

Editorial / Notas eInformações, O Estado de S. Paulo, em 02.07.24

Todos os olhos estão voltados para Jill Biden após o fracasso no debate contra Trump

Muitos veem a primeira-dama como a única capaz de convencer o presidente a desistir da corrida à reeleição, mas ela não parece estar à altura da tarefa.

A primeira-dama dos Estados Unidos, Jill Biden, com o presidente, Joe Biden, atrás, em comício em Raleigh, Carolina do Norte, na sexta-feira. (Foto: STAN GILLILAND / EFE)| 

Depois das eleições legislativas de novembro de 2022, em que o Partido Democrata obteve um resultado melhor do que o esperado, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, compareceu numa conferência de imprensa na Casa Branca. Quando lhe perguntaram se concorreria à reeleição, ele apontou para a esposa, sentada a poucos passos de distância, e respondeu no plural: “Nossa intenção é concorrer novamente”. 

A primeira-dama, de 73 anos, não é apenas a principal apoiante pessoal do presidente, mas tornou-se a sua conselheira política mais próxima. Ela assumiu um papel crescente na campanha, com intervenções notáveis ​​em comícios. Após a desastrosa intervenção de Biden, de 81 anos, no debate contra Donald Trump na semana passada em Atlanta, muitos a veem como a única pessoa capaz de convencer o presidente a se aposentar. Ela não parece estar à altura da tarefa.

Melania Trump, esposa de Donald Trump, não compareceu ao debate da CNN. Jill Biden estava lá. Ao terminar, apertou a mão do marido inseguro e derrotado para ajudá-lo a descer o único degrau da plataforma onde ocorria o debate, em imagens que viralizaram. Esse apoio físico rapidamente se tornou apoio moral. Ambos vieram cumprimentar um partido democrata, destinado a comemorar o que deveria ter sido o sucesso de Biden em demonstrar ao mundo – mas, sobretudo, aos eleitores – que está em perfeitas condições para renovar o mandato de quatro anos. o chefe da principal potência mundial. Não foi assim.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, desce do palco onde acabava de ocorrer o debate presidencial com a ajuda da primeira-dama, Jill Biden. (Foto: GERALD HERBERT / AP)

No hotel Hyatt Regency, no centro de Atlanta, os participantes tentaram ignorar o que acabaram de ver. Jill Biden pegou o microfone com o marido ao seu lado. “O presidente não fez um ótimo trabalho? Sim”, disse ela aos seguidores, que começaram a gritar: “Mais quatro anos!” “Joe, você fez um ótimo trabalho”, ela continuou. “Você respondeu a todas as perguntas, sabia de todos os fatos. E deixe-me perguntar à multidão: o que Trump fez?” “Mentira!”, ela respondeu junto com o público.

No dia seguinte, Jill Biden fez a abertura do comício do presidente em Raleigh, Carolina do Norte. Ela apareceu com um vestido escuro no qual a palavra “voto” apareceu dezenas de vezes em branco, uma verdadeira declaração de intenções. “Alguns de vocês devem ter ouvido que eu não concordei em me casar com Joe até a quinta vez que ele me pediu, mas a verdade é que eu queria isso desde o início. Vi nele então o mesmo caráter que vejo nele hoje. E embora tenha enfrentado tragédias inimagináveis, o seu otimismo é destemido; sua força, inquebrável, sua esperança, imperturbável”, começou ele.

“Nos últimos anos, Joe ajudou a curar o nosso país, ajudando-nos a todos a recuperar do caos da última administração. Não escolhemos o nosso capítulo na história, mas podemos escolher quem nos guia através dele. “Neste momento, com estes perigos que o mundo enfrenta, não há ninguém que eu preferiria ter sentado no Salão Oval do que o meu marido”, continuou ela. A primeira-dama então se referiu ao presencial. “O que vocês viram ontem no debate foi Joe Biden, um presidente com sua integridade e caráter, que disse a verdade, enquanto Trump contou mentira após mentira após mentira.”

A primeira-dama Jill Biden se dirige aos apoiadores de Joe Biden (atrás) em uma festa em Atlanta após o debate. (Foto: EDWARD M. PIO RODA / EFE)

Depois, num evento de arrecadação de fundos em Nova York, ele voltou ao que aconteceu na quinta-feira: “Vamos conversar sobre o debate de ontem à noite, porque sei que está na sua cabeça. Como Joe disse hoje cedo, ele não é um jovem. E depois do debate de ontem à noite, ele me disse: 'Sabe, Jill, não sei o que aconteceu. Não me senti tão bem. Eu disse: 'Olha, Joe, não vamos deixar 90 minutos definirem os quatro anos em que você é presidente.'

Essa tem sido a posição consistente de Jill Biden. Neste sábado, o presidente e a primeira-dama participaram de mais um evento de arrecadação de fundos na luxuosa mansão do empresário Barry Rosenstein, em East Hampton (Nova York). Entre os anfitriões estavam Sarah Jessica Parker, Matthew Broderick e Michael J. Fox. Jill Biden insistiu em sua mensagem: “Joe não é apenas a pessoa certa para o trabalho. “Ele é a única pessoa para o cargo.”

A família do presidente aproveitou uma reunião de domingo em Camp David para exortá-lo a permanecer na corrida e a lutar apesar do debate. Alguns familiares criticaram a forma como os conselheiros de Biden o prepararam para o encontro presencial, segundo quatro pessoas familiarizadas com as discussões citadas pela AP. Biden passou o dia isolado com a primeira-dama Jill Biden, seus filhos e netos no retiro presidencial em Maryland. Foi uma viagem previamente agendada para uma sessão de fotos com Annie Leibovitz para a próxima Convenção Nacional Democrata.

um casamento longo

Joe e Jill Biden estão casados ​​há 47 anos. Eles se conheceram em março de 1975 graças ao irmão mais novo do presidente, Frank, que coincidiu com ela na Universidade de Delaware. Jill estava pedindo o divórcio de seu primeiro marido. Joe já era senador e tentava se recuperar de uma tragédia familiar. Sua primeira esposa, Neilia, dirigia o Chevy branco dos Bidens em 18 de dezembro de 1972, para pegar a árvore de Natal quando, em um cruzamento, um trailer carregado de espigas de milho os atropelou. Neilia e sua filha de um ano, Naomi, morreram, enquanto seus outros dois filhos, Beau e Hunter, que sofreram uma grave fratura no crânio, ficaram feridos.

Quando o senador ligou para Jill, a primeira coisa que ela perguntou foi: “Quem te deu meu número de telefone?” Era sábado e ele a convidou para sair. Ela disse que já tinha um encontro e Biden pediu que ela o cancelasse. Ela pediu algumas horas. “Ele quebrou o encontro e depois partiu meu coração”, disse o presidente no último Dia dos Namorados em uma conta do TikTok sobre os primeiros encontros de casais. Houve dois anos em que Biden a pediu cinco vezes em casamento. O último foi um ultimato. Ela aceitou. O que a fez duvidar, explicou ela, foi que, depois da tragédia familiar, ela precisava ter certeza de que tudo daria certo, que se eles se casassem seria para sempre, porque Hunter e Beau já haviam sofrido o suficiente. Joe e Jill têm outra filha, Ashley, nascida em 1981.

Jill Biden manteve-se muito discreta durante a maior parte da longa carreira política do marido. Eles moravam em Wilmington, de onde Biden podia viajar diariamente de trem para o Congresso para cumprir suas obrigações como senador. A primeira-dama continuou a trabalhar como professora de inglês quando o marido se tornou vice-presidente de Barack Obama em 2008 e, apesar de ter 73 anos, continuou a trabalhar depois de assumir o cargo de primeira-dama. Ele leciona em uma faculdade comunitária na Virgínia, nos arredores de Washington.

Já participou ativamente da campanha presidencial de 2020. Agora, ele se voltou para a reeleição. Para além da educação e dos direitos das mulheres, o seu papel fundamental é acompanhar o presidente, transmitir energia nos seus eventos de campanha e aconselhá-lo em privado. Considera Trump uma ameaça aos Estados Unidos. Quando Frank Biden falou com seu irmão Joe sobre Jill, para que eles concordassem em um encontro às cegas, ele lhe disse: “Você vai amá-la: ela é linda e não gosta de política”. Talvez isso fosse verdade então.

Miguel Jiménez,o  autor deste artigo, é Correspondente Chefe do EL PAÍS nos Estados Unidos. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 02.07.24

Biden diz que decisão de imunidade de Trump abre “precedente perigoso”

“Qualquer presidente, incluindo Donald Trump, será livre para infringir a lei”, diz ele na Casa Branca

Biden, sobre a imunidade de Trump após a decisão: “O poder do cargo não será mais limitado pela lei, nem mesmo pela Suprema Corte dos Estados Unidos” (Foto de Eizabeth Frantz)

Joe Biden chegou esta segunda-feira a Washington depois de mais de uma semana sem pôr os pés na cidade. Pouco depois de chegar à Casa Branca, compareceu no Cross Hall para um comunicado no qual não admitia perguntas. Nele, ele criticou duramente a decisão proferida nesta segunda-feira pelo Supremo Tribunal, na qual concede ampla imunidade criminal a Donald Trump, e aos presidentes em geral, pelos seus atos oficiais. A sentença, disse ele, não só impede o esclarecimento das responsabilidades de Trump no passado, mas também estabelece um “precedente perigoso” para o futuro.

“Esta nação foi fundada com base no princípio de que na América não existem reis. Todos, somos todos iguais perante a lei. Ninguém, ninguém está acima da lei. Nem mesmo o presidente dos Estados Unidos”, disse Biden, para admitir que esta tese que apoia foi explodida esta segunda-feira com a sentença.

“A decisão de hoje significa quase certamente que praticamente não há limites para o que um presidente pode fazer”, alertou o presidente. “Sei que respeitarei os limites do poder presidencial como tenho feito durante três anos e meio, mas qualquer presidente, incluindo Donald Trump, será agora livre para infringir a lei”, explicou.

“Este é um princípio fundamentalmente novo e um precedente perigoso, porque o poder do cargo não será mais limitado pela lei, nem mesmo pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Os únicos limites serão autoimpostos, levantados apenas pelo presidente”, alertou.

O presidente referiu-se ao voto dissidente dos juízes progressistas, que votaram contra a sentença e alertaram para os cenários de pesadelo que poderiam abrir-se com a nova doutrina se um presidente decidir levar a nova doutrina ao limite.

O julgamento de Trump

Biden também manifestou a sua preocupação pelo facto de as responsabilidades que correspondiam ao seu antecessor pela tentativa de subverter o resultado eleitoral de 2020 não serem esclarecidas e purificadas. A resistência de Donald Trump em aceitar a derrota levou ao assalto ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. O homem que enviou aquela multidão ao Capitólio dos Estados Unidos enfrenta uma possível condenação criminal pelo que aconteceu naquele dia. “O povo americano merece ter uma resposta no tribunal antes das próximas eleições”, disse Biden. “Agora, devido à decisão de hoje, isso é muito, muito improvável. “É um terrível desserviço ao povo desta nação”, acrescentou.

Como, previsivelmente, não haverá julgamento nem sentença, Biden apela aos eleitores. “O povo americano deve decidir se o ataque de Donald Trump à nossa democracia em 6 de janeiro o torna inadequado para o cargo mais alto do país”, disse ele. “Talvez o mais importante seja que o povo americano decida se quer confiar mais uma vez a presidência a Donald Trump, sabendo agora que ele terá mais coragem para fazer o que lhe agrada, o que quer que queira fazer”, acrescentou. antes de manifestar o seu desacordo com a decisão do Supremo Tribunal: “O presidente é agora um rei acima da lei. Portanto, o povo americano deve discordar. Eu discordo.”

A intervenção de Biden, de 81 anos, foi a sua primeira na Casa Branca desde o debate da última quinta-feira em Atlanta, no qual teve lapsos, hesitações e problemas para terminar algumas frases, o que corroeu a percepção que os eleitores têm sobre a sua capacidade de enfrentar uma segunda. prazo. Desde aquele dia, a lupa foi colocada em cada uma de suas aparições públicas.

Na sexta-feira, em Raleigh (Carolina do Norte), teve uma intervenção mais enérgica, embora ainda com alguma tosse, na qual contou com a ajuda de ecrãs para a sua fala. Esta segunda-feira, na Casa Branca, a tosse e os problemas de voz que tanto o atrapalharam no debate pareciam ter ficado para trás. Mesmo assim, ele novamente contou com a ajuda de telas para ler seu depoimento e não respondeu nenhuma pergunta ao finalizar.

Os pesos pesados ​​democratas cerraram fileiras ao presidente e reafirmaram que ele é o seu candidato para derrotar Donald Trump, de 78 anos, nas eleições de 5 de novembro. Biden tenta mostrar um contraste entre os dois candidatos, esta segunda-feira, no que diz respeito ao respeito pela lei e pelo Estado de direito.

Miguel Jiménez, o autor deste texto, é Correspondente-Chefe do EL PAÍS nos Estados Unidos. Publicado originalmente no ELPAÍS,em 02.07.24

A sentença de Trump daria imunidade para assassinatos, subornos e golpes de Estado, segundo os juízes progressistas da Suprema Corte

No seu voto divergente, os juízes expressam “medo” pelo futuro da democracia após uma decisão que transforma o ex-presidente num “rei acima da lei”.

Donald Trump durante um comício na Filadélfia, 22 de junho. (ANNA MONEYMAKER  / GETTY IMAGES)

A decisão do Supremo Tribunal que concede ampla imunidade a Donald Trump pelos seus atos como presidente marca um antes e um depois no regime jurídico aplicável ao inquilino da Casa Branca. A maioria conservadora do Supremo Tribunal isenta o presidente de responsabilidade no exercício da sua autoridade constitucional e declara-o presumivelmente imune em todos os actos oficiais. Isso, segundo os três juízes progressistas do Supremo Tribunal, abre caminho a “cenários de pesadelo” em que um presidente pode ser declarado imune até pelo assassinato de rivais políticos, pela aceitação de subornos e até pela realização de um golpe de Estado. estado. O presidente, desde a polêmica sentença, tornou-se um “rei acima da lei”. Por esta razão, expressam o seu “medo pela democracia”.

A principal opinião divergente foi escrita pela juíza Sonia Sotomayor e apoiada por Elena Kagan e Ketanji Brown Jackson. Está tudo escrito em termos muito duros. “O presidente dos Estados Unidos é a pessoa mais poderosa do país e, possivelmente, do mundo. “Quando você usa seus poderes oficiais de qualquer forma, de acordo com o raciocínio da maioria, você estará agora protegido de processo criminal”, diz ele.

“Ordenar ao Navy Seal Team 6 [forças especiais] que assassine um rival político? Imune. Organizar um golpe militar para se manter no poder? Imune. Você aceita suborno em troca de perdão? Imune. Imune, imune, imune. Deixemos o presidente infringir a lei, deixemos que ele explore as armadilhas do seu cargo para ganho pessoal, deixemos que ele use o seu poder oficial para propósitos malignos. Porque se você soubesse que um dia poderia enfrentar a responsabilidade por infringir a lei, não seria tão ousado e corajoso quanto gostaríamos que fosse. Esta é a mensagem da maioria hoje”, observaram os juízes na votação privada desta segunda-feira.

“Cenários de pesadelo”

“Mesmo que estes cenários de pesadelo nunca se concretizem, e rezo para que nunca aconteçam, o estrago já foi feito. A relação entre o presidente e as pessoas que ele serve mudou irrevogavelmente. Em cada uso do poder oficial, o presidente é agora um rei acima da lei”, acrescentam.

Os juízes enfatizam se isso é descrito como presuntivo ou absoluto, segundo a tese da maioria, “o uso por um presidente de qualquer poder oficial para qualquer fim, mesmo o mais corrupto, é imune a processo”. “Isso é tão ruim quanto parece e não tem fundamento”, dizem eles.

Além disso, criticam outro aspecto da sentença que também serve para blindar Donald Trump e dificultar a sua acusação pelos alegados crimes que cometeu para alterar os resultados das eleições de 2020. que o presidente está imune não pode desempenhar qualquer papel em qualquer processo criminal contra ele. “Esta declaração, que impedirá o Governo de utilizar os atos oficiais de um presidente para provar conhecimento ou intenção na acusação de crimes privados, não tem sentido”, apontam.

A controversa decisão da maioria, escrita pelo Presidente do Supremo Tribunal John Roberts, sustenta que “o presidente não pode ser processado por exercer os seus poderes constitucionais primários e tem direito, no mínimo, a imunidade presuntiva de promotores por todos os seus atos”. Afirma que, desde que o presidente aja de uma forma que “não exceda manifesta ou palpavelmente [sua] autoridade”, ele estará tomando medidas oficiais.

Manifestantes anti-Trump, esta segunda-feira em frente à sede do Supremo Tribunal, em Washington. (LEAH MILLIS REUTERS)

A maioria conservadora tenta qualificar o conteúdo da decisão com alguns esclarecimentos e obviedades, como que “o presidente não goza de imunidade pelos seus atos não oficiais”, que “nem tudo o que o presidente faz é oficial” e que a imunidade “se aplica igualmente a todos os ocupantes do Salão Oval, independentemente de política ou partido.” A decisão beneficia diretamente Trump, mas parece que os juízes são obrigados a dizer que não se trata de uma decisão feita à medida dele.

Nenhum outro presidente precisou apelar para essa imunidade. O voto dissidente recorda como o presidente Gerald Ford concedeu perdão a Richard Nixon após a sua demissão devido ao caso Watergate. Tanto o perdão de Ford como a aceitação do mesmo por Nixon "basearam-se necessariamente no entendimento de que o ex-presidente enfrentava uma possível responsabilidade criminal", explicam.

“Nunca na história da nossa República um presidente teve motivos para acreditar que estaria imune a processos criminais se utilizasse as circunstâncias do seu cargo para violar a lei penal. No entanto, a partir de agora, todos os ex-presidentes gozarão dessa imunidade. Se o ocupante desse cargo abusar do poder oficial para ganho pessoal, a lei penal que o resto de nós deve respeitar não proporcionará protecção. Temendo pela nossa democracia, discordo”, conclui seu voto privado.

As “chaves da ditadura”

A sentença surge numa altura em que Donald Trump ambiciona ser eleito para um segundo mandato nas eleições de 5 de novembro. Na verdade, com a demora na resolução do caso e o significado da sua decisão, os juízes do Supremo Tribunal abriram o caminho a Trump. Se somarmos a isso a sua vitória no debate da semana passada em Atlanta e as dúvidas que semeou entre os democratas sobre a capacidade de Joe Biden de enfrentar um segundo mandato, as probabilidades de Trump regressar à Casa Branca são elevadas. Agora, ele o faria com esse tipo de proteção concedida pelos juízes, inclusive pelos três que ele próprio nomeou.

“Eles acabaram de entregar a Donald Trump as chaves de uma ditadura”, disse o vice-diretor sênior da campanha de Biden, Quentin Fulks, em uma ligação com repórteres. “A Suprema Corte acaba de dar permissão a Trump para assassinar e prender qualquer pessoa que ele queira que ganhe o poder”, acrescentou.

“O tribunal de Trump deixou o nosso país vulnerável a ataques internos. Removeu as barreiras que nos protegem de um presidente que tenta ser um ditador, deixando-nos aos caprichos de quem está no poder. “Agora, mais do que nunca, devemos nos unir e evitar que Donald Trump volte a ocupar essa posição”, acrescentou Fulks.

Miguel Jiménez, o autor deste artigo,  é Correspondente-chefe do EL PAÍS nos Estados Unidos. Desenvolveu sua carreira no EL PAÍS, onde foi editor-chefe de Economia e Negócios, vice-diretor e vice-diretor, e no jornal econômico Cinco Días, do qual foi diretor. Publicado originalmente no ELPAÍS,em 02.07.24


Como decisão da Suprema Corte sobre imunidade de Trump afeta disputa eleitoral pela Presidência dos EUA

A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que ex-presidentes, como Donald Trump, têm direito à imunidade judicial em acusações criminais por "atos oficiais" praticados durante o mandato, mas não têm imunidade por atos não oficiais.

Legenda da foto,Trump é novamente candidato à Presidência dos Estados Unidos (Reuters)

A decisão histórica significa que as acusações de que Trump tentou interferir no resultado das eleições de 2020 e incitou a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 devem retornar a um tribunal de instância inferior, que vai decidir se essas ações foram atos oficiais ou não.

Os promotores alegam que Trump pressionou as autoridades para reverter o resultado da eleição que ele perdeu para Joe Biden, e de que teria tentado explorar a invasão do Capitólio em um esforço para permanecer no poder. Segundo a decisão, essas ações estariam dentro do que consideram "oficiais", embora essa classificação deva ser decidida por outros tibunais inferiores.

As tentativas de Trump de pressionar o então vice-presidente Mike Pence a não certificar a vitória eleitoral de Joe Biden – uma parte fundamental do caso do procurador especial Jack Smith contra ele – são o tipo de ação oficial sujeita a um padrão mais elevado de revisão legal.

Trump é novamente candidato a presidente nas eleições deste ano. Com a decisão da Suprema Corte, é possível que esses casos só sejam julgados após a eleição de novembro. Para analistas políticos, isso pode ser considerado uma vitória para Trump, pois ele não enfrentará o desgaste de uma condenação até o pleito.

O ex-presidente afirmou que a decisão era "uma grande vitória para nossa constituição e democracia" e que se sentia "orgulhoso de ser americano".

O tribunal considerou que Trump tem imunidade total para atos oficiais como presidente relacionados com os seus principais deveres constitucionais. Além disso, existe a presunção de imunidade para quaisquer outros atos oficiais

Agora, os procuradores terão de trabalhar muito mais para levar os casos a tribunais inferiores, avalia Anthony Zurcher, correspondente da BBC nos Estados Unidos.

A decisão foi por 6 votos a favor e 3 contra. A juíza Sonia Sotomayor ficou entre os que se opuseram à medida.

Ela disse que a imunidade a Trump deixou com "medo pela nossa democracia" e "o presidente é agora um rei acima da lei".

Sotomayor disse que um presidente estaria agora "protegido se ordenasse que a Marinha assassinasse um rival político, organizasse um golpe militar dissidente para manter o poder ou aceitar subornos em troca de perdão."

"Mesmo que esses cenários de pesadelo nunca aconteçam, e rezo para que nunca aconteçam, o estrago já foi feito", escreveu ela.

Segundo a decisão, as comunicações de Trump com funcionários do Departamento de Justiça têm imunidade absoluta.

O presidente da Suprema Corte, John Roberts, delineou orientações que poderiam ser particularmente prejudiciais para o caso da acusação.

Roberts explicou que os presidentes "precisam de uma imunidade tão ampla para ações oficiais porque a ameaça de processo criminal – e o peculiar opróbrio público associado aos processos penais" – pode 'distorcer' a tomada de decisões presidenciais."

O tribunal acrescentou, no entanto, que Trump não tem imunidade para ações não oficiais, o que significa que ainda poderá enfrentar algumas acusações.

Em maio, Trump se tornou o primeiro ex-presidente dos Estados Unidos a ser condenado por um crime. Ele foi condenado por falsificar registros financeiros para ocultar um pagamento secreto feito à ex-atriz pornô Stormy Daniels, pouco antes das eleições de 2016.

A condenação inclui ainda uma nova aplicação de leis estaduais e federais sobre fraude e financiamento de campanha.

Trump garantiu a nomeação presidencial republicana durante as primárias no início deste ano e deverá liderar a chapa do partido quando a sigla realizar a sua convenção nacional, em julho.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 02.07.24

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Câmara quer esterilizar delação premiada

Instrumento pode ser aperfeiçoado, mas projeto de lei gera prejuízos tanto para investigados como para investigadores

Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados - Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

A Câmara dos Deputados anda às voltas com um projeto de lei destinado a esterilizar as chamadas delações premiadas, transformando-as em um instrumento jurídico sem nenhuma aplicação prática.

Iniciativas com esse propósito não são novidade. Em 2016, por exemplo, o então deputado Wadih Damous (PT-RJ) —atual secretário Nacional do Consumidor no governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva— propôs vedar delações feitas por acusados ou indiciados que estejam presos.

Em 2023, o deputado Luciano Amaral (PV-AL) apresentou um texto bem mais enxuto e com redação diferente, mas preservando a mesma finalidade: considerar imprestáveis os acordos assinados por colaboradores sob efeito de privação cautelar de liberdade —isto é, prisão preventiva, temporária ou em flagrante.

Nas últimas semanas, líderes de 13 partidos do centro à direita, além do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), deitaram olhos compridos ao projeto de Amaral.

Todos podem argumentar que pretendem combater abusos da polícia, do Ministério Público e do próprio Judiciário, mas seriam necessárias doses cavalares de ingenuidade para acreditar nisso. O que eles parecem de fato querer é uma blindagem contra essa importante ferramenta investigativa.

Regulamentada pela Lei das Organizações Criminosas, de 2013, a colaboração premiada se apoia na teoria dos jogos para destrinchar esquemas ilegais que, de outra forma, restariam impunes. Seu mecanismo é simples: oferece-se ao investigado uma recompensa para ele revelar o que sabe.

Logo se vê que a delação cumpre uma função dupla. De um lado, auxilia na apuração do crime, pois o colaborador aponta caminhos e fornece indícios que talvez jamais fossem encontrados; de outro, opera como arma de defesa, já que a barganha inclui vantagens no cumprimento da pena.

A mudança que os deputados cogitam fragiliza os dois polos, porque, se aprovada, tirará do indivíduo preso a chance de amenizar sua própria situação e reduzirá os estímulos para alguém entregar os comparsas, sobretudo os mais poderosos. Ou seja, os parlamentares ameaçam subverter a lógica por trás da colaboração premiada.

Não que inexistam problemas no uso dessa ferramenta no Brasil. Há boas razões para supor que, em alguns casos, prolongaram-se prisões preventivas a fim de forçar a negociação de delações.

Daí não decorre, porém, que a reforma em tramitação na Câmara seja a solução apropriada. Longe disso, aliás. De uso recente, a colaboração é um instrumento jurídico que ainda precisa ser afiado, mas não destruído.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 12.06.24 (editoriais@grupofolha.com.br)

Ordem e desordem tributária

Se a carne não é coisa de pobre, e por isso não entra na cesta básica, é um ardil inverso dizer que cerveja não é coisa de álcool, para fazê-la barata

Viver é que vai virar pecado se proteína não entrar na cesta básica, cerveja for considerada menos álcool e o mantra “chegou na sua mão, andou de caminhão” perder o sentido pela associação do diesel com transgressão sanitária e ambiental. Enquanto o ministro vai a Roma convencer o papa de que tributos cobrados por César devem ser maiores do que os devidos a Deus, lembro o zelo da mãe de Manoel de Barros para com o filho sensível: “Menino, você vai carregar água na peneira a vida toda”. Imposto frágil com desculpa dá desordem à exceção.

O poeta do Pantanal não é um poeta à toa. Nunca escondeu não ter habilidade para clarezas, embora seja cristalina sua opinião de que a importância de uma coisa é medida pelo encantamento que a coisa produz em nós. Coisa meio difícil, reconheço, em país onde os rios correm para as nascentes. Má tradição quando a lei do imposto ousar definir que só rico deve comer carne, que cerveja é álcool leve e que é pecado ônibus e caminhão usarem o combustível disponível nas condições atuais dos motores do País. Realismo é imaginar pelo menos carne moída, asa de frango e tilápia na cesta básica. Mas realismo fantástico é ver o diesel barato vendido em lata nos Rock&Lolla&Country urbanos e suburbanos e a cerveja patrocinada servida em serpentina na bomba de gasolina.

Se democracia não é neologismo, o cheio pode ser vazio, melhor estimular o que não faz mal. O poeta ganhou prêmios inventando palavras e abastecendo o abandono de esperança. Compensa o infortúnio dos necessitados de proteína, transporte e abstinência sugerir que catástrofe é quando as coisas continuam como estão.

A maior porcaria é desejar sem ser preciso. O Brasil político, desnivelado pelas injustiças e o destino, só se sente protegido pela visão carnavalesca da justiça. Direitos, direitos, bradam juízes e procuradores, sem dizer que, inconscientemente, pedem é mais protetores dos direitos. Sem interesse em praticar o costume dos vencedores, o Brasil não vê o imposto como empréstimo da sociedade ao governo para realizar suas funções. O que exige consentimento e sensatez no uso do poder de tributar. E desconfiar do adulador com seu burro carregado de ouro.

Nenhuma isenção pode ser um desperdício, ou privilégio, uma insignificância. Mas, quando a situação não está decidida, pensando melhor, ainda há tempo de impedir o erro. Governar com múltiplos partidos vazios e não tendo o governo um centro de gravidade próprio, é impossível sintonizar suas decisões com a necessidade geral. Ainda mais quando populismos pontuais, muitos nadas, movem os Três Poderes. O Brasil precisa voltar a ser uma república compreensível. Boa oportunidade num governo de dois constituintes. Interromper a sina da Federação de Estados inimigos, cada um fazendo o que decide fazer. A União não é uma cômoda com 27 gavetas.

Melhor que nomear é aludir, diz o poeta. Que tal aceitar as recentes recomendações do Conselho Nacional de Saúde aos Ministérios da Fazenda e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; presidências do Senado e da Câmara; Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária? Se nossa sociedade tem compromisso com o futuro, é bom saber que imposto seletivo não freia o malefício da soberba de chamar álcool de bebida leve. Bebida alcoólica é uma coisa só, alíquota única faz bem à saúde. A vantagem ainda é que o País vai arrecadar mais parando de pagar cerveja para todo mundo.

Parlamentares não devem ler nada que não exija esforço ou não exija nada. A vida são deveres. Legisladores, juízes e governantes não devem expressar com mordacidade ou de forma intensa demais sua emoção. Melhor também ficar alerta a natureza para enfrentar tributariamente, de forma não improvisada, tragédia desoladora como a que se abateu sobre o Rio Grande do Sul. Não somos um país que mora no fim de um lugar qualquer.

É hedonismo demais permitir publicidade de cerveja a qualquer hora e lugar, visando a gente de qualquer idade. É dose, seduzir usuários, como tabaco da terra de Marlboro, para se tornarem social e tolerantemente responsáveis pela cifra que faz a cerveja monopólio de 90% do consumo de álcool no País. Organização e ordem é o sonho de uma boa reforma tributária que pode fazer o Estado deixar de apoiar o esdrúxulo costume alimentar do povo que tolera ver o álcool mais prestigiado do que a carne. Ora, se a carne não é coisa de pobre, e por isso não entra na cesta básica, é um ardil inverso dizer que cerveja não é coisa de álcool, para fazê-la barata.

A reforma tributária precisa também estar atenta à perda da razão da máxima do economista John Maynard Keynes, que dizia que no longo prazo estaremos todos mortos. Hoje, a equação é de que no longo prazo ainda estaremos todos vivos. Tributação justa faz a expectativa econômica se harmonizar com a expectativa de vida. Prisioneiro de escolhas limitadas, ninguém vai conseguir desbadalar o sino do mau costume. No Vaticano, Francisco deve ter alertado a Fernando Hadadd: ministro, sabemos que tudo o que acontece no mundo é vontade divina, mas, se der errado, quem vai levar a culpa é você.

Paulo Delgado, o autor deste artigo, é sociólogo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12.06.24

Pragmatismo como arma

Visando aos interesses estratégicos do País, o comandante do Exército defende parceria com os chineses, mas mostra que para isso não é preciso confrontar o Ocidente, como faz Lula

General Tomás Paiva, Comandante do Exército

Num mundo repleto de tensões – reais e imaginárias –, o Brasil só tem a ganhar quando os arroubos verbais saem de cena, substituídos pelo realismo pragmático das relações comerciais e diplomáticas. A recente entrevista ao Estadão do comandante do Exército, general Tomás Paiva, é uma evidência cristalina dessa certeza. O general defendeu a ampliação de parcerias estratégicas com a China e outros países do Brics, grupo que reúne também nações como Rússia, Índia, África do Sul e, mais recentemente, Arábia Saudita, Irã, Emirados Árabes, Etiópia e Egito. Também destacou o foco da visita que fará aos chineses no próximo mês: capacidades militares e ciência e tecnologia. Os chineses, ele lembrou, estão avançados na defesa cibernética e na base industrial de sistemas de armas – avanços que permitem a um país proteger sua soberania com mais tecnologia e com menos efetivo. Mas Tomás Paiva não precisou seguir a cartilha do presidente Lula da Silva e fazer apologia do tal “Sul Global” nem inscrever o Brasil na vanguarda da luta contra os valores ocidentais, muito menos demonstrar hostilidade aos Estados Unidos e alinhamento a tudo o que lhe é antagônico.

O comandante do Exército fez o que se espera de chefes de instituições de Estado: a observância dos interesses estratégicos do País, sem sectarismo ou politização indevida. Segundo o próprio general, o Ministério das Relações Exteriores tinha interesse na aproximação do Exército com os países do Brics. Seu roteiro do mês que vem, contudo, não envolverá a Rússia. Como deixou claro, não visitará os russos por causa do conflito com a Ucrânia, outro ponto de distância que manteve em relação aos arquitetos da política externa lulopetista. Melhor assim. Na entrevista, demonstrou estar alinhado com o que há de mais qualificado nos quadros técnicos da diplomacia brasileira – hoje, infelizmente, tisnada pela guerra imaginária que Lula parece travar, tendo como companheiros de armas notórias ditaduras, como a própria China, a Rússia, o Irã e a Venezuela. Mas, diferentemente de Lula, o general opta pelo pragmatismo em nome da cooperação militar.

Essa distinção se faz necessária por uma razão: na nova ordem global, características distintivas do Ocidente – democracia, economia de mercado e globalização – têm sido confrontadas por regimes autocráticos que buscam reviver o modelo que põe o Estado e a soberania nacional acima de todas as coisas, à custa de liberdades individuais, direitos humanos e valores universais. Esses valores costumam ser apresentados por essa turma como armas retóricas das democracias liberais para prolongar sua supremacia. Nesse ambiente turvo, o grande risco é o Brasil imiscuir-se numa espécie de aggiornamento do “Terceiro Mundo” dos tempos da guerra fria, em nome da ambição de Lula de credenciar-se como um líder político global do “Sul Global”, em vez de o País colocar a serviço dos seus interesses suas vantagens comparativas, com sutileza e credibilidade, como sugere a tradição diplomática brasileira.

Nossos vizinhos latino-americanos assim costumam definir a ação diplomática brasileira: Itamaraty no improvisa. É uma ideia-força que sintetiza a percepção de que o Itamaraty soube manter a continuidade da política externa e renová-la com o passar do tempo. Com Lula da Silva e Jair Bolsonaro, contudo, interesses nacionais se fundiram com interesses políticos e interferências ideológicas e partidárias. Como o próprio general Tomás Paiva mostrou na entrevista ao Estadão, há um longo caminho de aprendizado e benefícios com o conhecimento chinês em matéria militar. Tal lição serve para outras áreas: o Brasil está atrasado nos avanços científicos e tecnológicos e precisa recuperar o tempo perdido para entrar na corrida da pesquisa e do desenvolvimento na inovação, no 5G e na inteligência artificial – para citar alguns poucos e complexos exemplos. Um campo minado no qual só se prospera com pragmatismo, conhecimento, equilíbrio e equidistância, não com ideologia e confrontação.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 12.06.24

terça-feira, 11 de junho de 2024

Dia dos Namorados, dia dos solteiros

"Tenho amigos e seguidores que me contam as delícias, ilusões e decepções de estar solteiro hoje com 50, 60 anos"

Em mais uma manifestação da prodigiosa sorte que me acompanha pela vida, um mês e meio depois de terminar meu casamento, aos 78 anos, encontrei um novo amor, que também havia acabado de se separar. Não há acaso nem coincidências, talvez sincronicidade, artes do destino. O fato é que vivi só um mês e meio solteiro, e não estou atualizado sobre a “solteirice moderna”, mas tenho amigos e seguidores que me contam as delícias, ilusões e decepções de estar solteiro hoje com 50, 60 anos.

Como o meu amigo Charles, 60, coroa bonitão em plena forma, produtor cultural, também recém-separado à mesma época que eu, e ainda solteiro depois de um ano e meio. Primeiro veio a euforia da liberdade, da libertação do que estava fazendo-lhe mal, de poder fazer o que quiser sem dar satisfação a ninguém. Entrando em aplicativos de encontros, alimentando contatinhos, solto na noite, procurando nos bares e nos shows, na praia. Às vezes consegue pegar alguém, para um vinho, sexo e alegria, mas depois a sensação é de vazio: quanto mais come, mais fome tem, e não é de sexo. É de nexo. Na sua vida, seus objetivos e propósitos, dar fim às ilusões. Encontrar alguém que, além de um bom sexo, que é mais fácil de encontrar do que bons sentimentos, também valha a pena acompanhar, que aquilo tenha algum futuro, para não seguir gastando tempo e energia em vão.

Minha seguidora no Instagram, Denise, 50, psicanalista, bonitona e gostosona, também solteira depois de alguns anos de casamento, não estava feliz na relação, por motivos que nem ela sabia direito, e, embora viva muito bem consigo mesma, também me diz no Direct que está dura a vida solo. Como ela, muitas mulheres estão se queixando nas redes sociais. Primeiro, os homens estão muito babacas, e, depois, os mais interessantes que aparecem são gays.

Mas para mulheres é bem fácil encontrar homens dispostos, parece que todos estão sempre, não faltam candidatos. Mas, depois das primeiras ficadas, desfrutando a liberdade, ela descobriu que os caras só queriam mesmo comê-la, e ela se considera boa nisso, mas nem quiseram repetir, não quiseram aprofundar nada, nem conhecê-la melhor: querem outra.

Não que fosse ruim para ela, fez sua atuação, se divertiu, gozou, mas não basta. No fim, se sentiu vazia. Ela quer romance, carinho, diálogo, possibilidades, o cara já vai embora, feliz e saciado. Não vai nem telefonar no dia seguinte. E por que as mulheres não podem ligar no dia seguinte, dizerem que foi bom, que querem ver de novo? Medo de o cara não querer? Rejeição dói.

Conclusão: estava escolhendo os homens errados, pela aparência física, no Tinder ou na academia ou no barzinho. E então foi se tornando muito exigente, priorizando qualidades humanas e atraída por inteligência, talento, integridade. Mas ficou tão seletiva que não encontra ninguém à altura rsrs — ou, como ela diz, depois que se valorizou não come mais ninguém.

Estou pensando em apresentar o Charles à Denise, vai que dá match.

Feliz Dia dos Namorados a todos.

Nelson Motta, o autor desta crônica, é compositor popular. Publicada originalmente n’O Globo, em 07.06.24

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Alerta: sistema de Justiça em risco

Danos podem conduzir à absoluta anomia e à distopia, estágios que antecedem o caos social e a ruptura do Estado Democrático de Direito

São inúmeros e complexos os problemas que angustiam a sociedade brasileira nos nossos dias. Incluo o sistema de Justiça como uma dessas cruciais questões e que está necessitando de atenção e de reflexão para que haja a correção urgente de seus rumos. A urgência de mobilização das mentes e dos espíritos lúcidos se justifica para se evitar o agravamento, a perpetuação e a irreversibilidade de uma crise de consequências desastrosas para a Nação.

Talvez a extensão e as consequências dessa crise já instaurada não estejam bem assimiladas. No entanto, os seus efeitos poderão estar em marcha rápida e de difícil contenção, caso medidas de ajuste e correção, alterações normativas e até mudanças de comportamento não forem efetuadas.

Não se desconhece que a solidez das estruturas de uma sociedade e de uma nação depende de um Poder Judiciário independente, pronto para atuar nos conflitos de quaisquer naturezas, com o escopo primordial de manter a paz e a harmonia em sociedade. Em resumo, é fundamental que o sistema de Justiça atue distante dos interesses em questão, e tenha como premissa que os seus integrantes se mantenham independentes e imparciais no que tange às questões que poderão decidir.

Cumpre salientar que esse sistema está sob a responsabilidade direta de juízes, advogados e promotores. No entanto, um rol de outros profissionais o compõe atuando de forma indireta, mas de considerável importância, para o mister de aplicar o Direito para distribuir justiça. Assim, delegados, agentes policiais, peritos médicos, engenheiros, contadores, auditores e tantos outros se empenham naquela missão fundamental dentro do Estado Democrático de Direito.

Quando afirmo que em minha opinião o sistema de Justiça do Brasil está correndo riscos, me refiro ao cumprimento de seus objetivos primordiais. Como já dito eles se referem à aplicação do Direito, de forma isenta e imparcial. Isso significa distante de eventuais influências de partes interessadas no litígio; indiferente à opinião pública; livre de pressões da mídia e de segmentos sociais específicos. O juiz deve contas apenas a sua consciência e a sua convicção haurida da análise sobre o caso em julgamento.

Uma conduta recomendada e adotada tradicionalmente para evitar a exposição dos magistrados às influências externas sempre foi o recato e a discrição. No entanto, de tempos a esta data alguns integrantes da Justiça não possuem nenhum comedimento em face da imprensa televisada e se manifestam até sobre casos que serão por eles julgados. A máxima não obedecida é que “juiz só fala nos autos”, assim deveria ser. Está se esquecendo de que o processo, embora seja público, não é para o público.

Outro aspecto que está rompendo uma tradição e um saudável comportamento dos juízes refere-se à distância que mantinham das partes e da sociedade em geral. O juiz não era e nem deveria ser um ermitão, mas seu comportamento comedido e recatado colaborava para gerar respeitabilidade. Hoje, alguns juízes estão mantendo um relacionamento com segmentos sociais que pode ser mal interpretado. Eles, com certeza, consideram esses encontros como uma manifestação normal de convívio, já os seus interlocutores podem estar motivados por interesses outros. A banalização desses encontros traz um preocupante desgaste do Poder Judiciário perante a opinião pública.

Há ainda a ser realçada a quebra de procedimentos integrantes da própria estrutura do Poder Judiciário. Dentre elas realço a desobediência ao princípio do colegiado imperante nos órgãos de segundo grau da Justiça. Em nome do acúmulo de processos, os tribunais superiores adotaram as chamadas decisões monocráticas. São elas a própria negação da razão dos tribunais. Esses foram criados para que vários juízes decidissem uma mesma questão, e não apenas um deles.

Distorções também são encontradas na advocacia e no Ministério Público, que atingem a higidez do sistema.

Atualmente nós temos por volta de um 1,4 milhão de advogados e 1,9 mil cursos de Direito. Esses absurdos excessos são os responsáveis pela queda da qualidade da administração da Justiça em todos os seus níveis.

Saliente-se, o número de advogados seria superior caso não houvesse o exame de ordem que reprova por volta de 70% dos inscritos.

Assiste-se, ademais, à parte do Ministério Público como instituição não voltada para a perseguição do justo, mas interessada em acusar de forma descriteriosa e obstinada, tendo provas, não as tendo ou até contra elas.

Todos esses aspectos e vários outros precisam receber uma reavaliação e uma correção quanto as suas consequências, pois poderão causar danos irremediáveis ao sistema de Justiça. Tais danos podem se resumir a um único: perda do respeito e do acatamento da sociedade brasileira em relação aos órgãos e aos agentes do Judiciário. Tal fenômeno poderá conduzir à absoluta anomia e à distopia, estágios que antecedem o caos social e a ruptura do Estado Democrático de Direito.

António Cláudio Mariz de Oliveira, o autor deste artigo, é advogado. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 10.06.24

A política da aversão

Pesquisa revela que o ódio se tornou um dos grandes motivadores para o envolvimento dos cidadãos em ações político-partidárias. Nessa ambição de eliminar o contraditório, todos perecerão

É lamentável constatar que o ódio tenha se tornado uma grande motivação para o envolvimento dos cidadãos em ações político-partidárias no País. Uma pesquisa conduzida por cientistas políticos da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e da Universidade de São Paulo (USP), publicada pelo Estadão no dia 1.º passado, revelou que, entre os filiados a partidos políticos no Brasil, cerca de 70%, nada menos, consideram que a aversão e o ódio a seus adversários políticos, em algum grau, foram fatores relevantes para sua decisão de ingressar numa determinada legenda.

O resultado da pesquisa – de abrangência nacional, realizada com filiados e dirigentes de 32 partidos nos anos de 2020, 2022 e 2023 – partiu de uma arguta curiosidade de seus autores. Eles pretendiam compreender por que, afinal, o número de filiações vem crescendo no País à medida que também cresce um sentimento de descrença em relação não só à política, mas aos políticos em geral. “Descobrimos que o ódio e a rejeição do adversário motivam não só a filiação, mas também são fatores que tornam os filiados ainda mais engajados”, disse ao Estadão o pesquisador Pedro Paulo de Assis, da USP.

Do total de respondentes, 36% disseram que se tornam “altamente engajados” nas atividades de seu partido quando se veem diante da possibilidade de vitória da legenda que mais rejeitam e odeiam. Os pesquisadores classificaram esse comportamento como “engajamento pelo ódio”, que vem à frente de comportamentos políticos tidos como tradicionais, como, por exemplo, a ação motivada pelo desejo de influenciar o processo decisório interno das legendas (32%). Ao menos por enquanto, o “engajamento pelo ódio” só fica atrás do empenho dos filiados pelo triunfo eleitoral de suas próprias siglas (41%).

Isso só acontece porque, há um bom tempo, se estimula no Brasil, mas não só, uma nefasta transfiguração da política. De meio civilizado para a concertação de interesses sociais divergentes, a política passou a ser tratada como uma guerra existencial. Ou, dito de outra forma, um processo de vinculação emocional entre membros de uma tribo, para não dizer seita, que passam a enxergar sua sobrevivência – seja no debate público, seja nas vias de acesso às esferas institucionais de poder – a partir da eliminação política e moral, quando não física, de seus adversários.

Nessa disputa de vida ou morte, os que não comungam das mesmas ideias, aspirações e valores são tratados como inimigos a serem abatidos num campo de batalha. Hoje, felizmente, essa guerra campal é travada no campo simbólico. Sabe-se lá até quando. Ora, isso não é outra coisa senão o fim da política – e, consequentemente, da própria democracia representativa tal como a conhecemos, como o pacto social materializado na Constituição de 1988. Não há, evidentemente, como isso possa dar em bom lugar.

Qualquer sociedade civilizada abraça e encoraja as divergências entre os cidadãos, não as repele, muito menos as desestimula. A política, nesse sentido, exerce um papel central na vida nacional, pois, malgrado a miríade de dissensões que há entre eles, os indivíduos se reconhecem como concidadãos e, nessa condição, buscam alcançar objetivos minimamente comuns. Os partidos sempre foram vistos como os principais organizadores desses interesses em negociação. Agora, ao que parece, tornaram-se grandes usinas de um ódio que, no limite, pode levar à sua extinção como um dos principais mediadores do debate público.

Eis uma grande armadilha. No curtíssimo prazo, essa ação política movida a bile pode até favorecer as legendas por fomentar a filiação partidária, gerar engajamento e, consequentemente, contribuir para um eventual aumento de bancadas federais – o que está diretamente relacionado com o tamanho do quinhão do Orçamento público que os partidos vão receber. Adiante, porém, esse estado de guerra existencial não tem outro destino a não ser o ocaso da política desenvolvida e, a reboque, do valor dos próprios partidos.

Editorial / Notas e Informações, O Esrtado de S. Paulo, em 10.06.24