terça-feira, 2 de julho de 2024

Todos os olhos estão voltados para Jill Biden após o fracasso no debate contra Trump

Muitos veem a primeira-dama como a única capaz de convencer o presidente a desistir da corrida à reeleição, mas ela não parece estar à altura da tarefa.

A primeira-dama dos Estados Unidos, Jill Biden, com o presidente, Joe Biden, atrás, em comício em Raleigh, Carolina do Norte, na sexta-feira. (Foto: STAN GILLILAND / EFE)| 

Depois das eleições legislativas de novembro de 2022, em que o Partido Democrata obteve um resultado melhor do que o esperado, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, compareceu numa conferência de imprensa na Casa Branca. Quando lhe perguntaram se concorreria à reeleição, ele apontou para a esposa, sentada a poucos passos de distância, e respondeu no plural: “Nossa intenção é concorrer novamente”. 

A primeira-dama, de 73 anos, não é apenas a principal apoiante pessoal do presidente, mas tornou-se a sua conselheira política mais próxima. Ela assumiu um papel crescente na campanha, com intervenções notáveis ​​em comícios. Após a desastrosa intervenção de Biden, de 81 anos, no debate contra Donald Trump na semana passada em Atlanta, muitos a veem como a única pessoa capaz de convencer o presidente a se aposentar. Ela não parece estar à altura da tarefa.

Melania Trump, esposa de Donald Trump, não compareceu ao debate da CNN. Jill Biden estava lá. Ao terminar, apertou a mão do marido inseguro e derrotado para ajudá-lo a descer o único degrau da plataforma onde ocorria o debate, em imagens que viralizaram. Esse apoio físico rapidamente se tornou apoio moral. Ambos vieram cumprimentar um partido democrata, destinado a comemorar o que deveria ter sido o sucesso de Biden em demonstrar ao mundo – mas, sobretudo, aos eleitores – que está em perfeitas condições para renovar o mandato de quatro anos. o chefe da principal potência mundial. Não foi assim.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, desce do palco onde acabava de ocorrer o debate presidencial com a ajuda da primeira-dama, Jill Biden. (Foto: GERALD HERBERT / AP)

No hotel Hyatt Regency, no centro de Atlanta, os participantes tentaram ignorar o que acabaram de ver. Jill Biden pegou o microfone com o marido ao seu lado. “O presidente não fez um ótimo trabalho? Sim”, disse ela aos seguidores, que começaram a gritar: “Mais quatro anos!” “Joe, você fez um ótimo trabalho”, ela continuou. “Você respondeu a todas as perguntas, sabia de todos os fatos. E deixe-me perguntar à multidão: o que Trump fez?” “Mentira!”, ela respondeu junto com o público.

No dia seguinte, Jill Biden fez a abertura do comício do presidente em Raleigh, Carolina do Norte. Ela apareceu com um vestido escuro no qual a palavra “voto” apareceu dezenas de vezes em branco, uma verdadeira declaração de intenções. “Alguns de vocês devem ter ouvido que eu não concordei em me casar com Joe até a quinta vez que ele me pediu, mas a verdade é que eu queria isso desde o início. Vi nele então o mesmo caráter que vejo nele hoje. E embora tenha enfrentado tragédias inimagináveis, o seu otimismo é destemido; sua força, inquebrável, sua esperança, imperturbável”, começou ele.

“Nos últimos anos, Joe ajudou a curar o nosso país, ajudando-nos a todos a recuperar do caos da última administração. Não escolhemos o nosso capítulo na história, mas podemos escolher quem nos guia através dele. “Neste momento, com estes perigos que o mundo enfrenta, não há ninguém que eu preferiria ter sentado no Salão Oval do que o meu marido”, continuou ela. A primeira-dama então se referiu ao presencial. “O que vocês viram ontem no debate foi Joe Biden, um presidente com sua integridade e caráter, que disse a verdade, enquanto Trump contou mentira após mentira após mentira.”

A primeira-dama Jill Biden se dirige aos apoiadores de Joe Biden (atrás) em uma festa em Atlanta após o debate. (Foto: EDWARD M. PIO RODA / EFE)

Depois, num evento de arrecadação de fundos em Nova York, ele voltou ao que aconteceu na quinta-feira: “Vamos conversar sobre o debate de ontem à noite, porque sei que está na sua cabeça. Como Joe disse hoje cedo, ele não é um jovem. E depois do debate de ontem à noite, ele me disse: 'Sabe, Jill, não sei o que aconteceu. Não me senti tão bem. Eu disse: 'Olha, Joe, não vamos deixar 90 minutos definirem os quatro anos em que você é presidente.'

Essa tem sido a posição consistente de Jill Biden. Neste sábado, o presidente e a primeira-dama participaram de mais um evento de arrecadação de fundos na luxuosa mansão do empresário Barry Rosenstein, em East Hampton (Nova York). Entre os anfitriões estavam Sarah Jessica Parker, Matthew Broderick e Michael J. Fox. Jill Biden insistiu em sua mensagem: “Joe não é apenas a pessoa certa para o trabalho. “Ele é a única pessoa para o cargo.”

A família do presidente aproveitou uma reunião de domingo em Camp David para exortá-lo a permanecer na corrida e a lutar apesar do debate. Alguns familiares criticaram a forma como os conselheiros de Biden o prepararam para o encontro presencial, segundo quatro pessoas familiarizadas com as discussões citadas pela AP. Biden passou o dia isolado com a primeira-dama Jill Biden, seus filhos e netos no retiro presidencial em Maryland. Foi uma viagem previamente agendada para uma sessão de fotos com Annie Leibovitz para a próxima Convenção Nacional Democrata.

um casamento longo

Joe e Jill Biden estão casados ​​há 47 anos. Eles se conheceram em março de 1975 graças ao irmão mais novo do presidente, Frank, que coincidiu com ela na Universidade de Delaware. Jill estava pedindo o divórcio de seu primeiro marido. Joe já era senador e tentava se recuperar de uma tragédia familiar. Sua primeira esposa, Neilia, dirigia o Chevy branco dos Bidens em 18 de dezembro de 1972, para pegar a árvore de Natal quando, em um cruzamento, um trailer carregado de espigas de milho os atropelou. Neilia e sua filha de um ano, Naomi, morreram, enquanto seus outros dois filhos, Beau e Hunter, que sofreram uma grave fratura no crânio, ficaram feridos.

Quando o senador ligou para Jill, a primeira coisa que ela perguntou foi: “Quem te deu meu número de telefone?” Era sábado e ele a convidou para sair. Ela disse que já tinha um encontro e Biden pediu que ela o cancelasse. Ela pediu algumas horas. “Ele quebrou o encontro e depois partiu meu coração”, disse o presidente no último Dia dos Namorados em uma conta do TikTok sobre os primeiros encontros de casais. Houve dois anos em que Biden a pediu cinco vezes em casamento. O último foi um ultimato. Ela aceitou. O que a fez duvidar, explicou ela, foi que, depois da tragédia familiar, ela precisava ter certeza de que tudo daria certo, que se eles se casassem seria para sempre, porque Hunter e Beau já haviam sofrido o suficiente. Joe e Jill têm outra filha, Ashley, nascida em 1981.

Jill Biden manteve-se muito discreta durante a maior parte da longa carreira política do marido. Eles moravam em Wilmington, de onde Biden podia viajar diariamente de trem para o Congresso para cumprir suas obrigações como senador. A primeira-dama continuou a trabalhar como professora de inglês quando o marido se tornou vice-presidente de Barack Obama em 2008 e, apesar de ter 73 anos, continuou a trabalhar depois de assumir o cargo de primeira-dama. Ele leciona em uma faculdade comunitária na Virgínia, nos arredores de Washington.

Já participou ativamente da campanha presidencial de 2020. Agora, ele se voltou para a reeleição. Para além da educação e dos direitos das mulheres, o seu papel fundamental é acompanhar o presidente, transmitir energia nos seus eventos de campanha e aconselhá-lo em privado. Considera Trump uma ameaça aos Estados Unidos. Quando Frank Biden falou com seu irmão Joe sobre Jill, para que eles concordassem em um encontro às cegas, ele lhe disse: “Você vai amá-la: ela é linda e não gosta de política”. Talvez isso fosse verdade então.

Miguel Jiménez,o  autor deste artigo, é Correspondente Chefe do EL PAÍS nos Estados Unidos. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 02.07.24

Biden diz que decisão de imunidade de Trump abre “precedente perigoso”

“Qualquer presidente, incluindo Donald Trump, será livre para infringir a lei”, diz ele na Casa Branca

Biden, sobre a imunidade de Trump após a decisão: “O poder do cargo não será mais limitado pela lei, nem mesmo pela Suprema Corte dos Estados Unidos” (Foto de Eizabeth Frantz)

Joe Biden chegou esta segunda-feira a Washington depois de mais de uma semana sem pôr os pés na cidade. Pouco depois de chegar à Casa Branca, compareceu no Cross Hall para um comunicado no qual não admitia perguntas. Nele, ele criticou duramente a decisão proferida nesta segunda-feira pelo Supremo Tribunal, na qual concede ampla imunidade criminal a Donald Trump, e aos presidentes em geral, pelos seus atos oficiais. A sentença, disse ele, não só impede o esclarecimento das responsabilidades de Trump no passado, mas também estabelece um “precedente perigoso” para o futuro.

“Esta nação foi fundada com base no princípio de que na América não existem reis. Todos, somos todos iguais perante a lei. Ninguém, ninguém está acima da lei. Nem mesmo o presidente dos Estados Unidos”, disse Biden, para admitir que esta tese que apoia foi explodida esta segunda-feira com a sentença.

“A decisão de hoje significa quase certamente que praticamente não há limites para o que um presidente pode fazer”, alertou o presidente. “Sei que respeitarei os limites do poder presidencial como tenho feito durante três anos e meio, mas qualquer presidente, incluindo Donald Trump, será agora livre para infringir a lei”, explicou.

“Este é um princípio fundamentalmente novo e um precedente perigoso, porque o poder do cargo não será mais limitado pela lei, nem mesmo pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Os únicos limites serão autoimpostos, levantados apenas pelo presidente”, alertou.

O presidente referiu-se ao voto dissidente dos juízes progressistas, que votaram contra a sentença e alertaram para os cenários de pesadelo que poderiam abrir-se com a nova doutrina se um presidente decidir levar a nova doutrina ao limite.

O julgamento de Trump

Biden também manifestou a sua preocupação pelo facto de as responsabilidades que correspondiam ao seu antecessor pela tentativa de subverter o resultado eleitoral de 2020 não serem esclarecidas e purificadas. A resistência de Donald Trump em aceitar a derrota levou ao assalto ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. O homem que enviou aquela multidão ao Capitólio dos Estados Unidos enfrenta uma possível condenação criminal pelo que aconteceu naquele dia. “O povo americano merece ter uma resposta no tribunal antes das próximas eleições”, disse Biden. “Agora, devido à decisão de hoje, isso é muito, muito improvável. “É um terrível desserviço ao povo desta nação”, acrescentou.

Como, previsivelmente, não haverá julgamento nem sentença, Biden apela aos eleitores. “O povo americano deve decidir se o ataque de Donald Trump à nossa democracia em 6 de janeiro o torna inadequado para o cargo mais alto do país”, disse ele. “Talvez o mais importante seja que o povo americano decida se quer confiar mais uma vez a presidência a Donald Trump, sabendo agora que ele terá mais coragem para fazer o que lhe agrada, o que quer que queira fazer”, acrescentou. antes de manifestar o seu desacordo com a decisão do Supremo Tribunal: “O presidente é agora um rei acima da lei. Portanto, o povo americano deve discordar. Eu discordo.”

A intervenção de Biden, de 81 anos, foi a sua primeira na Casa Branca desde o debate da última quinta-feira em Atlanta, no qual teve lapsos, hesitações e problemas para terminar algumas frases, o que corroeu a percepção que os eleitores têm sobre a sua capacidade de enfrentar uma segunda. prazo. Desde aquele dia, a lupa foi colocada em cada uma de suas aparições públicas.

Na sexta-feira, em Raleigh (Carolina do Norte), teve uma intervenção mais enérgica, embora ainda com alguma tosse, na qual contou com a ajuda de ecrãs para a sua fala. Esta segunda-feira, na Casa Branca, a tosse e os problemas de voz que tanto o atrapalharam no debate pareciam ter ficado para trás. Mesmo assim, ele novamente contou com a ajuda de telas para ler seu depoimento e não respondeu nenhuma pergunta ao finalizar.

Os pesos pesados ​​democratas cerraram fileiras ao presidente e reafirmaram que ele é o seu candidato para derrotar Donald Trump, de 78 anos, nas eleições de 5 de novembro. Biden tenta mostrar um contraste entre os dois candidatos, esta segunda-feira, no que diz respeito ao respeito pela lei e pelo Estado de direito.

Miguel Jiménez, o autor deste texto, é Correspondente-Chefe do EL PAÍS nos Estados Unidos. Publicado originalmente no ELPAÍS,em 02.07.24

A sentença de Trump daria imunidade para assassinatos, subornos e golpes de Estado, segundo os juízes progressistas da Suprema Corte

No seu voto divergente, os juízes expressam “medo” pelo futuro da democracia após uma decisão que transforma o ex-presidente num “rei acima da lei”.

Donald Trump durante um comício na Filadélfia, 22 de junho. (ANNA MONEYMAKER  / GETTY IMAGES)

A decisão do Supremo Tribunal que concede ampla imunidade a Donald Trump pelos seus atos como presidente marca um antes e um depois no regime jurídico aplicável ao inquilino da Casa Branca. A maioria conservadora do Supremo Tribunal isenta o presidente de responsabilidade no exercício da sua autoridade constitucional e declara-o presumivelmente imune em todos os actos oficiais. Isso, segundo os três juízes progressistas do Supremo Tribunal, abre caminho a “cenários de pesadelo” em que um presidente pode ser declarado imune até pelo assassinato de rivais políticos, pela aceitação de subornos e até pela realização de um golpe de Estado. estado. O presidente, desde a polêmica sentença, tornou-se um “rei acima da lei”. Por esta razão, expressam o seu “medo pela democracia”.

A principal opinião divergente foi escrita pela juíza Sonia Sotomayor e apoiada por Elena Kagan e Ketanji Brown Jackson. Está tudo escrito em termos muito duros. “O presidente dos Estados Unidos é a pessoa mais poderosa do país e, possivelmente, do mundo. “Quando você usa seus poderes oficiais de qualquer forma, de acordo com o raciocínio da maioria, você estará agora protegido de processo criminal”, diz ele.

“Ordenar ao Navy Seal Team 6 [forças especiais] que assassine um rival político? Imune. Organizar um golpe militar para se manter no poder? Imune. Você aceita suborno em troca de perdão? Imune. Imune, imune, imune. Deixemos o presidente infringir a lei, deixemos que ele explore as armadilhas do seu cargo para ganho pessoal, deixemos que ele use o seu poder oficial para propósitos malignos. Porque se você soubesse que um dia poderia enfrentar a responsabilidade por infringir a lei, não seria tão ousado e corajoso quanto gostaríamos que fosse. Esta é a mensagem da maioria hoje”, observaram os juízes na votação privada desta segunda-feira.

“Cenários de pesadelo”

“Mesmo que estes cenários de pesadelo nunca se concretizem, e rezo para que nunca aconteçam, o estrago já foi feito. A relação entre o presidente e as pessoas que ele serve mudou irrevogavelmente. Em cada uso do poder oficial, o presidente é agora um rei acima da lei”, acrescentam.

Os juízes enfatizam se isso é descrito como presuntivo ou absoluto, segundo a tese da maioria, “o uso por um presidente de qualquer poder oficial para qualquer fim, mesmo o mais corrupto, é imune a processo”. “Isso é tão ruim quanto parece e não tem fundamento”, dizem eles.

Além disso, criticam outro aspecto da sentença que também serve para blindar Donald Trump e dificultar a sua acusação pelos alegados crimes que cometeu para alterar os resultados das eleições de 2020. que o presidente está imune não pode desempenhar qualquer papel em qualquer processo criminal contra ele. “Esta declaração, que impedirá o Governo de utilizar os atos oficiais de um presidente para provar conhecimento ou intenção na acusação de crimes privados, não tem sentido”, apontam.

A controversa decisão da maioria, escrita pelo Presidente do Supremo Tribunal John Roberts, sustenta que “o presidente não pode ser processado por exercer os seus poderes constitucionais primários e tem direito, no mínimo, a imunidade presuntiva de promotores por todos os seus atos”. Afirma que, desde que o presidente aja de uma forma que “não exceda manifesta ou palpavelmente [sua] autoridade”, ele estará tomando medidas oficiais.

Manifestantes anti-Trump, esta segunda-feira em frente à sede do Supremo Tribunal, em Washington. (LEAH MILLIS REUTERS)

A maioria conservadora tenta qualificar o conteúdo da decisão com alguns esclarecimentos e obviedades, como que “o presidente não goza de imunidade pelos seus atos não oficiais”, que “nem tudo o que o presidente faz é oficial” e que a imunidade “se aplica igualmente a todos os ocupantes do Salão Oval, independentemente de política ou partido.” A decisão beneficia diretamente Trump, mas parece que os juízes são obrigados a dizer que não se trata de uma decisão feita à medida dele.

Nenhum outro presidente precisou apelar para essa imunidade. O voto dissidente recorda como o presidente Gerald Ford concedeu perdão a Richard Nixon após a sua demissão devido ao caso Watergate. Tanto o perdão de Ford como a aceitação do mesmo por Nixon "basearam-se necessariamente no entendimento de que o ex-presidente enfrentava uma possível responsabilidade criminal", explicam.

“Nunca na história da nossa República um presidente teve motivos para acreditar que estaria imune a processos criminais se utilizasse as circunstâncias do seu cargo para violar a lei penal. No entanto, a partir de agora, todos os ex-presidentes gozarão dessa imunidade. Se o ocupante desse cargo abusar do poder oficial para ganho pessoal, a lei penal que o resto de nós deve respeitar não proporcionará protecção. Temendo pela nossa democracia, discordo”, conclui seu voto privado.

As “chaves da ditadura”

A sentença surge numa altura em que Donald Trump ambiciona ser eleito para um segundo mandato nas eleições de 5 de novembro. Na verdade, com a demora na resolução do caso e o significado da sua decisão, os juízes do Supremo Tribunal abriram o caminho a Trump. Se somarmos a isso a sua vitória no debate da semana passada em Atlanta e as dúvidas que semeou entre os democratas sobre a capacidade de Joe Biden de enfrentar um segundo mandato, as probabilidades de Trump regressar à Casa Branca são elevadas. Agora, ele o faria com esse tipo de proteção concedida pelos juízes, inclusive pelos três que ele próprio nomeou.

“Eles acabaram de entregar a Donald Trump as chaves de uma ditadura”, disse o vice-diretor sênior da campanha de Biden, Quentin Fulks, em uma ligação com repórteres. “A Suprema Corte acaba de dar permissão a Trump para assassinar e prender qualquer pessoa que ele queira que ganhe o poder”, acrescentou.

“O tribunal de Trump deixou o nosso país vulnerável a ataques internos. Removeu as barreiras que nos protegem de um presidente que tenta ser um ditador, deixando-nos aos caprichos de quem está no poder. “Agora, mais do que nunca, devemos nos unir e evitar que Donald Trump volte a ocupar essa posição”, acrescentou Fulks.

Miguel Jiménez, o autor deste artigo,  é Correspondente-chefe do EL PAÍS nos Estados Unidos. Desenvolveu sua carreira no EL PAÍS, onde foi editor-chefe de Economia e Negócios, vice-diretor e vice-diretor, e no jornal econômico Cinco Días, do qual foi diretor. Publicado originalmente no ELPAÍS,em 02.07.24


Como decisão da Suprema Corte sobre imunidade de Trump afeta disputa eleitoral pela Presidência dos EUA

A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que ex-presidentes, como Donald Trump, têm direito à imunidade judicial em acusações criminais por "atos oficiais" praticados durante o mandato, mas não têm imunidade por atos não oficiais.

Legenda da foto,Trump é novamente candidato à Presidência dos Estados Unidos (Reuters)

A decisão histórica significa que as acusações de que Trump tentou interferir no resultado das eleições de 2020 e incitou a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 devem retornar a um tribunal de instância inferior, que vai decidir se essas ações foram atos oficiais ou não.

Os promotores alegam que Trump pressionou as autoridades para reverter o resultado da eleição que ele perdeu para Joe Biden, e de que teria tentado explorar a invasão do Capitólio em um esforço para permanecer no poder. Segundo a decisão, essas ações estariam dentro do que consideram "oficiais", embora essa classificação deva ser decidida por outros tibunais inferiores.

As tentativas de Trump de pressionar o então vice-presidente Mike Pence a não certificar a vitória eleitoral de Joe Biden – uma parte fundamental do caso do procurador especial Jack Smith contra ele – são o tipo de ação oficial sujeita a um padrão mais elevado de revisão legal.

Trump é novamente candidato a presidente nas eleições deste ano. Com a decisão da Suprema Corte, é possível que esses casos só sejam julgados após a eleição de novembro. Para analistas políticos, isso pode ser considerado uma vitória para Trump, pois ele não enfrentará o desgaste de uma condenação até o pleito.

O ex-presidente afirmou que a decisão era "uma grande vitória para nossa constituição e democracia" e que se sentia "orgulhoso de ser americano".

O tribunal considerou que Trump tem imunidade total para atos oficiais como presidente relacionados com os seus principais deveres constitucionais. Além disso, existe a presunção de imunidade para quaisquer outros atos oficiais

Agora, os procuradores terão de trabalhar muito mais para levar os casos a tribunais inferiores, avalia Anthony Zurcher, correspondente da BBC nos Estados Unidos.

A decisão foi por 6 votos a favor e 3 contra. A juíza Sonia Sotomayor ficou entre os que se opuseram à medida.

Ela disse que a imunidade a Trump deixou com "medo pela nossa democracia" e "o presidente é agora um rei acima da lei".

Sotomayor disse que um presidente estaria agora "protegido se ordenasse que a Marinha assassinasse um rival político, organizasse um golpe militar dissidente para manter o poder ou aceitar subornos em troca de perdão."

"Mesmo que esses cenários de pesadelo nunca aconteçam, e rezo para que nunca aconteçam, o estrago já foi feito", escreveu ela.

Segundo a decisão, as comunicações de Trump com funcionários do Departamento de Justiça têm imunidade absoluta.

O presidente da Suprema Corte, John Roberts, delineou orientações que poderiam ser particularmente prejudiciais para o caso da acusação.

Roberts explicou que os presidentes "precisam de uma imunidade tão ampla para ações oficiais porque a ameaça de processo criminal – e o peculiar opróbrio público associado aos processos penais" – pode 'distorcer' a tomada de decisões presidenciais."

O tribunal acrescentou, no entanto, que Trump não tem imunidade para ações não oficiais, o que significa que ainda poderá enfrentar algumas acusações.

Em maio, Trump se tornou o primeiro ex-presidente dos Estados Unidos a ser condenado por um crime. Ele foi condenado por falsificar registros financeiros para ocultar um pagamento secreto feito à ex-atriz pornô Stormy Daniels, pouco antes das eleições de 2016.

A condenação inclui ainda uma nova aplicação de leis estaduais e federais sobre fraude e financiamento de campanha.

Trump garantiu a nomeação presidencial republicana durante as primárias no início deste ano e deverá liderar a chapa do partido quando a sigla realizar a sua convenção nacional, em julho.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 02.07.24

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Câmara quer esterilizar delação premiada

Instrumento pode ser aperfeiçoado, mas projeto de lei gera prejuízos tanto para investigados como para investigadores

Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados - Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

A Câmara dos Deputados anda às voltas com um projeto de lei destinado a esterilizar as chamadas delações premiadas, transformando-as em um instrumento jurídico sem nenhuma aplicação prática.

Iniciativas com esse propósito não são novidade. Em 2016, por exemplo, o então deputado Wadih Damous (PT-RJ) —atual secretário Nacional do Consumidor no governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva— propôs vedar delações feitas por acusados ou indiciados que estejam presos.

Em 2023, o deputado Luciano Amaral (PV-AL) apresentou um texto bem mais enxuto e com redação diferente, mas preservando a mesma finalidade: considerar imprestáveis os acordos assinados por colaboradores sob efeito de privação cautelar de liberdade —isto é, prisão preventiva, temporária ou em flagrante.

Nas últimas semanas, líderes de 13 partidos do centro à direita, além do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), deitaram olhos compridos ao projeto de Amaral.

Todos podem argumentar que pretendem combater abusos da polícia, do Ministério Público e do próprio Judiciário, mas seriam necessárias doses cavalares de ingenuidade para acreditar nisso. O que eles parecem de fato querer é uma blindagem contra essa importante ferramenta investigativa.

Regulamentada pela Lei das Organizações Criminosas, de 2013, a colaboração premiada se apoia na teoria dos jogos para destrinchar esquemas ilegais que, de outra forma, restariam impunes. Seu mecanismo é simples: oferece-se ao investigado uma recompensa para ele revelar o que sabe.

Logo se vê que a delação cumpre uma função dupla. De um lado, auxilia na apuração do crime, pois o colaborador aponta caminhos e fornece indícios que talvez jamais fossem encontrados; de outro, opera como arma de defesa, já que a barganha inclui vantagens no cumprimento da pena.

A mudança que os deputados cogitam fragiliza os dois polos, porque, se aprovada, tirará do indivíduo preso a chance de amenizar sua própria situação e reduzirá os estímulos para alguém entregar os comparsas, sobretudo os mais poderosos. Ou seja, os parlamentares ameaçam subverter a lógica por trás da colaboração premiada.

Não que inexistam problemas no uso dessa ferramenta no Brasil. Há boas razões para supor que, em alguns casos, prolongaram-se prisões preventivas a fim de forçar a negociação de delações.

Daí não decorre, porém, que a reforma em tramitação na Câmara seja a solução apropriada. Longe disso, aliás. De uso recente, a colaboração é um instrumento jurídico que ainda precisa ser afiado, mas não destruído.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 12.06.24 (editoriais@grupofolha.com.br)

Ordem e desordem tributária

Se a carne não é coisa de pobre, e por isso não entra na cesta básica, é um ardil inverso dizer que cerveja não é coisa de álcool, para fazê-la barata

Viver é que vai virar pecado se proteína não entrar na cesta básica, cerveja for considerada menos álcool e o mantra “chegou na sua mão, andou de caminhão” perder o sentido pela associação do diesel com transgressão sanitária e ambiental. Enquanto o ministro vai a Roma convencer o papa de que tributos cobrados por César devem ser maiores do que os devidos a Deus, lembro o zelo da mãe de Manoel de Barros para com o filho sensível: “Menino, você vai carregar água na peneira a vida toda”. Imposto frágil com desculpa dá desordem à exceção.

O poeta do Pantanal não é um poeta à toa. Nunca escondeu não ter habilidade para clarezas, embora seja cristalina sua opinião de que a importância de uma coisa é medida pelo encantamento que a coisa produz em nós. Coisa meio difícil, reconheço, em país onde os rios correm para as nascentes. Má tradição quando a lei do imposto ousar definir que só rico deve comer carne, que cerveja é álcool leve e que é pecado ônibus e caminhão usarem o combustível disponível nas condições atuais dos motores do País. Realismo é imaginar pelo menos carne moída, asa de frango e tilápia na cesta básica. Mas realismo fantástico é ver o diesel barato vendido em lata nos Rock&Lolla&Country urbanos e suburbanos e a cerveja patrocinada servida em serpentina na bomba de gasolina.

Se democracia não é neologismo, o cheio pode ser vazio, melhor estimular o que não faz mal. O poeta ganhou prêmios inventando palavras e abastecendo o abandono de esperança. Compensa o infortúnio dos necessitados de proteína, transporte e abstinência sugerir que catástrofe é quando as coisas continuam como estão.

A maior porcaria é desejar sem ser preciso. O Brasil político, desnivelado pelas injustiças e o destino, só se sente protegido pela visão carnavalesca da justiça. Direitos, direitos, bradam juízes e procuradores, sem dizer que, inconscientemente, pedem é mais protetores dos direitos. Sem interesse em praticar o costume dos vencedores, o Brasil não vê o imposto como empréstimo da sociedade ao governo para realizar suas funções. O que exige consentimento e sensatez no uso do poder de tributar. E desconfiar do adulador com seu burro carregado de ouro.

Nenhuma isenção pode ser um desperdício, ou privilégio, uma insignificância. Mas, quando a situação não está decidida, pensando melhor, ainda há tempo de impedir o erro. Governar com múltiplos partidos vazios e não tendo o governo um centro de gravidade próprio, é impossível sintonizar suas decisões com a necessidade geral. Ainda mais quando populismos pontuais, muitos nadas, movem os Três Poderes. O Brasil precisa voltar a ser uma república compreensível. Boa oportunidade num governo de dois constituintes. Interromper a sina da Federação de Estados inimigos, cada um fazendo o que decide fazer. A União não é uma cômoda com 27 gavetas.

Melhor que nomear é aludir, diz o poeta. Que tal aceitar as recentes recomendações do Conselho Nacional de Saúde aos Ministérios da Fazenda e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; presidências do Senado e da Câmara; Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária? Se nossa sociedade tem compromisso com o futuro, é bom saber que imposto seletivo não freia o malefício da soberba de chamar álcool de bebida leve. Bebida alcoólica é uma coisa só, alíquota única faz bem à saúde. A vantagem ainda é que o País vai arrecadar mais parando de pagar cerveja para todo mundo.

Parlamentares não devem ler nada que não exija esforço ou não exija nada. A vida são deveres. Legisladores, juízes e governantes não devem expressar com mordacidade ou de forma intensa demais sua emoção. Melhor também ficar alerta a natureza para enfrentar tributariamente, de forma não improvisada, tragédia desoladora como a que se abateu sobre o Rio Grande do Sul. Não somos um país que mora no fim de um lugar qualquer.

É hedonismo demais permitir publicidade de cerveja a qualquer hora e lugar, visando a gente de qualquer idade. É dose, seduzir usuários, como tabaco da terra de Marlboro, para se tornarem social e tolerantemente responsáveis pela cifra que faz a cerveja monopólio de 90% do consumo de álcool no País. Organização e ordem é o sonho de uma boa reforma tributária que pode fazer o Estado deixar de apoiar o esdrúxulo costume alimentar do povo que tolera ver o álcool mais prestigiado do que a carne. Ora, se a carne não é coisa de pobre, e por isso não entra na cesta básica, é um ardil inverso dizer que cerveja não é coisa de álcool, para fazê-la barata.

A reforma tributária precisa também estar atenta à perda da razão da máxima do economista John Maynard Keynes, que dizia que no longo prazo estaremos todos mortos. Hoje, a equação é de que no longo prazo ainda estaremos todos vivos. Tributação justa faz a expectativa econômica se harmonizar com a expectativa de vida. Prisioneiro de escolhas limitadas, ninguém vai conseguir desbadalar o sino do mau costume. No Vaticano, Francisco deve ter alertado a Fernando Hadadd: ministro, sabemos que tudo o que acontece no mundo é vontade divina, mas, se der errado, quem vai levar a culpa é você.

Paulo Delgado, o autor deste artigo, é sociólogo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12.06.24

Pragmatismo como arma

Visando aos interesses estratégicos do País, o comandante do Exército defende parceria com os chineses, mas mostra que para isso não é preciso confrontar o Ocidente, como faz Lula

General Tomás Paiva, Comandante do Exército

Num mundo repleto de tensões – reais e imaginárias –, o Brasil só tem a ganhar quando os arroubos verbais saem de cena, substituídos pelo realismo pragmático das relações comerciais e diplomáticas. A recente entrevista ao Estadão do comandante do Exército, general Tomás Paiva, é uma evidência cristalina dessa certeza. O general defendeu a ampliação de parcerias estratégicas com a China e outros países do Brics, grupo que reúne também nações como Rússia, Índia, África do Sul e, mais recentemente, Arábia Saudita, Irã, Emirados Árabes, Etiópia e Egito. Também destacou o foco da visita que fará aos chineses no próximo mês: capacidades militares e ciência e tecnologia. Os chineses, ele lembrou, estão avançados na defesa cibernética e na base industrial de sistemas de armas – avanços que permitem a um país proteger sua soberania com mais tecnologia e com menos efetivo. Mas Tomás Paiva não precisou seguir a cartilha do presidente Lula da Silva e fazer apologia do tal “Sul Global” nem inscrever o Brasil na vanguarda da luta contra os valores ocidentais, muito menos demonstrar hostilidade aos Estados Unidos e alinhamento a tudo o que lhe é antagônico.

O comandante do Exército fez o que se espera de chefes de instituições de Estado: a observância dos interesses estratégicos do País, sem sectarismo ou politização indevida. Segundo o próprio general, o Ministério das Relações Exteriores tinha interesse na aproximação do Exército com os países do Brics. Seu roteiro do mês que vem, contudo, não envolverá a Rússia. Como deixou claro, não visitará os russos por causa do conflito com a Ucrânia, outro ponto de distância que manteve em relação aos arquitetos da política externa lulopetista. Melhor assim. Na entrevista, demonstrou estar alinhado com o que há de mais qualificado nos quadros técnicos da diplomacia brasileira – hoje, infelizmente, tisnada pela guerra imaginária que Lula parece travar, tendo como companheiros de armas notórias ditaduras, como a própria China, a Rússia, o Irã e a Venezuela. Mas, diferentemente de Lula, o general opta pelo pragmatismo em nome da cooperação militar.

Essa distinção se faz necessária por uma razão: na nova ordem global, características distintivas do Ocidente – democracia, economia de mercado e globalização – têm sido confrontadas por regimes autocráticos que buscam reviver o modelo que põe o Estado e a soberania nacional acima de todas as coisas, à custa de liberdades individuais, direitos humanos e valores universais. Esses valores costumam ser apresentados por essa turma como armas retóricas das democracias liberais para prolongar sua supremacia. Nesse ambiente turvo, o grande risco é o Brasil imiscuir-se numa espécie de aggiornamento do “Terceiro Mundo” dos tempos da guerra fria, em nome da ambição de Lula de credenciar-se como um líder político global do “Sul Global”, em vez de o País colocar a serviço dos seus interesses suas vantagens comparativas, com sutileza e credibilidade, como sugere a tradição diplomática brasileira.

Nossos vizinhos latino-americanos assim costumam definir a ação diplomática brasileira: Itamaraty no improvisa. É uma ideia-força que sintetiza a percepção de que o Itamaraty soube manter a continuidade da política externa e renová-la com o passar do tempo. Com Lula da Silva e Jair Bolsonaro, contudo, interesses nacionais se fundiram com interesses políticos e interferências ideológicas e partidárias. Como o próprio general Tomás Paiva mostrou na entrevista ao Estadão, há um longo caminho de aprendizado e benefícios com o conhecimento chinês em matéria militar. Tal lição serve para outras áreas: o Brasil está atrasado nos avanços científicos e tecnológicos e precisa recuperar o tempo perdido para entrar na corrida da pesquisa e do desenvolvimento na inovação, no 5G e na inteligência artificial – para citar alguns poucos e complexos exemplos. Um campo minado no qual só se prospera com pragmatismo, conhecimento, equilíbrio e equidistância, não com ideologia e confrontação.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 12.06.24

terça-feira, 11 de junho de 2024

Dia dos Namorados, dia dos solteiros

"Tenho amigos e seguidores que me contam as delícias, ilusões e decepções de estar solteiro hoje com 50, 60 anos"

Em mais uma manifestação da prodigiosa sorte que me acompanha pela vida, um mês e meio depois de terminar meu casamento, aos 78 anos, encontrei um novo amor, que também havia acabado de se separar. Não há acaso nem coincidências, talvez sincronicidade, artes do destino. O fato é que vivi só um mês e meio solteiro, e não estou atualizado sobre a “solteirice moderna”, mas tenho amigos e seguidores que me contam as delícias, ilusões e decepções de estar solteiro hoje com 50, 60 anos.

Como o meu amigo Charles, 60, coroa bonitão em plena forma, produtor cultural, também recém-separado à mesma época que eu, e ainda solteiro depois de um ano e meio. Primeiro veio a euforia da liberdade, da libertação do que estava fazendo-lhe mal, de poder fazer o que quiser sem dar satisfação a ninguém. Entrando em aplicativos de encontros, alimentando contatinhos, solto na noite, procurando nos bares e nos shows, na praia. Às vezes consegue pegar alguém, para um vinho, sexo e alegria, mas depois a sensação é de vazio: quanto mais come, mais fome tem, e não é de sexo. É de nexo. Na sua vida, seus objetivos e propósitos, dar fim às ilusões. Encontrar alguém que, além de um bom sexo, que é mais fácil de encontrar do que bons sentimentos, também valha a pena acompanhar, que aquilo tenha algum futuro, para não seguir gastando tempo e energia em vão.

Minha seguidora no Instagram, Denise, 50, psicanalista, bonitona e gostosona, também solteira depois de alguns anos de casamento, não estava feliz na relação, por motivos que nem ela sabia direito, e, embora viva muito bem consigo mesma, também me diz no Direct que está dura a vida solo. Como ela, muitas mulheres estão se queixando nas redes sociais. Primeiro, os homens estão muito babacas, e, depois, os mais interessantes que aparecem são gays.

Mas para mulheres é bem fácil encontrar homens dispostos, parece que todos estão sempre, não faltam candidatos. Mas, depois das primeiras ficadas, desfrutando a liberdade, ela descobriu que os caras só queriam mesmo comê-la, e ela se considera boa nisso, mas nem quiseram repetir, não quiseram aprofundar nada, nem conhecê-la melhor: querem outra.

Não que fosse ruim para ela, fez sua atuação, se divertiu, gozou, mas não basta. No fim, se sentiu vazia. Ela quer romance, carinho, diálogo, possibilidades, o cara já vai embora, feliz e saciado. Não vai nem telefonar no dia seguinte. E por que as mulheres não podem ligar no dia seguinte, dizerem que foi bom, que querem ver de novo? Medo de o cara não querer? Rejeição dói.

Conclusão: estava escolhendo os homens errados, pela aparência física, no Tinder ou na academia ou no barzinho. E então foi se tornando muito exigente, priorizando qualidades humanas e atraída por inteligência, talento, integridade. Mas ficou tão seletiva que não encontra ninguém à altura rsrs — ou, como ela diz, depois que se valorizou não come mais ninguém.

Estou pensando em apresentar o Charles à Denise, vai que dá match.

Feliz Dia dos Namorados a todos.

Nelson Motta, o autor desta crônica, é compositor popular. Publicada originalmente n’O Globo, em 07.06.24

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Alerta: sistema de Justiça em risco

Danos podem conduzir à absoluta anomia e à distopia, estágios que antecedem o caos social e a ruptura do Estado Democrático de Direito

São inúmeros e complexos os problemas que angustiam a sociedade brasileira nos nossos dias. Incluo o sistema de Justiça como uma dessas cruciais questões e que está necessitando de atenção e de reflexão para que haja a correção urgente de seus rumos. A urgência de mobilização das mentes e dos espíritos lúcidos se justifica para se evitar o agravamento, a perpetuação e a irreversibilidade de uma crise de consequências desastrosas para a Nação.

Talvez a extensão e as consequências dessa crise já instaurada não estejam bem assimiladas. No entanto, os seus efeitos poderão estar em marcha rápida e de difícil contenção, caso medidas de ajuste e correção, alterações normativas e até mudanças de comportamento não forem efetuadas.

Não se desconhece que a solidez das estruturas de uma sociedade e de uma nação depende de um Poder Judiciário independente, pronto para atuar nos conflitos de quaisquer naturezas, com o escopo primordial de manter a paz e a harmonia em sociedade. Em resumo, é fundamental que o sistema de Justiça atue distante dos interesses em questão, e tenha como premissa que os seus integrantes se mantenham independentes e imparciais no que tange às questões que poderão decidir.

Cumpre salientar que esse sistema está sob a responsabilidade direta de juízes, advogados e promotores. No entanto, um rol de outros profissionais o compõe atuando de forma indireta, mas de considerável importância, para o mister de aplicar o Direito para distribuir justiça. Assim, delegados, agentes policiais, peritos médicos, engenheiros, contadores, auditores e tantos outros se empenham naquela missão fundamental dentro do Estado Democrático de Direito.

Quando afirmo que em minha opinião o sistema de Justiça do Brasil está correndo riscos, me refiro ao cumprimento de seus objetivos primordiais. Como já dito eles se referem à aplicação do Direito, de forma isenta e imparcial. Isso significa distante de eventuais influências de partes interessadas no litígio; indiferente à opinião pública; livre de pressões da mídia e de segmentos sociais específicos. O juiz deve contas apenas a sua consciência e a sua convicção haurida da análise sobre o caso em julgamento.

Uma conduta recomendada e adotada tradicionalmente para evitar a exposição dos magistrados às influências externas sempre foi o recato e a discrição. No entanto, de tempos a esta data alguns integrantes da Justiça não possuem nenhum comedimento em face da imprensa televisada e se manifestam até sobre casos que serão por eles julgados. A máxima não obedecida é que “juiz só fala nos autos”, assim deveria ser. Está se esquecendo de que o processo, embora seja público, não é para o público.

Outro aspecto que está rompendo uma tradição e um saudável comportamento dos juízes refere-se à distância que mantinham das partes e da sociedade em geral. O juiz não era e nem deveria ser um ermitão, mas seu comportamento comedido e recatado colaborava para gerar respeitabilidade. Hoje, alguns juízes estão mantendo um relacionamento com segmentos sociais que pode ser mal interpretado. Eles, com certeza, consideram esses encontros como uma manifestação normal de convívio, já os seus interlocutores podem estar motivados por interesses outros. A banalização desses encontros traz um preocupante desgaste do Poder Judiciário perante a opinião pública.

Há ainda a ser realçada a quebra de procedimentos integrantes da própria estrutura do Poder Judiciário. Dentre elas realço a desobediência ao princípio do colegiado imperante nos órgãos de segundo grau da Justiça. Em nome do acúmulo de processos, os tribunais superiores adotaram as chamadas decisões monocráticas. São elas a própria negação da razão dos tribunais. Esses foram criados para que vários juízes decidissem uma mesma questão, e não apenas um deles.

Distorções também são encontradas na advocacia e no Ministério Público, que atingem a higidez do sistema.

Atualmente nós temos por volta de um 1,4 milhão de advogados e 1,9 mil cursos de Direito. Esses absurdos excessos são os responsáveis pela queda da qualidade da administração da Justiça em todos os seus níveis.

Saliente-se, o número de advogados seria superior caso não houvesse o exame de ordem que reprova por volta de 70% dos inscritos.

Assiste-se, ademais, à parte do Ministério Público como instituição não voltada para a perseguição do justo, mas interessada em acusar de forma descriteriosa e obstinada, tendo provas, não as tendo ou até contra elas.

Todos esses aspectos e vários outros precisam receber uma reavaliação e uma correção quanto as suas consequências, pois poderão causar danos irremediáveis ao sistema de Justiça. Tais danos podem se resumir a um único: perda do respeito e do acatamento da sociedade brasileira em relação aos órgãos e aos agentes do Judiciário. Tal fenômeno poderá conduzir à absoluta anomia e à distopia, estágios que antecedem o caos social e a ruptura do Estado Democrático de Direito.

António Cláudio Mariz de Oliveira, o autor deste artigo, é advogado. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 10.06.24

A política da aversão

Pesquisa revela que o ódio se tornou um dos grandes motivadores para o envolvimento dos cidadãos em ações político-partidárias. Nessa ambição de eliminar o contraditório, todos perecerão

É lamentável constatar que o ódio tenha se tornado uma grande motivação para o envolvimento dos cidadãos em ações político-partidárias no País. Uma pesquisa conduzida por cientistas políticos da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e da Universidade de São Paulo (USP), publicada pelo Estadão no dia 1.º passado, revelou que, entre os filiados a partidos políticos no Brasil, cerca de 70%, nada menos, consideram que a aversão e o ódio a seus adversários políticos, em algum grau, foram fatores relevantes para sua decisão de ingressar numa determinada legenda.

O resultado da pesquisa – de abrangência nacional, realizada com filiados e dirigentes de 32 partidos nos anos de 2020, 2022 e 2023 – partiu de uma arguta curiosidade de seus autores. Eles pretendiam compreender por que, afinal, o número de filiações vem crescendo no País à medida que também cresce um sentimento de descrença em relação não só à política, mas aos políticos em geral. “Descobrimos que o ódio e a rejeição do adversário motivam não só a filiação, mas também são fatores que tornam os filiados ainda mais engajados”, disse ao Estadão o pesquisador Pedro Paulo de Assis, da USP.

Do total de respondentes, 36% disseram que se tornam “altamente engajados” nas atividades de seu partido quando se veem diante da possibilidade de vitória da legenda que mais rejeitam e odeiam. Os pesquisadores classificaram esse comportamento como “engajamento pelo ódio”, que vem à frente de comportamentos políticos tidos como tradicionais, como, por exemplo, a ação motivada pelo desejo de influenciar o processo decisório interno das legendas (32%). Ao menos por enquanto, o “engajamento pelo ódio” só fica atrás do empenho dos filiados pelo triunfo eleitoral de suas próprias siglas (41%).

Isso só acontece porque, há um bom tempo, se estimula no Brasil, mas não só, uma nefasta transfiguração da política. De meio civilizado para a concertação de interesses sociais divergentes, a política passou a ser tratada como uma guerra existencial. Ou, dito de outra forma, um processo de vinculação emocional entre membros de uma tribo, para não dizer seita, que passam a enxergar sua sobrevivência – seja no debate público, seja nas vias de acesso às esferas institucionais de poder – a partir da eliminação política e moral, quando não física, de seus adversários.

Nessa disputa de vida ou morte, os que não comungam das mesmas ideias, aspirações e valores são tratados como inimigos a serem abatidos num campo de batalha. Hoje, felizmente, essa guerra campal é travada no campo simbólico. Sabe-se lá até quando. Ora, isso não é outra coisa senão o fim da política – e, consequentemente, da própria democracia representativa tal como a conhecemos, como o pacto social materializado na Constituição de 1988. Não há, evidentemente, como isso possa dar em bom lugar.

Qualquer sociedade civilizada abraça e encoraja as divergências entre os cidadãos, não as repele, muito menos as desestimula. A política, nesse sentido, exerce um papel central na vida nacional, pois, malgrado a miríade de dissensões que há entre eles, os indivíduos se reconhecem como concidadãos e, nessa condição, buscam alcançar objetivos minimamente comuns. Os partidos sempre foram vistos como os principais organizadores desses interesses em negociação. Agora, ao que parece, tornaram-se grandes usinas de um ódio que, no limite, pode levar à sua extinção como um dos principais mediadores do debate público.

Eis uma grande armadilha. No curtíssimo prazo, essa ação política movida a bile pode até favorecer as legendas por fomentar a filiação partidária, gerar engajamento e, consequentemente, contribuir para um eventual aumento de bancadas federais – o que está diretamente relacionado com o tamanho do quinhão do Orçamento público que os partidos vão receber. Adiante, porém, esse estado de guerra existencial não tem outro destino a não ser o ocaso da política desenvolvida e, a reboque, do valor dos próprios partidos.

Editorial / Notas e Informações, O Esrtado de S. Paulo, em 10.06.24

Um governo que se recusa a ouvir

Ao decidir importar arroz sem ouvir os produtores, governo cria uma solução equivocada para um problema inexistente, perde dinheiro e expõe natureza centralizadora e populista de suas ações

Sem sucesso, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) apelou ao Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender a importação de arroz pelo governo federal. Na ação, a entidade tentava impedir a realização dos leilões públicos para aquisição do produto no exterior e cobrava explicações do Executivo sobre a iniciativa que – supostamente – visava a evitar um desabastecimento em razão das cheias que atingem o Rio Grande do Sul há mais de um mês.

Como se sabe, o ministro André Mendonça não acatou o pedido, e o primeiro leilão ocorreu na última quinta-feira. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) comprou 263 mil toneladas de arroz e, para isso, desembolsou o valor de R$ 1,316 bilhão. O produto deverá ser entregue ao País até 8 de setembro.

Embora não tenha entendido que havia urgência no pedido da CNA, o ministro requereu do governo informações sobre o caso. Era o mínimo. Afinal, ao contrário do que o governo alegava, os sindicatos locais, a Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul) e a própria CNA não viam qualquer risco de desabastecimento que justificasse a compra. A safra gaúcha rendeu 7,1 milhões de toneladas de arroz neste ano, praticamente o mesmo volume colhido no ano anterior, e 84% da produção já havia sido colhida e armazenada antes do início das chuvas.

Nada disso impediu que o Executivo editasse três medidas provisórias, duas portarias interministeriais e uma resolução para autorizar a Conab a adquirir milhões de toneladas de arroz sem Imposto de Importação e vender o produto diretamente nos supermercados, a preços tabelados, subsidiados e em embalagem própria a enaltecer a iniciativa do governo.

Seria o caso de perguntar de onde saiu uma ideia tão equivocada para lidar com uma crise inexistente. Afinal, a União poderá gastar até R$ 7,2 bilhões para viabilizar uma política pública populista, cara e desnecessária, que deve ampliar as perdas dos produtores gaúchos e desestimular o plantio da próxima safra.

A CNA listou uma série de inconstitucionalidades para justificar a suspensão das medidas pelo STF, mas a petição é reveladora sobre a maneira como se deram as decisões do governo. “Os produtores rurais, especialmente os produtores de arroz do Rio Grande do Sul, nunca foram ouvidos no processo de formulação dessa política de importação do cereal”, diz a ação. Ouvir quem entende do assunto e sabe exatamente a dimensão do problema, para o governo, era dispensável.

Antes fosse um problema isolado. O governo adotou conduta semelhante ao endurecer as regras para conteúdo local para bens e serviços na área de petróleo e gás. Embora essa mesma política tenha afastado investidores estrangeiros no passado recente e se mostrado inexequível até mesmo para a Petrobras, o setor soube da decisão por meio de resolução publicada no Diário Oficial.

No setor financeiro, o Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) mantém sua marcha inconsequente pelo corte forçado das taxas de juros – tudo isso a despeito dos reiterados alertas dos bancos sobre a elevação do custo de captação dos recursos e dos indícios de redução da oferta de crédito consignado aos aposentados.

Evidências pululam, mas não importam. O governo Lula da Silva tem a convicção de que só ele sabe o que é melhor para o Brasil e de que não precisa discutir suas propostas com os setores diretamente envolvidos e afetados por suas ações. E quando se digna a recebê-los, o governo costumeiramente ignora suas sugestões. Dialogar não é isso.

Subjaz a essas ações uma crença de que o setor privado atua contra os interesses do País, e de que cabe ao governo defender a população dos desalmados capitalistas. Acredita quem quer. Ao Estadão/Broadcast, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, disse que o leilão foi um “sucesso” e cumpriu o objetivo de combater a “especulação”.

Eis a medida do sucesso, em números: a Conab pagou R$ 25 por pacote de 5 kg para revendê-lo nos supermercados a R$ 20. O contribuinte que arque com a diferença. É por essas e outras que zerar o déficit primário é realmente uma tarefa impossível.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 10.06.24

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Congresso e governo: enigmas de Brasília

O debate necessário passa por algo bem mais profundo do que eficácia de uma articulação política. É um debate sobre a sobrevivência da política

Cientistas políticos devem entender melhor que eu. Acho estranho o que está acontecendo entre este governo chamado de frente democrática e o Congresso.

As recentes derrotas do governo foram interpretadas como fragilidade na articulação, relativa distância do presidente. Esses argumentos não me convencem totalmente.

O Congresso é conservador, sempre foi. Desta vez, é um pouco mais. Derrotas aqui e ali sempre vão acontecer. A análise me parece limitada se avaliamos apenas por que o governo perdeu, e não como perdeu.

Na verdade, quando se perde uma votação no Congresso, quase sempre isso significa uma derrota também de um setor da sociedade que apoia a proposta vencida. Essas pessoas nem sempre se incomodam apenas com o resultado, mas sim com a forma como se perde. É um pouco como no futebol. Seu time pode perder lutando e jogando bem, e isso é um consolo. Mas, quando perde de uma forma burocrática e sonolenta, quebram-se os laços de confiança.

O caso das chamadas saidinhas dos prisioneiros é típico. Não há dúvida de que a maioria dos parlamentares queria acabar com elas. E é muito provável que a maioria dos eleitores pense da mesma forma.

A derrota numérica era previsível. Mas não houve um debate intenso. Não se mostraram as condições das penitenciárias brasileiras. Como dizia o escritor H. D. Thoreau, visitar as prisões é essencial para conhecer um país.

Diante da possibilidade de um rico debate, a base de centro-esquerda do governo praticamente se escondeu. Como explicar isso?

A esquerda sempre foi pelo menos eloquente. Parece que se intimidou com a defesa de uma tese minoritária. Ou mesmo que perdeu sua força de argumentação mergulhada na zona de conforto por estar no poder.

Se isso aconteceu como me parece, não estamos diante apenas de problemas de articulação ou indiferença do presidente. Estamos diante de um processo de declínio de uma força política que ameaça transformá-la na geleia geral da qual pretendia se distinguir no passado.

Alguns observadores chegaram a falar em envelhecimento dos quadros. Mas isso não é um forte argumento. Mahatma Gandhi e Nelson Mandela já eram homens maduros quando venceram suas grandes batalhas.

A mesma noite de derrota nos deu também, creio, um outro ensinamento. Dificilmente conseguiremos combater as chamadas fake news por meio de medidas no Congresso.

Os parlamentares são conservadores, mas regulamentar as redes sociais não é medida radical. A Alemanha o fez, a Escócia acaba de fazê-lo. O problema no Brasil está basicamente na desconfiança de que o controle das redes signifique censura, bloqueio à liberdade de expressão.

Nesse caso, o que é necessário avaliar é a natureza da chamada frente democrática. Ela é composta de uma força hegemônica que dá o tom em quase tudo, principalmente na política externa.

Quando a presidente do PT diz na China que encontrou ali uma democracia efetiva, capaz de dar lições ao Ocidente, está expressando uma posição própria. Quando Lula da Silva convida Nicolás Maduro e faz uma prelação sobre a democracia venezuelana, também revela uma posição que é dele e provavelmente da maioria de seu partido.

Mas isso é interpretado corretamente como uma postura de governo, pois a oposição não vê o governo, ideologicamente, como uma frente democrática, mas sim como um partido único.

Os políticos que foram incorporados ao governo, como Geraldo Alckmin ou Simone Tebet, parecem ocupados em seus cargos, ou satisfeitos com eles, a ponto de não representarem nenhum contraponto.

Neste contexto, é uma tarefa impossível desmobilizar a resistência dos deputados a qualquer tipo de controle das redes sociais, exceto o que se dá independentemente de sua vontade, no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral.

O governo tem falado nas vitórias em temas econômicos e de política social. Na verdade, duas grandes áreas, porque representam o bem-estar material. Mas conformar-se apenas com os aspectos materiais pode ser um equívoco.

Ainda hoje, analistas políticos dizem é a economia, estúpido, reduzindo tudo a um só e importante tópico.

No fim do século passado, a Universidade Oxford editou uma série de volumes de pesquisas intitulada Crenças no Governo. Não por acaso, o último tomo se intitulava O Impacto dos Valores. Tratava da Europa e já falava na transição para objetivos não materiais, numa sociedade mais participativa, na qual ideias, autoexpressão e preocupações estéticas tornam-se politicamente relevantes.

Trinta anos depois, alguma coisa, ainda que modestamente, chegaria por aqui. Talvez não sejamos tão estúpidos como pensam os estrategistas.

A redução de tudo às preocupações materiais é, no fundo, a suposição de que todos carregam a mesma deformação de alguns políticos. Nesse caso, a complexa sociedade brasileira seria definida por um só adjetivo: fisiológica.

O debate necessário passa por algo bem mais profundo do que eficácia de uma articulação política. Na verdade, é um debate sobre a sobrevivência da política, mergulhada numa crise profunda.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 07.06.24

A tragédia gaúcha ao olho vivo

As águas não são más nem assassinas. Têm força, porém. Se forem contínuas, exigem cuidados dos governantes, algo que faltou no Sul

Enchentes no Rio Grande do Sul (Foto: Agência Brasil)

Escrevo de Porto Alegre, onde a vida se confunde com a hecatombe. Mais de dois terços do Rio Grande do Sul estiveram literalmente submersos por mais de 30 dias. Agora, em muitas localidades, nas cidades e nos campos, as águas baixaram, mas a enchente continua, mesmo em menor intensidade e extensão. Invadidos pelas águas, até hospitais estão sem funcionar. O aeroporto da capital gaúcha está totalmente alagado, da pista de pouso à estação de passageiros. E mais ainda: a inundação também soterrou, no sentido literal do verbo. Morros despencaram, soterrando o que encontravam pela frente – pessoas, residências, fábricas, árvores, plantações, animais, móveis e automóveis.

Dos objetos pessoais, como carteiras de identidade, fotografias familiares, títulos eleitorais e outros documentos, tudo desapareceu. Nos prédios que sobraram, a água invasora rachou as paredes.

O panorama é de guerra, mesmo sem bombardeios e canhões, como se a destruição da Ucrânia ou da Faixa de Gaza tivesse se instalado no sul do Brasil. Ou como se o terrorismo do Hamas tivesse mudado de fisionomia e adotado a forma de chuva.

Tudo é indescritível. Faltam adjetivos em nossa língua, ou em qualquer outro idioma, para descrever a situação e tudo o que se vê ao redor. A cidade de Eldorado, na área metropolitana, foi totalmente alagada e em todo o Rio Grande do Sul há mais de 150 mortos. O irônico em tudo é que “El Dorado” foi a denominação que, no século 16, os conquistadores europeus deram aos locais de minas de ouro nos territórios das Américas...

Ironia maior, porém, é que a 5 de junho (48 horas atrás) celebrou-se o Dia Mundial do Meio Ambiente...

Todo esse horror, porém, foi compensado, em parte, pela solidariedade de diferentes setores da sociedade brasileira. Homens e mulheres se transformaram em trabalhadores voluntários, auxiliando os danificados. Boa parte deles era de outros Estados e pela primeira vez conhecia o sul do Brasil. Essa solidariedade espontânea chegou às escolas de São Paulo (e de outras cidades) e foi compartilhada por adolescentes ou até crianças, que recolheram garrafas de água potável para serem enviadas aos atingidos pelas enchentes.

A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) levou ao Rio Grande do Sul bombas de sucção e outros materiais similares, lá inexistentes. Bombeiros de distantes Estados, como Acre e Maranhão, lá estavam (ou continuam a estar) numa demonstração em tempo real de que somos uma só nação, unida até na desgraça.

A tragédia do sul do Brasil demonstrou que as mudanças climáticas não são uma simples tese de ambientalistas, mas, sim, uma realidade que se agrava pelo nosso desdém ao tratar a natureza como um estorvo. Continuamos (ou até incentivamos) a derrubar matas nativas, e até as reflorestadas, que atuam como reguladoras das chuvas e, por consequência, dos aguaceiros e enchentes. Tudo isso alternando-se com estiagens longas que afetam a agricultura.

Agora, uma das dramáticas consequências das enchentes no Rio Grande do Sul é a possibilidade de faltar arroz. O governo federal liberou a importação do cereal prevendo que falte em nossas refeições. Poderá também faltar ou escassear soja. Os estragos deixados pelas enchentes não afetaram apenas o setor agrícola e chegam também à indústria automobilística. O Sul é fabricante de peças essenciais à produção de automóveis e de caminhões.

À beira das poucas estradas não alagadas, improvisadas barracas de lona ou plástico servem de moradia a milhares de desalojados. Em várias cidades (especialmente na capital estadual) milhares de adultos e crianças estão recolhidos em improvisados abrigos. Lá, dormem e comem os alimentos preparados por voluntários.

As águas não são más nem assassinas. Têm força, porém. Se forem contínuas, exigem cuidados dos governantes, algo que evidentemente faltou agora no Sul. A prefeitura da capital gaúcha não conservou as comportas que separam a cidade das águas do Lago Guaíba. A chuvarada rompeu tudo, alagando totalmente a zona central. Nem sequer havia bombas de sucção.

Por outro lado, o governo do Estado alterou o pioneiro Código Estadual do Meio Ambiente, que serviu de modelo a outros Estados, e, assim, facilitou a hecatombe de agora. A alteração facilitava a construção de uma mina de carvão a céu aberto, à beira do caudaloso Rio Jacuí, que desemboca no imenso Lago Guaíba, que banha a capital gaúcha. A mobilização da opinião pública evitou a abertura da mina, que, se fosse construída, teria, com as enchentes de agora, transformado o Lago Guaíba numa pestilenta cloaca.

Existe, porém, o lado oculto e pernicioso que se autointitula reconstrução, mas que em realidade se dedica ao roubo ou à fraude. Nos alojamentos provisórios houve larápios e foi necessária a intervenção policial para evitar a continuidade do roubo. Em municípios do interior, funcionários das prefeituras superfaturaram em até 200% a compra de alimentos ou roupas para os desalojados pela enchente.

A tragédia só se explica, porém, pela crise climática.

Flávio Tavares, o autor deste artigo, é Jornalista, escritor (Prêmio Jabuti 2000 e 2005; Prêmio APCA 2004) e professor aposentado da Universidade de Brasília. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 07.06.24

A ética dos arruaceiros

Cenas vergonhosas protagonizadas por desordeiros no Conselho de Ética mostram que essa ralé não respeita nem os adversários nem o voto que recebeu. Ou seja, não respeita a democracia



Reunião da Comissão de Ética da Câmara dos Deputados (YouTube) 

Diz muito sobre o atual DNA do Congresso Nacional a vergonhosa baderna que transformou o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados em uma espécie de “conselho de ética dos arruaceiros”. Na sessão que livrou o deputado André Janones (Avante-MG) da cassação pela prática de “rachadinha” – quando parte do salário de funcionários do gabinete é repassada ao parlamentar –, assistiu-se a muito mais do que a repetição da hipocrisia e da indulgência, às quais congressistas recorrem para encobrir malfeitos de colegas. Antes fosse algo extraordinário, a entrar no anedotário de uma casa de baixo prestígio. O que se viu, ao contrário, foi a realidade exposta de um desvio permanente: o Congresso Nacional, a instituição que deveria ser a sede da democracia, isto é, do respeito ao dissenso, vem sendo vilipendiado por uma ralé que não honra o voto que recebeu.

Além do insulto à inteligência alheia, com a impunidade de um parlamentar sobre quem pairavam todas as evidências, houve empurrões, xingamentos e palavras de baixo calão, e só não se chegou às vias de fato porque os valentões foram contidos.

A molecagem envolveu, primeiro, os deputados Nikolas Ferreira (PL-MG) e o próprio André Janones, depois este contra o deputado Zé do Trovão (PL-SC). Já Guilherme Boulos (PSOL-SP) – que, como relator do caso, parece ter concluído que há “rachadinhas do bem” (cometidas por aliados, como Janones) e “rachadinhas do mal” (a de seus opositores) e recomendou o arquivamento do caso – bateu boca com Pablo Marçal, dublê de coach e picareta bolsonarista que, como muitos ali, ganhou notoriedade na base do ultraje.

Marçal, a propósito, nem deputado é, mas foi levado à sessão por aliados, mesmo com a ordem do presidente da comissão de permitir a presença apenas de parlamentares. Para completar o deboche, Marçal – que, como Boulos, é pré-candidato à Prefeitura de São Paulo – usava um broche de parlamentar, que somente os 513 deputados têm. Toda essa turma converteu a sessão num circo grotesco, ambiente no qual muitos deles se sentem em casa.

É isto um Parlamento? Nem remotamente. É evidente que o Congresso deve ser lugar de debates muitas vezes acirrados sobre os rumos do País, mas há limites para o acirramento, determinados pelo decoro. E o decoro não é uma escolha, mas uma obrigação daqueles que pretendem representar o povo nesse debate: não se trata apenas de respeitar aquele com quem há divergências, mas, sobretudo, de respeitar os votos recebidos pelo adversário. Todos têm legitimidade popular para estar ali e por isso mesmo devem ao menos tolerar uns aos outros.

Nos últimos tempos, porém, o Congresso Nacional parece funcionar movido pelos algoritmos das redes sociais. A transformação digital da discussão política mudou representantes que antes acreditavam em divergência com civilidade, e a tribalização da vida pública deu incentivos para a radicalização e a intolerância, que se tornaram ativos eleitorais. Não raro, usa-se a política como trampolim para a lacração, como se a prática parlamentar requeresse ser modulada pelos padrões de engajamento que se veem nas redes sociais. E o mais grave: agem de maneira a proteger colegas envolvidos em atos duvidosos, como pareceu o caso envolvendo Janones.

E assim o Congresso segue descendo a ladeira da popularidade. Num levantamento do Datafolha de março deste ano, o Congresso só perdeu para redes sociais e partidos políticos na lanterna do ranking de confiança da população, ficando atrás das Forças Armadas, grandes empresas, Poder Judiciário, Ministério Público, Presidência da República, Supremo Tribunal Federal (STF) e imprensa. Consequência inevitável de um Parlamento formado em parte por quem não pretende representar ninguém senão a si mesmo, gente que reduziu a atividade política a uma live contínua, feita para gerar cliques e insultos, sem nada a propor de bom para o País.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 07.06.24

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Judiciário custoso e voraz

Relatório do CNJ mostra peso dos gastos com juízes e reforça necessidade de se acabar com a farra


Não há, sob nenhuma perspectiva, argumento plausível que justifique a gastança do Judiciário brasileiro demonstrada pelo mais recente relatório Justiça em Números 2024, do Conselho Nacional de Justiça

(CNJ). A título de sumário executivo, basta dizer que o cenário ali traçado mostra uma elite do serviço público que só falta cobrar laudêmio para completar o rol de benefícios extravagantes que recebe à custa dos plebeus.

O peso da Justiça brasileira chegou a R$ 132,8 bilhões no ano passado, um recorde desde 2009, quando esse Poder custava R$ 85,4 bilhões. No acumulado, a alta ultrapassa 55%. A monta corresponde a 1,2% do PIB.

A comparação com outros países envergonha. Nações em desenvolvimento, como o Brasil, gastam 0,5% do PIB, enquanto economias avançadas despendem 0,3% do PIB com o Judiciário, segundo estudo do Tesouro feito com base em dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Brasil é o líder da gastança entre 53 países.

Segundo o Justiça em Números, 90,2% (R$ 119,7 bilhões) dos recursos bancam despesas com pessoal. O fato estarrecedor é que os 18,2 mil magistrados do País – das Justiças Estaduais, Federal, do Trabalho, Eleitoral, Militar e dos tribunais superiores – custam aos cofres públicos, em média, R$ 68 mil por mês – um evidente drible no teto constitucional, que hoje está em R$ 44 mil. Poucos trabalhadores no Brasil ganham R$ 20,1 mil mensais, mas essa é a despesa média com servidores do Judiciário.

A sociedade arca, ainda, com benesses que só fazem aumentar. São penduricalhos criados por vias administrativas, em conselhos superiores, que irrigam os já generosos contracheques dos colegas de toga, como bônus por acúmulo de funções administrativas ou processos.

Benefícios como auxílio-alimentação e auxíliosaúde, entre outros, somam R$ 11,1 bilhões por ano. Indenizações como diárias, passagens e auxílio-moradia – isentas de pagamento de impostos – drenam R$ 4,7 bilhões.

Apenas a título de comparação, as três universidades estaduais paulistas (USP, Unesp e Unicamp), incumbidas de formação profissional, produção científica e projetos de extensão, deverão ter orçamento de R$ 16 bilhões em 2025.

Segundo o CNJ, os magistrados estão produzindo a contento. A alta de 7% no número de processos baixados em 2023 (34,9 milhões) é digna de avaliação positiva para o órgão, em um ano no qual os casos em tramitação chegaram a espantosos 84 milhões.

Ainda que a Justiça brasileira fosse exemplar e expedita, o que não é, está claro que há exagero nos gastos com a máquina do Judiciário – e ainda há quem defenda uma emenda constitucional que estabeleça um aumento de 5% a cada cinco anos aos magistrados independentemente de sua capacidade e de seu mérito – e, claro, ignorando olimpicamente o teto do funcionalismo, esse limite que só serve para servidores de fora da casta jurídica.

Editorial / O Estado de S. Paulo, em 31.05.24

Ainda o Judiciário, gastos com servidores e terceirizados aumentam

O relatório “Justiça em Números”, produzido anualmente, indica ainda quanto foi o gasto mensal, no Judiciário, com servidores (R$ 20,1 mil), terceirizados (R$ 5,1 mil) e estagiários (R$ 1,3 mil). 

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), houve um aumento de 1,8% nas despesas por magistrado, de 6,5% nos gastos por servidor, de 4,8% entre terceirizados e de 21,4% por estagiários.

Ainda de acordo com o documento, o gasto com o Judiciário em 2023 representa 1,2% do PIB ou 2,38% dos gastos totais de União, Estados, Distrito Federal e municípios. O relatório consolida estatísticas de 91 órgãos do Poder Judiciário, sem contar o Supremo Tribunal Federal e o próprio CNJ. São apresentados dados dos 27 Tribunais de Justiça estaduais, dos seis Tribunais Regionais Federais, dos 24 Tribunais Regionais do Trabalho, dos 27 Tribunais Regionais Eleitorais, dos três Tribunais de Justiça Militar estaduais, além de Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral e Superior Tribunal Militar. 

Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, 29.05.24

Poder Judiciário custou R$ 653,70 a cada brasileiro no ano passado

Cofres públicos gastaram R$ 132,8 bi com o Poder no ano passado, valor recorde de uma série histórica iniciada em 2009

No total, despesas chegaram a R$ 132,8 bilhões, um aumento de 9% nos gastos em relação a 2022.

O Poder Judiciário custou R$ 132,8 bilhões aos cofres públicos no ano passado. Conforme dados do relatório “Justiça em Números”, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o aumento foi de 9% em relação a 2022, quando os gastos somaram R$ 121,8 bilhões. É o maior valor da série histórica, iniciada em 2009, desconsiderando o valor da inflação. O mais alto, até 2023, tinha sido o de R$ 127,6 bilhões, em 2019. Cada um dos 203 milhões de brasileiros gastou R$ 653,70 para bancar o Judiciário no ano passado.

A base dos números é do DataJud – plataforma que centraliza informações dos tribunais de todo o País. A despesa média mensal por magistrado – 18,2 mil juízes em todo o País – foi de R$ 68,1 mil, valor que supera em cerca de R$ 24 mil o teto do funcionalismo público (equivalente aos subsídios de um ministro do Supremo Tribunal Federal).

PEC. Os dados de 2023 foram divulgados em um cenário em que o Congresso volta a debater a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Quinquênio, cuja aprovação tem impacto estimado de mais de R$ 40 bilhões ao ano. A proposta, de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSDMG), prevê um bônus automático de 5% nos vencimentos de juízes, procuradores e promotores a cada cinco anos.

Como mostrou o Estadão, nota técnica da consultoria do Senado apontou que a PEC compromete a entrega de serviços essenciais à população e põe em risco a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

As despesas do Judiciário com pessoal bateram R$ 119,78 bilhões em 2023, o equivalente a 90,2% do custo total do Poder. Desse montante, 82% foram gastos com as remunerações de magistrados e servidores, incluindo inativos (R$ 98,1 bi); 9,3% corresponderam ao pagamento de benefícios (R$ 11 bi); 4% estão ligados a “despesas em caráter eventual e indenizatório” (R$ 4,7 bi); 4% foram gastos com terceirizados; e 0,7%, com estagiários (R$ 892 mi). O Estadão tem revelado a existência de supersalários de magistrados. Os subsídios são elevados com penduricalhos – vantagens e benefícios que não são submetidos ao abate-teto.

TURBINADOS. O CNJ reconhece os holerites turbinados. “Por se tratar de um valor médio, eventuais indenizações recebidas em razão de decisão judicial destinadas a um pequeno grupo de indivíduos podem impactar sobremaneira nas médias apresentadas, especialmente em órgãos de pequeno ou médio porte, com menor quantitativo de pessoas.”

A Corte com maior custo médio mensal por magistrado foi o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (R$ 120,3 mil), seguido pelos tribunais de Mato Grosso (R$ 116,6 mil) e do Tocantins (R$ 111,5 mil). Procuradas, as Cortes não se manifestaram. •

Pepita Ortega, jornalista, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 28.05.24

‘Princípio lotérico do Direito’

Hoje vivemos o reinado das decisões monocráticas no STF e Superior Tribunal de Justiça (STJ); além disso, os precedentes adquiriram relevância jamais vista; por vezes interpretam-se dispositivos legais de tal modo que, na prática, é como se eles tivessem sido alterados pelo legislador.

A vida da República está sofrendo alterações. O presidente perde espaço para o Poder Legislativo, que avança ao monopolizar boa parte da política orçamentária e ao derrubar vetos presidenciais. 

Também o faz diante do Judiciário, como na proposta de emenda à Constituição para se contrapor ao Supremo Tribunal Federal (STF) no tema do porte de maconha para uso próprio. 

O Supremo, por sua vez, provocado amiúde por partidos políticos, adota decisões, muitas monocráticas, que se sobrepõem ao Legislativo e ao Executivo.

No Poder Judiciário as transformações têm sido profundas.

Em países anglo-saxões impera a common law, que é um sistema baseado em decisões judiciais que têm grande força. No Brasil, que sempre adotou o sistema romano-germânico, a lei deveria ser o principal vetor dos julgamentos, ao passo que à jurisprudência restaria uma função orientativa.

Todavia, hoje vivemos o reinado das decisões monocráticas no STF e Superior Tribunal de Justiça (STJ); além disso, os precedentes adquiriram relevância jamais vista; por vezes interpretam-se dispositivos legais de tal modo que, na prática, é como se eles tivessem sido alterados pelo legislador. Criou-se uma common law à brasileira.

A insegurança jurídica bate à porta. Isso porque, no mundo das decisões judiciais, cada julgador tem as suas convicções, a sua visão de mundo, o seu viés de interpretar a lei e os fatos. É a beleza da lógica e do sentimento humano no Judiciário. O juiz sente para sentenciar. A lei é estática, mas a sua interpretação é dinâmica, variando de tempos em tempos, de magistrado para magistrado. Sendo a jurisprudência o “Direito vivo”, as reviravoltas de entendimento nos tribunais acontecem.

Diante desse novo contexto de reinado das decisões monocráticas e da jurisprudência sobre a lei, há um tema que traz inquietação: o fator sorte.

Em primeiro grau, por exemplo, juízes criminais podem interpretar diferentemente o que significa “garantia da ordem pública”. Há decisões inclusive pela sua inconstitucionalidade. A depender da distribuição a esse ou àquele juiz, a prisão preventiva do acusado poderá ser decretada ou não.

O fator sorte também está presente nos tribunais de segundo grau, que muitas vezes decidem de forma contrária ao STJ e STF. Cito o exemplo do princípio da insignificância, que torna a conduta não criminosa por falta de ofensividade, como no caso de furto de um quilo de arroz. Há câmaras que não admitem tal princípio; se o acusado tiver o seu caso distribuído a uma delas, o seu destino será perder. Caso julgado por outras, sairá vitorioso. Na área trabalhista, é sintomática a questão da contratação pela CLT versus a “pejotização”, havendo grande conflito entre Tribunais Regionais do Trabalho e o STF.

Essa postura independente gera a uma enxurrada de recursos ao STJ e STF. Esse fato vem causando outros fenômenos transformadores do Poder Judiciário.

Criou-se no STJ e no STF a denominada jurisprudência defensiva, que impõe obstáculos infindáveis, por vezes fundados em filigranas jurídicas, aos recursos especiais e extraordinários. Filtrados por sistemas de inteligência artificial, pouquíssimos prosperam. Não é por menos que somente 4% dos recursos especiais no STJ têm o seu mérito julgado. No STF, uma parcela ínfima dos recursos extraordinários é admitida.

De fato, como a esmagadora maioria deles é sepultada em decisão monocrática do relator, como também vem ocorrendo com ordens de habeas corpus, o fator sorte na distribuição para um relator que tenha entendimento mais favorável à tese sustentada torna-se altamente relevante.

E o problema aumenta na medida em que os recursos de agravo contra essas decisões individuais são, em grande parte, julgados de forma totalmente virtual, sendo raros os casos de reversão. Aos defensores relega-se o envio prévio de um vídeo com a sustentação oral, não podendo interagir pois sequer acompanham o julgamento; angustiados, aguardam o resultado no portal eletrônico do tribunal.

No STF, havendo decisão individual que nega o habeas corpus, sequer sustentação oral é possível no agravo. Esse fato tem gerado grande indignação entre os advogados, pois o Estatuto da Advocacia, que garante esse direito, é lei específica e posterior ao regimento do Supremo. Tem-se uma mordaça.

Com a invenção desses julgamentos virtuais, onde a defesa é limitada, a Justiça está se tornando algo do ciberespaço, uma espécie de metaverso.

O fator sorte a depender do sorteio do relator torna-se ainda mais relevante em se tratando de habeas corpus com pedido de liminar, uma vez que existem magistrados que dificilmente a concedem, diferentemente de outros. Se o habeas cair com um, há maiores chances de vitória do que com outro.

É o que chamo de “princípio lotérico do Direito”, que não está nos livros nem no currículo das faculdades. Embora em certa medida ele sempre tenha existido, é inconteste que na atual conjuntura, onde há o reinado das decisões monocráticas, dos julgamentos virtuais e da jurisprudência que se torna lei, a sorte e o azar nunca estiveram tão presentes, como também a insegurança jurídica. •

Embora ele sempre tenha existido, é inconteste que na atual conjuntura a sorte e o azar nunca estiveram tão presentes, como também a insegurança jurídica.

Roberto Delmanto Junior, o autor deste artigo, é advogadoo criminalista há 33 anos; mestre e doutor em direito processual pela USP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 30.05.24