segunda-feira, 10 de junho de 2024

Um governo que se recusa a ouvir

Ao decidir importar arroz sem ouvir os produtores, governo cria uma solução equivocada para um problema inexistente, perde dinheiro e expõe natureza centralizadora e populista de suas ações

Sem sucesso, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) apelou ao Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender a importação de arroz pelo governo federal. Na ação, a entidade tentava impedir a realização dos leilões públicos para aquisição do produto no exterior e cobrava explicações do Executivo sobre a iniciativa que – supostamente – visava a evitar um desabastecimento em razão das cheias que atingem o Rio Grande do Sul há mais de um mês.

Como se sabe, o ministro André Mendonça não acatou o pedido, e o primeiro leilão ocorreu na última quinta-feira. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) comprou 263 mil toneladas de arroz e, para isso, desembolsou o valor de R$ 1,316 bilhão. O produto deverá ser entregue ao País até 8 de setembro.

Embora não tenha entendido que havia urgência no pedido da CNA, o ministro requereu do governo informações sobre o caso. Era o mínimo. Afinal, ao contrário do que o governo alegava, os sindicatos locais, a Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul) e a própria CNA não viam qualquer risco de desabastecimento que justificasse a compra. A safra gaúcha rendeu 7,1 milhões de toneladas de arroz neste ano, praticamente o mesmo volume colhido no ano anterior, e 84% da produção já havia sido colhida e armazenada antes do início das chuvas.

Nada disso impediu que o Executivo editasse três medidas provisórias, duas portarias interministeriais e uma resolução para autorizar a Conab a adquirir milhões de toneladas de arroz sem Imposto de Importação e vender o produto diretamente nos supermercados, a preços tabelados, subsidiados e em embalagem própria a enaltecer a iniciativa do governo.

Seria o caso de perguntar de onde saiu uma ideia tão equivocada para lidar com uma crise inexistente. Afinal, a União poderá gastar até R$ 7,2 bilhões para viabilizar uma política pública populista, cara e desnecessária, que deve ampliar as perdas dos produtores gaúchos e desestimular o plantio da próxima safra.

A CNA listou uma série de inconstitucionalidades para justificar a suspensão das medidas pelo STF, mas a petição é reveladora sobre a maneira como se deram as decisões do governo. “Os produtores rurais, especialmente os produtores de arroz do Rio Grande do Sul, nunca foram ouvidos no processo de formulação dessa política de importação do cereal”, diz a ação. Ouvir quem entende do assunto e sabe exatamente a dimensão do problema, para o governo, era dispensável.

Antes fosse um problema isolado. O governo adotou conduta semelhante ao endurecer as regras para conteúdo local para bens e serviços na área de petróleo e gás. Embora essa mesma política tenha afastado investidores estrangeiros no passado recente e se mostrado inexequível até mesmo para a Petrobras, o setor soube da decisão por meio de resolução publicada no Diário Oficial.

No setor financeiro, o Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) mantém sua marcha inconsequente pelo corte forçado das taxas de juros – tudo isso a despeito dos reiterados alertas dos bancos sobre a elevação do custo de captação dos recursos e dos indícios de redução da oferta de crédito consignado aos aposentados.

Evidências pululam, mas não importam. O governo Lula da Silva tem a convicção de que só ele sabe o que é melhor para o Brasil e de que não precisa discutir suas propostas com os setores diretamente envolvidos e afetados por suas ações. E quando se digna a recebê-los, o governo costumeiramente ignora suas sugestões. Dialogar não é isso.

Subjaz a essas ações uma crença de que o setor privado atua contra os interesses do País, e de que cabe ao governo defender a população dos desalmados capitalistas. Acredita quem quer. Ao Estadão/Broadcast, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, disse que o leilão foi um “sucesso” e cumpriu o objetivo de combater a “especulação”.

Eis a medida do sucesso, em números: a Conab pagou R$ 25 por pacote de 5 kg para revendê-lo nos supermercados a R$ 20. O contribuinte que arque com a diferença. É por essas e outras que zerar o déficit primário é realmente uma tarefa impossível.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 10.06.24

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Congresso e governo: enigmas de Brasília

O debate necessário passa por algo bem mais profundo do que eficácia de uma articulação política. É um debate sobre a sobrevivência da política

Cientistas políticos devem entender melhor que eu. Acho estranho o que está acontecendo entre este governo chamado de frente democrática e o Congresso.

As recentes derrotas do governo foram interpretadas como fragilidade na articulação, relativa distância do presidente. Esses argumentos não me convencem totalmente.

O Congresso é conservador, sempre foi. Desta vez, é um pouco mais. Derrotas aqui e ali sempre vão acontecer. A análise me parece limitada se avaliamos apenas por que o governo perdeu, e não como perdeu.

Na verdade, quando se perde uma votação no Congresso, quase sempre isso significa uma derrota também de um setor da sociedade que apoia a proposta vencida. Essas pessoas nem sempre se incomodam apenas com o resultado, mas sim com a forma como se perde. É um pouco como no futebol. Seu time pode perder lutando e jogando bem, e isso é um consolo. Mas, quando perde de uma forma burocrática e sonolenta, quebram-se os laços de confiança.

O caso das chamadas saidinhas dos prisioneiros é típico. Não há dúvida de que a maioria dos parlamentares queria acabar com elas. E é muito provável que a maioria dos eleitores pense da mesma forma.

A derrota numérica era previsível. Mas não houve um debate intenso. Não se mostraram as condições das penitenciárias brasileiras. Como dizia o escritor H. D. Thoreau, visitar as prisões é essencial para conhecer um país.

Diante da possibilidade de um rico debate, a base de centro-esquerda do governo praticamente se escondeu. Como explicar isso?

A esquerda sempre foi pelo menos eloquente. Parece que se intimidou com a defesa de uma tese minoritária. Ou mesmo que perdeu sua força de argumentação mergulhada na zona de conforto por estar no poder.

Se isso aconteceu como me parece, não estamos diante apenas de problemas de articulação ou indiferença do presidente. Estamos diante de um processo de declínio de uma força política que ameaça transformá-la na geleia geral da qual pretendia se distinguir no passado.

Alguns observadores chegaram a falar em envelhecimento dos quadros. Mas isso não é um forte argumento. Mahatma Gandhi e Nelson Mandela já eram homens maduros quando venceram suas grandes batalhas.

A mesma noite de derrota nos deu também, creio, um outro ensinamento. Dificilmente conseguiremos combater as chamadas fake news por meio de medidas no Congresso.

Os parlamentares são conservadores, mas regulamentar as redes sociais não é medida radical. A Alemanha o fez, a Escócia acaba de fazê-lo. O problema no Brasil está basicamente na desconfiança de que o controle das redes signifique censura, bloqueio à liberdade de expressão.

Nesse caso, o que é necessário avaliar é a natureza da chamada frente democrática. Ela é composta de uma força hegemônica que dá o tom em quase tudo, principalmente na política externa.

Quando a presidente do PT diz na China que encontrou ali uma democracia efetiva, capaz de dar lições ao Ocidente, está expressando uma posição própria. Quando Lula da Silva convida Nicolás Maduro e faz uma prelação sobre a democracia venezuelana, também revela uma posição que é dele e provavelmente da maioria de seu partido.

Mas isso é interpretado corretamente como uma postura de governo, pois a oposição não vê o governo, ideologicamente, como uma frente democrática, mas sim como um partido único.

Os políticos que foram incorporados ao governo, como Geraldo Alckmin ou Simone Tebet, parecem ocupados em seus cargos, ou satisfeitos com eles, a ponto de não representarem nenhum contraponto.

Neste contexto, é uma tarefa impossível desmobilizar a resistência dos deputados a qualquer tipo de controle das redes sociais, exceto o que se dá independentemente de sua vontade, no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral.

O governo tem falado nas vitórias em temas econômicos e de política social. Na verdade, duas grandes áreas, porque representam o bem-estar material. Mas conformar-se apenas com os aspectos materiais pode ser um equívoco.

Ainda hoje, analistas políticos dizem é a economia, estúpido, reduzindo tudo a um só e importante tópico.

No fim do século passado, a Universidade Oxford editou uma série de volumes de pesquisas intitulada Crenças no Governo. Não por acaso, o último tomo se intitulava O Impacto dos Valores. Tratava da Europa e já falava na transição para objetivos não materiais, numa sociedade mais participativa, na qual ideias, autoexpressão e preocupações estéticas tornam-se politicamente relevantes.

Trinta anos depois, alguma coisa, ainda que modestamente, chegaria por aqui. Talvez não sejamos tão estúpidos como pensam os estrategistas.

A redução de tudo às preocupações materiais é, no fundo, a suposição de que todos carregam a mesma deformação de alguns políticos. Nesse caso, a complexa sociedade brasileira seria definida por um só adjetivo: fisiológica.

O debate necessário passa por algo bem mais profundo do que eficácia de uma articulação política. Na verdade, é um debate sobre a sobrevivência da política, mergulhada numa crise profunda.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 07.06.24

A tragédia gaúcha ao olho vivo

As águas não são más nem assassinas. Têm força, porém. Se forem contínuas, exigem cuidados dos governantes, algo que faltou no Sul

Enchentes no Rio Grande do Sul (Foto: Agência Brasil)

Escrevo de Porto Alegre, onde a vida se confunde com a hecatombe. Mais de dois terços do Rio Grande do Sul estiveram literalmente submersos por mais de 30 dias. Agora, em muitas localidades, nas cidades e nos campos, as águas baixaram, mas a enchente continua, mesmo em menor intensidade e extensão. Invadidos pelas águas, até hospitais estão sem funcionar. O aeroporto da capital gaúcha está totalmente alagado, da pista de pouso à estação de passageiros. E mais ainda: a inundação também soterrou, no sentido literal do verbo. Morros despencaram, soterrando o que encontravam pela frente – pessoas, residências, fábricas, árvores, plantações, animais, móveis e automóveis.

Dos objetos pessoais, como carteiras de identidade, fotografias familiares, títulos eleitorais e outros documentos, tudo desapareceu. Nos prédios que sobraram, a água invasora rachou as paredes.

O panorama é de guerra, mesmo sem bombardeios e canhões, como se a destruição da Ucrânia ou da Faixa de Gaza tivesse se instalado no sul do Brasil. Ou como se o terrorismo do Hamas tivesse mudado de fisionomia e adotado a forma de chuva.

Tudo é indescritível. Faltam adjetivos em nossa língua, ou em qualquer outro idioma, para descrever a situação e tudo o que se vê ao redor. A cidade de Eldorado, na área metropolitana, foi totalmente alagada e em todo o Rio Grande do Sul há mais de 150 mortos. O irônico em tudo é que “El Dorado” foi a denominação que, no século 16, os conquistadores europeus deram aos locais de minas de ouro nos territórios das Américas...

Ironia maior, porém, é que a 5 de junho (48 horas atrás) celebrou-se o Dia Mundial do Meio Ambiente...

Todo esse horror, porém, foi compensado, em parte, pela solidariedade de diferentes setores da sociedade brasileira. Homens e mulheres se transformaram em trabalhadores voluntários, auxiliando os danificados. Boa parte deles era de outros Estados e pela primeira vez conhecia o sul do Brasil. Essa solidariedade espontânea chegou às escolas de São Paulo (e de outras cidades) e foi compartilhada por adolescentes ou até crianças, que recolheram garrafas de água potável para serem enviadas aos atingidos pelas enchentes.

A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) levou ao Rio Grande do Sul bombas de sucção e outros materiais similares, lá inexistentes. Bombeiros de distantes Estados, como Acre e Maranhão, lá estavam (ou continuam a estar) numa demonstração em tempo real de que somos uma só nação, unida até na desgraça.

A tragédia do sul do Brasil demonstrou que as mudanças climáticas não são uma simples tese de ambientalistas, mas, sim, uma realidade que se agrava pelo nosso desdém ao tratar a natureza como um estorvo. Continuamos (ou até incentivamos) a derrubar matas nativas, e até as reflorestadas, que atuam como reguladoras das chuvas e, por consequência, dos aguaceiros e enchentes. Tudo isso alternando-se com estiagens longas que afetam a agricultura.

Agora, uma das dramáticas consequências das enchentes no Rio Grande do Sul é a possibilidade de faltar arroz. O governo federal liberou a importação do cereal prevendo que falte em nossas refeições. Poderá também faltar ou escassear soja. Os estragos deixados pelas enchentes não afetaram apenas o setor agrícola e chegam também à indústria automobilística. O Sul é fabricante de peças essenciais à produção de automóveis e de caminhões.

À beira das poucas estradas não alagadas, improvisadas barracas de lona ou plástico servem de moradia a milhares de desalojados. Em várias cidades (especialmente na capital estadual) milhares de adultos e crianças estão recolhidos em improvisados abrigos. Lá, dormem e comem os alimentos preparados por voluntários.

As águas não são más nem assassinas. Têm força, porém. Se forem contínuas, exigem cuidados dos governantes, algo que evidentemente faltou agora no Sul. A prefeitura da capital gaúcha não conservou as comportas que separam a cidade das águas do Lago Guaíba. A chuvarada rompeu tudo, alagando totalmente a zona central. Nem sequer havia bombas de sucção.

Por outro lado, o governo do Estado alterou o pioneiro Código Estadual do Meio Ambiente, que serviu de modelo a outros Estados, e, assim, facilitou a hecatombe de agora. A alteração facilitava a construção de uma mina de carvão a céu aberto, à beira do caudaloso Rio Jacuí, que desemboca no imenso Lago Guaíba, que banha a capital gaúcha. A mobilização da opinião pública evitou a abertura da mina, que, se fosse construída, teria, com as enchentes de agora, transformado o Lago Guaíba numa pestilenta cloaca.

Existe, porém, o lado oculto e pernicioso que se autointitula reconstrução, mas que em realidade se dedica ao roubo ou à fraude. Nos alojamentos provisórios houve larápios e foi necessária a intervenção policial para evitar a continuidade do roubo. Em municípios do interior, funcionários das prefeituras superfaturaram em até 200% a compra de alimentos ou roupas para os desalojados pela enchente.

A tragédia só se explica, porém, pela crise climática.

Flávio Tavares, o autor deste artigo, é Jornalista, escritor (Prêmio Jabuti 2000 e 2005; Prêmio APCA 2004) e professor aposentado da Universidade de Brasília. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 07.06.24

A ética dos arruaceiros

Cenas vergonhosas protagonizadas por desordeiros no Conselho de Ética mostram que essa ralé não respeita nem os adversários nem o voto que recebeu. Ou seja, não respeita a democracia



Reunião da Comissão de Ética da Câmara dos Deputados (YouTube) 

Diz muito sobre o atual DNA do Congresso Nacional a vergonhosa baderna que transformou o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados em uma espécie de “conselho de ética dos arruaceiros”. Na sessão que livrou o deputado André Janones (Avante-MG) da cassação pela prática de “rachadinha” – quando parte do salário de funcionários do gabinete é repassada ao parlamentar –, assistiu-se a muito mais do que a repetição da hipocrisia e da indulgência, às quais congressistas recorrem para encobrir malfeitos de colegas. Antes fosse algo extraordinário, a entrar no anedotário de uma casa de baixo prestígio. O que se viu, ao contrário, foi a realidade exposta de um desvio permanente: o Congresso Nacional, a instituição que deveria ser a sede da democracia, isto é, do respeito ao dissenso, vem sendo vilipendiado por uma ralé que não honra o voto que recebeu.

Além do insulto à inteligência alheia, com a impunidade de um parlamentar sobre quem pairavam todas as evidências, houve empurrões, xingamentos e palavras de baixo calão, e só não se chegou às vias de fato porque os valentões foram contidos.

A molecagem envolveu, primeiro, os deputados Nikolas Ferreira (PL-MG) e o próprio André Janones, depois este contra o deputado Zé do Trovão (PL-SC). Já Guilherme Boulos (PSOL-SP) – que, como relator do caso, parece ter concluído que há “rachadinhas do bem” (cometidas por aliados, como Janones) e “rachadinhas do mal” (a de seus opositores) e recomendou o arquivamento do caso – bateu boca com Pablo Marçal, dublê de coach e picareta bolsonarista que, como muitos ali, ganhou notoriedade na base do ultraje.

Marçal, a propósito, nem deputado é, mas foi levado à sessão por aliados, mesmo com a ordem do presidente da comissão de permitir a presença apenas de parlamentares. Para completar o deboche, Marçal – que, como Boulos, é pré-candidato à Prefeitura de São Paulo – usava um broche de parlamentar, que somente os 513 deputados têm. Toda essa turma converteu a sessão num circo grotesco, ambiente no qual muitos deles se sentem em casa.

É isto um Parlamento? Nem remotamente. É evidente que o Congresso deve ser lugar de debates muitas vezes acirrados sobre os rumos do País, mas há limites para o acirramento, determinados pelo decoro. E o decoro não é uma escolha, mas uma obrigação daqueles que pretendem representar o povo nesse debate: não se trata apenas de respeitar aquele com quem há divergências, mas, sobretudo, de respeitar os votos recebidos pelo adversário. Todos têm legitimidade popular para estar ali e por isso mesmo devem ao menos tolerar uns aos outros.

Nos últimos tempos, porém, o Congresso Nacional parece funcionar movido pelos algoritmos das redes sociais. A transformação digital da discussão política mudou representantes que antes acreditavam em divergência com civilidade, e a tribalização da vida pública deu incentivos para a radicalização e a intolerância, que se tornaram ativos eleitorais. Não raro, usa-se a política como trampolim para a lacração, como se a prática parlamentar requeresse ser modulada pelos padrões de engajamento que se veem nas redes sociais. E o mais grave: agem de maneira a proteger colegas envolvidos em atos duvidosos, como pareceu o caso envolvendo Janones.

E assim o Congresso segue descendo a ladeira da popularidade. Num levantamento do Datafolha de março deste ano, o Congresso só perdeu para redes sociais e partidos políticos na lanterna do ranking de confiança da população, ficando atrás das Forças Armadas, grandes empresas, Poder Judiciário, Ministério Público, Presidência da República, Supremo Tribunal Federal (STF) e imprensa. Consequência inevitável de um Parlamento formado em parte por quem não pretende representar ninguém senão a si mesmo, gente que reduziu a atividade política a uma live contínua, feita para gerar cliques e insultos, sem nada a propor de bom para o País.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 07.06.24

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Judiciário custoso e voraz

Relatório do CNJ mostra peso dos gastos com juízes e reforça necessidade de se acabar com a farra


Não há, sob nenhuma perspectiva, argumento plausível que justifique a gastança do Judiciário brasileiro demonstrada pelo mais recente relatório Justiça em Números 2024, do Conselho Nacional de Justiça

(CNJ). A título de sumário executivo, basta dizer que o cenário ali traçado mostra uma elite do serviço público que só falta cobrar laudêmio para completar o rol de benefícios extravagantes que recebe à custa dos plebeus.

O peso da Justiça brasileira chegou a R$ 132,8 bilhões no ano passado, um recorde desde 2009, quando esse Poder custava R$ 85,4 bilhões. No acumulado, a alta ultrapassa 55%. A monta corresponde a 1,2% do PIB.

A comparação com outros países envergonha. Nações em desenvolvimento, como o Brasil, gastam 0,5% do PIB, enquanto economias avançadas despendem 0,3% do PIB com o Judiciário, segundo estudo do Tesouro feito com base em dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Brasil é o líder da gastança entre 53 países.

Segundo o Justiça em Números, 90,2% (R$ 119,7 bilhões) dos recursos bancam despesas com pessoal. O fato estarrecedor é que os 18,2 mil magistrados do País – das Justiças Estaduais, Federal, do Trabalho, Eleitoral, Militar e dos tribunais superiores – custam aos cofres públicos, em média, R$ 68 mil por mês – um evidente drible no teto constitucional, que hoje está em R$ 44 mil. Poucos trabalhadores no Brasil ganham R$ 20,1 mil mensais, mas essa é a despesa média com servidores do Judiciário.

A sociedade arca, ainda, com benesses que só fazem aumentar. São penduricalhos criados por vias administrativas, em conselhos superiores, que irrigam os já generosos contracheques dos colegas de toga, como bônus por acúmulo de funções administrativas ou processos.

Benefícios como auxílio-alimentação e auxíliosaúde, entre outros, somam R$ 11,1 bilhões por ano. Indenizações como diárias, passagens e auxílio-moradia – isentas de pagamento de impostos – drenam R$ 4,7 bilhões.

Apenas a título de comparação, as três universidades estaduais paulistas (USP, Unesp e Unicamp), incumbidas de formação profissional, produção científica e projetos de extensão, deverão ter orçamento de R$ 16 bilhões em 2025.

Segundo o CNJ, os magistrados estão produzindo a contento. A alta de 7% no número de processos baixados em 2023 (34,9 milhões) é digna de avaliação positiva para o órgão, em um ano no qual os casos em tramitação chegaram a espantosos 84 milhões.

Ainda que a Justiça brasileira fosse exemplar e expedita, o que não é, está claro que há exagero nos gastos com a máquina do Judiciário – e ainda há quem defenda uma emenda constitucional que estabeleça um aumento de 5% a cada cinco anos aos magistrados independentemente de sua capacidade e de seu mérito – e, claro, ignorando olimpicamente o teto do funcionalismo, esse limite que só serve para servidores de fora da casta jurídica.

Editorial / O Estado de S. Paulo, em 31.05.24

Ainda o Judiciário, gastos com servidores e terceirizados aumentam

O relatório “Justiça em Números”, produzido anualmente, indica ainda quanto foi o gasto mensal, no Judiciário, com servidores (R$ 20,1 mil), terceirizados (R$ 5,1 mil) e estagiários (R$ 1,3 mil). 

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), houve um aumento de 1,8% nas despesas por magistrado, de 6,5% nos gastos por servidor, de 4,8% entre terceirizados e de 21,4% por estagiários.

Ainda de acordo com o documento, o gasto com o Judiciário em 2023 representa 1,2% do PIB ou 2,38% dos gastos totais de União, Estados, Distrito Federal e municípios. O relatório consolida estatísticas de 91 órgãos do Poder Judiciário, sem contar o Supremo Tribunal Federal e o próprio CNJ. São apresentados dados dos 27 Tribunais de Justiça estaduais, dos seis Tribunais Regionais Federais, dos 24 Tribunais Regionais do Trabalho, dos 27 Tribunais Regionais Eleitorais, dos três Tribunais de Justiça Militar estaduais, além de Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral e Superior Tribunal Militar. 

Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, 29.05.24

Poder Judiciário custou R$ 653,70 a cada brasileiro no ano passado

Cofres públicos gastaram R$ 132,8 bi com o Poder no ano passado, valor recorde de uma série histórica iniciada em 2009

No total, despesas chegaram a R$ 132,8 bilhões, um aumento de 9% nos gastos em relação a 2022.

O Poder Judiciário custou R$ 132,8 bilhões aos cofres públicos no ano passado. Conforme dados do relatório “Justiça em Números”, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o aumento foi de 9% em relação a 2022, quando os gastos somaram R$ 121,8 bilhões. É o maior valor da série histórica, iniciada em 2009, desconsiderando o valor da inflação. O mais alto, até 2023, tinha sido o de R$ 127,6 bilhões, em 2019. Cada um dos 203 milhões de brasileiros gastou R$ 653,70 para bancar o Judiciário no ano passado.

A base dos números é do DataJud – plataforma que centraliza informações dos tribunais de todo o País. A despesa média mensal por magistrado – 18,2 mil juízes em todo o País – foi de R$ 68,1 mil, valor que supera em cerca de R$ 24 mil o teto do funcionalismo público (equivalente aos subsídios de um ministro do Supremo Tribunal Federal).

PEC. Os dados de 2023 foram divulgados em um cenário em que o Congresso volta a debater a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Quinquênio, cuja aprovação tem impacto estimado de mais de R$ 40 bilhões ao ano. A proposta, de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSDMG), prevê um bônus automático de 5% nos vencimentos de juízes, procuradores e promotores a cada cinco anos.

Como mostrou o Estadão, nota técnica da consultoria do Senado apontou que a PEC compromete a entrega de serviços essenciais à população e põe em risco a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

As despesas do Judiciário com pessoal bateram R$ 119,78 bilhões em 2023, o equivalente a 90,2% do custo total do Poder. Desse montante, 82% foram gastos com as remunerações de magistrados e servidores, incluindo inativos (R$ 98,1 bi); 9,3% corresponderam ao pagamento de benefícios (R$ 11 bi); 4% estão ligados a “despesas em caráter eventual e indenizatório” (R$ 4,7 bi); 4% foram gastos com terceirizados; e 0,7%, com estagiários (R$ 892 mi). O Estadão tem revelado a existência de supersalários de magistrados. Os subsídios são elevados com penduricalhos – vantagens e benefícios que não são submetidos ao abate-teto.

TURBINADOS. O CNJ reconhece os holerites turbinados. “Por se tratar de um valor médio, eventuais indenizações recebidas em razão de decisão judicial destinadas a um pequeno grupo de indivíduos podem impactar sobremaneira nas médias apresentadas, especialmente em órgãos de pequeno ou médio porte, com menor quantitativo de pessoas.”

A Corte com maior custo médio mensal por magistrado foi o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (R$ 120,3 mil), seguido pelos tribunais de Mato Grosso (R$ 116,6 mil) e do Tocantins (R$ 111,5 mil). Procuradas, as Cortes não se manifestaram. •

Pepita Ortega, jornalista, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 28.05.24

‘Princípio lotérico do Direito’

Hoje vivemos o reinado das decisões monocráticas no STF e Superior Tribunal de Justiça (STJ); além disso, os precedentes adquiriram relevância jamais vista; por vezes interpretam-se dispositivos legais de tal modo que, na prática, é como se eles tivessem sido alterados pelo legislador.

A vida da República está sofrendo alterações. O presidente perde espaço para o Poder Legislativo, que avança ao monopolizar boa parte da política orçamentária e ao derrubar vetos presidenciais. 

Também o faz diante do Judiciário, como na proposta de emenda à Constituição para se contrapor ao Supremo Tribunal Federal (STF) no tema do porte de maconha para uso próprio. 

O Supremo, por sua vez, provocado amiúde por partidos políticos, adota decisões, muitas monocráticas, que se sobrepõem ao Legislativo e ao Executivo.

No Poder Judiciário as transformações têm sido profundas.

Em países anglo-saxões impera a common law, que é um sistema baseado em decisões judiciais que têm grande força. No Brasil, que sempre adotou o sistema romano-germânico, a lei deveria ser o principal vetor dos julgamentos, ao passo que à jurisprudência restaria uma função orientativa.

Todavia, hoje vivemos o reinado das decisões monocráticas no STF e Superior Tribunal de Justiça (STJ); além disso, os precedentes adquiriram relevância jamais vista; por vezes interpretam-se dispositivos legais de tal modo que, na prática, é como se eles tivessem sido alterados pelo legislador. Criou-se uma common law à brasileira.

A insegurança jurídica bate à porta. Isso porque, no mundo das decisões judiciais, cada julgador tem as suas convicções, a sua visão de mundo, o seu viés de interpretar a lei e os fatos. É a beleza da lógica e do sentimento humano no Judiciário. O juiz sente para sentenciar. A lei é estática, mas a sua interpretação é dinâmica, variando de tempos em tempos, de magistrado para magistrado. Sendo a jurisprudência o “Direito vivo”, as reviravoltas de entendimento nos tribunais acontecem.

Diante desse novo contexto de reinado das decisões monocráticas e da jurisprudência sobre a lei, há um tema que traz inquietação: o fator sorte.

Em primeiro grau, por exemplo, juízes criminais podem interpretar diferentemente o que significa “garantia da ordem pública”. Há decisões inclusive pela sua inconstitucionalidade. A depender da distribuição a esse ou àquele juiz, a prisão preventiva do acusado poderá ser decretada ou não.

O fator sorte também está presente nos tribunais de segundo grau, que muitas vezes decidem de forma contrária ao STJ e STF. Cito o exemplo do princípio da insignificância, que torna a conduta não criminosa por falta de ofensividade, como no caso de furto de um quilo de arroz. Há câmaras que não admitem tal princípio; se o acusado tiver o seu caso distribuído a uma delas, o seu destino será perder. Caso julgado por outras, sairá vitorioso. Na área trabalhista, é sintomática a questão da contratação pela CLT versus a “pejotização”, havendo grande conflito entre Tribunais Regionais do Trabalho e o STF.

Essa postura independente gera a uma enxurrada de recursos ao STJ e STF. Esse fato vem causando outros fenômenos transformadores do Poder Judiciário.

Criou-se no STJ e no STF a denominada jurisprudência defensiva, que impõe obstáculos infindáveis, por vezes fundados em filigranas jurídicas, aos recursos especiais e extraordinários. Filtrados por sistemas de inteligência artificial, pouquíssimos prosperam. Não é por menos que somente 4% dos recursos especiais no STJ têm o seu mérito julgado. No STF, uma parcela ínfima dos recursos extraordinários é admitida.

De fato, como a esmagadora maioria deles é sepultada em decisão monocrática do relator, como também vem ocorrendo com ordens de habeas corpus, o fator sorte na distribuição para um relator que tenha entendimento mais favorável à tese sustentada torna-se altamente relevante.

E o problema aumenta na medida em que os recursos de agravo contra essas decisões individuais são, em grande parte, julgados de forma totalmente virtual, sendo raros os casos de reversão. Aos defensores relega-se o envio prévio de um vídeo com a sustentação oral, não podendo interagir pois sequer acompanham o julgamento; angustiados, aguardam o resultado no portal eletrônico do tribunal.

No STF, havendo decisão individual que nega o habeas corpus, sequer sustentação oral é possível no agravo. Esse fato tem gerado grande indignação entre os advogados, pois o Estatuto da Advocacia, que garante esse direito, é lei específica e posterior ao regimento do Supremo. Tem-se uma mordaça.

Com a invenção desses julgamentos virtuais, onde a defesa é limitada, a Justiça está se tornando algo do ciberespaço, uma espécie de metaverso.

O fator sorte a depender do sorteio do relator torna-se ainda mais relevante em se tratando de habeas corpus com pedido de liminar, uma vez que existem magistrados que dificilmente a concedem, diferentemente de outros. Se o habeas cair com um, há maiores chances de vitória do que com outro.

É o que chamo de “princípio lotérico do Direito”, que não está nos livros nem no currículo das faculdades. Embora em certa medida ele sempre tenha existido, é inconteste que na atual conjuntura, onde há o reinado das decisões monocráticas, dos julgamentos virtuais e da jurisprudência que se torna lei, a sorte e o azar nunca estiveram tão presentes, como também a insegurança jurídica. •

Embora ele sempre tenha existido, é inconteste que na atual conjuntura a sorte e o azar nunca estiveram tão presentes, como também a insegurança jurídica.

Roberto Delmanto Junior, o autor deste artigo, é advogadoo criminalista há 33 anos; mestre e doutor em direito processual pela USP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 30.05.24

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Eleitor é cúmplice das mentiras

Verdade não tem muito valor no cotidiano brasileiro

Tim Maia: 'Eu não bebo, eu não cheiro, mas minto um pouco às vezes' — Foto: Antonio Nery

O que veio primeiro: o político mentiroso ou o eleitor que inventa mentiras? Melhor seria perguntar: por que deixamos de acreditar na verdade?

Não é correto dizer que Bolsonaro, na extrema direita, tampouco Lula, na esquerda, sejam os primeiros a se valer de inverdades como instrumento político. No Brasil, o recurso à traquinagem tem tradição, régua e compasso.

Não indo muito longe, podemos ficar na eleição de Artur Bernardes no problemático 1922. Ano do centenário da Independência, da Semana de Arte Moderna e da revolta dos 18 do Forte de Copacabana, quando alguns tenentes quiseram derrubar o governo à bala (a coisa vem de longe). No meio da campanha, surgiram várias cartas creditadas a Bernardes, recheadas de ataques ao marechal Hermes da Fonseca, chamado de “sargentão sem compostura”. Eram apócrifas, inventadas pelos partidários de Nilo Peçanha, que seria derrotado nas urnas. Mesmo desmascaradas, as mentiras serviram para azedar a relação de Bernardes, obrigado a governar sob estado de sítio, com os militares.

(Vale lembrar que também Bernardes era um tipo desarrazoado. Entre outras bobajadas, mandou prender o grande Sinhô, autor da marchinha carnavalesca “Fala baixo”, cujos versos denunciavam a censura do governo e a maldosa alcunha do presidente: “Vem cá, Rolinha, vem cá”. Não se sabe o motivo, mas Bernardes não gostava de ser chamado de rolinha.)

É possível que os políticos tenham começado a mentir porque nem sempre os eleitores gostassem da verdade dita na cara. Um exemplo eu presenciei. Em 1985, no debate pela prefeitura de São Paulo, o jornalista Boris Casoy perguntou a Fernando Henrique Cardoso se ele acreditava em Deus. O candidato se enrolou na resposta, não disse nem sim nem não. Os eleitores não gostaram da disfarçada sinceridade e não elegeram um notório ateu, preferindo Jânio Quadros. No mesmo debate — num exemplo de como a política mudou —, fizeram um quiz com Eduardo Suplicy, candidato do PT: quanto custa um pãozinho francês? Ele mandou lá um valor bem alto. Comentaram: “Isso é preço de croissant, Eduardo!”.

A maioria dos eleitores parece não gostar da verdade, mesmo porque ela não tem muito valor no cotidiano brasileiro. O filósofo Tim Maia resumiu a peleja e alma da nossa gente:

— Eu não bebo, eu não cheiro, mas minto um pouco às vezes.

Aí chegamos a outra equação, assim resumida: o político mente para agradar ao público ou o eleitor não dá voto a quem se mostra cru e sincero? Difícil questão, porque em muitos momentos sabemos que estamos sendo enganados.

Vamos mais perto na História. Na eleição de 2022, Lula da Silva se apoiou numa aliança da centro-direita à esquerda para derrotar Bolsonaro. Disse que faria um governo de reconstrução e harmonia. Tá bom. Tebet e outros tantos brasileiros sabiam que daquele mato não sairia nada. De fato, só saiu nota oficial da Janja. A razão do faz de conta — expulsar Bolsonaro do poder — parecia ser um atenuante tolerável para engolir a mentira eleitoral. Então o jogo político se resume a estratégia e, portanto, o blefe é recurso válido. Ou a mentira, em alguns casos. Como quando se elogia Nicolás Maduro por representar uma invejável democracia sul-americana. (O improviso de Lula provavelmente envergonhou até a Gleisi.)

Parte do eleitorado petista sabe que a Venezuela vive sob um regime autoritário e sanguinário, assim como os comunistas brasileiros tinham informações dos crimes cometidos por Stálin. Em nome da causa, se escondem os fatos, e são criadas inverdades. Quantas mortes teriam sido evitadas se a esquerda mundial houvesse protestado contra Stálin? Milhões, por certo. Ou quantos venezuelanos deixariam de ser presos políticos se Lula ousasse dizer o que o mundo denuncia? Milhares, com certeza.

Talvez seja o caso de o eleitor se olhar no espelho e saber que sua postura legitima a mentira do governante. No caso, talvez o político seja mesmo apenas um servidor público, aquele que cumpre ordens. Um pau-mandado? Não dá para dizer que é um pobre de um coitado agindo contra seus princípios, dando a vida por uma causa perdida e violentando-se em nome do bem comum — bem, isso já seria demais. Mas, pensando melhor, não se pode esquecer que a maioria dos bolsonaristas desmente que o 8 de Janeiro tenha sido uma malsucedida tentativa de golpe.

Se no Brasil até o passado é incerto, como se diz por aí, é porque o país do futuro talvez seja de fato outra mentira.

Miguel de Almeida o autor deste artigo, é editor e diretor de cinema.  Publicado originalmente n'O Globo, em 20.05.24

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Lula, o CEO da Petrobras

Magda Chambriard será a sexta executiva em menos de seis anos a ocupar a presidência da Petrobras, um cargo que Lula, assim como Bolsonaro antes dele, imagina ser seu por direito

Magda Chambriard

A demissão de Jean Paul Prates da presidência da Petrobras revelou que o verdadeiro CEO da empresa se chama Luiz Inácio Lula da Silva e assim permanecerá até o fim de 2026. Magda Chambriard, indicada para ser a próxima preposta, será apenas a tarefeira de Lula em seu plano de financiar a indústria naval, produzir fertilizantes, controlar o preço dos combustíveis, investir em estaleiros e bancar a tresloucada política desenvolvimentista lulopetista da forma que produzir maiores dividendos eleitoreiros.

A bem da verdade, Prates não se interpôs aos anseios do chefe em praticamente nenhum desses quesitos. Mas teve o demérito de tentar privilegiar também os investidores na questão da distribuição de dividendos extraordinários, que Lula tentou reter, sabe-se lá com qual intenção. Além, é claro, de partir para o confronto com o Centrão do ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, ungido por Lula da Silva como um de seus principais assessores, ao lado do ministro da Casa Civil, Rui Costa.

Irritado e em busca de mais poder na estatal – sim, a Petrobras até pode ser uma empresa de economia mista por direito, mas, de fato, continua controlada pelo Estado –, Silveira reclamou da morosidade de Prates no financiamento da agenda do governo e venceu a disputa por poder que se arrastou por mais de um ano. A mensagem de Prates em um grupo de WhatsApp, providencialmente vazada, não deixa dúvidas sobre o caráter político da decisão: “Minha missão foi precocemente abreviada na presença regozijada de Alexandre Silveira e Rui Costa”.

Lula da Silva quer avançar sobre a Petrobras desde o início de seu terceiro mandato, derrubando importantes obstáculos erguidos justamente para reduzir a ingerência política na empresa. Para isso contou com a subserviência de Prates, inclusive para mexer no estatuto e derrubar a política de paridade de preços, que vinculava o preço dos combustíveis às oscilações internacionais. Mas essa mudança talvez não tenha dado o retorno que Lula esperava.

Todos os ingredientes postos na bagunça promovida pelo governo Lula da Silva na condução da Petrobras remetem perigosamente a um enredo de abusos e corrupção conhecido por todos, resumido no escândalo do petrolão: disputa de políticos por cargos e poder de influência, obras superfaturadas, estímulo desnecessário à construção de navios e uso da Petrobras como alavanca de programas sociais do governo.

Nas gestões anteriores do PT, essa mistura de interesses estranhos ao negócio da empresa levou à formação de um cartel de empreiteiras que, entre 2004 e 2012, levou a um prejuízo comprovado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de R$ 18 bilhões (valor de 2020, época do estudo). Mas não foi apenas nem principalmente corrupção que arruinou a Petrobras naquela época, e sim o desvirtuamento de sua administração para fins políticos, eleitorais e ideológicos – que gerou imensos prejuízos ao País, pagos pelo contribuinte. É precisamente esse status que Lula pretende restabelecer.

O demiurgo petista parece determinado a fazer da Petrobras uma poderosa fonte de recursos à margem do Orçamento para custear projetos mirabolantes e comprovadamente fadados ao fracasso – como o que distribuiu contratos vultosos da companhia a 19 estaleiros espalhados pelos País, 5 deles estreantes, que tiveram obras garantidas antes mesmo de existirem.

Magda Chambriard, a escolhida por Lula para chefiar a Petrobras em seu nome, é do ramo. Funcionária de carreira da empresa, é especialista em engenharia do petróleo e foi diretora-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Ou seja, currículo tem, mas todos sabem que não foi isso o que pesou em sua escolha, e sim sua suposta disposição para fazer o que Lula mandar.

A julgar pelo que a sra. Chambriard escreveu num artigo na revista Brasil Energia, publicado em dezembro do ano passado, Lula ficará feliz. Além de demonstrar entusiasmo pela ideia de reativar estaleiros, a nova executiva diz ali que “a estatal não poderia ter a dimensão atual sem a mão forte de um governo que a fez crescer de tamanho abruptamente” e que se espera que a empresa e o governo “retribuam o esforço da sociedade em seu benefício”, inclusive na luta pela “redução das desigualdades”. Logo se vê que, sob nova direção, o core business da Petrobras não será petróleo, e sim demagogia.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.05.24

Programa econômico de Lula é o atraso

Demissão de Prates na Petrobras mostra presidente empenhado em repetir o que deu errado nas gestões petistas anteriores

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) mostra mãos cobertas de petróleo durante evento em navio da Petrobras, na Bacia de Campos (RJ) - Bruno Domingos - 17.nov.23/Reuters

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), para a surpresa de ninguém, demitiu Jean Paul Prates da chefia da Petrobras porque o defenestrado não cumpriu, com a velocidade e a fidelidade canina exigidas pelo mandatário, a missão de submeter a estatal aos comandos do bestiário ideológico petista.

Para o chefe de Estado, não bastou Prates já ter descarrilhado a política de preços da Petrobras, reestabelecendo defasagens significativas em relação aos praticados internacionalmente. Era necessário afundar o pé no acelerador de projetos ruinosos, considerados estratégicos pelo mandachuva petista.

Lula faz campanha pela retomada vertiginosa de obras no Rio de Janeiro e em Pernambuco, empreendimentos que entraram para os anais da indústria petrolífera mundial pelos desembolsos estratosféricos, irrecuperáveis, e pela corrupção desabrida.

O presidente também faz carga pela entrada da estatal em projetos bilionários nas áreas de fertilizantes e de construção de navios no Brasil. Encampa, assim, a plataforma de repetir tudo o que deu errado nos seus dois mandatos anteriores e na desastrosa passagem da correligionária Dilma Rousseff pelo Palácio do Planalto.

As consequências negativas do intervencionismo que assoma das catacumbas serão duradouras. A deterioração manifesta-se no banho de sangue nas ações da estatal nesta quarta-feira (15), mas não apenas nesse indicador arisco.

Torrar recursos em novas aventuras de retorno improvável vai reduzir a lucratividade da empresa, deprimindo os repasses de dividendos ao Tesouro Nacional, seu principal acionista, que não deveria perder oportunidades de reduzir o seu rombo fiscal.

A invectiva na Petrobras —a repetir, em novo contexto, o intervencionismo tosco de Jair Bolsonaro (PL), que empilhou quatro presidentes na estatal— insere-se num conjunto de atitudes nefastas da administração petista na condução da política econômica.

Lula não faz questão de esconder que mandou às favas a preocupação com o equilíbrio orçamentário e ninguém se surpreenderá, infelizmente, se indicar um cupincha para presidir o Banco Central com a ordem de baixar juros na marra.

A bagunça e a incerteza que o mandonismo voluntarista produzem no ambiente e nas instituições econômicas vão dificultar o crescimento sustentado da renda e do emprego. O fiasco dos investimentos na produção de bens e serviços responde a esses estímulos irresponsáveis do chefe do governo.

O programa econômico de Lula e do PT é o atraso, e seu vulto empobrecedor vai-se tornando cada vez mais nítido conforme progride o mandato presidencial.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 16.05.24 (editoriais@grupofolha.com.br)

O desastre natural com maior impacto na economia brasileira: 3 efeitos das inundações do RS no país

No Brasil, nunca houve tanto estrago econômico provocado por um evento climático. A avaliação é do economista Sergio Vale, da MB Associados, consultoria que está monitorando os impactos das enchentes de maio na economia.

Plantação de alface foi destruída pelas enchentes em Guaíba (Amanda Perobelli / Reuters)

Para se avaliar o impacto econômico das inundações no Rio Grande do Sul, é preciso olhar para o exterior para se achar algo semelhante — como no caso da destruição provocada pelo furacão Katrina nos Estados Unidos em 2005.

Nos Estados Unidos, o Katrina fez o Estado da Louisina contrair 1,5% — em um ano em que se esperava que crescesse 4%. No caso do Rio Grande do Sul, a MB Associados prevê que a economia vai se contrair 2% — em vez do crescimento de 3,5% que vinha registrando nos últimos 12 meses até abril.

E no caso brasileiro, o impacto em âmbito nacional será muito maior do que aconteceu no efeito do Katrina nos Estados Unidos — já que a economia gaúcha corresponde a 6,5% do PIB brasileiro (a Louisina representa 1% da economia americana).

Por conta da tragédia, a MB Associados não pretende revisar o crescimento brasileiro. A consultoria acreditava que o crescimento brasileiro projetado para este ano podia ser de 2,5% — mas após a tragédia no Rio Grande do Sul ela manteve a projeção de crescimento em 2%.

O Brasil já enfrentou outras grandes crises que afetaram o crescimento da economia nacional. Em 2001, por exemplo, uma seca contribuiu para uma crise de racionamento de energia e apagões. A economia nacional, que havia crescido 4,4% no ano anterior, desacelerou para 1,4%. Mas apesar da contribuição da seca, o cerne da crise de 2001 não foi o clima, mas sim gargalos nas linhas de transmissão — que impediam o Brasil de distribuir energia pelo país.

A tragédia no Rio Grande do Sul deste ano — que já provocou pelo menos 149 mortes — terá impacto em pelo menos três frentes da economia brasileira: no crescimento do PIB deste ano, no setor agrícola e na questão fiscal brasileira.

Carros destruídos (Getty Images)

Enchentes no Rio Grande do Sul

-2% deve ser o crescimento do Rio Grande do Sul, segundo estimativas

3,5%era quanto a economia gaúcha vinha crescendo antes das inundações (Fonte: MB Associados)

Economistas e estudos consultados para esta reportagem lembram que a dimensão exata do impacto econômico ainda não pode ser quantificado com precisão, porque as chuvas ainda estão em andamento e sequer foi feito um levantamento preciso do estrago ainda.

Essa indefinição também tem implicações políticas. Autoridades têm falado em diferentes medidas e valores para destinar ao Rio Grande do Sul — mas essa ajuda ainda está sendo discutida e os números estão em aberto.

Confira abaixo como as inundações devem afetar a economia brasileira em 2024.

Impacto no crescimento e na indústria

As enchentes afetaram 94,3% de toda atividade econômica do Rio Grande do Sul, segundo um levantamento divulgado na segunda-feira (14/5) pela Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs).

"Os locais mais atingidos incluem os principais polos industriais do Rio Grande do Sul, impactando segmentos significativos para a economia do Estado", disse o presidente em exercício da Fiergs, Arildo Bennech Oliveira.

Três das maiores regiões afetadas (Região Metropolitana de Porto Alegre, Vale dos Sinos e Serra) contribuem com R$ 220 bilhões para a atividade econômica brasileira.

Essas três regiões concentram 23,7 mil indústrias que empregam 433 mil pessoas.

A Região da Serra (de cidades como Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Farroupilha) é famosa pela produção nos segmentos metalmecânico (veículos, máquinas, produtos de metal) e móveis. A Região Metropolitana de Porto Alegre também produz metalmecânicos (veículos, autopeças, máquinas), além de derivados de petróleo e alimentos. A Região do Vale dos Sinos é famosa pela produção de calçados.

Mas diversos outros setores da economia também foram afetados, como tabaco e químicos.

Ruas comerciais no Centro de Porto Alegre ficaram alagadas (Sebastião Moreira / EPA-EPA REX/SHUTTERSTOCK)

Um estudo feito pelo Bradesco prevê que o impacto da crise no Rio Grande do Sul pode reduzir o crescimento do PIB nacional em 0,2 a 0,3 ponto percentual.

"A título de comparação, quando o Estado foi atingido pelo ciclone de 2008, o crescimento do PIB estadual daquele ano foi de 2,9%, ante crescimento do Brasil como um todo de 5,1%."

Um outro levantamento — da Confederação Nacional dos Municípios — calcula em mais de R$ 8,9 bilhões os prejuízos financeiros das enchentes. Segundo a CMN, R$ 2,4 bilhões desse prejuízo são no setor público, R$ 1,9 bilhão no setor produtivo privado e R$ 4,6 bilhões especificamente nas habitações destruídas.

Impacto agrícola

O Rio Grande do Sul é uma das potências do agro brasileiro — o Estado representa 12,6% do PIB da agricultura nacional.

Como um todo, a agropecuária brasileira será um dos setores da economia mais afetados pelas enchentes, segundo o Bradesco.

"Considerando tais impactos, o PIB agropecuário no Brasil pode recuar 3,5% (nossa estimativa anterior era de queda de 3,0%). As perdas no agronegócio podem ser ampliadas pela logística, que afeta tanto o escoamento da safra bem como impede a chegada de insumos. Esse parece ser um problema importante para os setores de laticínios e carnes", afirma um relatório do banco.

O Rio Grande do Sul responde por 70% da produção do arroz do Brasil, 15% de carnes (12% da produção de frangos e 17% da produção de súinos) 15% da soja, 4% de milho.

As enchentes provocaram choques em alguns preços internacionais — a cotação mundial da soja na bolsa de Chicago chegou a subir 2% na semana passada. No Brasil, o preço do arroz já subiu e o governo anunciou a importação do produto para evitar um choque ainda maior. Há temores de que os preços de carne de frango e suína também possam subir em breve.

Agricultor mostra prejuízo em campo de milho em Guaíba (Amanda Perobelli / Reuters)

Por sorte, 70% da safra de soja e 80% da safra do arroz já haviam sido colhidas. Sobram duas dúvidas agora: quanto do restante da safra foi afetado pelas enchentes e se a quantidade já colhida e armazenada nos silos foi comprometida ou não. O Bradesco avalia que 7,5% da produção de arroz e 2,2% da produção de soja do Brasil podem estar comprometidos, caso se confirmem os piores cenários.

Vale, da MB Associados, lembra que o agro gaúcho já vinha sofrendo muito nos últimos três anos com os extremos climáticos.

"No Rio Grande do Sul, a questão agrícola nos últimos anos tem colocado o Estado no grau de muita insegurança. Foram três anos seguidos de La Niña, com secas muito profundas, e quebras de safra muito fortes. No ano passado, o Estado estava até comemorando a chegada do El Niño, que traria chuvas. Mas quando se pensou que teríamos um ano normal, de repente acontece isso", diz o economista.

Ainda existe a possibilidade de um novo fenômeno La Niña este ano, com potencial para provocar novas secas no Rio Grande do Sul.

Impacto fiscal

Outro impacto importante da calamidade do Rio Grande do Sul na economia nacional é na questão fiscal brasileira.

Há anos o Brasil vem tentando equilibrar sua situação fiscal — ou seja — o governo faz um esforço para conseguir arrecadar mais dinheiro do que gasta, produzindo o que se chama de superávit fiscal.

Esse superávit fiscal é usado para reduzir o endividamento público do governo, que é um elemento fundamental da economia de qualquer país. Alto endividamento tem potencial para produzir inflação alta, baixo crescimento econômico e desemprego.

No ano passado, o governo Lula lançou o que chamou de "arcabouço fiscal" — o conjunto de regras para gastar os recursos públicos e fazer investimentos. Esse arcabouço foi fundamental para acalmar os mercados e sinalizar que o Brasil não gastaria dinheiro desenfreadamente.

Mas no mês passado, diante de problemas no orçamento, o governo desistiu de atingir superávits em 2025.

Economistas apontam que o Brasil já vivia um momento fiscal delicado antes das enchentes no Rio Grande do Sul.

No entanto, o quadro se agrava bastante agora que o governo federal terá que fornecer uma grande ajuda financeira ao Estado.

Todos defendem uma ajuda financeira grande ao Rio Grande do Sul, mas analisam que haverá um grande impacto nas contas nacionais.

Já foi anunciado, por exemplo, um plano a ser enviado ao Congresso para suspender a cobrança da dívida do Estado do Rio Grande do Sul com a União por três anos.

A regra permitiria a criação de um fundo "contábil" de R$ 11 bilhões por ano para ajudar na reconstrução da infraestrutura do Estado que foi devastada pelas enchentes, segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A medida também inclui o perdão da cobrança de juros sobre a dívida — com impacto de R$ 12 bilhões.

O governo federal já havia anunciado na semana passada um pacote de medidas que pode chegar a R$ 51 bilhões, que incluia pagamentos antecipados de benefícios como Bolsa Família, auxílio-gás, BPC, abono salarial e restituição do Imposto de Renda, além de algumas renuncias fiscais.

Na quarta-feira, o governo federal anunciou um auxílio-reconstrução no valor de R$ 5 mil por família cadastrada, que custará R$ 1,2 bilhão aos cofres.

Alguns dos gastos públicos ficarão de fora das regras fiscais do governo, por conta de o Rio Grande do Sul estar em estado de calamidade.

Todas essas medidas são fundamentais para reerguer o Rio Grande do Sul — mas elas têm potencial para agravar a situação fiscal brasileira que já vinha sofrendo antes da crise provocada pelo evento climático.

Sergio Vale, da MB Associados, alerta que ao longo do ano é possível que mais dinheiro seja encaminhado ao Rio Grande do Sul através de créditos extraordinários aprovados pelo Congresso — e que isso deve piorar o equilíbrio fiscal brasileiro.

Ele diz que é difícil quantificar exatamente qual será o tamanho do problema fiscal brasileiro, porque ainda não se sabe quanto dinheiro será necessário para reconstrução do Rio Grande do Sul.

"Não está muito claro exatamente o que o governo vai disponibilizar. O cenário fiscal [do Brasil] já está muito distorcido. Então qualquer coisa que acontece piora ainda mais", diz Vale.

Para Caio Megale, economista-chefe da XP, parte da ajuda estará fora do arcabouço fiscal do governo — mas mesmo que seja necessário incluir essas despesas no orçamento, seria possível acomodar os gastos.

"Ninguém sabe direito qual que vai ser o tamanho total do apoio. A gente ouve falar em R$ 70 bi, R$ 80 bi, R$ 90 bi ou R$ 100 bi. Não dá para saber ainda, é preciso esperar as águas baixarem. Mas o arcabouço fiscal tem espaço para que essas medidas sejam tomadas", disse Megale em um morning call (serviço diário de corretoras para seus clientes) desta semana.

Daniel Gallas, Jornalista, de Londres - Inglaterra, originalmente, para a BBC News Brasil, em 16.05.24

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Os mercadores do caos

Bolsonaristas andam espalhando desinformação em meio à tragédia no RS porque, inimigos da democracia que são, a eles interessa minar a capacidade dos cidadãos de confiar uns nos outros


Pessoas do bem, até prova em contrário, ajoelhando-se em preces a favor de um grande picareta. 

O bolsonarismo não é uma força política normal. É uma força destrutiva, que só é capaz de prosperar num ambiente de conflagração permanente, desconfiança entre os cidadãos – e entre estes e as instituições – e negação da política como meio de concertação civilizada entre interesses sociais divergentes. Ter esse diagnóstico claro de antemão é fundamental para compreender como e por que bolsonaristas de quatro costados têm agido como mercadores do caos espalhando desinformação em meio à tragédia climática que arrasou o Rio Grande do Sul. Há uma agenda em jogo. E ela não poderia estar mais distante dos interesses nacionais, que dirá dos imperativos morais e humanitários que devem orientar a ação de governos e da sociedade neste momento de amparo aos gaúchos.

A difusão de mentiras e/ou distorções da realidade de forma coordenada entre os bolsonaristas, tal como ocorreu durante a pandemia, não provoca danos na escala dos causados pelas chuvas torrenciais no Estado, mas gera um efeito igualmente devastador: mina o esforço nacional para fazer chegar ajuda vital aos nossos concidadãos gaúchos. “A desinformação é o que mais tem prejudicado o nosso trabalho”, disse ao Estadão o comandante do Exército, general Tomás Paiva. “Ela impede a sinergia entre órgãos governamentais, que é fundamental para ações que são imprescindíveis nesse momento”, lamentou o militar, com toda razão.

A fim de enfraquecer a democracia que tanto desprezam – é disso que se trata –, figuras como os deputados Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Gustavo Gayer (PL-GO), Paulo Bilynskyj (PL-SP), Nikolas Ferreira (PL-MG), Gilvan da Federal (PL-ES), General Girão (PL-RN) e Caroline de Toni (PL-SC), entre outros congressistas – além do governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL) –, agem de forma livre e consciente para destruir os laços de solidariedade entre os brasileiros. As mentiras que disseminam da tribuna da Câmara e por meio das redes sociais, a pretexto de criticar supostas omissões do governo federal no enfrentamento da crise, não têm outro objetivo senão o de abalar a capacidade das pessoas de confiarem umas nas outras.

Esse imoral ataque à “verdade dos fatos”, na expressão consagrada por Hannah Arendt, tem como finalidade a instalação de um clima de confusão generalizada no País que seja tóxico o bastante a ponto de, no limite, fazer a democracia soçobrar diante da falta de seu insumo básico: a confiança entre as pessoas, sem a qual não é possível estabelecer consensos mínimos, principalmente o reconhecimento de que adversários políticos, ora vejam, também possuem uma dimensão humana e têm legitimidade para tomar parte no debate público. Sob esse consenso devem permanecer todas as eventuais divergências político-ideológicas que possa haver entre os cidadãos.

Ironicamente, foi esse pacto civilizatório que levou quase toda a chamada classe política a interromper a campanha eleitoral de 2018 a partir do dia 6 de setembro daquele ano, quando o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro sofreu um atentado a faca. Ali ficou claro que a política não é um vale-tudo. Mas, ao que parece, os bolsonaristas ignoraram a lição, pois agora não emitem o mais tênue sinal de constrangimento ao explorar o terrível drama dos gaúchos para auferir, eles mesmos, ganhos político-eleitorais.

Os bolsonaristas têm o direito de criticar o governo federal. Como oposição, estranho seria se não o fizessem. Os bolsonaristas têm até o direito de serem injustos com o presidente Lula da Silva, afirmando que o petista nada tem feito para aliviar o sofrimento dos gaúchos – o que não é verdade. Mas não é de críticas que se está tratando. É de uma desumanização que extrapola as lides políticas entre “direita” e “esquerda”, “conservadores” e “progressistas”. E esse processo há de ser interrompido, a bem do País, não só do Rio Grande do Sul, com mais informações de qualidade e, principalmente, com os genuínos democratas se unindo em defesa da boa política como a expressão mais iluminada da democracia.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 15.05.24

"Não tem mais volta", diz Nobre sobre catástrofes climáticas

Em entrevista à DW, climatologista Carlos Nobre aborda o desafio de preparar cidades brasileiras para eventos climáticos extremos, e estima que 3 milhões de pessoas teriam que ser retiradas de áreas de risco.

Ruas inundadas em Canoas, no Rio Grande do SulFoto: Amanda Perobelli (Reuters)

Enquanto pessoas ilhadas ainda aguardam resgate e mais de 300 municípios do Rio Grande do Sul nem conseguem calcular o prejuízo causado pelas enchentes, cientistas alertam que eventos com chuvas extremas chegaram para ficar.

O que chama a atenção, diz Carlos Nobre, climatologista brasileiro que fez carreira no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), é que essas tragédias estão acontecendo mais cedo do que se previa. Em 2007, o quarto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) da ONU previu que esses fenômenos se tornariam recorrentes por volta de 2030 ou 2040.

A antecipação se deve ao aumento rápido da temperatura média do planeta: em 2023, o recorde de aquecimento foi batido, com 1,5° C a mais que no período pré-industrial. Em 2024, o calor acima da média continua.

"Os modelos indicavam que, quando a gente atingisse 1,5°C, já deveríamos esperar fenômenos muito extremos, de chuvas muito intensas e prolongadas, como vimos no Rio Grande do Sul", afirma Nobre.

O desafio, aponta o cientista, será adaptar as cidades e retirar cerca de 3 milhões de brasileiros que vivem em áreas de risco. "Aumentar a resiliência e ter uma política de adaptação às mudanças climáticas é um investimento de centenas de bilhões de reais", diz ele em entrevista à DW.

Carlos Nobre: "Precisamos melhorar muito o nosso sistema de resposta"Foto: Tiziana Fabi/AFP/Getty Images

DW: As tragédias recentes que vimos no Brasil, como a enchente em Santa Catarina no fim de 2023, a seca extrema na Amazônia e a catástrofe recente do Rio Grande do Sul estão de alguma forma interconectadas? Quais relações a ciência consegue traçar?

Carlos Nobre: Essas tragédias têm uma interconexão, sem dúvida. Começando pela bacia do rio Taquari, no centro-norte do Rio Grande do Sul: ela registrou o maior recorde de chuvas e inundações em setembro de 2023. Ali, houve uma relação direta com o El Niño, que estava se desenvolvendo, provocado pelo aquecimento acima do normal no Oceano Pacífico Equatorial.

O El Niño induz uma seca na Amazônia e um aumento da velocidade do jato subtropical, que passa sobre o Uruguai, Paraguai, centro-leste da Argentina e Sul do Brasil. Quando o vento desse jato fica mais forte, a uma altura de 10 a 15 quilômetros, ele faz com que as frentes frias parem ali. Chove muito. O El Niño faz com que esse jato subtropical forte induza chuvas muito fortes no Sul do país.

Essa chuva extrema que vimos semana passada no Rio Grande do Sul, que chegou até o sul de Santa Catarina, é um fenômeno meteorológico um pouco diferente. É um sistema de ondas de todo o Hemisfério Sul entre a região subpolar e as latitudes subtropicais. Esse sistema na última semana estava quase que estacionário, o que a gente chama de bloqueio atmosférico. Havia esse sistema de baixa pressão ao sul e outro de altíssima pressão ao norte. Quando tem um bloqueio de alta pressão, o ar fica mais quente e impede a formação de nuvens. Como está muito quente, cria esta onda de calor, ou domo de calor. No sul, a baixa pressão traz as frentes frias, que ficam estacionadas porque há este sistema de bloqueio.

O El Niño já está numa fase de perder força, o jato subtropical já não está muito forte. Mas, sim, tudo isso tem a ver com o aquecimento global. Os oceanos bateram todos os recordes de aquecimento da história desse o último período interglacial, ou seja, dos últimos 125 mil anos. E quando o oceano está muito quente, evapora muita água e essa água é a fonte de energia para todos os sistema de chuva e indução de áreas de seca. O El Niño existe há milhões de anos, sempre induziu chuvas fortes no Sul, mas bateu-se o recorde agora.

As previsões climáticas feitas anos atrás previam mais chuvas extremas para o Sul do Brasil. Elas estão acertando?

Os modelos matemáticos climáticos rodados há muitos anos já previam. Os modelos com aquecimento global mostram um aumento da chuva anual no Sul do Brasil. Um aumento de 10% a 20%.

O que chama a atenção é que isso está acontecendo de forma muito mais antecipada. Se a gente pegar o relatório do IPCC [Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas] de 2007, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz, eu estava inclusive entre os autores, ele indicava que este tipo de fenômeno poderia acontecer por volta de 2030, 2040. Mas eles [fenômenos dos eventos climáticos extremos] já se anteciparam muito.

No ano passado atingimos o recorde de aquecimento, a temperatura média global já subiu 1,5° C mais quente que o período pré-industrial. Este ano continua quente. A temperatura média do planeta em fevereiro e março de 2024 já bateu 1,56°C mais quente, é o recorde histórico.

Os modelos indicavam que quando a gente atingisse 1,5°C nós já deveríamos já esperar fenômenos muito extremos de chuvas muito intensas e prolongadas como vimos no Rio Grande do Sul.

Com o planeta já perto deste 1,5°C  de aquecimento, eventos como este no Sul vão ficar mais frequentes? O que o Brasil tem que fazer para lidar com isso?

Se os oceanos continuarem muito quentes, sim, já estaremos muito próximos de 1,5 ºC. E podemos passar de 1,5 ºC antes de 2030 de forma permanente.

Nesse caso, extremos climáticos ficam mais frequentes em todo mundo. Torna-se essencial acelerar a implantação de soluções para adaptação a estes extremos. No caso de chuvas extremas, o enorme desafio de remover brasileiros de áreas de altíssimo risco como essas destruídas no Rio Grande do Sul. E construir e reconstruir infraestrutura resiliente aos extremos.

O que é preciso para melhorar a capacidade de prever eventos extremos no país, cada vez mais recorrentes?

A capacidade de previsão meteorológica melhorou muito. Isso tem muito a ver com o desenvolvimento científico, com a criação do Cptec [Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos], que fez os primeiros modelos atmosféricos climáticos. E temos o Cemaden [Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais], que utiliza as previsões meteorológicas de todo o mundo, inclusive as do Inpe.

Praticamente, consegue-se prever com vários dias de antecedência esses fenômenos extremos. Às vezes, os modelos matemáticos não conseguem prever recordes, mas eles preveem muita chuva.

Aquele evento extremo de fevereiro de 2023 no litoral norte de São Paulo, o maior volume de chuvas em 24 horas no Brasil, 600 milímetros, os modelos não conseguiram prever. Os modelos previram 300 milímetros. Em vários lugares do Rio Grande do Sul, choveu 800 milímetros em seis dias. Quando a chuva passa dos 200 milímetros já há um enorme risco. O Cemaden repassou essas informações.

É claro que há muito o que fazer. O Inpe tem um modelo regional chamado ETA e ele pode ser rodado com uma resolução de 3 quilômetros. Os modelos com essa resolução espacial conseguem simular melhor a distribuição geográfica da chuva. Isso é importante para ver o risco de desastres para áreas de risco, deslizamento, inundações. O ETA já existe, seria importante retomar o papel dele.

Como reconstruir as cidades destruídas nesta condição de aquecimento do planeta e mudanças climáticas?

É o maior desafio. É o desafio da resiliência, da adaptação. No Brasil, a redução do desmatamento já reduz as emissões e contribui globalmente na luta contra a emergência climática. Tudo isso é importantíssimo e o Brasil pode ser um dos líderes.

Mas estes eventos extremos não têm mais volta. Eles vão acontecer com essa frequência. Ondas de calor que levam a uma quantidade imensa de mortes, secas que levam a queda de produtividade e da agricultura, problemas de abastecimento de água e, lógico, esses eventos de chuvas extremas, deslizamentos, enxurradas, tudo o que a gente viu no Sul.

Aumentar a resiliência e ter uma política de adaptação às mudanças climáticas é um investimento de centenas de bilhões de reais. O Cemaden já fez um estudo e está refazendo com base no censo de 2022. Este novo estudo deve mostrar que mais de 3 milhões de brasileiros têm que sair das áreas de risco.

Por exemplo, aqueles municípios na beira do rio Taquari no Rio Grande do Sul e outros, na planície, na área ciliar do rio. Não pode ter pessoas! Esses eventos vão continuar acontecendo!

Tem também as comunidades que vivem nas encostas, normalmente com pessoas muito pobres. Elas correm um enorme risco por causa dos deslizamentos. É um desafio muito grande buscar, a médio prazo, outros locais seguros para esses brasileiros viverem.

Logicamente, precisamos melhorar muito o nosso sistema de resposta. O Cemaden dá o alerta de risco para as Defesas Civis, e tem que haver uma eficiência muito grande. É claro que, até agora, este trabalho já salvou vidas e retirou mais de 20 mil pessoas das zonas de risco no Sul. Isso mostra que dá para ser feito.

É preciso reagir imediatamente ao alerta do Cemaden, instalar sirenes em todo o Brasil, planejar a saída e o alojamento para todas essas pessoas, sistema de alimentação. Temos visto no Sul uma mobilização muito grande da sociedade civil, voluntários. Temos um enorme desafio pela frente.

Nádia Pontes, Jornalista, é a autora desta reportagem publicada originalmente pela Deutsche Welle Brasil, em 15.05.24

Como troca de vegetação nativa por soja pode ter agravado as enchentes no Rio Grande do Sul

As inundações que atingiram o Rio Grande do Sul nas últimas semanas já levaram à morte de pelo menos 148 pessoas e deixaram outras 538 mil pessoas desalojadas.

Plantação de soja no Brasil (Reuters)

A chuva não vem dando trégua, os boletins meteorológicos e hidrológicos apontam para um possível recrudescimento da situação na região nos próximos dias e as enchentes já são consideradas o pior evento climático da história do Rio Grande do Sul e um dos piores do Brasil.

A dimensão da tragédia, as perdas de vidas humanas e a destruição de comunidades inteiras têm despertado uma discussão sobre os fatores que levaram a essa catástrofe ou que poderiam ter ajudado a diminuir sua intensidade.

Um dos aspectos apontados por especialistas ouvidos pela BBC News Brasil é o possível impacto da redução da vegetação nativa no Estado.

Dados produzidos pelo MapBiomas e obtidos pela BBC News Brasil mostram que, entre 1985 e 2022, o Rio Grande do Sul perdeu aproximadamente 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa.

Isso é o equivalente a 22% de toda cobertura vegetal original presente no Estado em 1985 formada por florestas, campos, áreas pantanosas e outras formas de vegetação nativa.

Os dados mostram ainda que ao mesmo tempo em que isso acontecia, houve um aumento vertiginoso de lavouras de soja, silvicultura e da área urbanizada do Estado.

Cientistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a perda de cobertura vegetal original pode ter contribuído para as dimensões das inundações que afetaram o Estado porque a vegetação nativa:

diminui a velocidade com a qual a enxurrada chega ao leito dos rios;

aumenta a quantidade de água infiltrada no solo, o que diminui a quantidade de água disponível para inundações;

protege o solo diminuindo a quantidade de sedimentos que assoreiam os rios da região.

Procuradas, as assessorias de imprensa da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul e do governo do Estado não responderam às questões enviadas pela reportagem.

Gráfico explicando as três maneiras pelas quais a vegetação nativa protege contra enxurradas

Nova onda de chuvas já voltou a fazer aumentar o nível do Lago Guaíba, em Porto Alegre (Sebastião  Moreira / EPA/EFE/REX/SHUTERSTOCK

A relação entre a perda de vegetação nativa e os impactos das inundações no Rio Grande do Sul começou a ser feita por pesquisadores que estudam a ocupação do solo no Estado gaúcho há décadas.

Um deles é o pesquisador do MapBiomas Eduardo Vélez, um dos responsáveis pelo levantamento feito pela organização.

O MapBiomas é uma iniciativa que reúne organizações não-governamentais e empresas de tecnologia, e que utiliza imagens de satélite para estudar a mudança nos padrões de uso do solo em todo o Brasil.

Vélez explica que o levantamento tomou como ponto de partida o ano de 1985 porque é o primeiro ano da série histórica do conjunto de satélites Landsat.

"Para estudar esse fenômeno, a gente precisa de dados comparáveis de longo prazo", explica Vélez.

O pesquisador explica que o levantamento comparou as coberturas vegetais de diferentes categorias ao longo dos anos para estimar a quantidade de vegetação nativa perdida e o que ocupou o seu lugar no Rio Grande do Sul.

Vélez diz que a perda de vegetação nativa no Rio Grande do Sul atingiu o Estado como um todo, mas quase um terço dela se deu na bacia hidrográfica do Guaíba, uma das mais afetadas.

Lá, a perda de vegetação nativa foi de 1,3 milhão de hectares.

"O Rio Grande do Sul tem um bioma diferente da Amazônia, por exemplo. Temos algumas florestas nativas, mas a maior perda não se deu pelo desmatamento de florestas. Essa perda se deu, na maior parte, nas formações campestres", diz Vélez.

As formações campestres do Rio Grande do Sul são um tipo de vegetação adaptada ao clima sub-tropical do Estado composta, em sua maioria, por gramíneas e arbustos de pequeno porte.

Em geral, ela vem sendo utilizada historicamente nas atividades de pecuária extensiva, preservando, segundo especialistas, suas características originais biológicas e suas funções ambientais em relação à chuva e ao solo.

De acordo com o MapBiomas, o Estado perdeu 3,3 milhões de hectares em formações campestres entre 1985 e 2022, quase a totalidade de tudo o que o Estado perdeu em vegetação nativa no período.

Trata-se de uma perda de 32% em relação ao que havia desse tipo de vegetação em 1985.

O MapBiomas também mostra qual o destino dado às áreas onde a vegetação nativa foi suprimida.

Os dados apontam que houve um crescimento de 366% no total da área destinada à lavoura de soja no período.

Em 1985, o Estado tinha uma área de 1,3 milhão de hectares ocupada pela soja. Em 2022, essa área saltou para 6,3 milhões. O crescimento foi de 4,99 milhões de hectares.

Essa área é maior do que o total da perda de vegetação nativa porque, segundo Vélez, além de crescer sobre as áreas naturais do Estado, a soja também avançou sobre outras atividades como pastagens.

De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), o Rio Grande do Sul era, em junho de 2023, o terceiro maior produtor de soja do Brasil, atrás de Paraná e Mato Grosso.

Outra atividade cuja área cresceu mudando a configuração do solo do Rio Grande do Sul é a silvicultura.

A silvicultura consiste na plantação de florestas novas ou no manejo de florestas nativas para a sua exploração comercial.

No Rio Grande do Sul, a principal forma de silvicultura é a plantação de florestas novas de espécies como eucalipto, pinus e outras espécies que são usadas para a produção de madeira, lenha e celulose.

De acordo com o MapBiomas, a área destinada à silvicultura no Estado saltou de 79 mil hectares para 1,19 milhão de hectares, um crescimento de 1.399%.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Rio Grande do Sul é o quinto maior Estado do Brasil em silvicultura, atrás de Paraná, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Minas Gerais.

O levantamento também mostra que houve um crescimento de 145% nas áreas urbanizadas do Estado no período estudado.

Em 1985, as áreas urbanizadas saíram de 97 mil hectares para 238.607 em 2022.

De acordo com o IBGE, a população do Estado era de 8,4 milhões em 1985. Em 2022, a população estimada era de 10,8 milhões.

Gravidade do estrago foi afetada por desmatamentos (Amanda Perobelli / Reuters)

Freio, reservatório e contenção

O professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador de uma rede de pesquisadores sobre os campos do Sul do país, Valério Pillar, disse à BBC News Brasil que a redução na área de vegetação nativa e sua substituição podem ter contribuído para o agravamento dos impactos das inundações.

"A mudança no uso da terra provavelmente aumentou o impacto negativo dessas chuvas", afirma o professor à BBC News Brasil.

Ele explica que há três motivos pelos quais isso aconteceria.

O primeiro é que a vegetação nativa funcionaria como uma espécie de "freio" para a água da chuva.

"A vegetação nativa nas margens dos córregos, riachos e rios cria mais obstáculos para a água da chuva em seu caminho até os leitos dos rios. Esses obstáculos diminuem a velocidade do escorrimento da água e reduzem a força com que ela chega às áreas mais baixas do território, como aquelas afetadas pelas enchentes", explicou o professor.

Pillar diz ainda que, mesmo após um rio transbordar, a vegetação nativa nas margens de um curso d'água funciona como um freio para a drenagem da água, diminuindo a velocidade com que ela atinge as áreas rio abaixo.

O segundo motivo é que a vegetação nativa funcionaria como uma espécie de "dreno" para parte da água da enxurrada.

"A vegetação nativa e suas raízes mantêm o solo mais permeável e assim ajudam a infiltrar a água da chuva no solo, reduzindo a quantidade que fluiria diretamente para os leitos dos rios", disse o professor.

O terceiro motivo é o fato de que a vegetação nativa teria a capacidade de mitigar a erosão do solo e o assoreamento dos rios da região.

"A supressão da vegetação nativa, sobretudo dos campos nativos nessa região, expõem o solo à erosão causadas pelas chuvas. Quando a chuva cai com intensidade, ela carrega uma enorme quantidade de terra pro leito dos rios. Isso causa o assoreamento, que diminui a profundidade do rio. Assim, fica mais fácil para haver uma inundação porque o rio comporta menos água", disse o professor.

"Se você vir as imagens de satélite, vai notar que a cor barrenta das inundações. Tudo isso é sedimento carregado pela água de áreas rio acima", afirmou.

A agrônoma e doutora em Ciências do Solo pela UFRGS Bruna Winck disse à BBC News Brasil que apesar de a soja cobrir o solo e consumir água durante o seu crescimento, ela não teria as mesmas condições de reter água e o solo durante as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul.

"O sistema de raízes da vegetação nativa é mais diverso quanto à sua capacidade de captação de água no solo, podendo fazer isso em diferentes profundidades", explica ela.

"Na cultura da soja, há etapas em que o solo está menos protegido, como o preparo do solo e na fase inicial de crescimento das plantas. Mesmo que haja palha sobre o solo, ela apenas favorece a infiltração de água, mas não a sua absorção", explicou.

'Boom' nas commodities e mudanças legislativas

Para Bruna Winck, um dos motivos por trás da redução na área de vegetação nativa e a sua transformação em lavouras de soja se deu, possivelmente, por conta do "boom" no preço das commodities, no início dos anos 2000.

"Como o Rio Grande do Sul tem solos de boa qualidade, férteis, bem drenados na parte norte, isso fez com que essa expansão se acelerasse nessa região. O preço teve um papel fundamental nessa aceleração", disse a pesquisadora.

Para Valério Pillar, essa diminuição da área de vegetação nativa aconteceu por conta de um histórico de permissividade de sucessivos governos estaduais.

"Em 2015, houve um decreto estadual que permitiu que pecuaristas cujas propriedades fossem em áreas de vegetação campestre pudessem declarar essas fazendas como áreas de uso consolidado. Isso reduziu uma série de exigências para o desmate dessa vegetação. Em 2019, essa mudança foi consolidada no Código Florestal do Estado", afirmou o professor.

Para o presidente da Associação dos Servidores da Sema-RS, Pablo Pereira, a perda de vegetação nativa no Rio Grande do Sul foi agravada por decisões políticas.

"Esta perda das formações naturais foi acentuada, respaldada e incentivada por mudanças na legislação ambiental e também por procedimentos e decisões das gestões estaduais e municipais que dificultam a devida proteção da vegetação nativa e de áreas de grande interesse ecológico", disse uma nota assinada por ele enviada à BBC News Brasil.

Na semana passada, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma reportagem mostrando que o governo de Eduardo Leite (PSDB) alterou 480 normas ambientais desde que assumiu o comando do Estado pela primeira vez, em 2019.

Em resposta ao jornal, o governo do Estado enviou uma nota dizendo que as alterações teriam apenas atualiazado a legislação ambiental local.

"A atualização alinhou a lei estadual à legislação federal. A modernização acompanhou as transformações da sociedade, tornando a legislação aplicável, priorizando a proteção ambiental, a segurança jurídica e o desenvolvimento responsável", diz um trecho da nota.

A BBC News Brasil enviou questionamentos sobre o assunto à Sema-RS, mas nenhuma resposta foi enviada até a publicação desta reportagem.

A reportagem também enviou questões à Associação de Produtores de Soja do Rio Grande do Sul (Aprosoja-RS), mas também não recebeu nenhuma resposta.

Futuro incerto

Bruna Winck, Eduardo Vélez e Valério Pillar concordam ao afirmar que a redução na vegetação nativa não seria a causa das inundações no Rio Grande do Sul.

Segundo eles, as causas são as mudanças climáticas causadas pela ação humana sobre o meio ambiente com a liberação de CO₂ na atmosfera a partir da queima de combustíveis fósseis e outras atividades como o desmatamento.

"A previsão para o Rio Grande do Sul é de aumentos de extremos climáticos, incluindo o de chuvas. Mesmo um solo bem drenado, com vegetação nativa, pode ser completamente saturado, o que pode levar a aumentos de água nos leitos de rios", diz a pesquisadora.

Ela, no entanto, defende que a vegetação nativa do Estado seja recomposta.

"Essas mudanças do clima devem-se sobretudo aos aumentos de CO₂ na atmosfera. E para reduzir isso, a única maneira é aumentar o seqüestro do CO₂ pela vegetação e pelo solo. E diversos estudos já mostram que as vegetações nativas são mais eficazes na captura do CO₂ e os solos sob essa vegetação geralmente estocam mais carbono", disse Winck.

Na nota enviada pela associação de servidores da Sema, a necessidade de recomposição da vegetação nativa do Estado também foi mencionada.

"O Governo do Estado até hoje não institucionalizou as metas de recuperação de vegetação nativa previstas no Plano Nacional de recuperação de Vegetação Nativa (Planaveg), que prevê, minimamente a recuperação de 300 mil hectares de áreas degradadas no Bioma Pampa, sem contar a porção de Mata Atlântica subtropical do Rio Grande do Sul", disse um trecho da nota.

Questionados pela reportagem sobre os planos de recomposição da mata nativa, a Sema-RS e o governo gaúcho não enviaram resposta até a publicação desta reportagem.

Leandro Prazeres, Jornalista, de Brasília - DF, originalmente, para a BBC News Brasil, em 15.05.24