segunda-feira, 20 de maio de 2024

Eleitor é cúmplice das mentiras

Verdade não tem muito valor no cotidiano brasileiro

Tim Maia: 'Eu não bebo, eu não cheiro, mas minto um pouco às vezes' — Foto: Antonio Nery

O que veio primeiro: o político mentiroso ou o eleitor que inventa mentiras? Melhor seria perguntar: por que deixamos de acreditar na verdade?

Não é correto dizer que Bolsonaro, na extrema direita, tampouco Lula, na esquerda, sejam os primeiros a se valer de inverdades como instrumento político. No Brasil, o recurso à traquinagem tem tradição, régua e compasso.

Não indo muito longe, podemos ficar na eleição de Artur Bernardes no problemático 1922. Ano do centenário da Independência, da Semana de Arte Moderna e da revolta dos 18 do Forte de Copacabana, quando alguns tenentes quiseram derrubar o governo à bala (a coisa vem de longe). No meio da campanha, surgiram várias cartas creditadas a Bernardes, recheadas de ataques ao marechal Hermes da Fonseca, chamado de “sargentão sem compostura”. Eram apócrifas, inventadas pelos partidários de Nilo Peçanha, que seria derrotado nas urnas. Mesmo desmascaradas, as mentiras serviram para azedar a relação de Bernardes, obrigado a governar sob estado de sítio, com os militares.

(Vale lembrar que também Bernardes era um tipo desarrazoado. Entre outras bobajadas, mandou prender o grande Sinhô, autor da marchinha carnavalesca “Fala baixo”, cujos versos denunciavam a censura do governo e a maldosa alcunha do presidente: “Vem cá, Rolinha, vem cá”. Não se sabe o motivo, mas Bernardes não gostava de ser chamado de rolinha.)

É possível que os políticos tenham começado a mentir porque nem sempre os eleitores gostassem da verdade dita na cara. Um exemplo eu presenciei. Em 1985, no debate pela prefeitura de São Paulo, o jornalista Boris Casoy perguntou a Fernando Henrique Cardoso se ele acreditava em Deus. O candidato se enrolou na resposta, não disse nem sim nem não. Os eleitores não gostaram da disfarçada sinceridade e não elegeram um notório ateu, preferindo Jânio Quadros. No mesmo debate — num exemplo de como a política mudou —, fizeram um quiz com Eduardo Suplicy, candidato do PT: quanto custa um pãozinho francês? Ele mandou lá um valor bem alto. Comentaram: “Isso é preço de croissant, Eduardo!”.

A maioria dos eleitores parece não gostar da verdade, mesmo porque ela não tem muito valor no cotidiano brasileiro. O filósofo Tim Maia resumiu a peleja e alma da nossa gente:

— Eu não bebo, eu não cheiro, mas minto um pouco às vezes.

Aí chegamos a outra equação, assim resumida: o político mente para agradar ao público ou o eleitor não dá voto a quem se mostra cru e sincero? Difícil questão, porque em muitos momentos sabemos que estamos sendo enganados.

Vamos mais perto na História. Na eleição de 2022, Lula da Silva se apoiou numa aliança da centro-direita à esquerda para derrotar Bolsonaro. Disse que faria um governo de reconstrução e harmonia. Tá bom. Tebet e outros tantos brasileiros sabiam que daquele mato não sairia nada. De fato, só saiu nota oficial da Janja. A razão do faz de conta — expulsar Bolsonaro do poder — parecia ser um atenuante tolerável para engolir a mentira eleitoral. Então o jogo político se resume a estratégia e, portanto, o blefe é recurso válido. Ou a mentira, em alguns casos. Como quando se elogia Nicolás Maduro por representar uma invejável democracia sul-americana. (O improviso de Lula provavelmente envergonhou até a Gleisi.)

Parte do eleitorado petista sabe que a Venezuela vive sob um regime autoritário e sanguinário, assim como os comunistas brasileiros tinham informações dos crimes cometidos por Stálin. Em nome da causa, se escondem os fatos, e são criadas inverdades. Quantas mortes teriam sido evitadas se a esquerda mundial houvesse protestado contra Stálin? Milhões, por certo. Ou quantos venezuelanos deixariam de ser presos políticos se Lula ousasse dizer o que o mundo denuncia? Milhares, com certeza.

Talvez seja o caso de o eleitor se olhar no espelho e saber que sua postura legitima a mentira do governante. No caso, talvez o político seja mesmo apenas um servidor público, aquele que cumpre ordens. Um pau-mandado? Não dá para dizer que é um pobre de um coitado agindo contra seus princípios, dando a vida por uma causa perdida e violentando-se em nome do bem comum — bem, isso já seria demais. Mas, pensando melhor, não se pode esquecer que a maioria dos bolsonaristas desmente que o 8 de Janeiro tenha sido uma malsucedida tentativa de golpe.

Se no Brasil até o passado é incerto, como se diz por aí, é porque o país do futuro talvez seja de fato outra mentira.

Miguel de Almeida o autor deste artigo, é editor e diretor de cinema.  Publicado originalmente n'O Globo, em 20.05.24

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Lula, o CEO da Petrobras

Magda Chambriard será a sexta executiva em menos de seis anos a ocupar a presidência da Petrobras, um cargo que Lula, assim como Bolsonaro antes dele, imagina ser seu por direito

Magda Chambriard

A demissão de Jean Paul Prates da presidência da Petrobras revelou que o verdadeiro CEO da empresa se chama Luiz Inácio Lula da Silva e assim permanecerá até o fim de 2026. Magda Chambriard, indicada para ser a próxima preposta, será apenas a tarefeira de Lula em seu plano de financiar a indústria naval, produzir fertilizantes, controlar o preço dos combustíveis, investir em estaleiros e bancar a tresloucada política desenvolvimentista lulopetista da forma que produzir maiores dividendos eleitoreiros.

A bem da verdade, Prates não se interpôs aos anseios do chefe em praticamente nenhum desses quesitos. Mas teve o demérito de tentar privilegiar também os investidores na questão da distribuição de dividendos extraordinários, que Lula tentou reter, sabe-se lá com qual intenção. Além, é claro, de partir para o confronto com o Centrão do ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, ungido por Lula da Silva como um de seus principais assessores, ao lado do ministro da Casa Civil, Rui Costa.

Irritado e em busca de mais poder na estatal – sim, a Petrobras até pode ser uma empresa de economia mista por direito, mas, de fato, continua controlada pelo Estado –, Silveira reclamou da morosidade de Prates no financiamento da agenda do governo e venceu a disputa por poder que se arrastou por mais de um ano. A mensagem de Prates em um grupo de WhatsApp, providencialmente vazada, não deixa dúvidas sobre o caráter político da decisão: “Minha missão foi precocemente abreviada na presença regozijada de Alexandre Silveira e Rui Costa”.

Lula da Silva quer avançar sobre a Petrobras desde o início de seu terceiro mandato, derrubando importantes obstáculos erguidos justamente para reduzir a ingerência política na empresa. Para isso contou com a subserviência de Prates, inclusive para mexer no estatuto e derrubar a política de paridade de preços, que vinculava o preço dos combustíveis às oscilações internacionais. Mas essa mudança talvez não tenha dado o retorno que Lula esperava.

Todos os ingredientes postos na bagunça promovida pelo governo Lula da Silva na condução da Petrobras remetem perigosamente a um enredo de abusos e corrupção conhecido por todos, resumido no escândalo do petrolão: disputa de políticos por cargos e poder de influência, obras superfaturadas, estímulo desnecessário à construção de navios e uso da Petrobras como alavanca de programas sociais do governo.

Nas gestões anteriores do PT, essa mistura de interesses estranhos ao negócio da empresa levou à formação de um cartel de empreiteiras que, entre 2004 e 2012, levou a um prejuízo comprovado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de R$ 18 bilhões (valor de 2020, época do estudo). Mas não foi apenas nem principalmente corrupção que arruinou a Petrobras naquela época, e sim o desvirtuamento de sua administração para fins políticos, eleitorais e ideológicos – que gerou imensos prejuízos ao País, pagos pelo contribuinte. É precisamente esse status que Lula pretende restabelecer.

O demiurgo petista parece determinado a fazer da Petrobras uma poderosa fonte de recursos à margem do Orçamento para custear projetos mirabolantes e comprovadamente fadados ao fracasso – como o que distribuiu contratos vultosos da companhia a 19 estaleiros espalhados pelos País, 5 deles estreantes, que tiveram obras garantidas antes mesmo de existirem.

Magda Chambriard, a escolhida por Lula para chefiar a Petrobras em seu nome, é do ramo. Funcionária de carreira da empresa, é especialista em engenharia do petróleo e foi diretora-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Ou seja, currículo tem, mas todos sabem que não foi isso o que pesou em sua escolha, e sim sua suposta disposição para fazer o que Lula mandar.

A julgar pelo que a sra. Chambriard escreveu num artigo na revista Brasil Energia, publicado em dezembro do ano passado, Lula ficará feliz. Além de demonstrar entusiasmo pela ideia de reativar estaleiros, a nova executiva diz ali que “a estatal não poderia ter a dimensão atual sem a mão forte de um governo que a fez crescer de tamanho abruptamente” e que se espera que a empresa e o governo “retribuam o esforço da sociedade em seu benefício”, inclusive na luta pela “redução das desigualdades”. Logo se vê que, sob nova direção, o core business da Petrobras não será petróleo, e sim demagogia.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.05.24

Programa econômico de Lula é o atraso

Demissão de Prates na Petrobras mostra presidente empenhado em repetir o que deu errado nas gestões petistas anteriores

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) mostra mãos cobertas de petróleo durante evento em navio da Petrobras, na Bacia de Campos (RJ) - Bruno Domingos - 17.nov.23/Reuters

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), para a surpresa de ninguém, demitiu Jean Paul Prates da chefia da Petrobras porque o defenestrado não cumpriu, com a velocidade e a fidelidade canina exigidas pelo mandatário, a missão de submeter a estatal aos comandos do bestiário ideológico petista.

Para o chefe de Estado, não bastou Prates já ter descarrilhado a política de preços da Petrobras, reestabelecendo defasagens significativas em relação aos praticados internacionalmente. Era necessário afundar o pé no acelerador de projetos ruinosos, considerados estratégicos pelo mandachuva petista.

Lula faz campanha pela retomada vertiginosa de obras no Rio de Janeiro e em Pernambuco, empreendimentos que entraram para os anais da indústria petrolífera mundial pelos desembolsos estratosféricos, irrecuperáveis, e pela corrupção desabrida.

O presidente também faz carga pela entrada da estatal em projetos bilionários nas áreas de fertilizantes e de construção de navios no Brasil. Encampa, assim, a plataforma de repetir tudo o que deu errado nos seus dois mandatos anteriores e na desastrosa passagem da correligionária Dilma Rousseff pelo Palácio do Planalto.

As consequências negativas do intervencionismo que assoma das catacumbas serão duradouras. A deterioração manifesta-se no banho de sangue nas ações da estatal nesta quarta-feira (15), mas não apenas nesse indicador arisco.

Torrar recursos em novas aventuras de retorno improvável vai reduzir a lucratividade da empresa, deprimindo os repasses de dividendos ao Tesouro Nacional, seu principal acionista, que não deveria perder oportunidades de reduzir o seu rombo fiscal.

A invectiva na Petrobras —a repetir, em novo contexto, o intervencionismo tosco de Jair Bolsonaro (PL), que empilhou quatro presidentes na estatal— insere-se num conjunto de atitudes nefastas da administração petista na condução da política econômica.

Lula não faz questão de esconder que mandou às favas a preocupação com o equilíbrio orçamentário e ninguém se surpreenderá, infelizmente, se indicar um cupincha para presidir o Banco Central com a ordem de baixar juros na marra.

A bagunça e a incerteza que o mandonismo voluntarista produzem no ambiente e nas instituições econômicas vão dificultar o crescimento sustentado da renda e do emprego. O fiasco dos investimentos na produção de bens e serviços responde a esses estímulos irresponsáveis do chefe do governo.

O programa econômico de Lula e do PT é o atraso, e seu vulto empobrecedor vai-se tornando cada vez mais nítido conforme progride o mandato presidencial.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 16.05.24 (editoriais@grupofolha.com.br)

O desastre natural com maior impacto na economia brasileira: 3 efeitos das inundações do RS no país

No Brasil, nunca houve tanto estrago econômico provocado por um evento climático. A avaliação é do economista Sergio Vale, da MB Associados, consultoria que está monitorando os impactos das enchentes de maio na economia.

Plantação de alface foi destruída pelas enchentes em Guaíba (Amanda Perobelli / Reuters)

Para se avaliar o impacto econômico das inundações no Rio Grande do Sul, é preciso olhar para o exterior para se achar algo semelhante — como no caso da destruição provocada pelo furacão Katrina nos Estados Unidos em 2005.

Nos Estados Unidos, o Katrina fez o Estado da Louisina contrair 1,5% — em um ano em que se esperava que crescesse 4%. No caso do Rio Grande do Sul, a MB Associados prevê que a economia vai se contrair 2% — em vez do crescimento de 3,5% que vinha registrando nos últimos 12 meses até abril.

E no caso brasileiro, o impacto em âmbito nacional será muito maior do que aconteceu no efeito do Katrina nos Estados Unidos — já que a economia gaúcha corresponde a 6,5% do PIB brasileiro (a Louisina representa 1% da economia americana).

Por conta da tragédia, a MB Associados não pretende revisar o crescimento brasileiro. A consultoria acreditava que o crescimento brasileiro projetado para este ano podia ser de 2,5% — mas após a tragédia no Rio Grande do Sul ela manteve a projeção de crescimento em 2%.

O Brasil já enfrentou outras grandes crises que afetaram o crescimento da economia nacional. Em 2001, por exemplo, uma seca contribuiu para uma crise de racionamento de energia e apagões. A economia nacional, que havia crescido 4,4% no ano anterior, desacelerou para 1,4%. Mas apesar da contribuição da seca, o cerne da crise de 2001 não foi o clima, mas sim gargalos nas linhas de transmissão — que impediam o Brasil de distribuir energia pelo país.

A tragédia no Rio Grande do Sul deste ano — que já provocou pelo menos 149 mortes — terá impacto em pelo menos três frentes da economia brasileira: no crescimento do PIB deste ano, no setor agrícola e na questão fiscal brasileira.

Carros destruídos (Getty Images)

Enchentes no Rio Grande do Sul

-2% deve ser o crescimento do Rio Grande do Sul, segundo estimativas

3,5%era quanto a economia gaúcha vinha crescendo antes das inundações (Fonte: MB Associados)

Economistas e estudos consultados para esta reportagem lembram que a dimensão exata do impacto econômico ainda não pode ser quantificado com precisão, porque as chuvas ainda estão em andamento e sequer foi feito um levantamento preciso do estrago ainda.

Essa indefinição também tem implicações políticas. Autoridades têm falado em diferentes medidas e valores para destinar ao Rio Grande do Sul — mas essa ajuda ainda está sendo discutida e os números estão em aberto.

Confira abaixo como as inundações devem afetar a economia brasileira em 2024.

Impacto no crescimento e na indústria

As enchentes afetaram 94,3% de toda atividade econômica do Rio Grande do Sul, segundo um levantamento divulgado na segunda-feira (14/5) pela Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs).

"Os locais mais atingidos incluem os principais polos industriais do Rio Grande do Sul, impactando segmentos significativos para a economia do Estado", disse o presidente em exercício da Fiergs, Arildo Bennech Oliveira.

Três das maiores regiões afetadas (Região Metropolitana de Porto Alegre, Vale dos Sinos e Serra) contribuem com R$ 220 bilhões para a atividade econômica brasileira.

Essas três regiões concentram 23,7 mil indústrias que empregam 433 mil pessoas.

A Região da Serra (de cidades como Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Farroupilha) é famosa pela produção nos segmentos metalmecânico (veículos, máquinas, produtos de metal) e móveis. A Região Metropolitana de Porto Alegre também produz metalmecânicos (veículos, autopeças, máquinas), além de derivados de petróleo e alimentos. A Região do Vale dos Sinos é famosa pela produção de calçados.

Mas diversos outros setores da economia também foram afetados, como tabaco e químicos.

Ruas comerciais no Centro de Porto Alegre ficaram alagadas (Sebastião Moreira / EPA-EPA REX/SHUTTERSTOCK)

Um estudo feito pelo Bradesco prevê que o impacto da crise no Rio Grande do Sul pode reduzir o crescimento do PIB nacional em 0,2 a 0,3 ponto percentual.

"A título de comparação, quando o Estado foi atingido pelo ciclone de 2008, o crescimento do PIB estadual daquele ano foi de 2,9%, ante crescimento do Brasil como um todo de 5,1%."

Um outro levantamento — da Confederação Nacional dos Municípios — calcula em mais de R$ 8,9 bilhões os prejuízos financeiros das enchentes. Segundo a CMN, R$ 2,4 bilhões desse prejuízo são no setor público, R$ 1,9 bilhão no setor produtivo privado e R$ 4,6 bilhões especificamente nas habitações destruídas.

Impacto agrícola

O Rio Grande do Sul é uma das potências do agro brasileiro — o Estado representa 12,6% do PIB da agricultura nacional.

Como um todo, a agropecuária brasileira será um dos setores da economia mais afetados pelas enchentes, segundo o Bradesco.

"Considerando tais impactos, o PIB agropecuário no Brasil pode recuar 3,5% (nossa estimativa anterior era de queda de 3,0%). As perdas no agronegócio podem ser ampliadas pela logística, que afeta tanto o escoamento da safra bem como impede a chegada de insumos. Esse parece ser um problema importante para os setores de laticínios e carnes", afirma um relatório do banco.

O Rio Grande do Sul responde por 70% da produção do arroz do Brasil, 15% de carnes (12% da produção de frangos e 17% da produção de súinos) 15% da soja, 4% de milho.

As enchentes provocaram choques em alguns preços internacionais — a cotação mundial da soja na bolsa de Chicago chegou a subir 2% na semana passada. No Brasil, o preço do arroz já subiu e o governo anunciou a importação do produto para evitar um choque ainda maior. Há temores de que os preços de carne de frango e suína também possam subir em breve.

Agricultor mostra prejuízo em campo de milho em Guaíba (Amanda Perobelli / Reuters)

Por sorte, 70% da safra de soja e 80% da safra do arroz já haviam sido colhidas. Sobram duas dúvidas agora: quanto do restante da safra foi afetado pelas enchentes e se a quantidade já colhida e armazenada nos silos foi comprometida ou não. O Bradesco avalia que 7,5% da produção de arroz e 2,2% da produção de soja do Brasil podem estar comprometidos, caso se confirmem os piores cenários.

Vale, da MB Associados, lembra que o agro gaúcho já vinha sofrendo muito nos últimos três anos com os extremos climáticos.

"No Rio Grande do Sul, a questão agrícola nos últimos anos tem colocado o Estado no grau de muita insegurança. Foram três anos seguidos de La Niña, com secas muito profundas, e quebras de safra muito fortes. No ano passado, o Estado estava até comemorando a chegada do El Niño, que traria chuvas. Mas quando se pensou que teríamos um ano normal, de repente acontece isso", diz o economista.

Ainda existe a possibilidade de um novo fenômeno La Niña este ano, com potencial para provocar novas secas no Rio Grande do Sul.

Impacto fiscal

Outro impacto importante da calamidade do Rio Grande do Sul na economia nacional é na questão fiscal brasileira.

Há anos o Brasil vem tentando equilibrar sua situação fiscal — ou seja — o governo faz um esforço para conseguir arrecadar mais dinheiro do que gasta, produzindo o que se chama de superávit fiscal.

Esse superávit fiscal é usado para reduzir o endividamento público do governo, que é um elemento fundamental da economia de qualquer país. Alto endividamento tem potencial para produzir inflação alta, baixo crescimento econômico e desemprego.

No ano passado, o governo Lula lançou o que chamou de "arcabouço fiscal" — o conjunto de regras para gastar os recursos públicos e fazer investimentos. Esse arcabouço foi fundamental para acalmar os mercados e sinalizar que o Brasil não gastaria dinheiro desenfreadamente.

Mas no mês passado, diante de problemas no orçamento, o governo desistiu de atingir superávits em 2025.

Economistas apontam que o Brasil já vivia um momento fiscal delicado antes das enchentes no Rio Grande do Sul.

No entanto, o quadro se agrava bastante agora que o governo federal terá que fornecer uma grande ajuda financeira ao Estado.

Todos defendem uma ajuda financeira grande ao Rio Grande do Sul, mas analisam que haverá um grande impacto nas contas nacionais.

Já foi anunciado, por exemplo, um plano a ser enviado ao Congresso para suspender a cobrança da dívida do Estado do Rio Grande do Sul com a União por três anos.

A regra permitiria a criação de um fundo "contábil" de R$ 11 bilhões por ano para ajudar na reconstrução da infraestrutura do Estado que foi devastada pelas enchentes, segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A medida também inclui o perdão da cobrança de juros sobre a dívida — com impacto de R$ 12 bilhões.

O governo federal já havia anunciado na semana passada um pacote de medidas que pode chegar a R$ 51 bilhões, que incluia pagamentos antecipados de benefícios como Bolsa Família, auxílio-gás, BPC, abono salarial e restituição do Imposto de Renda, além de algumas renuncias fiscais.

Na quarta-feira, o governo federal anunciou um auxílio-reconstrução no valor de R$ 5 mil por família cadastrada, que custará R$ 1,2 bilhão aos cofres.

Alguns dos gastos públicos ficarão de fora das regras fiscais do governo, por conta de o Rio Grande do Sul estar em estado de calamidade.

Todas essas medidas são fundamentais para reerguer o Rio Grande do Sul — mas elas têm potencial para agravar a situação fiscal brasileira que já vinha sofrendo antes da crise provocada pelo evento climático.

Sergio Vale, da MB Associados, alerta que ao longo do ano é possível que mais dinheiro seja encaminhado ao Rio Grande do Sul através de créditos extraordinários aprovados pelo Congresso — e que isso deve piorar o equilíbrio fiscal brasileiro.

Ele diz que é difícil quantificar exatamente qual será o tamanho do problema fiscal brasileiro, porque ainda não se sabe quanto dinheiro será necessário para reconstrução do Rio Grande do Sul.

"Não está muito claro exatamente o que o governo vai disponibilizar. O cenário fiscal [do Brasil] já está muito distorcido. Então qualquer coisa que acontece piora ainda mais", diz Vale.

Para Caio Megale, economista-chefe da XP, parte da ajuda estará fora do arcabouço fiscal do governo — mas mesmo que seja necessário incluir essas despesas no orçamento, seria possível acomodar os gastos.

"Ninguém sabe direito qual que vai ser o tamanho total do apoio. A gente ouve falar em R$ 70 bi, R$ 80 bi, R$ 90 bi ou R$ 100 bi. Não dá para saber ainda, é preciso esperar as águas baixarem. Mas o arcabouço fiscal tem espaço para que essas medidas sejam tomadas", disse Megale em um morning call (serviço diário de corretoras para seus clientes) desta semana.

Daniel Gallas, Jornalista, de Londres - Inglaterra, originalmente, para a BBC News Brasil, em 16.05.24

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Os mercadores do caos

Bolsonaristas andam espalhando desinformação em meio à tragédia no RS porque, inimigos da democracia que são, a eles interessa minar a capacidade dos cidadãos de confiar uns nos outros


Pessoas do bem, até prova em contrário, ajoelhando-se em preces a favor de um grande picareta. 

O bolsonarismo não é uma força política normal. É uma força destrutiva, que só é capaz de prosperar num ambiente de conflagração permanente, desconfiança entre os cidadãos – e entre estes e as instituições – e negação da política como meio de concertação civilizada entre interesses sociais divergentes. Ter esse diagnóstico claro de antemão é fundamental para compreender como e por que bolsonaristas de quatro costados têm agido como mercadores do caos espalhando desinformação em meio à tragédia climática que arrasou o Rio Grande do Sul. Há uma agenda em jogo. E ela não poderia estar mais distante dos interesses nacionais, que dirá dos imperativos morais e humanitários que devem orientar a ação de governos e da sociedade neste momento de amparo aos gaúchos.

A difusão de mentiras e/ou distorções da realidade de forma coordenada entre os bolsonaristas, tal como ocorreu durante a pandemia, não provoca danos na escala dos causados pelas chuvas torrenciais no Estado, mas gera um efeito igualmente devastador: mina o esforço nacional para fazer chegar ajuda vital aos nossos concidadãos gaúchos. “A desinformação é o que mais tem prejudicado o nosso trabalho”, disse ao Estadão o comandante do Exército, general Tomás Paiva. “Ela impede a sinergia entre órgãos governamentais, que é fundamental para ações que são imprescindíveis nesse momento”, lamentou o militar, com toda razão.

A fim de enfraquecer a democracia que tanto desprezam – é disso que se trata –, figuras como os deputados Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Gustavo Gayer (PL-GO), Paulo Bilynskyj (PL-SP), Nikolas Ferreira (PL-MG), Gilvan da Federal (PL-ES), General Girão (PL-RN) e Caroline de Toni (PL-SC), entre outros congressistas – além do governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL) –, agem de forma livre e consciente para destruir os laços de solidariedade entre os brasileiros. As mentiras que disseminam da tribuna da Câmara e por meio das redes sociais, a pretexto de criticar supostas omissões do governo federal no enfrentamento da crise, não têm outro objetivo senão o de abalar a capacidade das pessoas de confiarem umas nas outras.

Esse imoral ataque à “verdade dos fatos”, na expressão consagrada por Hannah Arendt, tem como finalidade a instalação de um clima de confusão generalizada no País que seja tóxico o bastante a ponto de, no limite, fazer a democracia soçobrar diante da falta de seu insumo básico: a confiança entre as pessoas, sem a qual não é possível estabelecer consensos mínimos, principalmente o reconhecimento de que adversários políticos, ora vejam, também possuem uma dimensão humana e têm legitimidade para tomar parte no debate público. Sob esse consenso devem permanecer todas as eventuais divergências político-ideológicas que possa haver entre os cidadãos.

Ironicamente, foi esse pacto civilizatório que levou quase toda a chamada classe política a interromper a campanha eleitoral de 2018 a partir do dia 6 de setembro daquele ano, quando o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro sofreu um atentado a faca. Ali ficou claro que a política não é um vale-tudo. Mas, ao que parece, os bolsonaristas ignoraram a lição, pois agora não emitem o mais tênue sinal de constrangimento ao explorar o terrível drama dos gaúchos para auferir, eles mesmos, ganhos político-eleitorais.

Os bolsonaristas têm o direito de criticar o governo federal. Como oposição, estranho seria se não o fizessem. Os bolsonaristas têm até o direito de serem injustos com o presidente Lula da Silva, afirmando que o petista nada tem feito para aliviar o sofrimento dos gaúchos – o que não é verdade. Mas não é de críticas que se está tratando. É de uma desumanização que extrapola as lides políticas entre “direita” e “esquerda”, “conservadores” e “progressistas”. E esse processo há de ser interrompido, a bem do País, não só do Rio Grande do Sul, com mais informações de qualidade e, principalmente, com os genuínos democratas se unindo em defesa da boa política como a expressão mais iluminada da democracia.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 15.05.24

"Não tem mais volta", diz Nobre sobre catástrofes climáticas

Em entrevista à DW, climatologista Carlos Nobre aborda o desafio de preparar cidades brasileiras para eventos climáticos extremos, e estima que 3 milhões de pessoas teriam que ser retiradas de áreas de risco.

Ruas inundadas em Canoas, no Rio Grande do SulFoto: Amanda Perobelli (Reuters)

Enquanto pessoas ilhadas ainda aguardam resgate e mais de 300 municípios do Rio Grande do Sul nem conseguem calcular o prejuízo causado pelas enchentes, cientistas alertam que eventos com chuvas extremas chegaram para ficar.

O que chama a atenção, diz Carlos Nobre, climatologista brasileiro que fez carreira no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), é que essas tragédias estão acontecendo mais cedo do que se previa. Em 2007, o quarto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) da ONU previu que esses fenômenos se tornariam recorrentes por volta de 2030 ou 2040.

A antecipação se deve ao aumento rápido da temperatura média do planeta: em 2023, o recorde de aquecimento foi batido, com 1,5° C a mais que no período pré-industrial. Em 2024, o calor acima da média continua.

"Os modelos indicavam que, quando a gente atingisse 1,5°C, já deveríamos esperar fenômenos muito extremos, de chuvas muito intensas e prolongadas, como vimos no Rio Grande do Sul", afirma Nobre.

O desafio, aponta o cientista, será adaptar as cidades e retirar cerca de 3 milhões de brasileiros que vivem em áreas de risco. "Aumentar a resiliência e ter uma política de adaptação às mudanças climáticas é um investimento de centenas de bilhões de reais", diz ele em entrevista à DW.

Carlos Nobre: "Precisamos melhorar muito o nosso sistema de resposta"Foto: Tiziana Fabi/AFP/Getty Images

DW: As tragédias recentes que vimos no Brasil, como a enchente em Santa Catarina no fim de 2023, a seca extrema na Amazônia e a catástrofe recente do Rio Grande do Sul estão de alguma forma interconectadas? Quais relações a ciência consegue traçar?

Carlos Nobre: Essas tragédias têm uma interconexão, sem dúvida. Começando pela bacia do rio Taquari, no centro-norte do Rio Grande do Sul: ela registrou o maior recorde de chuvas e inundações em setembro de 2023. Ali, houve uma relação direta com o El Niño, que estava se desenvolvendo, provocado pelo aquecimento acima do normal no Oceano Pacífico Equatorial.

O El Niño induz uma seca na Amazônia e um aumento da velocidade do jato subtropical, que passa sobre o Uruguai, Paraguai, centro-leste da Argentina e Sul do Brasil. Quando o vento desse jato fica mais forte, a uma altura de 10 a 15 quilômetros, ele faz com que as frentes frias parem ali. Chove muito. O El Niño faz com que esse jato subtropical forte induza chuvas muito fortes no Sul do país.

Essa chuva extrema que vimos semana passada no Rio Grande do Sul, que chegou até o sul de Santa Catarina, é um fenômeno meteorológico um pouco diferente. É um sistema de ondas de todo o Hemisfério Sul entre a região subpolar e as latitudes subtropicais. Esse sistema na última semana estava quase que estacionário, o que a gente chama de bloqueio atmosférico. Havia esse sistema de baixa pressão ao sul e outro de altíssima pressão ao norte. Quando tem um bloqueio de alta pressão, o ar fica mais quente e impede a formação de nuvens. Como está muito quente, cria esta onda de calor, ou domo de calor. No sul, a baixa pressão traz as frentes frias, que ficam estacionadas porque há este sistema de bloqueio.

O El Niño já está numa fase de perder força, o jato subtropical já não está muito forte. Mas, sim, tudo isso tem a ver com o aquecimento global. Os oceanos bateram todos os recordes de aquecimento da história desse o último período interglacial, ou seja, dos últimos 125 mil anos. E quando o oceano está muito quente, evapora muita água e essa água é a fonte de energia para todos os sistema de chuva e indução de áreas de seca. O El Niño existe há milhões de anos, sempre induziu chuvas fortes no Sul, mas bateu-se o recorde agora.

As previsões climáticas feitas anos atrás previam mais chuvas extremas para o Sul do Brasil. Elas estão acertando?

Os modelos matemáticos climáticos rodados há muitos anos já previam. Os modelos com aquecimento global mostram um aumento da chuva anual no Sul do Brasil. Um aumento de 10% a 20%.

O que chama a atenção é que isso está acontecendo de forma muito mais antecipada. Se a gente pegar o relatório do IPCC [Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas] de 2007, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz, eu estava inclusive entre os autores, ele indicava que este tipo de fenômeno poderia acontecer por volta de 2030, 2040. Mas eles [fenômenos dos eventos climáticos extremos] já se anteciparam muito.

No ano passado atingimos o recorde de aquecimento, a temperatura média global já subiu 1,5° C mais quente que o período pré-industrial. Este ano continua quente. A temperatura média do planeta em fevereiro e março de 2024 já bateu 1,56°C mais quente, é o recorde histórico.

Os modelos indicavam que quando a gente atingisse 1,5°C nós já deveríamos já esperar fenômenos muito extremos de chuvas muito intensas e prolongadas como vimos no Rio Grande do Sul.

Com o planeta já perto deste 1,5°C  de aquecimento, eventos como este no Sul vão ficar mais frequentes? O que o Brasil tem que fazer para lidar com isso?

Se os oceanos continuarem muito quentes, sim, já estaremos muito próximos de 1,5 ºC. E podemos passar de 1,5 ºC antes de 2030 de forma permanente.

Nesse caso, extremos climáticos ficam mais frequentes em todo mundo. Torna-se essencial acelerar a implantação de soluções para adaptação a estes extremos. No caso de chuvas extremas, o enorme desafio de remover brasileiros de áreas de altíssimo risco como essas destruídas no Rio Grande do Sul. E construir e reconstruir infraestrutura resiliente aos extremos.

O que é preciso para melhorar a capacidade de prever eventos extremos no país, cada vez mais recorrentes?

A capacidade de previsão meteorológica melhorou muito. Isso tem muito a ver com o desenvolvimento científico, com a criação do Cptec [Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos], que fez os primeiros modelos atmosféricos climáticos. E temos o Cemaden [Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais], que utiliza as previsões meteorológicas de todo o mundo, inclusive as do Inpe.

Praticamente, consegue-se prever com vários dias de antecedência esses fenômenos extremos. Às vezes, os modelos matemáticos não conseguem prever recordes, mas eles preveem muita chuva.

Aquele evento extremo de fevereiro de 2023 no litoral norte de São Paulo, o maior volume de chuvas em 24 horas no Brasil, 600 milímetros, os modelos não conseguiram prever. Os modelos previram 300 milímetros. Em vários lugares do Rio Grande do Sul, choveu 800 milímetros em seis dias. Quando a chuva passa dos 200 milímetros já há um enorme risco. O Cemaden repassou essas informações.

É claro que há muito o que fazer. O Inpe tem um modelo regional chamado ETA e ele pode ser rodado com uma resolução de 3 quilômetros. Os modelos com essa resolução espacial conseguem simular melhor a distribuição geográfica da chuva. Isso é importante para ver o risco de desastres para áreas de risco, deslizamento, inundações. O ETA já existe, seria importante retomar o papel dele.

Como reconstruir as cidades destruídas nesta condição de aquecimento do planeta e mudanças climáticas?

É o maior desafio. É o desafio da resiliência, da adaptação. No Brasil, a redução do desmatamento já reduz as emissões e contribui globalmente na luta contra a emergência climática. Tudo isso é importantíssimo e o Brasil pode ser um dos líderes.

Mas estes eventos extremos não têm mais volta. Eles vão acontecer com essa frequência. Ondas de calor que levam a uma quantidade imensa de mortes, secas que levam a queda de produtividade e da agricultura, problemas de abastecimento de água e, lógico, esses eventos de chuvas extremas, deslizamentos, enxurradas, tudo o que a gente viu no Sul.

Aumentar a resiliência e ter uma política de adaptação às mudanças climáticas é um investimento de centenas de bilhões de reais. O Cemaden já fez um estudo e está refazendo com base no censo de 2022. Este novo estudo deve mostrar que mais de 3 milhões de brasileiros têm que sair das áreas de risco.

Por exemplo, aqueles municípios na beira do rio Taquari no Rio Grande do Sul e outros, na planície, na área ciliar do rio. Não pode ter pessoas! Esses eventos vão continuar acontecendo!

Tem também as comunidades que vivem nas encostas, normalmente com pessoas muito pobres. Elas correm um enorme risco por causa dos deslizamentos. É um desafio muito grande buscar, a médio prazo, outros locais seguros para esses brasileiros viverem.

Logicamente, precisamos melhorar muito o nosso sistema de resposta. O Cemaden dá o alerta de risco para as Defesas Civis, e tem que haver uma eficiência muito grande. É claro que, até agora, este trabalho já salvou vidas e retirou mais de 20 mil pessoas das zonas de risco no Sul. Isso mostra que dá para ser feito.

É preciso reagir imediatamente ao alerta do Cemaden, instalar sirenes em todo o Brasil, planejar a saída e o alojamento para todas essas pessoas, sistema de alimentação. Temos visto no Sul uma mobilização muito grande da sociedade civil, voluntários. Temos um enorme desafio pela frente.

Nádia Pontes, Jornalista, é a autora desta reportagem publicada originalmente pela Deutsche Welle Brasil, em 15.05.24

Como troca de vegetação nativa por soja pode ter agravado as enchentes no Rio Grande do Sul

As inundações que atingiram o Rio Grande do Sul nas últimas semanas já levaram à morte de pelo menos 148 pessoas e deixaram outras 538 mil pessoas desalojadas.

Plantação de soja no Brasil (Reuters)

A chuva não vem dando trégua, os boletins meteorológicos e hidrológicos apontam para um possível recrudescimento da situação na região nos próximos dias e as enchentes já são consideradas o pior evento climático da história do Rio Grande do Sul e um dos piores do Brasil.

A dimensão da tragédia, as perdas de vidas humanas e a destruição de comunidades inteiras têm despertado uma discussão sobre os fatores que levaram a essa catástrofe ou que poderiam ter ajudado a diminuir sua intensidade.

Um dos aspectos apontados por especialistas ouvidos pela BBC News Brasil é o possível impacto da redução da vegetação nativa no Estado.

Dados produzidos pelo MapBiomas e obtidos pela BBC News Brasil mostram que, entre 1985 e 2022, o Rio Grande do Sul perdeu aproximadamente 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa.

Isso é o equivalente a 22% de toda cobertura vegetal original presente no Estado em 1985 formada por florestas, campos, áreas pantanosas e outras formas de vegetação nativa.

Os dados mostram ainda que ao mesmo tempo em que isso acontecia, houve um aumento vertiginoso de lavouras de soja, silvicultura e da área urbanizada do Estado.

Cientistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a perda de cobertura vegetal original pode ter contribuído para as dimensões das inundações que afetaram o Estado porque a vegetação nativa:

diminui a velocidade com a qual a enxurrada chega ao leito dos rios;

aumenta a quantidade de água infiltrada no solo, o que diminui a quantidade de água disponível para inundações;

protege o solo diminuindo a quantidade de sedimentos que assoreiam os rios da região.

Procuradas, as assessorias de imprensa da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul e do governo do Estado não responderam às questões enviadas pela reportagem.

Gráfico explicando as três maneiras pelas quais a vegetação nativa protege contra enxurradas

Nova onda de chuvas já voltou a fazer aumentar o nível do Lago Guaíba, em Porto Alegre (Sebastião  Moreira / EPA/EFE/REX/SHUTERSTOCK

A relação entre a perda de vegetação nativa e os impactos das inundações no Rio Grande do Sul começou a ser feita por pesquisadores que estudam a ocupação do solo no Estado gaúcho há décadas.

Um deles é o pesquisador do MapBiomas Eduardo Vélez, um dos responsáveis pelo levantamento feito pela organização.

O MapBiomas é uma iniciativa que reúne organizações não-governamentais e empresas de tecnologia, e que utiliza imagens de satélite para estudar a mudança nos padrões de uso do solo em todo o Brasil.

Vélez explica que o levantamento tomou como ponto de partida o ano de 1985 porque é o primeiro ano da série histórica do conjunto de satélites Landsat.

"Para estudar esse fenômeno, a gente precisa de dados comparáveis de longo prazo", explica Vélez.

O pesquisador explica que o levantamento comparou as coberturas vegetais de diferentes categorias ao longo dos anos para estimar a quantidade de vegetação nativa perdida e o que ocupou o seu lugar no Rio Grande do Sul.

Vélez diz que a perda de vegetação nativa no Rio Grande do Sul atingiu o Estado como um todo, mas quase um terço dela se deu na bacia hidrográfica do Guaíba, uma das mais afetadas.

Lá, a perda de vegetação nativa foi de 1,3 milhão de hectares.

"O Rio Grande do Sul tem um bioma diferente da Amazônia, por exemplo. Temos algumas florestas nativas, mas a maior perda não se deu pelo desmatamento de florestas. Essa perda se deu, na maior parte, nas formações campestres", diz Vélez.

As formações campestres do Rio Grande do Sul são um tipo de vegetação adaptada ao clima sub-tropical do Estado composta, em sua maioria, por gramíneas e arbustos de pequeno porte.

Em geral, ela vem sendo utilizada historicamente nas atividades de pecuária extensiva, preservando, segundo especialistas, suas características originais biológicas e suas funções ambientais em relação à chuva e ao solo.

De acordo com o MapBiomas, o Estado perdeu 3,3 milhões de hectares em formações campestres entre 1985 e 2022, quase a totalidade de tudo o que o Estado perdeu em vegetação nativa no período.

Trata-se de uma perda de 32% em relação ao que havia desse tipo de vegetação em 1985.

O MapBiomas também mostra qual o destino dado às áreas onde a vegetação nativa foi suprimida.

Os dados apontam que houve um crescimento de 366% no total da área destinada à lavoura de soja no período.

Em 1985, o Estado tinha uma área de 1,3 milhão de hectares ocupada pela soja. Em 2022, essa área saltou para 6,3 milhões. O crescimento foi de 4,99 milhões de hectares.

Essa área é maior do que o total da perda de vegetação nativa porque, segundo Vélez, além de crescer sobre as áreas naturais do Estado, a soja também avançou sobre outras atividades como pastagens.

De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), o Rio Grande do Sul era, em junho de 2023, o terceiro maior produtor de soja do Brasil, atrás de Paraná e Mato Grosso.

Outra atividade cuja área cresceu mudando a configuração do solo do Rio Grande do Sul é a silvicultura.

A silvicultura consiste na plantação de florestas novas ou no manejo de florestas nativas para a sua exploração comercial.

No Rio Grande do Sul, a principal forma de silvicultura é a plantação de florestas novas de espécies como eucalipto, pinus e outras espécies que são usadas para a produção de madeira, lenha e celulose.

De acordo com o MapBiomas, a área destinada à silvicultura no Estado saltou de 79 mil hectares para 1,19 milhão de hectares, um crescimento de 1.399%.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Rio Grande do Sul é o quinto maior Estado do Brasil em silvicultura, atrás de Paraná, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Minas Gerais.

O levantamento também mostra que houve um crescimento de 145% nas áreas urbanizadas do Estado no período estudado.

Em 1985, as áreas urbanizadas saíram de 97 mil hectares para 238.607 em 2022.

De acordo com o IBGE, a população do Estado era de 8,4 milhões em 1985. Em 2022, a população estimada era de 10,8 milhões.

Gravidade do estrago foi afetada por desmatamentos (Amanda Perobelli / Reuters)

Freio, reservatório e contenção

O professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador de uma rede de pesquisadores sobre os campos do Sul do país, Valério Pillar, disse à BBC News Brasil que a redução na área de vegetação nativa e sua substituição podem ter contribuído para o agravamento dos impactos das inundações.

"A mudança no uso da terra provavelmente aumentou o impacto negativo dessas chuvas", afirma o professor à BBC News Brasil.

Ele explica que há três motivos pelos quais isso aconteceria.

O primeiro é que a vegetação nativa funcionaria como uma espécie de "freio" para a água da chuva.

"A vegetação nativa nas margens dos córregos, riachos e rios cria mais obstáculos para a água da chuva em seu caminho até os leitos dos rios. Esses obstáculos diminuem a velocidade do escorrimento da água e reduzem a força com que ela chega às áreas mais baixas do território, como aquelas afetadas pelas enchentes", explicou o professor.

Pillar diz ainda que, mesmo após um rio transbordar, a vegetação nativa nas margens de um curso d'água funciona como um freio para a drenagem da água, diminuindo a velocidade com que ela atinge as áreas rio abaixo.

O segundo motivo é que a vegetação nativa funcionaria como uma espécie de "dreno" para parte da água da enxurrada.

"A vegetação nativa e suas raízes mantêm o solo mais permeável e assim ajudam a infiltrar a água da chuva no solo, reduzindo a quantidade que fluiria diretamente para os leitos dos rios", disse o professor.

O terceiro motivo é o fato de que a vegetação nativa teria a capacidade de mitigar a erosão do solo e o assoreamento dos rios da região.

"A supressão da vegetação nativa, sobretudo dos campos nativos nessa região, expõem o solo à erosão causadas pelas chuvas. Quando a chuva cai com intensidade, ela carrega uma enorme quantidade de terra pro leito dos rios. Isso causa o assoreamento, que diminui a profundidade do rio. Assim, fica mais fácil para haver uma inundação porque o rio comporta menos água", disse o professor.

"Se você vir as imagens de satélite, vai notar que a cor barrenta das inundações. Tudo isso é sedimento carregado pela água de áreas rio acima", afirmou.

A agrônoma e doutora em Ciências do Solo pela UFRGS Bruna Winck disse à BBC News Brasil que apesar de a soja cobrir o solo e consumir água durante o seu crescimento, ela não teria as mesmas condições de reter água e o solo durante as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul.

"O sistema de raízes da vegetação nativa é mais diverso quanto à sua capacidade de captação de água no solo, podendo fazer isso em diferentes profundidades", explica ela.

"Na cultura da soja, há etapas em que o solo está menos protegido, como o preparo do solo e na fase inicial de crescimento das plantas. Mesmo que haja palha sobre o solo, ela apenas favorece a infiltração de água, mas não a sua absorção", explicou.

'Boom' nas commodities e mudanças legislativas

Para Bruna Winck, um dos motivos por trás da redução na área de vegetação nativa e a sua transformação em lavouras de soja se deu, possivelmente, por conta do "boom" no preço das commodities, no início dos anos 2000.

"Como o Rio Grande do Sul tem solos de boa qualidade, férteis, bem drenados na parte norte, isso fez com que essa expansão se acelerasse nessa região. O preço teve um papel fundamental nessa aceleração", disse a pesquisadora.

Para Valério Pillar, essa diminuição da área de vegetação nativa aconteceu por conta de um histórico de permissividade de sucessivos governos estaduais.

"Em 2015, houve um decreto estadual que permitiu que pecuaristas cujas propriedades fossem em áreas de vegetação campestre pudessem declarar essas fazendas como áreas de uso consolidado. Isso reduziu uma série de exigências para o desmate dessa vegetação. Em 2019, essa mudança foi consolidada no Código Florestal do Estado", afirmou o professor.

Para o presidente da Associação dos Servidores da Sema-RS, Pablo Pereira, a perda de vegetação nativa no Rio Grande do Sul foi agravada por decisões políticas.

"Esta perda das formações naturais foi acentuada, respaldada e incentivada por mudanças na legislação ambiental e também por procedimentos e decisões das gestões estaduais e municipais que dificultam a devida proteção da vegetação nativa e de áreas de grande interesse ecológico", disse uma nota assinada por ele enviada à BBC News Brasil.

Na semana passada, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma reportagem mostrando que o governo de Eduardo Leite (PSDB) alterou 480 normas ambientais desde que assumiu o comando do Estado pela primeira vez, em 2019.

Em resposta ao jornal, o governo do Estado enviou uma nota dizendo que as alterações teriam apenas atualiazado a legislação ambiental local.

"A atualização alinhou a lei estadual à legislação federal. A modernização acompanhou as transformações da sociedade, tornando a legislação aplicável, priorizando a proteção ambiental, a segurança jurídica e o desenvolvimento responsável", diz um trecho da nota.

A BBC News Brasil enviou questionamentos sobre o assunto à Sema-RS, mas nenhuma resposta foi enviada até a publicação desta reportagem.

A reportagem também enviou questões à Associação de Produtores de Soja do Rio Grande do Sul (Aprosoja-RS), mas também não recebeu nenhuma resposta.

Futuro incerto

Bruna Winck, Eduardo Vélez e Valério Pillar concordam ao afirmar que a redução na vegetação nativa não seria a causa das inundações no Rio Grande do Sul.

Segundo eles, as causas são as mudanças climáticas causadas pela ação humana sobre o meio ambiente com a liberação de CO₂ na atmosfera a partir da queima de combustíveis fósseis e outras atividades como o desmatamento.

"A previsão para o Rio Grande do Sul é de aumentos de extremos climáticos, incluindo o de chuvas. Mesmo um solo bem drenado, com vegetação nativa, pode ser completamente saturado, o que pode levar a aumentos de água nos leitos de rios", diz a pesquisadora.

Ela, no entanto, defende que a vegetação nativa do Estado seja recomposta.

"Essas mudanças do clima devem-se sobretudo aos aumentos de CO₂ na atmosfera. E para reduzir isso, a única maneira é aumentar o seqüestro do CO₂ pela vegetação e pelo solo. E diversos estudos já mostram que as vegetações nativas são mais eficazes na captura do CO₂ e os solos sob essa vegetação geralmente estocam mais carbono", disse Winck.

Na nota enviada pela associação de servidores da Sema, a necessidade de recomposição da vegetação nativa do Estado também foi mencionada.

"O Governo do Estado até hoje não institucionalizou as metas de recuperação de vegetação nativa previstas no Plano Nacional de recuperação de Vegetação Nativa (Planaveg), que prevê, minimamente a recuperação de 300 mil hectares de áreas degradadas no Bioma Pampa, sem contar a porção de Mata Atlântica subtropical do Rio Grande do Sul", disse um trecho da nota.

Questionados pela reportagem sobre os planos de recomposição da mata nativa, a Sema-RS e o governo gaúcho não enviaram resposta até a publicação desta reportagem.

Leandro Prazeres, Jornalista, de Brasília - DF, originalmente, para a BBC News Brasil, em 15.05.24

terça-feira, 14 de maio de 2024

Barganha imoral


PL quer usar o tamanho de suas bancadas para arrancar dos candidatos à presidência da Câmara e do Senado o apoio a uma proposta de anistia a Bolsonaro e aos golpistas do 8 de Janeiro

Cioso da influência que exerce pelo tamanho de suas bancadas no Congresso Nacional – 95 deputados e 13 senadores –, o Partido Liberal (PL) pretende explorar esse ativo nada desprezível como um instrumento de barganha. Porém, a motivação da legenda do notório Valdemar Costa Neto não poderia ser mais inaceitável – e moralmente repugnante – para uma agremiação política na democracia representativa. O que o PL quer obter com a barganha é a normalização da delinquência política, simbolizada pelas inúmeras tentativas de Jair Bolsonaro de perturbar o processo eleitoral de 2022 e pela tentativa de golpe de Estado no 8 de Janeiro, que o ex-presidente no mínimo inspirou.

É forçoso reconhecer que o PL pode ter muitos defeitos, mas entre eles, definitivamente, não está a incoerência. Sendo um partido orgulhoso de ter em seus quadros os principais políticos liberticidas hoje em atividade no País, atua deliberadamente para desmoralizar as leis e a democracia.

Segundo consta, o PL condicionará o apoio aos parlamentares que pretendem suceder a Arthur Lira e Rodrigo Pacheco na presidência da Câmara e do Senado, respectivamente, ao compromisso dos candidatos de levar adiante uma proposta de anistia a Bolsonaro e aos golpistas implicados no infame 8 de Janeiro. Chama a atenção nesse movimento a admissão do partido de que crimes, ora vejam, de fato foram cometidos – ou, por óbvio, não se estaria falando em anistia alguma.

Desde aquele domingo fatídico de 2023, o PL parece ter abraçado como principal agenda política não só a defesa dos golpistas, como a própria negação da tentativa de golpe, como se tudo aquilo a que o País assistiu não passasse de “baderna”, “vandalismo” ou coisa que o valha. É de crimes gravíssimos que se trata. E seja por falta de convicção democrática, seja por oportunismo – afinal, Bolsonaro ainda é apoiado por uma parcela significativa dos eleitores a despeito da miríade de acusações que pesam sobre ele –, o movimento para acobertá-los diz muito sobre o PL e seu mandachuva.

O PL está tão fechado em seus objetivos – e nisso, é de justiça reconhecer, a legenda não está sozinha – que nem a tragédia climática e humanitária sem precedentes que se abateu sobre o Rio Grande do Sul comoveu o partido a abrir mão de ao menos uma parte do milionário Fundo Eleitoral em socorro aos gaúchos. No afã de eleger prefeitos Brasil afora neste ano, o partido vai alugar dois jatinhos para que seus principais cabos eleitorais, Michelle Bolsonaro e o deputado Nikolas Ferreira, cruzem os céus do País em campanha para a prefeitura de oito capitais. Poucas situações retratam tão bem como os partidos políticos são capazes de virar as costas para a sociedade, como se fossem representantes de si mesmos.

Dado o tamanho de sua representação no Congresso, o PL teria legitimidade para apoiar candidatos às Mesas Diretoras que se mostrassem dispostos a abraçar projetos caros ao partido. Estranho seria se não o fizesse. Mas não é disso que se trata. O PL defende a anistia para Bolsonaro, de resto rigorosamente descabida e imoral, por puro interesse eleitoreiro. Nada há de programático nessa barganha delinquente. O que se pretende é (i) proceder ao apagamento do golpismo bolsonarista por meio da anistia e (ii) pavimentar o caminho para uma eventual volta de Bolsonaro à corrida eleitoral de 2026, malgrado sua condenação à inelegibilidade pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Portanto, está-se diante de uma malandragem. Aqui e ali, haverá movimentos cada vez menos sutis para fazer o golpismo que ditou os rumos da política nacional durante os quatro anos do trevoso mandato de Bolsonaro – e que culminou no 8 de Janeiro – parecer menos grave do que de fato foi. E de malandragens, convenhamos, o sr. Valdemar Costa Neto entende. Basta lembrar que o capo do PL chegou a patrocinar um “laudo” criminoso para lançar dúvidas sobre a higidez do sistema eleitoral brasileiro – o que gerou uma multa de R$ 22,9 milhões ao partido imposta pelo TSE. Saiu barato.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.05.24

Vão enlouquecer Lula

Não só uma das maiores riquezas do Brasil está concentrada no Rio Grande do Sul, mas também a extrema direita do país, centro de inimigos de tudo que soa de esquerda.

Lula da Silva, presidente do Brasil, durante evento no Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 3 de maio. (Adriano Machado / Reuters)

O presidente Lula enfrenta um dos problemas mais delicados do seu novo governo devido à tragédia climática na rica região do Rio Grande do Sul, repleta de cadáveres e com mais de um milhão de pessoas afetadas, sem luz e sem água. .

O Governo tem sido rápido a mover todos os botões para aliviar tanta dor e tantas mortes precisamente na região que lhe é mais adversa politicamente. É aquela parte rica do país onde se concentra o maior contingente de fiéis seguidores da extrema-direita Bolsonaro .

Não só uma das maiores riquezas do país está concentrada no Rio Grande do Sul graças à força do agronegócio, mas também a extrema direita do país, centro de inimigos de tudo que soa de esquerda. Entre eles está uma grande massa de evangélicos, que sempre resiste a Lula. É a religião que melhor representa o lema da direita de Deus, da pátria e da família.

E mais uma vez Lula se viu entre a espada e a espada: esquecer os cálculos puramente políticos e dedicar-se a ajudar as vítimas da tragédia, mobilizando todas as forças do Governo ou deixá-las entregues à sua sorte.

O momento é duplamente difícil porque Lula é pressionado pelo seu povo a tomar decisões que nem sempre respondem à sua idiossincrasia, a do político de esquerda, que já no seu primeiro Governo trocou o traje sindical “barbudo” pelas gravatas Armani e. cunhou a frase histórica “Lula: paz e amor”. Foi isso que o levou a dizer um dia que era uma “metamorfose ambulante”. E foi. Em todos os seus governos soube adaptar-se ao clima político do momento: com o braço dos grandes líderes da política de direita e dos movimentos mais de esquerda.

Agora, em seu terceiro mandato, Lula se encontra numa encruzilhada e para sair dela precisará tirar a poeira de suas habilidades de metamorfose. O problema não é fácil e em alguns aspectos ele parece sofrer uma certa confusão, já que os problemas vêm de dentro do seu partido, o Partido dos Trabalhadores (PT), e do seu assessor oficial de imagem, Sidônio Palmeira. Isso pode acabar desconcertando você.

A ala mais à esquerda, a começar pela presidente do partido, Gleisi Hoffmann, preferiria um confronto frontal com a oposição sem meias medidas. Preferem a guerra aberta contra a direita e o confronto destemido com Bolsonaro que continua, embora inelegível, a ser o centro indiscutível da extrema-direita golpista e até da simples direita. E ele ainda está livre e bem, mobilizando milhares de seguidores em seus comícios de rua.

O problema, segundo os assessores de imagem de Lula, é que, como revelam todas as pesquisas, não é possível que o Governo seja melhor em todos os índices econômicos e sociais em comparação com a forma como a sociedade o percebe. E estão pressionando-o a esquecer Bolsonaro, chamando-o de “covarde” e tentando arrancar do bolsonarismo fascista suas bandeiras de Deus, da pátria e da família.

Lula está de alguma forma entre a espada e a espada. Por um lado, ele odeia e despreza Bolsonaro como personagem e gostaria de vê-lo preso o mais rápido possível , e ao mesmo tempo tem que enfrentar uma sociedade que o tornou famoso e bem sucedido com seu slogan de “paz e amor", de ser uma espécie de pai dos pobres, mas ao mesmo tempo próximo dos ricos. E agora seu desejo é conquistar aquela classe média que nunca o tolerou.

Não se sabe se é por influência de sua esposa, Janja , uma grande ativista e feminista que não se contenta em ser a simples primeira-dama da Presidência. Ou porque Lula não se contenta com o paradoxo de que tudo está a melhorar no país e continua a cair em todas as sondagens que não parecem reflectir o que realmente está a fazer o seu novo e terceiro Governo, onde já pensa em concorrer a um quarto mandato em 2026. A verdade é que o ex-sindicalista está se esforçando para mudar.

Um exemplo que se notou durante a tragédia que aflige o Estado mais bolsonarista, mais evangélico e mais distante foi sua atitude terna revelada na dor causada pela notícia de que um cavalo havia ficado preso em um telhado durante as tempestades, sem condições de sair. .

“Fui dormir inquieto com a imagem de um cavalo no telhado. “Começo a imaginar o que aquele pobre cavalo estava passando sozinho naquele telhado”, comentou. E acrescentou: “Espero que durante algum tempo ninguém monte esse cavalo porque ele merece um bom descanso”. Enquanto isso, sua esposa Janja, que mobilizou o Exército para salvar o cavalo Caramelo , apareceu nas redes sociais emocionada com um cachorro perdido na tragédia que ela e o marido acabavam de adotar.

Fora da política mesquinha, às vezes nos perguntamos por que é precisamente nas tragédias que revelamos o que há de melhor em nós mesmos. Como está acontecendo nesta nova desgraça do Brasil onde está sendo exemplar a ajuda aos necessitados por parte de tantos voluntários que não se perguntam se são bolsonaristas ou lulistas. Como escreveu Preto Zezé em sua coluna O Globo : “Não precisamos de heróis, salvadores da pátria. “Precisamos de líderes e de paz para nos sentirmos próximos uns dos outros.”

Juan Arias, o autor deste artigo, é comentarista de assuntos internacionais do EL PAÍS. Publicado originalmente em 14.05.24

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Temos muito mais riqueza, mas somos seres piores, diz Pepe Mujica à Folha

Poucos dias após anunciar descoberta de tumor no esôfago, ex-presidente do Uruguai e referência da esquerda fala sobre como entende a vida e a morte e analisa a América Latina

José 'Pepe' Mujica concede entrevista à Folha em sua chácara na região de Rincón del Cerro, em Montevidéu Nicolás Garrido Monestier/Folhapress

É um típico dia de outono em Montevidéu. As rajadas de vento, o céu nublado e as intercaladas pancadas de chuva mudam o humor de José "Pepe" Mujica, 88, que não pode sair para trabalhar a terra de sua chácara em Rincón del Cerro, área rural da capital.

Há duas semanas ele anunciou a descoberta de um tumor no esôfago. Na data em que recebeu a Folha, quarta-feira (8), estava no segundo dia de radioterapia. Ainda não sentia os efeitos colaterais que, disseram os médicos, devem aparecer por volta do 15º ou 20º dia de tratamento. Era preciso se proteger das condições climáticas devido à imunidade.

Seus seguranças pareciam mais atentos a isso do que o próprio Mujica ou sua esposa, a ex-vice-presidente e ex-senadora Lucía Topolansky, 79. "Não se aproximem. Não quero ficar doente e nem que o adoeçam", diz um deles quando a reportagem chega à propriedade.

Às vésperas de seu aniversário, no próximo dia 20, quando completará 89 anos —ou 90, pois diz que há um possível erro em seu registro de nascimento—, Mujica está sentado e lê um jornal com o livro "Ética para Amador", do espanhol Fernando Savater, aberto ao seu lado. Está à vontade, usa pantufas e calça de moletom.

Nas paredes repletas de pequenos objetos da simples cozinha de teto baixo, várias conservas de tomate e fotos de Manuela, cadela que o acompanhou por mais de 20 anos antes de morrer, em 2018.

Na minúscula sala adjacente, ao lado da varanda com caixotes cheios de espigas de milho, há uma porção de livros amontoados. "Venha, isso aqui você nunca mais terá a chance de ver", diz ele, retirando de uma maleta uma réplica do diário de Che Guevara com suas últimas anotações em letra miúda numa agenda de um vermelho desbotado.

No varal ao lado de fora, as roupas seguiam expostas à garoa.

Nove anos após deixar a Presidência do Uruguai e quase quatro anos após renunciar ao Senado, Pepe Mujica fala sobre sua interpretação da vida e da morte, os desafios da esquerda na América Latina, o papel de Lula (PT), a ditadura da Venezuela e a saúde mental dos jovens.

Ainda dirige o trator, Pepe?

"Sim, ele dirige" [responde Lucía Topolansky antes do marido].

Como está sua rotina?

Agora tenho que me tratar. A única opção que tenho é um tratamento com radioterapia, que tenho que cumprir todos os dias durante umas 30 sessões consecutivas. Estou na segunda. Amanhã, a terceira.

Como foram as duas primeiras?

Não sinto nada. Me dizem que quando chegar a 15 ou 20 [dias] posso sentir algo. Mas, por enquanto, nada. Dentro da desgraça tive relativamente sorte, porque a análise celular mostra que há duas variáveis de tecido, e a que me afetou é a mais sensível à radiação. Não tenho metástase. [O tumor] está localizado em um lugar que não atravessou a parede do esôfago, e, bem, segundo eles é controlável e até erradicável. Veremos.

Dos problemas que tive na juventude, perdi um pulmão. Isso criou mais espaço para o coração, que está inclinado para a esquerda, o que favorece o tratamento.

É verdade ou é uma metáfora muito boa?

Não, é verdade, é incrível. Está um pouco desviado, os médicos riam.

O sr. tem compartilhado muitas mensagens sobre a vida, especialmente para os mais jovens.

É que isso me desespera. Eles se suicidam com frequência. Hoje chegou a mim o boato de um de 18 anos que queria se suicidar. Me dá vontade de matá-lo a pauladas. Porque o único milagre que existe é ter nascido.

Havia 40 milhões de probabilidades de nascer outro e foi você. Esse é o único milagre que existe lá em cima. Provavelmente viemos do nada e vamos para o nada. É preciso se comprometer com a vida. De repente eu pertenço a outra época.

Senadora, posso? Como a sra. tem lidado com a saúde de Mujica?

"Acredito que nesse tipo de doenças é preciso lutar. Já dizem os médicos que o doente que se desmoraliza é o que vai embora rapidamente. O doente que luta é o que perdura em qualquer situação. Então é preciso lutar. É isso que se deve fazer. E não ficar pensando, porque senão é horrível."

Como referência política da região, como avalia a situação da esquerda na América Latina?

Em geral, há uma visão muito de curto prazo no uso desses termos. Esquerda e direita são termos cunhados com a história da Revolução Francesa, simplesmente por onde se sentavam no banco. Mas eu tenho uma interpretação muito mais antropológica.

São tendências que existiram sempre ao longo da história humana. Sempre houve uma face renovadora e progressista e uma face conservadora, como as faces de uma moeda. Talvez o gênero humano em seu devir precise das duas coisas. E ambas têm problemas: a progressista tende a confundir seus desejos com a realidade, e a isso chamamos de infantilismo. E a face conservadora tende a cair no reacionário (que não é o mesmo que conservador).

Agora, contemporaneamente, a esquerda está em uma crise de ideias porque esteve muito nutrida de 1950 a 1960 por um modelo racional que inventou um homem ideológico. E não teve em conta que os seres humanos são animais emocionais. E hoje está precisando recriar um novo arsenal de ideias que se encaixem mais com uma visão mais biológica do que é o homem. Agora estamos com outro desafio.

Nós somos animais sociais, não podemos viver sozinhos. E esse caráter gregário foi o que nos fez progredir. Aprendemos a caçar em grupo, nos movemos em grupo. A tal ponto que, em toda aldeia primitiva, depois da pena de morte, a pena mais grave era ser expulso da comunidade. Somos humanamente dependentes dos outros, e então andamos com essa contradição: precisamos da sociedade, mas somos indivíduos e temos essa cota de egoísmo. Este é o papel da política: tem que lutar para sobreviver na sociedade.

Como as gerações que vêm resolverão isso? Não sei.

Quais ideias fazem parte dessa nova visão da esquerda?

Acredito que agora estejamos em um tempo meio de impasse. Com um progresso técnico fantástico e com muita gente infeliz. Há muitos com problemas com angústia, com a necessidade de ir a um psicólogo. Qual é o sentido do progresso econômico se não sentimos felicidade em viver? Este é o desafio que temos pela frente. Estou prestes a completar 90 anos...

Oitenta e nove, não?

Oitenta e nove, mas na verdade são 90, porque 1 ano não foi registrado.

Meu pai morreu quando eu tinha 8 anos. E eu me lembro de ter ido três vezes para assistir aos dois maiores times do Uruguai, Nacional e Peñarol. As torcidas estavam misturadas na mesma arquibancada, e cada um gritava seu gol e não acontecia nada. Agora nós nos matamos. E estou falando de 80 e poucos anos atrás.

Não progredimos moralmente em nada. Pelo contrário, regredimos. Mas temos muito mais carros, telefones, conforto. Mas moralmente? Como sociedade? Estamos piores do que antes.

E temo que isso esteja acontecendo em todo o mundo. Muito mais riqueza, mas nós somos piores. E também somos mais débeis. Somos infinitamente mais débeis do que os homens primitivos.

Sei que já te perguntaram isso, mas há algum arrependimento por não ter tido filhos?

Eu me dediquei a consertar o mundo e não pude ter filhos porque estava ocupado. Mas digo como aquele poeta Atahualpa Yupanqui [argentino; 1908-1992]: Tenho tantos irmãos que nem posso contá-los.

Sobre o Brasil, como o sr. avalia o governo Lula?

Acredito que ele tenha ganhado as eleições porque era o Lula. Senão, Bolsonaro teria continuado. Lula teve que fazer concessões e uma aliança para o centro, muito forte, para tentar unir tudo o que era um espaço mais ou menos democrático para frear a extrema direita. Naturalmente isso vai ter efeitos. Não acredito que Lula possa fazer um governo muito radical à esquerda. Este será um governo moderado. E ele sempre foi muito moderado. Ele propunha uma revolução...

Propunha uma revolução?

Sim, que as pessoas pudessem comer três vezes ao dia. Para quem não tem comida, isso é uma revolução. Para quem sonha com a revolução, é pouco.

O Brasil assumiu responsabilidades no mundo. É evidente que no cenário internacional é respeitado. E não se surpreenda se, no segundo semestre, quando houver uma reunião em Nova York convocada pelo secretário-geral da ONU para reformá-la, uma dessas mudanças for a proposta de que o Brasil entre no Conselho de Segurança como membro permanente.

Como o sr. vê a dificuldade da esquerda no Brasil de renovar seus quadros?

Tenho a mesma preocupação. E depois de Lula? Este é um desafio que o Brasil e toda a nossa América têm, dada a importância do Brasil.

Recentemente, em mais um aniversário do golpe militar no Brasil, Lula não permitiu que os ministros fizessem atos para relembrar este episódio. Como interpreta a relação da esquerda na América Latina com os militares?

A justiça historicamente é conhecer a verdade. Mais do que prender pessoas, é conhecer nossa verdadeira história. Há uma época sepultada que não será eliminada por decreto, por vontade dos governos, estará sempre latente. Eu pensava há alguns anos: até que todos os atores [da ditadura] morram, isso continuará. E então estive na Espanha, onde todos os atores morreram e estão procurando ossos [das vítimas]. Isso significa que as coisas permanecem. Portanto, é melhor tentar esclarecer a verdade. Que a verdade resplandeça. Também não posso comprometer o hoje das pessoas para salvar uma conta do passado. Mas não se pode encobrir a vergonha.

É uma mensagem para o governo Lula?

Acontece que eu entendo [a situação]. Lula tem o acampamento de Bolsonaro ali, que está propondo exatamente o oposto. Tem um desafio na história recente do Brasil, houve até uma tentativa de golpe. Eu entendo a ambivalência.

Vamos falar de Argentina. Qual sua opinião sobre o governo Milei?

Uma loucura. É consequência da desesperança que pode gerar em uma sociedade o fenômeno da hiperinflação. Foi o que aconteceu com a República de Weimar na década de 1930. O povo mais culto, mais desenvolvido da Europa, acabou votando em Hitler. Uma loucura total. Os povos podem errar, porque a hiperinflação desespera as pessoas. E então eles são capazes de apostar em qualquer coisa que seja contra.

A hiperinflação de alguma forma é resultado dos governos Kirchner.

Sim. E eles não assumem a responsabilidade. O pior é que não há uma visão autocrítica porque isso não aconteceu por ordem dos deuses, aconteceu por erros humanos.

Bolsonaro também foi uma consequência de erros dos governos de esquerda?

É provável que sim. Há uma tendência contemporânea, consequência da macrocultura consumista na qual estamos imersos: sempre temos uma necessidade de ter mais, de comprar mais. Esse é o triunfo cultural do capitalismo que controla nosso capital subliminar. E então as pessoas se sentem frustradas e tendem a votar contra o que está aí sem ter clareza do que estão votando a favor. Votam em qualquer coisa.

Tenho que mencionar o que aconteceu no México, de como os antigos partidos mexicanos foram esquecidos, e López Obrador ganhou com 53% dos votos [em 2018]. E o México se tornou de esquerda? Não seja tolo. Não. As pessoas estavam pensando que fosse um perigo latente. Há uma grande instabilidade política no mundo ocidental, isso é evidente.

Em algumas semanas teremos eleições no México. É provável que Claudia Sheinbaum, a candidata de López Obrador, vença. O que achou desses seis anos de governo dele?

Ele trouxe algo. Esse espaço que ele tem todas as manhãs falando [as mañaneras] marcou a agenda de todo o sistema. Ele é um militante ferrenho.

Mas é um democrata?

Para o México, ele é um democrata. O problema do México é o que dizem: tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos.

Mas nas mañaneras ele ataca a imprensa quase todos os dias. Além disso, está muito próximo dos militares.

O México é complicado. Tem um problema de tráfico de drogas brutal. Mas ele vai sair e é muito provável que o partido dele vença. Depois não sei o que vai acontecer.

Recentemente, o presidente uruguaio, Lacalle Pou, e Milei estiveram juntos em um evento de economia. Lacalle disse que, para a população ter dignidade, é necessário um Estado. Isso vai contra o discurso de Milei. Qual é o papel do Estado?

Eu não sei qual é o papel ideal, mas posso dizer que o Estado no Uruguai tem historicamente um peso. Nós tivemos primeiro o Estado e depois a nacionalidade. Tivemos governos peculiares para a história da América Latina, muitos deles sociais-democratas. Governos que concederam o divórcio à mulher por sua própria vontade, que reconheceram as 8 horas de trabalho nos anos 1910. Tivemos um presidente que escrevia "Deus" com minúscula, Don José Batlle y Ordóñez, que separou a igreja do Estado, tornando o país laico. Mudou todos os nomes: aqui não se fala Semana Santa, é semana de turismo. O dia da Virgem é o dia das praias.

Lacalle não pode escapar da importância do Estado. Ele vai para a Argentina e tem um pensamento em algumas coisas alinhado com Milei, mas não pode cair na barbaridade de Milei. Jamais. A história do Uruguai não permitiria isso.

Houve uma certa surpresa quando o sr. fez críticas ao processo eleitoral na Venezuela por causa do impedimento de candidaturas opositoras. Acha que haverá um pleito justo?

A Venezuela tem a tragédia do excesso de recursos naturais. É um país deformado pelo petróleo. Os Estados Unidos sempre precisam de petróleo porque é mais barato para o transporte. Sempre se intrometeram na Venezuela. E essa luta tem sido venenosa.

Como a democracia vai sobreviver com um governo cercado, agredido por todos os lados? Sabe por que Maduro perdura? Porque não há democracia. Em uma praça sitiada, qualquer um que discorde é um traidor. E a democracia precisa de liberdade. O regime de Maduro é consequência do cerco que veio de fora. É um desastre.

Quando se diz que é uma consequência de um processo de bloqueio, parece que está se tirando a culpa do regime.

É verdade, mas eu sou muito velho. E tenho experiência. Há um costume, do qual discordo, de que o bloqueio pune os governos. Não, pune os povos. É um crime contra os povos, porque os governos não sofrem nada, continuam comendo e bebendo. Maduro está gordinho.

Claro que Maduro tem responsabilidade. [Hugo] Chávez é muito diferente de Maduro. Ele perdeu as eleições [Chávez foi derrotado em um referendo em 2007 no qual propunha, entre outros pontos, a reeleição ilimitada; ele a obteve dois anos depois, em nova consulta popular] e aceitou. É diferente da Revolução Cubana, que assumiu uma decisão da qual se pode discordar, mas foi definitiva: partido único, ditadura do proletariado. Agora, no caso da Nicarágua, no caso da Venezuela, eles brincam com a democracia, dizem que haverá eleições, depois colocam as pessoas na cadeia. Ou é uma coisa ou outra. É dizer a verdade e assumir.

A democracia tem defeitos, não é perfeita. Como Churchill disse: é a pior forma de governo, exceto por todas as outras que tentaram. Mas de qualquer forma, para conviver, é muito superior. Eu também não concordo com a ideia de que a democracia representativa que temos é a última história da humanidade. Não, não posso pensar tão mal da humanidade. Acredito que a humanidade vá buscar algo melhor. Porque, se nos tirarem a esperança, para que vivemos?

Queria voltar um pouco ao nível pessoal. O sr. gosta de ser uma referência para os líderes, militantes, jovens de esquerda?

Na sociedade moderna, há uma crise de avô. O avô é uma figura antropológica que desapareceu porque a família diminuiu. Na história humana, os avós desempenharam um papel. Na história dos povos antigos, a instituição mais antiga do ponto de vista político é o conselho dos anciãos. Não é o governo. É aquele que aconselha e tem duas missões: dizer o que deve ser feito e educar as crianças.

No mundo antigo, a única maneira de aprender algo era vivendo. Então os mais velhos transmitiam a herança do conhecimento. Tive a sorte de ter vivido muito e sou velho, então a única ferramenta que tenho é a palavra para dizer algo, ajudar a pensar.

Como o sr. pensa o tema da morte?

A morte é talvez o que dá valor à vida. Tudo o que é vivo está condenado a morrer. Qual é a diferença que a vida tem das pedras? A vida pode sentir dor, alegria, tristeza, desejo. Parece que temos a função de emprestar uma inteligência ao mundo da vida. Às vezes acreditamos ser donos. Não, somos parte. Mas queremos continuar vivendo. Nossa maneira de lutar contra a morte é uma luta impossível que sempre perderemos, mas lutamos com amor.

Não podemos escapar, porque somos um programa biológico para isso. Aí está a nossa grandeza e nossa tragédia. E fazemos perguntas eternas que não têm resposta. Se a vida tem um sentido. Se há um além. Mas certamente desempenhamos um papel na natureza. Pelo menos, estragamos tudo. Complicamos a vida dos outros bichos.

RAIO-X | JOSÉ "PEPE" MUJICA, 88

Presidiu o Uruguai de 2010 a 2015, após ser ministro da Agricultura e da Pecuária e deputado. Em 2020, durante a pandemia, renunciou a sua vaga no Senado. Ex-guerrilheiro e líder tupamaro, ficou preso de 1972 a 1985. Um dos principais nomes da Frente Ampla, lidera o MPP (Movimento de Participação Popular), um dos partidos da coalizão.

Mayara Paixão, Jornalista, de Montevidéu (Uruguai)  para a Folha de S.Paulo. Publicado originalmente na edição impressa, em 12.05.24, às 23h15

Para 55% da população, Lula não merece ser reeleito em 2026

A primeira edição da pesquisa Genial/Quaest sobre a eleição presidencial de 2026 mostra que, se a eleição fosse hoje, 55% da população não daria nova chance ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A pesquisa mostra que 47% dos eleitores poderiam votar para reeleger Lula, mas 49% rejeitam o atual chefe do Executivo - (crédito: Rafa Neddermeyer/Agencia Brasil)

E, assim como na eleição de 2022, Lula tem maior apoio no Nordeste, onde o percentual dos entrevistados que dariam nova chance ao petista é de 60%. Entre os mais pobres, o atual presidente mantém a popularidade, pois entre os que ganham até dois salários mínimos 54% votariam no petista contra 43% que responderam o contrário. E, entre os que estudaram até o Ensino Fundamental, 54% disseram que votariam em Lula.

No grupo das mulheres, que tradicionalmente apoia o petista, a maioria — 52% — são contra a reeleição do presidente, opinião compartilhada por 23% dos que lhe deram voto no segundo turno de 2022, segundo a pesquisa da Quaest em parceria com a Genial Investimentos.

"Embora ainda esteja distante, a eleição de 2026 já começa a se desenhar. Lula terá que ganhar a confiança da maioria para merecer mais uma chance. Os nomes da oposição trabalham para ganhar conhecimento", destacou o cientista político Felipe Nunes, diretor e fundador da Quaest.

Conforme os dados da pesquisa, entre os candidatos elegíveis da oposição, já que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foi confirmado inelegível, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) é apontada como o nome mais indicado para enfrentar Lula por 28% dos eleitores entrevistados. Contudo, ela tem rejeição bastante elevada do eleitorado, de 50%.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) tem 24% da preferência e 30% de rejeição. Em um eventual segundo turno entre Lula e Tarcisio, o petista venceria o governador paulista em 2026 com placar de 46% contra 40%, apesar de perder em três grupos regionais. Lula venceria no Nordeste com 66% contra 25% do candidato bolsonarista. Na região Sudeste, Tarcísio Freitas venceria por 45% a 39%; e, na região Sul, o candidato bolsonarista teria uma vantagem de 46% a 41%. E, no grupo regional Centro-Oeste/Norte, o placar favorável a Tarcísio seria de 43% a 40%.

Outros três governadores que disputam a herança eleitoral de Bolsonaro aparecem bem atrás de Tarcísio de Freitas. Ratinho Júnior (PSD), do Paraná, tem 10% das intenções de votos dos entrevistados; Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, tem 7%; e Ronaldo Caiado (União Brasil), de Goiás, 5%. Pouco mais de um quarto do eleitorado (26%) não sabem ou não responderam.

De acordo com a Quaest, outros nomes do PT têm potencial baixo de votos. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem 32% da preferência dos eleitores. E a presidente da legenda, a deputada Gleisi Hoffmann (PR), apenas 10% da intenção de voto.

A pesquisa foi realizada entre os dias 2 e 6 de maio, entrevistando presencialmente 2.045 eleitores em todos os estados. A margem de erro é de 2,2 pontos percentuais.

Publicado originalmente no Correio Brasiliense, em 13.05.24

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Um governo que atira a esmo

Lula já cumpriu um terço do mandato, mas seu governo ainda prepara ‘projetos’ para a segurança pública. Enquanto isso, renova a ineficaz operação militar em portos e aeroportos

Passado um terço do mandato, o governo do presidente Lula da Silva coleciona uma constrangedora soma de erros e fragilidades na segurança pública. Numa área especialmente sensível para a população e historicamente desprezada pelo PT, até se abriu uma boa janela de oportunidade com a transferência do então ministro da Justiça e Segurança Pública – o animador de auditório Flávio Dino – para uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, e sua substituição pelo discreto Ricardo Lewandowski. A mudança nesse caso teria sido uma chance notável para a pasta, trocando o histrionismo populista de um para a desejada qualificação técnica e o comedimento de outro. O estilo do titular pode ter mudado, mas o governo continua errático no enfrentamento daquele que é hoje, segundo pesquisas, o principal problema nacional na opinião da população.

Tome-se o exemplo da prorrogação da operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em portos e aeroportos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Anunciada há seis meses com a convicção entre especialistas de que seria uma medida ineficaz, a GLO acaba de ser renovada por 30 dias – e depois se sabe lá até quando, conforme as conveniências pirotécnicas da gestão lulopetista. No papel, o objetivo da operação é promover uma “asfixia” de organizações criminosas que usam os principais terminais aeroportuários, ou seja, os portos de Santos, do Rio de Janeiro e de Itaguaí e os aeroportos do Galeão e de Guarulhos. Na prática, confirmaram-se os prognósticos mais desabonadores: alto custo financeiro, uso indevido das Forças Armadas, volume e qualidade de apreensões questionáveis e uma descabida teatralidade para a tal “asfixia”, enquanto o crime se mostra muito mais preparado para driblar as autoridades do que faz crer a fiscalização com local e hora marcados.

Como este jornal já afirmou, a GLO de Lula é uma demonstração das razões pelas quais a situação de segurança pública está do jeito que está: tudo parece resumir-se a uma grande farsa. Seria pedir, por decreto, para dar errado. Como, afinal, o crime organizado pode ser enfrentado com uma força-tarefa em três portos e dois aeroportos, e que por sua natureza precisa ter prazo temporário? Ademais, trata-se não só de uma medida inútil, mas também de um equívoco institucional e funcional por envolver as Forças Armadas na segurança pública. Militares não têm essa atribuição nem foram treinados para isso, lição aprendida na intervenção federal do Rio de Janeiro, em 2018. Mas o espalhafato na segurança pública costuma ser um atalho providencial para lideranças movidas por mero cálculo político-eleitoral. Rende boas imagens, produz barulho e gera a falsa sensação de que o governo está trabalhando contra o crime.

Nesta semana, o secretário Nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo, disse ao Estadão que o combate ao crime organizado deve ser prioridade número um. A partir de sua experiência como procurador-geral de Justiça de São Paulo, Sarrubbo demonstrou apostar na estratégia de asfixia financeira das facções, no reforço das equipes de investigação de crimes e no aumento dos efetivos das polícias estaduais. Para ele, isso exige inteligência, melhora nos índices de esclarecimento de crimes e baixa letalidade policial. Difícil discordar. É um bom cardápio de ideias, especialmente num governo que costuma acreditar que a prevenção e o combate à criminalidade são sinônimos de truculência a serviço das elites nacionais. É também um freio de contenção em quem acredita em operações espetaculosas, violentas e ostensivas como forma de garantir resultados na segurança.

Ocorre que a entrevista do secretário oferece uma inquietante sensação de recomeço. Sarrubbo anunciou que está com “vários projetos saindo do forno”, que serão apresentados nas próximas semanas. Ora, e que fim levou o programa de Enfrentamento às Organizações Criminosas, anunciado com pompa por Flávio Dino? Era, decerto, uma peça genérica de intenções, o que fica evidente quando Sarrubbo nem sequer o menciona. Vê-se que o governo perdeu tempo em demasia, ora desfazendo os erros do governo anterior, ora ocupado com sua performance cênica. Ainda está para mostrar do que se ocupará daqui para a frente.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo,  em 09.05.24