quarta-feira, 15 de maio de 2024

"Não tem mais volta", diz Nobre sobre catástrofes climáticas

Em entrevista à DW, climatologista Carlos Nobre aborda o desafio de preparar cidades brasileiras para eventos climáticos extremos, e estima que 3 milhões de pessoas teriam que ser retiradas de áreas de risco.

Ruas inundadas em Canoas, no Rio Grande do SulFoto: Amanda Perobelli (Reuters)

Enquanto pessoas ilhadas ainda aguardam resgate e mais de 300 municípios do Rio Grande do Sul nem conseguem calcular o prejuízo causado pelas enchentes, cientistas alertam que eventos com chuvas extremas chegaram para ficar.

O que chama a atenção, diz Carlos Nobre, climatologista brasileiro que fez carreira no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), é que essas tragédias estão acontecendo mais cedo do que se previa. Em 2007, o quarto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) da ONU previu que esses fenômenos se tornariam recorrentes por volta de 2030 ou 2040.

A antecipação se deve ao aumento rápido da temperatura média do planeta: em 2023, o recorde de aquecimento foi batido, com 1,5° C a mais que no período pré-industrial. Em 2024, o calor acima da média continua.

"Os modelos indicavam que, quando a gente atingisse 1,5°C, já deveríamos esperar fenômenos muito extremos, de chuvas muito intensas e prolongadas, como vimos no Rio Grande do Sul", afirma Nobre.

O desafio, aponta o cientista, será adaptar as cidades e retirar cerca de 3 milhões de brasileiros que vivem em áreas de risco. "Aumentar a resiliência e ter uma política de adaptação às mudanças climáticas é um investimento de centenas de bilhões de reais", diz ele em entrevista à DW.

Carlos Nobre: "Precisamos melhorar muito o nosso sistema de resposta"Foto: Tiziana Fabi/AFP/Getty Images

DW: As tragédias recentes que vimos no Brasil, como a enchente em Santa Catarina no fim de 2023, a seca extrema na Amazônia e a catástrofe recente do Rio Grande do Sul estão de alguma forma interconectadas? Quais relações a ciência consegue traçar?

Carlos Nobre: Essas tragédias têm uma interconexão, sem dúvida. Começando pela bacia do rio Taquari, no centro-norte do Rio Grande do Sul: ela registrou o maior recorde de chuvas e inundações em setembro de 2023. Ali, houve uma relação direta com o El Niño, que estava se desenvolvendo, provocado pelo aquecimento acima do normal no Oceano Pacífico Equatorial.

O El Niño induz uma seca na Amazônia e um aumento da velocidade do jato subtropical, que passa sobre o Uruguai, Paraguai, centro-leste da Argentina e Sul do Brasil. Quando o vento desse jato fica mais forte, a uma altura de 10 a 15 quilômetros, ele faz com que as frentes frias parem ali. Chove muito. O El Niño faz com que esse jato subtropical forte induza chuvas muito fortes no Sul do país.

Essa chuva extrema que vimos semana passada no Rio Grande do Sul, que chegou até o sul de Santa Catarina, é um fenômeno meteorológico um pouco diferente. É um sistema de ondas de todo o Hemisfério Sul entre a região subpolar e as latitudes subtropicais. Esse sistema na última semana estava quase que estacionário, o que a gente chama de bloqueio atmosférico. Havia esse sistema de baixa pressão ao sul e outro de altíssima pressão ao norte. Quando tem um bloqueio de alta pressão, o ar fica mais quente e impede a formação de nuvens. Como está muito quente, cria esta onda de calor, ou domo de calor. No sul, a baixa pressão traz as frentes frias, que ficam estacionadas porque há este sistema de bloqueio.

O El Niño já está numa fase de perder força, o jato subtropical já não está muito forte. Mas, sim, tudo isso tem a ver com o aquecimento global. Os oceanos bateram todos os recordes de aquecimento da história desse o último período interglacial, ou seja, dos últimos 125 mil anos. E quando o oceano está muito quente, evapora muita água e essa água é a fonte de energia para todos os sistema de chuva e indução de áreas de seca. O El Niño existe há milhões de anos, sempre induziu chuvas fortes no Sul, mas bateu-se o recorde agora.

As previsões climáticas feitas anos atrás previam mais chuvas extremas para o Sul do Brasil. Elas estão acertando?

Os modelos matemáticos climáticos rodados há muitos anos já previam. Os modelos com aquecimento global mostram um aumento da chuva anual no Sul do Brasil. Um aumento de 10% a 20%.

O que chama a atenção é que isso está acontecendo de forma muito mais antecipada. Se a gente pegar o relatório do IPCC [Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas] de 2007, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz, eu estava inclusive entre os autores, ele indicava que este tipo de fenômeno poderia acontecer por volta de 2030, 2040. Mas eles [fenômenos dos eventos climáticos extremos] já se anteciparam muito.

No ano passado atingimos o recorde de aquecimento, a temperatura média global já subiu 1,5° C mais quente que o período pré-industrial. Este ano continua quente. A temperatura média do planeta em fevereiro e março de 2024 já bateu 1,56°C mais quente, é o recorde histórico.

Os modelos indicavam que quando a gente atingisse 1,5°C nós já deveríamos já esperar fenômenos muito extremos de chuvas muito intensas e prolongadas como vimos no Rio Grande do Sul.

Com o planeta já perto deste 1,5°C  de aquecimento, eventos como este no Sul vão ficar mais frequentes? O que o Brasil tem que fazer para lidar com isso?

Se os oceanos continuarem muito quentes, sim, já estaremos muito próximos de 1,5 ºC. E podemos passar de 1,5 ºC antes de 2030 de forma permanente.

Nesse caso, extremos climáticos ficam mais frequentes em todo mundo. Torna-se essencial acelerar a implantação de soluções para adaptação a estes extremos. No caso de chuvas extremas, o enorme desafio de remover brasileiros de áreas de altíssimo risco como essas destruídas no Rio Grande do Sul. E construir e reconstruir infraestrutura resiliente aos extremos.

O que é preciso para melhorar a capacidade de prever eventos extremos no país, cada vez mais recorrentes?

A capacidade de previsão meteorológica melhorou muito. Isso tem muito a ver com o desenvolvimento científico, com a criação do Cptec [Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos], que fez os primeiros modelos atmosféricos climáticos. E temos o Cemaden [Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais], que utiliza as previsões meteorológicas de todo o mundo, inclusive as do Inpe.

Praticamente, consegue-se prever com vários dias de antecedência esses fenômenos extremos. Às vezes, os modelos matemáticos não conseguem prever recordes, mas eles preveem muita chuva.

Aquele evento extremo de fevereiro de 2023 no litoral norte de São Paulo, o maior volume de chuvas em 24 horas no Brasil, 600 milímetros, os modelos não conseguiram prever. Os modelos previram 300 milímetros. Em vários lugares do Rio Grande do Sul, choveu 800 milímetros em seis dias. Quando a chuva passa dos 200 milímetros já há um enorme risco. O Cemaden repassou essas informações.

É claro que há muito o que fazer. O Inpe tem um modelo regional chamado ETA e ele pode ser rodado com uma resolução de 3 quilômetros. Os modelos com essa resolução espacial conseguem simular melhor a distribuição geográfica da chuva. Isso é importante para ver o risco de desastres para áreas de risco, deslizamento, inundações. O ETA já existe, seria importante retomar o papel dele.

Como reconstruir as cidades destruídas nesta condição de aquecimento do planeta e mudanças climáticas?

É o maior desafio. É o desafio da resiliência, da adaptação. No Brasil, a redução do desmatamento já reduz as emissões e contribui globalmente na luta contra a emergência climática. Tudo isso é importantíssimo e o Brasil pode ser um dos líderes.

Mas estes eventos extremos não têm mais volta. Eles vão acontecer com essa frequência. Ondas de calor que levam a uma quantidade imensa de mortes, secas que levam a queda de produtividade e da agricultura, problemas de abastecimento de água e, lógico, esses eventos de chuvas extremas, deslizamentos, enxurradas, tudo o que a gente viu no Sul.

Aumentar a resiliência e ter uma política de adaptação às mudanças climáticas é um investimento de centenas de bilhões de reais. O Cemaden já fez um estudo e está refazendo com base no censo de 2022. Este novo estudo deve mostrar que mais de 3 milhões de brasileiros têm que sair das áreas de risco.

Por exemplo, aqueles municípios na beira do rio Taquari no Rio Grande do Sul e outros, na planície, na área ciliar do rio. Não pode ter pessoas! Esses eventos vão continuar acontecendo!

Tem também as comunidades que vivem nas encostas, normalmente com pessoas muito pobres. Elas correm um enorme risco por causa dos deslizamentos. É um desafio muito grande buscar, a médio prazo, outros locais seguros para esses brasileiros viverem.

Logicamente, precisamos melhorar muito o nosso sistema de resposta. O Cemaden dá o alerta de risco para as Defesas Civis, e tem que haver uma eficiência muito grande. É claro que, até agora, este trabalho já salvou vidas e retirou mais de 20 mil pessoas das zonas de risco no Sul. Isso mostra que dá para ser feito.

É preciso reagir imediatamente ao alerta do Cemaden, instalar sirenes em todo o Brasil, planejar a saída e o alojamento para todas essas pessoas, sistema de alimentação. Temos visto no Sul uma mobilização muito grande da sociedade civil, voluntários. Temos um enorme desafio pela frente.

Nádia Pontes, Jornalista, é a autora desta reportagem publicada originalmente pela Deutsche Welle Brasil, em 15.05.24

Como troca de vegetação nativa por soja pode ter agravado as enchentes no Rio Grande do Sul

As inundações que atingiram o Rio Grande do Sul nas últimas semanas já levaram à morte de pelo menos 148 pessoas e deixaram outras 538 mil pessoas desalojadas.

Plantação de soja no Brasil (Reuters)

A chuva não vem dando trégua, os boletins meteorológicos e hidrológicos apontam para um possível recrudescimento da situação na região nos próximos dias e as enchentes já são consideradas o pior evento climático da história do Rio Grande do Sul e um dos piores do Brasil.

A dimensão da tragédia, as perdas de vidas humanas e a destruição de comunidades inteiras têm despertado uma discussão sobre os fatores que levaram a essa catástrofe ou que poderiam ter ajudado a diminuir sua intensidade.

Um dos aspectos apontados por especialistas ouvidos pela BBC News Brasil é o possível impacto da redução da vegetação nativa no Estado.

Dados produzidos pelo MapBiomas e obtidos pela BBC News Brasil mostram que, entre 1985 e 2022, o Rio Grande do Sul perdeu aproximadamente 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa.

Isso é o equivalente a 22% de toda cobertura vegetal original presente no Estado em 1985 formada por florestas, campos, áreas pantanosas e outras formas de vegetação nativa.

Os dados mostram ainda que ao mesmo tempo em que isso acontecia, houve um aumento vertiginoso de lavouras de soja, silvicultura e da área urbanizada do Estado.

Cientistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a perda de cobertura vegetal original pode ter contribuído para as dimensões das inundações que afetaram o Estado porque a vegetação nativa:

diminui a velocidade com a qual a enxurrada chega ao leito dos rios;

aumenta a quantidade de água infiltrada no solo, o que diminui a quantidade de água disponível para inundações;

protege o solo diminuindo a quantidade de sedimentos que assoreiam os rios da região.

Procuradas, as assessorias de imprensa da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul e do governo do Estado não responderam às questões enviadas pela reportagem.

Gráfico explicando as três maneiras pelas quais a vegetação nativa protege contra enxurradas

Nova onda de chuvas já voltou a fazer aumentar o nível do Lago Guaíba, em Porto Alegre (Sebastião  Moreira / EPA/EFE/REX/SHUTERSTOCK

A relação entre a perda de vegetação nativa e os impactos das inundações no Rio Grande do Sul começou a ser feita por pesquisadores que estudam a ocupação do solo no Estado gaúcho há décadas.

Um deles é o pesquisador do MapBiomas Eduardo Vélez, um dos responsáveis pelo levantamento feito pela organização.

O MapBiomas é uma iniciativa que reúne organizações não-governamentais e empresas de tecnologia, e que utiliza imagens de satélite para estudar a mudança nos padrões de uso do solo em todo o Brasil.

Vélez explica que o levantamento tomou como ponto de partida o ano de 1985 porque é o primeiro ano da série histórica do conjunto de satélites Landsat.

"Para estudar esse fenômeno, a gente precisa de dados comparáveis de longo prazo", explica Vélez.

O pesquisador explica que o levantamento comparou as coberturas vegetais de diferentes categorias ao longo dos anos para estimar a quantidade de vegetação nativa perdida e o que ocupou o seu lugar no Rio Grande do Sul.

Vélez diz que a perda de vegetação nativa no Rio Grande do Sul atingiu o Estado como um todo, mas quase um terço dela se deu na bacia hidrográfica do Guaíba, uma das mais afetadas.

Lá, a perda de vegetação nativa foi de 1,3 milhão de hectares.

"O Rio Grande do Sul tem um bioma diferente da Amazônia, por exemplo. Temos algumas florestas nativas, mas a maior perda não se deu pelo desmatamento de florestas. Essa perda se deu, na maior parte, nas formações campestres", diz Vélez.

As formações campestres do Rio Grande do Sul são um tipo de vegetação adaptada ao clima sub-tropical do Estado composta, em sua maioria, por gramíneas e arbustos de pequeno porte.

Em geral, ela vem sendo utilizada historicamente nas atividades de pecuária extensiva, preservando, segundo especialistas, suas características originais biológicas e suas funções ambientais em relação à chuva e ao solo.

De acordo com o MapBiomas, o Estado perdeu 3,3 milhões de hectares em formações campestres entre 1985 e 2022, quase a totalidade de tudo o que o Estado perdeu em vegetação nativa no período.

Trata-se de uma perda de 32% em relação ao que havia desse tipo de vegetação em 1985.

O MapBiomas também mostra qual o destino dado às áreas onde a vegetação nativa foi suprimida.

Os dados apontam que houve um crescimento de 366% no total da área destinada à lavoura de soja no período.

Em 1985, o Estado tinha uma área de 1,3 milhão de hectares ocupada pela soja. Em 2022, essa área saltou para 6,3 milhões. O crescimento foi de 4,99 milhões de hectares.

Essa área é maior do que o total da perda de vegetação nativa porque, segundo Vélez, além de crescer sobre as áreas naturais do Estado, a soja também avançou sobre outras atividades como pastagens.

De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), o Rio Grande do Sul era, em junho de 2023, o terceiro maior produtor de soja do Brasil, atrás de Paraná e Mato Grosso.

Outra atividade cuja área cresceu mudando a configuração do solo do Rio Grande do Sul é a silvicultura.

A silvicultura consiste na plantação de florestas novas ou no manejo de florestas nativas para a sua exploração comercial.

No Rio Grande do Sul, a principal forma de silvicultura é a plantação de florestas novas de espécies como eucalipto, pinus e outras espécies que são usadas para a produção de madeira, lenha e celulose.

De acordo com o MapBiomas, a área destinada à silvicultura no Estado saltou de 79 mil hectares para 1,19 milhão de hectares, um crescimento de 1.399%.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Rio Grande do Sul é o quinto maior Estado do Brasil em silvicultura, atrás de Paraná, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Minas Gerais.

O levantamento também mostra que houve um crescimento de 145% nas áreas urbanizadas do Estado no período estudado.

Em 1985, as áreas urbanizadas saíram de 97 mil hectares para 238.607 em 2022.

De acordo com o IBGE, a população do Estado era de 8,4 milhões em 1985. Em 2022, a população estimada era de 10,8 milhões.

Gravidade do estrago foi afetada por desmatamentos (Amanda Perobelli / Reuters)

Freio, reservatório e contenção

O professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador de uma rede de pesquisadores sobre os campos do Sul do país, Valério Pillar, disse à BBC News Brasil que a redução na área de vegetação nativa e sua substituição podem ter contribuído para o agravamento dos impactos das inundações.

"A mudança no uso da terra provavelmente aumentou o impacto negativo dessas chuvas", afirma o professor à BBC News Brasil.

Ele explica que há três motivos pelos quais isso aconteceria.

O primeiro é que a vegetação nativa funcionaria como uma espécie de "freio" para a água da chuva.

"A vegetação nativa nas margens dos córregos, riachos e rios cria mais obstáculos para a água da chuva em seu caminho até os leitos dos rios. Esses obstáculos diminuem a velocidade do escorrimento da água e reduzem a força com que ela chega às áreas mais baixas do território, como aquelas afetadas pelas enchentes", explicou o professor.

Pillar diz ainda que, mesmo após um rio transbordar, a vegetação nativa nas margens de um curso d'água funciona como um freio para a drenagem da água, diminuindo a velocidade com que ela atinge as áreas rio abaixo.

O segundo motivo é que a vegetação nativa funcionaria como uma espécie de "dreno" para parte da água da enxurrada.

"A vegetação nativa e suas raízes mantêm o solo mais permeável e assim ajudam a infiltrar a água da chuva no solo, reduzindo a quantidade que fluiria diretamente para os leitos dos rios", disse o professor.

O terceiro motivo é o fato de que a vegetação nativa teria a capacidade de mitigar a erosão do solo e o assoreamento dos rios da região.

"A supressão da vegetação nativa, sobretudo dos campos nativos nessa região, expõem o solo à erosão causadas pelas chuvas. Quando a chuva cai com intensidade, ela carrega uma enorme quantidade de terra pro leito dos rios. Isso causa o assoreamento, que diminui a profundidade do rio. Assim, fica mais fácil para haver uma inundação porque o rio comporta menos água", disse o professor.

"Se você vir as imagens de satélite, vai notar que a cor barrenta das inundações. Tudo isso é sedimento carregado pela água de áreas rio acima", afirmou.

A agrônoma e doutora em Ciências do Solo pela UFRGS Bruna Winck disse à BBC News Brasil que apesar de a soja cobrir o solo e consumir água durante o seu crescimento, ela não teria as mesmas condições de reter água e o solo durante as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul.

"O sistema de raízes da vegetação nativa é mais diverso quanto à sua capacidade de captação de água no solo, podendo fazer isso em diferentes profundidades", explica ela.

"Na cultura da soja, há etapas em que o solo está menos protegido, como o preparo do solo e na fase inicial de crescimento das plantas. Mesmo que haja palha sobre o solo, ela apenas favorece a infiltração de água, mas não a sua absorção", explicou.

'Boom' nas commodities e mudanças legislativas

Para Bruna Winck, um dos motivos por trás da redução na área de vegetação nativa e a sua transformação em lavouras de soja se deu, possivelmente, por conta do "boom" no preço das commodities, no início dos anos 2000.

"Como o Rio Grande do Sul tem solos de boa qualidade, férteis, bem drenados na parte norte, isso fez com que essa expansão se acelerasse nessa região. O preço teve um papel fundamental nessa aceleração", disse a pesquisadora.

Para Valério Pillar, essa diminuição da área de vegetação nativa aconteceu por conta de um histórico de permissividade de sucessivos governos estaduais.

"Em 2015, houve um decreto estadual que permitiu que pecuaristas cujas propriedades fossem em áreas de vegetação campestre pudessem declarar essas fazendas como áreas de uso consolidado. Isso reduziu uma série de exigências para o desmate dessa vegetação. Em 2019, essa mudança foi consolidada no Código Florestal do Estado", afirmou o professor.

Para o presidente da Associação dos Servidores da Sema-RS, Pablo Pereira, a perda de vegetação nativa no Rio Grande do Sul foi agravada por decisões políticas.

"Esta perda das formações naturais foi acentuada, respaldada e incentivada por mudanças na legislação ambiental e também por procedimentos e decisões das gestões estaduais e municipais que dificultam a devida proteção da vegetação nativa e de áreas de grande interesse ecológico", disse uma nota assinada por ele enviada à BBC News Brasil.

Na semana passada, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma reportagem mostrando que o governo de Eduardo Leite (PSDB) alterou 480 normas ambientais desde que assumiu o comando do Estado pela primeira vez, em 2019.

Em resposta ao jornal, o governo do Estado enviou uma nota dizendo que as alterações teriam apenas atualiazado a legislação ambiental local.

"A atualização alinhou a lei estadual à legislação federal. A modernização acompanhou as transformações da sociedade, tornando a legislação aplicável, priorizando a proteção ambiental, a segurança jurídica e o desenvolvimento responsável", diz um trecho da nota.

A BBC News Brasil enviou questionamentos sobre o assunto à Sema-RS, mas nenhuma resposta foi enviada até a publicação desta reportagem.

A reportagem também enviou questões à Associação de Produtores de Soja do Rio Grande do Sul (Aprosoja-RS), mas também não recebeu nenhuma resposta.

Futuro incerto

Bruna Winck, Eduardo Vélez e Valério Pillar concordam ao afirmar que a redução na vegetação nativa não seria a causa das inundações no Rio Grande do Sul.

Segundo eles, as causas são as mudanças climáticas causadas pela ação humana sobre o meio ambiente com a liberação de CO₂ na atmosfera a partir da queima de combustíveis fósseis e outras atividades como o desmatamento.

"A previsão para o Rio Grande do Sul é de aumentos de extremos climáticos, incluindo o de chuvas. Mesmo um solo bem drenado, com vegetação nativa, pode ser completamente saturado, o que pode levar a aumentos de água nos leitos de rios", diz a pesquisadora.

Ela, no entanto, defende que a vegetação nativa do Estado seja recomposta.

"Essas mudanças do clima devem-se sobretudo aos aumentos de CO₂ na atmosfera. E para reduzir isso, a única maneira é aumentar o seqüestro do CO₂ pela vegetação e pelo solo. E diversos estudos já mostram que as vegetações nativas são mais eficazes na captura do CO₂ e os solos sob essa vegetação geralmente estocam mais carbono", disse Winck.

Na nota enviada pela associação de servidores da Sema, a necessidade de recomposição da vegetação nativa do Estado também foi mencionada.

"O Governo do Estado até hoje não institucionalizou as metas de recuperação de vegetação nativa previstas no Plano Nacional de recuperação de Vegetação Nativa (Planaveg), que prevê, minimamente a recuperação de 300 mil hectares de áreas degradadas no Bioma Pampa, sem contar a porção de Mata Atlântica subtropical do Rio Grande do Sul", disse um trecho da nota.

Questionados pela reportagem sobre os planos de recomposição da mata nativa, a Sema-RS e o governo gaúcho não enviaram resposta até a publicação desta reportagem.

Leandro Prazeres, Jornalista, de Brasília - DF, originalmente, para a BBC News Brasil, em 15.05.24

terça-feira, 14 de maio de 2024

Barganha imoral


PL quer usar o tamanho de suas bancadas para arrancar dos candidatos à presidência da Câmara e do Senado o apoio a uma proposta de anistia a Bolsonaro e aos golpistas do 8 de Janeiro

Cioso da influência que exerce pelo tamanho de suas bancadas no Congresso Nacional – 95 deputados e 13 senadores –, o Partido Liberal (PL) pretende explorar esse ativo nada desprezível como um instrumento de barganha. Porém, a motivação da legenda do notório Valdemar Costa Neto não poderia ser mais inaceitável – e moralmente repugnante – para uma agremiação política na democracia representativa. O que o PL quer obter com a barganha é a normalização da delinquência política, simbolizada pelas inúmeras tentativas de Jair Bolsonaro de perturbar o processo eleitoral de 2022 e pela tentativa de golpe de Estado no 8 de Janeiro, que o ex-presidente no mínimo inspirou.

É forçoso reconhecer que o PL pode ter muitos defeitos, mas entre eles, definitivamente, não está a incoerência. Sendo um partido orgulhoso de ter em seus quadros os principais políticos liberticidas hoje em atividade no País, atua deliberadamente para desmoralizar as leis e a democracia.

Segundo consta, o PL condicionará o apoio aos parlamentares que pretendem suceder a Arthur Lira e Rodrigo Pacheco na presidência da Câmara e do Senado, respectivamente, ao compromisso dos candidatos de levar adiante uma proposta de anistia a Bolsonaro e aos golpistas implicados no infame 8 de Janeiro. Chama a atenção nesse movimento a admissão do partido de que crimes, ora vejam, de fato foram cometidos – ou, por óbvio, não se estaria falando em anistia alguma.

Desde aquele domingo fatídico de 2023, o PL parece ter abraçado como principal agenda política não só a defesa dos golpistas, como a própria negação da tentativa de golpe, como se tudo aquilo a que o País assistiu não passasse de “baderna”, “vandalismo” ou coisa que o valha. É de crimes gravíssimos que se trata. E seja por falta de convicção democrática, seja por oportunismo – afinal, Bolsonaro ainda é apoiado por uma parcela significativa dos eleitores a despeito da miríade de acusações que pesam sobre ele –, o movimento para acobertá-los diz muito sobre o PL e seu mandachuva.

O PL está tão fechado em seus objetivos – e nisso, é de justiça reconhecer, a legenda não está sozinha – que nem a tragédia climática e humanitária sem precedentes que se abateu sobre o Rio Grande do Sul comoveu o partido a abrir mão de ao menos uma parte do milionário Fundo Eleitoral em socorro aos gaúchos. No afã de eleger prefeitos Brasil afora neste ano, o partido vai alugar dois jatinhos para que seus principais cabos eleitorais, Michelle Bolsonaro e o deputado Nikolas Ferreira, cruzem os céus do País em campanha para a prefeitura de oito capitais. Poucas situações retratam tão bem como os partidos políticos são capazes de virar as costas para a sociedade, como se fossem representantes de si mesmos.

Dado o tamanho de sua representação no Congresso, o PL teria legitimidade para apoiar candidatos às Mesas Diretoras que se mostrassem dispostos a abraçar projetos caros ao partido. Estranho seria se não o fizesse. Mas não é disso que se trata. O PL defende a anistia para Bolsonaro, de resto rigorosamente descabida e imoral, por puro interesse eleitoreiro. Nada há de programático nessa barganha delinquente. O que se pretende é (i) proceder ao apagamento do golpismo bolsonarista por meio da anistia e (ii) pavimentar o caminho para uma eventual volta de Bolsonaro à corrida eleitoral de 2026, malgrado sua condenação à inelegibilidade pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Portanto, está-se diante de uma malandragem. Aqui e ali, haverá movimentos cada vez menos sutis para fazer o golpismo que ditou os rumos da política nacional durante os quatro anos do trevoso mandato de Bolsonaro – e que culminou no 8 de Janeiro – parecer menos grave do que de fato foi. E de malandragens, convenhamos, o sr. Valdemar Costa Neto entende. Basta lembrar que o capo do PL chegou a patrocinar um “laudo” criminoso para lançar dúvidas sobre a higidez do sistema eleitoral brasileiro – o que gerou uma multa de R$ 22,9 milhões ao partido imposta pelo TSE. Saiu barato.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.05.24

Vão enlouquecer Lula

Não só uma das maiores riquezas do Brasil está concentrada no Rio Grande do Sul, mas também a extrema direita do país, centro de inimigos de tudo que soa de esquerda.

Lula da Silva, presidente do Brasil, durante evento no Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 3 de maio. (Adriano Machado / Reuters)

O presidente Lula enfrenta um dos problemas mais delicados do seu novo governo devido à tragédia climática na rica região do Rio Grande do Sul, repleta de cadáveres e com mais de um milhão de pessoas afetadas, sem luz e sem água. .

O Governo tem sido rápido a mover todos os botões para aliviar tanta dor e tantas mortes precisamente na região que lhe é mais adversa politicamente. É aquela parte rica do país onde se concentra o maior contingente de fiéis seguidores da extrema-direita Bolsonaro .

Não só uma das maiores riquezas do país está concentrada no Rio Grande do Sul graças à força do agronegócio, mas também a extrema direita do país, centro de inimigos de tudo que soa de esquerda. Entre eles está uma grande massa de evangélicos, que sempre resiste a Lula. É a religião que melhor representa o lema da direita de Deus, da pátria e da família.

E mais uma vez Lula se viu entre a espada e a espada: esquecer os cálculos puramente políticos e dedicar-se a ajudar as vítimas da tragédia, mobilizando todas as forças do Governo ou deixá-las entregues à sua sorte.

O momento é duplamente difícil porque Lula é pressionado pelo seu povo a tomar decisões que nem sempre respondem à sua idiossincrasia, a do político de esquerda, que já no seu primeiro Governo trocou o traje sindical “barbudo” pelas gravatas Armani e. cunhou a frase histórica “Lula: paz e amor”. Foi isso que o levou a dizer um dia que era uma “metamorfose ambulante”. E foi. Em todos os seus governos soube adaptar-se ao clima político do momento: com o braço dos grandes líderes da política de direita e dos movimentos mais de esquerda.

Agora, em seu terceiro mandato, Lula se encontra numa encruzilhada e para sair dela precisará tirar a poeira de suas habilidades de metamorfose. O problema não é fácil e em alguns aspectos ele parece sofrer uma certa confusão, já que os problemas vêm de dentro do seu partido, o Partido dos Trabalhadores (PT), e do seu assessor oficial de imagem, Sidônio Palmeira. Isso pode acabar desconcertando você.

A ala mais à esquerda, a começar pela presidente do partido, Gleisi Hoffmann, preferiria um confronto frontal com a oposição sem meias medidas. Preferem a guerra aberta contra a direita e o confronto destemido com Bolsonaro que continua, embora inelegível, a ser o centro indiscutível da extrema-direita golpista e até da simples direita. E ele ainda está livre e bem, mobilizando milhares de seguidores em seus comícios de rua.

O problema, segundo os assessores de imagem de Lula, é que, como revelam todas as pesquisas, não é possível que o Governo seja melhor em todos os índices econômicos e sociais em comparação com a forma como a sociedade o percebe. E estão pressionando-o a esquecer Bolsonaro, chamando-o de “covarde” e tentando arrancar do bolsonarismo fascista suas bandeiras de Deus, da pátria e da família.

Lula está de alguma forma entre a espada e a espada. Por um lado, ele odeia e despreza Bolsonaro como personagem e gostaria de vê-lo preso o mais rápido possível , e ao mesmo tempo tem que enfrentar uma sociedade que o tornou famoso e bem sucedido com seu slogan de “paz e amor", de ser uma espécie de pai dos pobres, mas ao mesmo tempo próximo dos ricos. E agora seu desejo é conquistar aquela classe média que nunca o tolerou.

Não se sabe se é por influência de sua esposa, Janja , uma grande ativista e feminista que não se contenta em ser a simples primeira-dama da Presidência. Ou porque Lula não se contenta com o paradoxo de que tudo está a melhorar no país e continua a cair em todas as sondagens que não parecem reflectir o que realmente está a fazer o seu novo e terceiro Governo, onde já pensa em concorrer a um quarto mandato em 2026. A verdade é que o ex-sindicalista está se esforçando para mudar.

Um exemplo que se notou durante a tragédia que aflige o Estado mais bolsonarista, mais evangélico e mais distante foi sua atitude terna revelada na dor causada pela notícia de que um cavalo havia ficado preso em um telhado durante as tempestades, sem condições de sair. .

“Fui dormir inquieto com a imagem de um cavalo no telhado. “Começo a imaginar o que aquele pobre cavalo estava passando sozinho naquele telhado”, comentou. E acrescentou: “Espero que durante algum tempo ninguém monte esse cavalo porque ele merece um bom descanso”. Enquanto isso, sua esposa Janja, que mobilizou o Exército para salvar o cavalo Caramelo , apareceu nas redes sociais emocionada com um cachorro perdido na tragédia que ela e o marido acabavam de adotar.

Fora da política mesquinha, às vezes nos perguntamos por que é precisamente nas tragédias que revelamos o que há de melhor em nós mesmos. Como está acontecendo nesta nova desgraça do Brasil onde está sendo exemplar a ajuda aos necessitados por parte de tantos voluntários que não se perguntam se são bolsonaristas ou lulistas. Como escreveu Preto Zezé em sua coluna O Globo : “Não precisamos de heróis, salvadores da pátria. “Precisamos de líderes e de paz para nos sentirmos próximos uns dos outros.”

Juan Arias, o autor deste artigo, é comentarista de assuntos internacionais do EL PAÍS. Publicado originalmente em 14.05.24

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Temos muito mais riqueza, mas somos seres piores, diz Pepe Mujica à Folha

Poucos dias após anunciar descoberta de tumor no esôfago, ex-presidente do Uruguai e referência da esquerda fala sobre como entende a vida e a morte e analisa a América Latina

José 'Pepe' Mujica concede entrevista à Folha em sua chácara na região de Rincón del Cerro, em Montevidéu Nicolás Garrido Monestier/Folhapress

É um típico dia de outono em Montevidéu. As rajadas de vento, o céu nublado e as intercaladas pancadas de chuva mudam o humor de José "Pepe" Mujica, 88, que não pode sair para trabalhar a terra de sua chácara em Rincón del Cerro, área rural da capital.

Há duas semanas ele anunciou a descoberta de um tumor no esôfago. Na data em que recebeu a Folha, quarta-feira (8), estava no segundo dia de radioterapia. Ainda não sentia os efeitos colaterais que, disseram os médicos, devem aparecer por volta do 15º ou 20º dia de tratamento. Era preciso se proteger das condições climáticas devido à imunidade.

Seus seguranças pareciam mais atentos a isso do que o próprio Mujica ou sua esposa, a ex-vice-presidente e ex-senadora Lucía Topolansky, 79. "Não se aproximem. Não quero ficar doente e nem que o adoeçam", diz um deles quando a reportagem chega à propriedade.

Às vésperas de seu aniversário, no próximo dia 20, quando completará 89 anos —ou 90, pois diz que há um possível erro em seu registro de nascimento—, Mujica está sentado e lê um jornal com o livro "Ética para Amador", do espanhol Fernando Savater, aberto ao seu lado. Está à vontade, usa pantufas e calça de moletom.

Nas paredes repletas de pequenos objetos da simples cozinha de teto baixo, várias conservas de tomate e fotos de Manuela, cadela que o acompanhou por mais de 20 anos antes de morrer, em 2018.

Na minúscula sala adjacente, ao lado da varanda com caixotes cheios de espigas de milho, há uma porção de livros amontoados. "Venha, isso aqui você nunca mais terá a chance de ver", diz ele, retirando de uma maleta uma réplica do diário de Che Guevara com suas últimas anotações em letra miúda numa agenda de um vermelho desbotado.

No varal ao lado de fora, as roupas seguiam expostas à garoa.

Nove anos após deixar a Presidência do Uruguai e quase quatro anos após renunciar ao Senado, Pepe Mujica fala sobre sua interpretação da vida e da morte, os desafios da esquerda na América Latina, o papel de Lula (PT), a ditadura da Venezuela e a saúde mental dos jovens.

Ainda dirige o trator, Pepe?

"Sim, ele dirige" [responde Lucía Topolansky antes do marido].

Como está sua rotina?

Agora tenho que me tratar. A única opção que tenho é um tratamento com radioterapia, que tenho que cumprir todos os dias durante umas 30 sessões consecutivas. Estou na segunda. Amanhã, a terceira.

Como foram as duas primeiras?

Não sinto nada. Me dizem que quando chegar a 15 ou 20 [dias] posso sentir algo. Mas, por enquanto, nada. Dentro da desgraça tive relativamente sorte, porque a análise celular mostra que há duas variáveis de tecido, e a que me afetou é a mais sensível à radiação. Não tenho metástase. [O tumor] está localizado em um lugar que não atravessou a parede do esôfago, e, bem, segundo eles é controlável e até erradicável. Veremos.

Dos problemas que tive na juventude, perdi um pulmão. Isso criou mais espaço para o coração, que está inclinado para a esquerda, o que favorece o tratamento.

É verdade ou é uma metáfora muito boa?

Não, é verdade, é incrível. Está um pouco desviado, os médicos riam.

O sr. tem compartilhado muitas mensagens sobre a vida, especialmente para os mais jovens.

É que isso me desespera. Eles se suicidam com frequência. Hoje chegou a mim o boato de um de 18 anos que queria se suicidar. Me dá vontade de matá-lo a pauladas. Porque o único milagre que existe é ter nascido.

Havia 40 milhões de probabilidades de nascer outro e foi você. Esse é o único milagre que existe lá em cima. Provavelmente viemos do nada e vamos para o nada. É preciso se comprometer com a vida. De repente eu pertenço a outra época.

Senadora, posso? Como a sra. tem lidado com a saúde de Mujica?

"Acredito que nesse tipo de doenças é preciso lutar. Já dizem os médicos que o doente que se desmoraliza é o que vai embora rapidamente. O doente que luta é o que perdura em qualquer situação. Então é preciso lutar. É isso que se deve fazer. E não ficar pensando, porque senão é horrível."

Como referência política da região, como avalia a situação da esquerda na América Latina?

Em geral, há uma visão muito de curto prazo no uso desses termos. Esquerda e direita são termos cunhados com a história da Revolução Francesa, simplesmente por onde se sentavam no banco. Mas eu tenho uma interpretação muito mais antropológica.

São tendências que existiram sempre ao longo da história humana. Sempre houve uma face renovadora e progressista e uma face conservadora, como as faces de uma moeda. Talvez o gênero humano em seu devir precise das duas coisas. E ambas têm problemas: a progressista tende a confundir seus desejos com a realidade, e a isso chamamos de infantilismo. E a face conservadora tende a cair no reacionário (que não é o mesmo que conservador).

Agora, contemporaneamente, a esquerda está em uma crise de ideias porque esteve muito nutrida de 1950 a 1960 por um modelo racional que inventou um homem ideológico. E não teve em conta que os seres humanos são animais emocionais. E hoje está precisando recriar um novo arsenal de ideias que se encaixem mais com uma visão mais biológica do que é o homem. Agora estamos com outro desafio.

Nós somos animais sociais, não podemos viver sozinhos. E esse caráter gregário foi o que nos fez progredir. Aprendemos a caçar em grupo, nos movemos em grupo. A tal ponto que, em toda aldeia primitiva, depois da pena de morte, a pena mais grave era ser expulso da comunidade. Somos humanamente dependentes dos outros, e então andamos com essa contradição: precisamos da sociedade, mas somos indivíduos e temos essa cota de egoísmo. Este é o papel da política: tem que lutar para sobreviver na sociedade.

Como as gerações que vêm resolverão isso? Não sei.

Quais ideias fazem parte dessa nova visão da esquerda?

Acredito que agora estejamos em um tempo meio de impasse. Com um progresso técnico fantástico e com muita gente infeliz. Há muitos com problemas com angústia, com a necessidade de ir a um psicólogo. Qual é o sentido do progresso econômico se não sentimos felicidade em viver? Este é o desafio que temos pela frente. Estou prestes a completar 90 anos...

Oitenta e nove, não?

Oitenta e nove, mas na verdade são 90, porque 1 ano não foi registrado.

Meu pai morreu quando eu tinha 8 anos. E eu me lembro de ter ido três vezes para assistir aos dois maiores times do Uruguai, Nacional e Peñarol. As torcidas estavam misturadas na mesma arquibancada, e cada um gritava seu gol e não acontecia nada. Agora nós nos matamos. E estou falando de 80 e poucos anos atrás.

Não progredimos moralmente em nada. Pelo contrário, regredimos. Mas temos muito mais carros, telefones, conforto. Mas moralmente? Como sociedade? Estamos piores do que antes.

E temo que isso esteja acontecendo em todo o mundo. Muito mais riqueza, mas nós somos piores. E também somos mais débeis. Somos infinitamente mais débeis do que os homens primitivos.

Sei que já te perguntaram isso, mas há algum arrependimento por não ter tido filhos?

Eu me dediquei a consertar o mundo e não pude ter filhos porque estava ocupado. Mas digo como aquele poeta Atahualpa Yupanqui [argentino; 1908-1992]: Tenho tantos irmãos que nem posso contá-los.

Sobre o Brasil, como o sr. avalia o governo Lula?

Acredito que ele tenha ganhado as eleições porque era o Lula. Senão, Bolsonaro teria continuado. Lula teve que fazer concessões e uma aliança para o centro, muito forte, para tentar unir tudo o que era um espaço mais ou menos democrático para frear a extrema direita. Naturalmente isso vai ter efeitos. Não acredito que Lula possa fazer um governo muito radical à esquerda. Este será um governo moderado. E ele sempre foi muito moderado. Ele propunha uma revolução...

Propunha uma revolução?

Sim, que as pessoas pudessem comer três vezes ao dia. Para quem não tem comida, isso é uma revolução. Para quem sonha com a revolução, é pouco.

O Brasil assumiu responsabilidades no mundo. É evidente que no cenário internacional é respeitado. E não se surpreenda se, no segundo semestre, quando houver uma reunião em Nova York convocada pelo secretário-geral da ONU para reformá-la, uma dessas mudanças for a proposta de que o Brasil entre no Conselho de Segurança como membro permanente.

Como o sr. vê a dificuldade da esquerda no Brasil de renovar seus quadros?

Tenho a mesma preocupação. E depois de Lula? Este é um desafio que o Brasil e toda a nossa América têm, dada a importância do Brasil.

Recentemente, em mais um aniversário do golpe militar no Brasil, Lula não permitiu que os ministros fizessem atos para relembrar este episódio. Como interpreta a relação da esquerda na América Latina com os militares?

A justiça historicamente é conhecer a verdade. Mais do que prender pessoas, é conhecer nossa verdadeira história. Há uma época sepultada que não será eliminada por decreto, por vontade dos governos, estará sempre latente. Eu pensava há alguns anos: até que todos os atores [da ditadura] morram, isso continuará. E então estive na Espanha, onde todos os atores morreram e estão procurando ossos [das vítimas]. Isso significa que as coisas permanecem. Portanto, é melhor tentar esclarecer a verdade. Que a verdade resplandeça. Também não posso comprometer o hoje das pessoas para salvar uma conta do passado. Mas não se pode encobrir a vergonha.

É uma mensagem para o governo Lula?

Acontece que eu entendo [a situação]. Lula tem o acampamento de Bolsonaro ali, que está propondo exatamente o oposto. Tem um desafio na história recente do Brasil, houve até uma tentativa de golpe. Eu entendo a ambivalência.

Vamos falar de Argentina. Qual sua opinião sobre o governo Milei?

Uma loucura. É consequência da desesperança que pode gerar em uma sociedade o fenômeno da hiperinflação. Foi o que aconteceu com a República de Weimar na década de 1930. O povo mais culto, mais desenvolvido da Europa, acabou votando em Hitler. Uma loucura total. Os povos podem errar, porque a hiperinflação desespera as pessoas. E então eles são capazes de apostar em qualquer coisa que seja contra.

A hiperinflação de alguma forma é resultado dos governos Kirchner.

Sim. E eles não assumem a responsabilidade. O pior é que não há uma visão autocrítica porque isso não aconteceu por ordem dos deuses, aconteceu por erros humanos.

Bolsonaro também foi uma consequência de erros dos governos de esquerda?

É provável que sim. Há uma tendência contemporânea, consequência da macrocultura consumista na qual estamos imersos: sempre temos uma necessidade de ter mais, de comprar mais. Esse é o triunfo cultural do capitalismo que controla nosso capital subliminar. E então as pessoas se sentem frustradas e tendem a votar contra o que está aí sem ter clareza do que estão votando a favor. Votam em qualquer coisa.

Tenho que mencionar o que aconteceu no México, de como os antigos partidos mexicanos foram esquecidos, e López Obrador ganhou com 53% dos votos [em 2018]. E o México se tornou de esquerda? Não seja tolo. Não. As pessoas estavam pensando que fosse um perigo latente. Há uma grande instabilidade política no mundo ocidental, isso é evidente.

Em algumas semanas teremos eleições no México. É provável que Claudia Sheinbaum, a candidata de López Obrador, vença. O que achou desses seis anos de governo dele?

Ele trouxe algo. Esse espaço que ele tem todas as manhãs falando [as mañaneras] marcou a agenda de todo o sistema. Ele é um militante ferrenho.

Mas é um democrata?

Para o México, ele é um democrata. O problema do México é o que dizem: tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos.

Mas nas mañaneras ele ataca a imprensa quase todos os dias. Além disso, está muito próximo dos militares.

O México é complicado. Tem um problema de tráfico de drogas brutal. Mas ele vai sair e é muito provável que o partido dele vença. Depois não sei o que vai acontecer.

Recentemente, o presidente uruguaio, Lacalle Pou, e Milei estiveram juntos em um evento de economia. Lacalle disse que, para a população ter dignidade, é necessário um Estado. Isso vai contra o discurso de Milei. Qual é o papel do Estado?

Eu não sei qual é o papel ideal, mas posso dizer que o Estado no Uruguai tem historicamente um peso. Nós tivemos primeiro o Estado e depois a nacionalidade. Tivemos governos peculiares para a história da América Latina, muitos deles sociais-democratas. Governos que concederam o divórcio à mulher por sua própria vontade, que reconheceram as 8 horas de trabalho nos anos 1910. Tivemos um presidente que escrevia "Deus" com minúscula, Don José Batlle y Ordóñez, que separou a igreja do Estado, tornando o país laico. Mudou todos os nomes: aqui não se fala Semana Santa, é semana de turismo. O dia da Virgem é o dia das praias.

Lacalle não pode escapar da importância do Estado. Ele vai para a Argentina e tem um pensamento em algumas coisas alinhado com Milei, mas não pode cair na barbaridade de Milei. Jamais. A história do Uruguai não permitiria isso.

Houve uma certa surpresa quando o sr. fez críticas ao processo eleitoral na Venezuela por causa do impedimento de candidaturas opositoras. Acha que haverá um pleito justo?

A Venezuela tem a tragédia do excesso de recursos naturais. É um país deformado pelo petróleo. Os Estados Unidos sempre precisam de petróleo porque é mais barato para o transporte. Sempre se intrometeram na Venezuela. E essa luta tem sido venenosa.

Como a democracia vai sobreviver com um governo cercado, agredido por todos os lados? Sabe por que Maduro perdura? Porque não há democracia. Em uma praça sitiada, qualquer um que discorde é um traidor. E a democracia precisa de liberdade. O regime de Maduro é consequência do cerco que veio de fora. É um desastre.

Quando se diz que é uma consequência de um processo de bloqueio, parece que está se tirando a culpa do regime.

É verdade, mas eu sou muito velho. E tenho experiência. Há um costume, do qual discordo, de que o bloqueio pune os governos. Não, pune os povos. É um crime contra os povos, porque os governos não sofrem nada, continuam comendo e bebendo. Maduro está gordinho.

Claro que Maduro tem responsabilidade. [Hugo] Chávez é muito diferente de Maduro. Ele perdeu as eleições [Chávez foi derrotado em um referendo em 2007 no qual propunha, entre outros pontos, a reeleição ilimitada; ele a obteve dois anos depois, em nova consulta popular] e aceitou. É diferente da Revolução Cubana, que assumiu uma decisão da qual se pode discordar, mas foi definitiva: partido único, ditadura do proletariado. Agora, no caso da Nicarágua, no caso da Venezuela, eles brincam com a democracia, dizem que haverá eleições, depois colocam as pessoas na cadeia. Ou é uma coisa ou outra. É dizer a verdade e assumir.

A democracia tem defeitos, não é perfeita. Como Churchill disse: é a pior forma de governo, exceto por todas as outras que tentaram. Mas de qualquer forma, para conviver, é muito superior. Eu também não concordo com a ideia de que a democracia representativa que temos é a última história da humanidade. Não, não posso pensar tão mal da humanidade. Acredito que a humanidade vá buscar algo melhor. Porque, se nos tirarem a esperança, para que vivemos?

Queria voltar um pouco ao nível pessoal. O sr. gosta de ser uma referência para os líderes, militantes, jovens de esquerda?

Na sociedade moderna, há uma crise de avô. O avô é uma figura antropológica que desapareceu porque a família diminuiu. Na história humana, os avós desempenharam um papel. Na história dos povos antigos, a instituição mais antiga do ponto de vista político é o conselho dos anciãos. Não é o governo. É aquele que aconselha e tem duas missões: dizer o que deve ser feito e educar as crianças.

No mundo antigo, a única maneira de aprender algo era vivendo. Então os mais velhos transmitiam a herança do conhecimento. Tive a sorte de ter vivido muito e sou velho, então a única ferramenta que tenho é a palavra para dizer algo, ajudar a pensar.

Como o sr. pensa o tema da morte?

A morte é talvez o que dá valor à vida. Tudo o que é vivo está condenado a morrer. Qual é a diferença que a vida tem das pedras? A vida pode sentir dor, alegria, tristeza, desejo. Parece que temos a função de emprestar uma inteligência ao mundo da vida. Às vezes acreditamos ser donos. Não, somos parte. Mas queremos continuar vivendo. Nossa maneira de lutar contra a morte é uma luta impossível que sempre perderemos, mas lutamos com amor.

Não podemos escapar, porque somos um programa biológico para isso. Aí está a nossa grandeza e nossa tragédia. E fazemos perguntas eternas que não têm resposta. Se a vida tem um sentido. Se há um além. Mas certamente desempenhamos um papel na natureza. Pelo menos, estragamos tudo. Complicamos a vida dos outros bichos.

RAIO-X | JOSÉ "PEPE" MUJICA, 88

Presidiu o Uruguai de 2010 a 2015, após ser ministro da Agricultura e da Pecuária e deputado. Em 2020, durante a pandemia, renunciou a sua vaga no Senado. Ex-guerrilheiro e líder tupamaro, ficou preso de 1972 a 1985. Um dos principais nomes da Frente Ampla, lidera o MPP (Movimento de Participação Popular), um dos partidos da coalizão.

Mayara Paixão, Jornalista, de Montevidéu (Uruguai)  para a Folha de S.Paulo. Publicado originalmente na edição impressa, em 12.05.24, às 23h15

Para 55% da população, Lula não merece ser reeleito em 2026

A primeira edição da pesquisa Genial/Quaest sobre a eleição presidencial de 2026 mostra que, se a eleição fosse hoje, 55% da população não daria nova chance ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A pesquisa mostra que 47% dos eleitores poderiam votar para reeleger Lula, mas 49% rejeitam o atual chefe do Executivo - (crédito: Rafa Neddermeyer/Agencia Brasil)

E, assim como na eleição de 2022, Lula tem maior apoio no Nordeste, onde o percentual dos entrevistados que dariam nova chance ao petista é de 60%. Entre os mais pobres, o atual presidente mantém a popularidade, pois entre os que ganham até dois salários mínimos 54% votariam no petista contra 43% que responderam o contrário. E, entre os que estudaram até o Ensino Fundamental, 54% disseram que votariam em Lula.

No grupo das mulheres, que tradicionalmente apoia o petista, a maioria — 52% — são contra a reeleição do presidente, opinião compartilhada por 23% dos que lhe deram voto no segundo turno de 2022, segundo a pesquisa da Quaest em parceria com a Genial Investimentos.

"Embora ainda esteja distante, a eleição de 2026 já começa a se desenhar. Lula terá que ganhar a confiança da maioria para merecer mais uma chance. Os nomes da oposição trabalham para ganhar conhecimento", destacou o cientista político Felipe Nunes, diretor e fundador da Quaest.

Conforme os dados da pesquisa, entre os candidatos elegíveis da oposição, já que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foi confirmado inelegível, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) é apontada como o nome mais indicado para enfrentar Lula por 28% dos eleitores entrevistados. Contudo, ela tem rejeição bastante elevada do eleitorado, de 50%.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) tem 24% da preferência e 30% de rejeição. Em um eventual segundo turno entre Lula e Tarcisio, o petista venceria o governador paulista em 2026 com placar de 46% contra 40%, apesar de perder em três grupos regionais. Lula venceria no Nordeste com 66% contra 25% do candidato bolsonarista. Na região Sudeste, Tarcísio Freitas venceria por 45% a 39%; e, na região Sul, o candidato bolsonarista teria uma vantagem de 46% a 41%. E, no grupo regional Centro-Oeste/Norte, o placar favorável a Tarcísio seria de 43% a 40%.

Outros três governadores que disputam a herança eleitoral de Bolsonaro aparecem bem atrás de Tarcísio de Freitas. Ratinho Júnior (PSD), do Paraná, tem 10% das intenções de votos dos entrevistados; Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, tem 7%; e Ronaldo Caiado (União Brasil), de Goiás, 5%. Pouco mais de um quarto do eleitorado (26%) não sabem ou não responderam.

De acordo com a Quaest, outros nomes do PT têm potencial baixo de votos. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem 32% da preferência dos eleitores. E a presidente da legenda, a deputada Gleisi Hoffmann (PR), apenas 10% da intenção de voto.

A pesquisa foi realizada entre os dias 2 e 6 de maio, entrevistando presencialmente 2.045 eleitores em todos os estados. A margem de erro é de 2,2 pontos percentuais.

Publicado originalmente no Correio Brasiliense, em 13.05.24

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Um governo que atira a esmo

Lula já cumpriu um terço do mandato, mas seu governo ainda prepara ‘projetos’ para a segurança pública. Enquanto isso, renova a ineficaz operação militar em portos e aeroportos

Passado um terço do mandato, o governo do presidente Lula da Silva coleciona uma constrangedora soma de erros e fragilidades na segurança pública. Numa área especialmente sensível para a população e historicamente desprezada pelo PT, até se abriu uma boa janela de oportunidade com a transferência do então ministro da Justiça e Segurança Pública – o animador de auditório Flávio Dino – para uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, e sua substituição pelo discreto Ricardo Lewandowski. A mudança nesse caso teria sido uma chance notável para a pasta, trocando o histrionismo populista de um para a desejada qualificação técnica e o comedimento de outro. O estilo do titular pode ter mudado, mas o governo continua errático no enfrentamento daquele que é hoje, segundo pesquisas, o principal problema nacional na opinião da população.

Tome-se o exemplo da prorrogação da operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em portos e aeroportos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Anunciada há seis meses com a convicção entre especialistas de que seria uma medida ineficaz, a GLO acaba de ser renovada por 30 dias – e depois se sabe lá até quando, conforme as conveniências pirotécnicas da gestão lulopetista. No papel, o objetivo da operação é promover uma “asfixia” de organizações criminosas que usam os principais terminais aeroportuários, ou seja, os portos de Santos, do Rio de Janeiro e de Itaguaí e os aeroportos do Galeão e de Guarulhos. Na prática, confirmaram-se os prognósticos mais desabonadores: alto custo financeiro, uso indevido das Forças Armadas, volume e qualidade de apreensões questionáveis e uma descabida teatralidade para a tal “asfixia”, enquanto o crime se mostra muito mais preparado para driblar as autoridades do que faz crer a fiscalização com local e hora marcados.

Como este jornal já afirmou, a GLO de Lula é uma demonstração das razões pelas quais a situação de segurança pública está do jeito que está: tudo parece resumir-se a uma grande farsa. Seria pedir, por decreto, para dar errado. Como, afinal, o crime organizado pode ser enfrentado com uma força-tarefa em três portos e dois aeroportos, e que por sua natureza precisa ter prazo temporário? Ademais, trata-se não só de uma medida inútil, mas também de um equívoco institucional e funcional por envolver as Forças Armadas na segurança pública. Militares não têm essa atribuição nem foram treinados para isso, lição aprendida na intervenção federal do Rio de Janeiro, em 2018. Mas o espalhafato na segurança pública costuma ser um atalho providencial para lideranças movidas por mero cálculo político-eleitoral. Rende boas imagens, produz barulho e gera a falsa sensação de que o governo está trabalhando contra o crime.

Nesta semana, o secretário Nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo, disse ao Estadão que o combate ao crime organizado deve ser prioridade número um. A partir de sua experiência como procurador-geral de Justiça de São Paulo, Sarrubbo demonstrou apostar na estratégia de asfixia financeira das facções, no reforço das equipes de investigação de crimes e no aumento dos efetivos das polícias estaduais. Para ele, isso exige inteligência, melhora nos índices de esclarecimento de crimes e baixa letalidade policial. Difícil discordar. É um bom cardápio de ideias, especialmente num governo que costuma acreditar que a prevenção e o combate à criminalidade são sinônimos de truculência a serviço das elites nacionais. É também um freio de contenção em quem acredita em operações espetaculosas, violentas e ostensivas como forma de garantir resultados na segurança.

Ocorre que a entrevista do secretário oferece uma inquietante sensação de recomeço. Sarrubbo anunciou que está com “vários projetos saindo do forno”, que serão apresentados nas próximas semanas. Ora, e que fim levou o programa de Enfrentamento às Organizações Criminosas, anunciado com pompa por Flávio Dino? Era, decerto, uma peça genérica de intenções, o que fica evidente quando Sarrubbo nem sequer o menciona. Vê-se que o governo perdeu tempo em demasia, ora desfazendo os erros do governo anterior, ora ocupado com sua performance cênica. Ainda está para mostrar do que se ocupará daqui para a frente.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo,  em 09.05.24

Falta preparo para lidar com desastres no país

Enfrentamento eficiente de calamidades como a que atinge o RS precisa entrar para rotina do poder público e da sociedade

Ruas inundadas em São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre (RS) - Pedro Ladeira/Folhapress

Dos debates despertados pela catástrofe das chuvas no Rio Grande do Sul, o sobre como liberar verba pública emergencial preocupa menos. Há longa tradição nos regimes orçamentários governamentais para facilitar, muitas vezes sem o devido controle, despesas urgentes e inesperadas.

O que deveria mobilizar as atenções é a falta de preparo e organização do poder público e da sociedade para salvar vidas e mitigar os estragos materiais nesses episódios frequentes no Brasil.

Não seria preciso mudança climática nem variações cíclicas na temperatura das águas do oceano Pacífico para declarar o Sul do país como uma área de risco de inundações e deslizamentos. A história natural do planeta escavou ali uma gigantesca calha de escoamento hídrico exposta a tempestades.

Sobretudo Rio Grande do Sul e Santa Catarina deveriam ter o mesmo nível de organização para lidar com dilúvios que Japão, Chile e Califórnia desenvolveram em relação aos riscos de sismos e maremotos.

Regras de ocupação do solo e métodos construtivos, sistemas de alerta e evacuação, simulações periódicas das reações a desastres, protocolos que centralizam, disponibilizam e disparam informações, núcleos de gestão que estabelecem prioridades e coordenam as diversas burocracias envolvidas.

Pouco disso transparece na resposta das autoridades municipais, estaduais e federais à elevação das águas no Rio Grande do Sul, o que não é problema apenas gaúcho. O improviso, o excesso de confiança no voluntarismo e a falta de informações tempestivas caracterizam a reação a desastres no país.

O objetivo nas primeiras horas após uma catástrofe é reduzir danos, evitar mortes e internações, abrigar desalojados e preservar a infraestrutura de abastecimento de bens e serviços essenciais.

Para cumprir bem essa tarefa, é preciso organização. Os recursos físicos e os humanos devem chegar no volume adequado aos locais mais necessitados no menor tempo possível. A informação tem de ser precisa e circular depressa.

Trata-se de uma operação análoga à de uma guerra, e quem vai despreparado para uma guerra no mínimo terá mais perdas do que teria caso houvesse se precavido.

É preciso melhorar rapidamente a efetividade das ações no Rio Grande do Sul, pois é provável que outros temporais e ondas de frio se abatam sobre regiões gaúchas.

A lição que fica, para o estado e o país, é que não é mais tolerável que autoridades e sociedade esperem os desastres acontecerem para tomar medidas óbvias de planejamento e cautela para situações emergenciais. Pois é certo como o nascer do Sol que elas voltarão a ocorrer em breve.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 09.05.24 (editoriais@grupofolha.com.br)

Ministério Público Eleitoral no TSE contra cassação de Moro

Vice-procurador-geral eleitoral afirma que não existe comprovação de desvio ou omissão de recursos por senador

O senador Sergio Moro (União Brasil-PR) - Pedro Ladeira - 1º.abr.24/Folhapress

A Procuradoria-Geral Eleitoral se manifestou ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) pela rejeição de ações do PT e PL que pedem a cassação do senador Sergio Moro (União Brasil-PR) sob alegação de abuso de poder econômico, uso indevido dos meios de comunicação e caixa dois nas eleições de 2022.

Moro é ex-juiz e ficou conhecido por ser o responsável pela vara federal na qual tramitavam os processos da Operação Lava Jato. Ele também é ex-ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro (PL).

O documento do Ministério Público foi juntado nesta terça-feira (7) à ação, que é relatada pelo ministro Floriano de Azevedo Marques. Floriano é próximo ao presidente da corte, Alexandre de Moraes.

Moro foi absolvido em abril pelo TRE-PR (Tribunal Regional Eleitoral do Paraná) por 5 votos a 2. A maioria entendeu que não houve abuso de poder econômico durante a pré-campanha eleitoral do ex-juiz da Lava Jato, em 2021 e 2022.

Além disso, todos os sete juízes rejeitaram a acusação de uso indevido dos meios de comunicação social e também não reconheceram indícios de caixa dois e triangulação de recursos.

As acusações contra Moro tratam, principalmente, de temas relacionados aos gastos no período que antecedeu a campanha oficial ao Senado.

PT e PL argumentaram que os gastos do ex-juiz na pré-campanha, justamente porque ele almejava a Presidência da República, foram desproporcionais, gerando desequilíbrio entre os concorrentes.

As duas siglas começam a somar os gastos de Moro desde novembro de 2021, quando Moro se filiou ao Podemos, de olho na cadeira de presidente.

Ao TSE o Ministério Público disse que "não há indicativos seguros de que houve desvio ou omissão de recursos e tampouco intencional simulação de lançamento de candidatura ao cargo de presidente com pretensão de disputa senatorial no Paraná".

"Também inexiste comprovação de excesso ao teto de gastos na pré-campanha (fase sequer regulamentada), inclusive se adotado o precedente de 10% do teto de campanha", afirma a manifestação, assinada pelo vice-procurador-geral eleitoral, Alexandre Espinosa.

Espinosa nega semelhanças em relação ao caso da ex-senadora Selma Arruda, de Mato Grosso, que foi juíza e teve atuação comparada a Moro.

O TSE cassou por 6 a 1 o mandato de Arruda ao entender que houve abuso de poder econômico e captação ilícita de recursos ligados à campanha eleitoral de 2018.

A Justiça Eleitoral concluiu que ela e seu primeiro suplente omitiram quantias expressivas usadas para pagar despesas de campanha no período pré-eleitoral.

O Ministério Público Eleitoral afirma que "não há similitude fática entre o caso analisado e o precedente 'Selma Arruda', fundamentalmente porque no julgamento já realizado pelo TSE a imputação em desfavor da então senadora se deu por irregularidades no autofinanciamento da sua campanha eleitoral (por meio de um mútuo realizado com seu suplente) e pela constatação de que a pré-candidata realizou antecipadamente gastos tipicamente eleitorais –o que não é a hipótese dos autos".

Ainda não há data marcada para o julgamento de Moro no TSE.

Moro se filiou ao Podemos no final de 2021 de olho na cadeira do Planalto. Em abril de 2022, migrou para a União Brasil, mas não conseguiu viabilizar uma pré-candidatura a presidente.

Optou por se lançar a senador por São Paulo, mas a Justiça Eleitoral vetou a troca de domicílio eleitoral. Em função das mudanças de planos, Moro se volta ao eleitorado paranaense somente a partir de 8 de junho de 2022. A campanha oficial começou em agosto, seguindo até outubro.

PT e PL entraram com propostas de Aije (Ação de Investigação Judicial Eleitoral) contra Moro no final de 2022, mas as duas representações acabaram tramitando em conjunto no TRE em função das semelhanças das acusações.

O julgamento do caso no TRE durou quatro sessões e, em 9 de abril, terminou com um placar de 5 a 2 a favor de Moro. Em 22 de abril, os partidos recorreram ao TSE contra a decisão da corte regional.

José Marques,Jornalista, de Brasília - DF para a Folha de S. Paulo. Publicado originalmente  na edição impressa em 08.05.24

‘Tragédia no RS é responsabilidade também de senadores e deputados que desmontam legislação ambiental’, diz secretário do Observatório do Clima

“A gente pode ter a Defesa Civil 30 vezes maior no Rio Grande do Sul ou em qualquer outro Estado. Vai continuar morrendo gente, porque a Defesa Civil vai conseguir salvar a vida de alguém próximo, mas não de todos. Quem salva mais vidas é o planejamento, e no caso dos municípios, o planejamento urbano”, afirma o líder do Observatório do Clima.

253 municípios foram afetados por chuvas no Sul  (EPA - EFE/REX/SHUTTERSTOCK)

As fortes chuvas que atingem o Rio Grande do Sul, as mais intensas registradas em território gaúcho em décadas, já deixaram dezenas de mortos, causaram estragos em 300 municípios, romperam uma barragem e desalojaram milhares de pessoas. Há ainda mais mais de uma centena de pessoas desaparecidas.

Os governos federal e estadual criaram uma força-tarefa e tentam evitar mais mortes promovendo evacuações e retirando pessoas de áreas de risco.

Mas a responsabilidade não é apenas dos governos estaduais e federal, diz Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima (OC), mas também do Congresso — pois as tragédias são resultado da falta de adaptação e de combate às mudanças climáticas, duas áreas onde os Executivos precisam fazer mais e onde o Legislativo têm promovido ativamente retrocessos, na opinião dele.

"A maioria conservadora tem aprovado diversos projetos considerados nocivos para o meio ambiente. Nunca tivemos um Congresso tão dedicado a desmontar", afirma o especialista em políticas públicas à frente do Observatório do Clima, rede de entidades que monitora a questão climática no Brasil.

Além disso, segundo Astrini, ações que se limitam às respostas de emergência em situações de crise não são suficientes. Eventos extremos como esse — cada vez mais comuns por causa das mudanças climáticas — não podem mais ser tratados como “imprevistos”.

Embora nem sempre seja possível prever com precisão a intensidade de um evento extremo, já sabemos que eles se tornarão mais frequentes — e quais as medidas que precisam ser tomadas para nos adaptarmos a eles, afirma o especialista.

Modelos climáticos preveem há décadas um aumento de chuvas extremas no sul da América do Sul, incluindo toda a bacia do Prata (formada pelos rios Paraná e Uruguai), lembra Astrini.

“O maior problema que a gente enfrenta neste momento não é a previsão, é a aceitação”, afirma Astrini. “A gente precisa aceitar que, infelizmente, esse é o novo normal. Mas não basta aceitar pacificamente, é preciso aceitar e tomar atitudes.”

“Todo ano o governo do Rio Grande do Sul fica extremamente espantado que as chuvas são intensas. O governo do Rio de Janeiro fica super surpreso quando acontece em Petrópolis. É uma surpresa em São Sebastião (SP), no norte de Minas Gerais, em Recife (PE), no sul da Bahia. Só que acontece que já faz nove anos consecutivos que as médias de temperatura do planeta são as mais quentes já registradas. Não tem mais surpresa. A gente precisa se preparar para isso”, afirma Astrini.

Dinheiro investido em prevenção evita tragédias, diz Astrini (Diego Vara / Reuters)

Mitigação, adaptação e redução de danos

Astrini explica que existem três tipos de resposta possíveis diante da crise climática: a mitigação das causas, a adaptação em preparação para as consequências e a redução de danos diante das tragédias.

“Mitigação é quando você ataca o problema: é quando você interrompe o desmatamento, quando você tira uma termoelétrica de operação, quando substitui uma fonte poluente por uma fonte renovável”, afirma o especialista.

“A adaptação é quando o problema vai acontecer e você começa a adaptar principalmente as populações mais vulneráveis ao problema. Por exemplo, quando tira as populações da área de risco, quando dá mais assistência para um pequeno agricultor lidar com uma seca.”

As ações também são necessárias contra problemas que não necessariamente são causados pelo aquecimento global, embora agravados por ele, explica Astrini.

“Adaptação é também quando você reforça a rede de saúde, porque vão aumentar os casos de dengue, porque o ciclo de reprodução do mosquito vai ficar mais longo por causa de chuvas desproporcionais e do calor prolongado.”

Já lidar com as perdas e reduzir os danos é promover as respostas emergenciais às tragédias.

“Perdas e danos é o que se faz normalmente: desbarrancou, você vai procurar sobreviventes, vai construir casas”, diz Astrini. O problema, na visão do especialista, é que as ações tomadas por autoridades federais, estaduais e municípais tendem a se concentrar apenas nesse terceiro estágio de resposta.

“O pessoal só age quando já está no nível da desgraça”, diz Astrini.

“O dinheiro investido na primeira camada vale muito mais, porque ele evita a adaptação e evita o desastre.”

Ações que estão sendo tomadas tanto pelo governo federal quanto pelo governo estadual e pelos municípios no caso das chuvas no Rio Grande do Sul — alertas da Defesa Civil, evacuação de pessoas de áreas de emergência, restabelecimento de serviços etc — se encaixam no terceiro tipo.

Após a região ser atingida por um ciclone em setembro do ano passado, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional repassou R$ 82 milhões para o governo do Estado e outros R$ 243 milhões aos municípios gaúchos para lidar com a crise. Segundo reportagem da CNN Brasil, a maior parte do dinheiro foi usada em ações emergenciais, como compra de mantimentos e desobstrução de estradas.

“A gente pode ter a Defesa Civil 30 vezes maior no Rio Grande do Sul ou em qualquer outro Estado. Vai continuar morrendo gente, porque a Defesa Civil vai conseguir salvar a vida de alguém próximo, mas não de todos. Quem salva mais vidas é o planejamento, e no caso dos municípios, o planejamento urbano”, afirma o líder do Observatório do Clima.

Embora o aquecimento global seja um problema em escala mundial, ações de mitigação não são responsabilidade apenas de entidades internacionais e governos nacionais. Elas podem — e precisam — ser alvo também dos governos locais, diz Astrini.

“A mitigação é uma agenda de responsabilidade, não de ganho político. Vou pegar um exemplo aqui no Cerrado, que bateu o recorde de desmatamento nesse último período: mais de 60% de aumento de agosto do ano passado para cá. E quem dá as autorizações de desmatamento são os governos estaduais”, diz ele.

“E há vários outros exemplos, como legislações de licenciamento ambiental mais frouxas nos Estados, a responsabilidade com o saneamento básico, com a transição energética.”

O governo do Rio Grande do Sul não respondeu inicialmente ao pedido de informações sobre ações de mitigação e adaptação da BBC News Brasil. O governador Eduardo Leite (PSDB) tem dado atualizações diárias sobre as medidas emergenciais tomadas no Estado, que incluem alertas e remoção das pessoas das áreas de risco.

Após a publicação desta reportagem, a Secretaria do Meio Ambiente do Estado enviou nota em que "reforça a necessidade de adaptação para garantir a sobrevivência na Terra" e afirma que as ações de mitigação, adaptação e resiliência são parte do programa ProClima2050, lançado em 2023.

O programa, diz a pasta, criou o Gabinete de Crise Climática, "que tem como principal função conectar as secretarias de Estado, instituições e pesquisadores no monitoramento e implementação de ações práticas de resposta à crise do clima".

Segundo a secretaria, entre as medidas em andamento estão "a contratação de serviço de radar meteorológico pela Defesa Civil; melhorias na Sala de Situação, responsável pelo monitoramento das chuvas e dos níveis dos rios; e a implementação do roadmap climático dos municípios, que mapeará as ações relacionadas ao clima em esfera municipal".

Chuvas foram as piores já registradas no Estado (Reuters)

‘Deputados e senadores também são responsáveis’

Astrini diz ainda que é preciso lembrar da responsabilidade do Congresso em relação à situação climática que leva à tragédias como a sofrida pelo RS neste momento.

"Deputados trabalham dia e noite para destruir a legislação ambiental do Brasil com afinco. Neste momento estão querendo acabar com a Lei de Licenciamento Ambiental, querem acabar com a reserva legal na Amazônia, querem acabar com as reservas indígenas”, diz Astrini.

Ele se refere a um um projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental, permitindo que Estados e Municípios determinem os projetos que precisam ou não fazer uma análise de impacto, entre outras medidas.

Os defensores do PL argumentam que ele “diminuirá a burocracia” e por isso facilitaria o desenvolvimento econômico.

Mas Astrini diz que o projeto não só não resolve o problema da burocracia como pode comprometer metas de desenvolvimento sustentável.

“A gente nunca teve um Congresso tão agressivo nesse esforço para desmontar a legislação ambiental no Brasil”, afirma.

Deputados e senadores contrários a pautas importantes para ambientalistas argumentam que a legislação ambiental atrapalha o desenvolvimento econômico e, em alguns casos, negam dados científicos sobre o aquecimento global ou sobre desmatamento no Brasil.

“Tem dois momentos em que o Congresso ajuda o Brasil na área ambiental: no recesso do meio do ano e no recesso do final”, diz Astrini.

Para Astrini, o governo federal vem falhando na disputa com os deputados e senadores pelas pautas ambientais, embora tenha um bom projeto para a área.

Ele cita, por exemplo, o fato de a bancada governista ter sido liberada para votar em qualquer sentido (em vez de receber a orientação para votar contra) o marco temporal para as terras indígenas.

“A gente nunca teve um Ministério do Meio Ambiente com tanto apoio no governo. É a primeira vez que um presidente fala em desmatamento zero e tolerância zero para desmatadores. Você tem um ministro da Economia que faz conversas sobre o meio ambiente, um Ministério dos Povos Indígenas... Mas mesmo assim as coisas não estão andando como deveriam”, afirma.

Além na tragédia no Sul, há outras notícias negativas na área. O Norte registra número recorde de queimadas de janeiro a maio deste enquanto a greve de servidores dos dois principais órgãos de fiscalização ambiental do país —Ibama e ICMBio— já dura mais de 100 dias.

Para o especialista, não se trata apenas de uma questão de orçamento mais robusto para ministérios da área —que também é importante — mas da capacidade de integrar essa visão em todos os setores.

“Quem causa o problema de emissões do Brasil? São os atores no setor do Ministério da Agricultura. E no Ministério das Minas e Energia. São esses ministérios que têm que ter programas e investimentos para diminuir as emissões de seus setores”, afirma Astrini. “O Ministério do Ambiente pode multar uma área que já foi desmatada, mas para as ações de mitigação você precisa da ação de todos os agentes.”

A BBC procurou o governo federal para falar sobre o assunto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

O governo, que apesar de não ter maioria no Congresso conseguiu aprovar agendas suas como o novo arcabouço fiscal, não tem “comprado a briga” nas pautas ambientais, opina Astrini.

No caso do marco temporal para as terras indígenas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva até tentou barrar a aprovação da lei que limita a demarcação, mas seu veto foi derrubado pelo Congresso.

A tese do marco temporal é de que apenas áreas ocupadas por indígenas em outubro de 1988, momento em que a Constituição Federal foi promulgada, poderiam ser demarcadas.

Movimentos indígenas questionam a tese porque havia terras que, naquele momento, não eram ocupadas porque seus habitantes originários haviam sido expulsos por invasores. Já os ruralistas alegam que não estabelecer um marco temporal criava insegurança jurídica.

Além de um direito dos povos originários, a demarcação de terras indígenas é considerada por ambientalistas e pesquisadores uma das principais formas de preservação da mata nativa brasileira — hoje as reservas impedem o desmatamento de diversas áreas cujo entorno foi devastado.

Astrini também critica o fato de pautas ambientais terem entrado no cabo de guerra entre o Supremo e o Legislativo, virando parte de uma disputa de poder mais do que uma discussão sobre políticas públicas.

O Senado e Câmara têm entrado em rota de colisão com o STF em diversos temas, em uma disputa sobre os limites de cada poder.

A questão do marco temporal, inclusive, só teve a sua votação acelerada como resposta da bancada ruralista a uma decisão do STF de 2023.

Na época, a Corte rejeitou a tese do marco, que era baseada em uma situação jurídica ambígua. Logo em seguida o Congresso aprovou uma nova legislação determinando a existência de um marco temporal.

“Em algumas áreas, como essa do marco temporal, o Congresso tem usado a questão para atacar os indígenas e o Supremo.”

Além das decisões recentes tomadas pela maioria conservadora do Congresso e de projetos em tramitação, Astrini critica a postura pública de deputados e senadores em relação a temas ambientais.

“São os homens privilegiados, com espaço, que falam com seus eleitores e formam opinião pública. Eles não cansam de repetir que essa coisa de meio ambiente, de regra ambiental, é uma besteira”, diz Astrini. “Mas aí as consequências chegam e a responsabilidade é de quem?”

Para o secretário-executico do OC, esses parlamentares "incentivam quem quer desrespeitar a leis ambientais e prejudicam quem quer fazer certo”. “Então eles têm enorme responsabilidade por situações como essa (no Rio Grande do Sul) e têm que ser cobrados por isso.”

Letícia Mori, Jornalista, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 07.05.24

quarta-feira, 8 de maio de 2024

“Pomposo” e “arrogante”, disse a atriz pornô que Trump subornou em troca de silêncio, depõe no julgamento criminal contra o ex-presidente

Stormy Daniels descreveu detalhadamente o encontro sexual com o republicano, ocorrido em 2006, embora o pagamento pelo seu silêncio tenha ocorrido uma década depois, no final da campanha eleitoral que levou o conservador à presidência.

Donald Trump cumprimenta jornalistas com o punho erguido no corredor que dá acesso à sala, esta terça-feira em Nova Iorque. (David Dee Delgado (Reuters)

Stormy Daniels, cuja história de um encontro sexual com Donald Trump em 2006 está na origem do primeiro julgamento criminal contra um ex-presidente dos EUA , investigou esta terça-feira, perante um tribunal de Manhattan, detalhes obscenos sobre uma alegada relação extraconjugal que o republicano sempre negou. . O depoimento da atriz pornográfica, que nas vésperas das eleições de 2016 recebeu 130 mil dólares (121 mil euros) de Michael Cohen, advogado pessoal de Trump, em troca do seu silêncio, é o ponto alto da terceira semana de julgamento, depois de um dia, Segunda-feira, marcada pela apresentação de uma dezena de cheques relativos ao pagamento e pela nova multa por desacato aplicada ao arguido .

Sob juramento, Daniels descreveu o relacionamento detalhadamente: como o sexo com Trump a deixou confusa, como se o quarto estivesse girando, enquanto ela se perguntava como havia acabado seminua em um hotel em Lake Tahoe, Nevada, com quem estava então uma estrela de reality show. Trump olhou para frente quando a testemunha entrou na sala, depois sussurrou para seus advogados e desviou a cabeça do depoimento enquanto ela testemunhava. Sem que a defesa tivesse oportunidade de interrogá-la, a sessão foi suspensa para o intervalo para almoço após o depoimento apressado, por vezes tenso, da mulher.

Daniels também contou como Trump sugeriu que ela participasse de seu reality show, O Aprendiz —seu trampolim para dar o salto para a política— , e a impressão que o então magnata lhe causou: um ser “pomposo” e “arrogante”. O encontro teria ocorrido em 2006, mas só 10 anos depois, na reta final da campanha eleitoral que o levou à Casa Branca, é que, diante da ameaça da mulher de contar a história, a máquina da censura - orquestrada desde o início - menos de um ano antes por Trump, Cohen e o editor do tablóide David Pecker para silenciar qualquer informação potencialmente prejudicial contra os interesses eleitorais do Republicano - foi novamente posta em acção. Isto, além de pagar a Stormy Daniels pelo seu silêncio, também silenciou duas outras mulheres.

Daniels afirmou que não foi motivado por dinheiro e por isso não negociou o acordo de pagamento. Finalmente, recebeu 130 mil dólares, cujo registo irregular nas contas da Organização Trump é o verdadeiro cerne do caso. As mensagens de texto entre seu representante na época e o editor Pecker demonstram o contrário, pois ambos entraram em uma negociação semelhante a um leilão para aumentar o valor. Quando o editor do National Enquirer , amigo de Trump, não quis licitar mais, Cohen acabou se encarregando da negociação e do pagamento. A falsificação de registros comerciais para encobrir o reembolso de dinheiro de Trump a Cohen – ele devolveu um total de US$ 420 mil: o valor pago a Daniels, mais impostos e um extra generoso – também é fundamental para o caso, já que foi registrado como “despesas legais ”. Os procuradores consideram que ele violou completamente as leis de financiamento eleitoral, uma vez que o objetivo não era outro senão evitar um escândalo prejudicial aos interesses políticos do republicano .

Depois de ter sido avisado pelo juiz de que será enviado para a prisão se continuar a criticar juízes e testemunhas, Trump, que aproveita as suas entradas e saídas do tribunal criminal de Manhattan para fazer proclamações, dirigiu-se esta terça-feira aos jornalistas a partir do corralito metálico vedado. grades - quase uma metáfora para grades - habilitadas como corredor de entrada da sala, para não responder o que lhe perguntavam e, em vez disso, descrever o julgamento do caso Stormy Daniels , o primeiro dos quatro processos criminais que enfrenta, como “injusto, muito injusto”, como vem fazendo desde que foi acusado. Por menos de três minutos – em outros dias ele prolonga seus discursos por muito mais tempo – ele não respondeu às perguntas dos jornalistas sobre por que ele havia excluído uma mensagem de sua plataforma Truth Social esta manhã.

De manhã cedo, Trump publicou uma mensagem na sua rede social num tom marcadamente irritado, dizendo que tinha acabado de saber da chegada de uma testemunha – Stormy Daniels? – e que os seus advogados “não tiveram tempo” para se prepararem. Em 30 minutos, ele excluiu a postagem, provavelmente porque arriscou que os promotores dissessem que ele violou novamente a ordem de silêncio, que o proíbe de atacar testemunhas e outras pessoas ligadas ao julgamento. O candidato republicano à reeleição foi multado duas vezes, num total de US$ 10 mil, por violar a ordem de silêncio imposta pelo juiz Juan Merchan para impedi-lo de criticar as pessoas envolvidas no processo. Apenas o próprio juiz e o promotor de Manhattan, Alvin Bragg, que investigou o caso, estão expostos às suas injúrias.

Depois de um dia, segunda-feira, concentrado na análise das dezenas de cheques para reembolso do dinheiro adiantado por Cohen a Daniels, Trump, fiel ao seu costume, lançou bolas ao ar em vez de responder às perguntas dos informadores no animado passeio que forma cada momento em que você entra e sai da sala. “O país está em chamas. Há protestos em todo o país. Eu nunca vi nada assim. “Muitas cerimónias de formatura estão a ser canceladas, como sabem, a Columbia está a cancelar muitas delas, e temos um presidente que simplesmente se recusa a falar porque não pode falar”, trovejou o republicano, que já se manifestou a favor da repressão dos protestos. . dos campi em solidariedade com Gaza .

Trump também rejeitou a hipotética falsificação de lançamentos contábeis para encobrir o pagamento irregular à atriz. “Algumas das declarações feitas sobre isso são notícias falsas. Ouvimos dizer que os pagamentos de despesas a advogados são despesas legais. Você paga pagamentos de despesas de advogado. Não colocamos como despesas de construção. A compra de gesso, as despesas elétricas... As despesas legais que pagamos foram registradas como despesas legais. Você não pode dizer mais nada. Acho que você não precisa escrever nada. Mas incorremos em despesas legais”, explicou ele com sua eloquência muito limitada.

Em relação à ordem de silêncio imposta pelo juiz, o réu aproveitou um comentário da rede ultraconservadora Fox: “Então a Fox News… disse que a ordem de silêncio é inconstitucional, o que é claro que é. A ordem de silêncio é inconstitucional. Então, com tudo isso, eles não têm sentido. Todos os juristas que vejo – talvez haja alguém por aí, algum maluco [que pensa o contrário] – mas praticamente todos que vejo disseram que não há absolutamente nenhum caso, é um caso que não deveria ter sido arquivado.”

Trump voltou a acusar o seu rival democrata em Novembro próximo, o presidente Joe Biden, de instigar uma acção judicial contra ele . “Porque sou o número um da turma. Tudo isso vem da Casa Branca e do corrupto Joe Biden; É um ataque ao seu adversário político que não ocorreu neste país. Acontece em países do terceiro mundo, mas não neste país. “É uma pena”, concluiu.

Maria Antonia Sánchez Vallejo,  Jornalista, de Nova York (NY), em 07.05.24 para o EL PAÍS.