segunda-feira, 22 de abril de 2024

Brasil não terá estabilidade sem direita responsável com ambição presidencial

Não me parece óbvio que Tarcísio, Caiado ou Zema sequer tenham interesse em moderar o bolsonarismo

Lula (PT) recebe a faixa presidencial de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) na posse do primeiro mandato do petista - Lula Marques - 1º.jan.03/Folhapress

Poucas coisas fazem mais falta ao Brasil do que uma direita responsável que, como o PT e o falecido PSDB, se especialize em ganhar eleições presidenciais.

Desde os anos 1990, os partidos brasileiros se especializaram em coisas diferentes. O PT e o PSDB, cada um com seus aliados mais tradicionais (PC do B, PFL, etc.) disputavam a Presidência. Outros partidos, como o PMDB ou o PP, se especializaram em vender apoio no Congresso a quem elegesse o presidente.

Entre 1994 e 2014, PT e PSDB discordaram sobre quase tudo, mas mantiveram ao menos um interesse comum: a Presidência da República, como instituição, tinha que continuar forte.

Com a crise do PSDB, a liderança da direita passou para os bolsonaristas. Mas o bolsonarismo não se especializou em vencer eleições presidenciais. Especializou-se em golpe de Estado.

Enquanto o golpe não vinha, Jair evitava o impeachment entregando para o Congresso absolutamente tudo que o centrão queria. E quando um Rodrigo Maia da vida aprovava alguma reforma por iniciativa própria, isso até lhe ajudava: dava a impressão de que o Guedes trabalhava.

Desde a crise do PSDB, portanto, o PT não tem um rival com quem compartilhe o interesse em preservar a instituição da Presidência da República. E isso é ruim, porque a esquerda não tem força para fazer isso sozinha. E o Executivo ainda é o único Poder que tem algum incentivo eleitoral para, por exemplo, manter o equilíbrio das contas públicas.

Sim, às vezes o STF pode ajudar a preservar a Presidência, até pela promiscuidade do centrão com o golpismo. Mas isso não é um arranjo estável, e tem potencial de descarrilhamento.

Não vejo cenário de estabilização institucional sem que a direita brasileira volte a ser liderada por um partido ou movimento não golpista com ambições presidenciais.

E isso não está acontecendo.

Para começar, a direita precisa decidir que sistema de governo defende. As propostas de "semiparlamentarismo" deram uma sumida, mas muita gente no centrão parece confortável com a tendência de progressivo enfraquecimento da Presidência da República dos últimos anos.

Afinal, a direita sempre controlou o Congresso, graças à gambiarra de começar nossa democracia com a classe política herdada da ditadura. Já que não dá para ganhar a Presidência, pensam, vamos levar o poder para o lugar onde a gente sempre ganha.

Do outro lado, os principais presidenciáveis de direita até agora são postes do golpe. Até entendo que candidatos conservadores busquem os votos bolsonaristas, ou o apoio das igrejas bolsonaristas. Mas nenhum parece disposto a construir um movimento dentro do qual os bolsonaristas sejam uma minoria disciplinável.

Não me parece óbvio que Tarcísio, Caiado ou Zema sequer tenham interesse em moderar o bolsonarismo. Quando têm, topam terceirizar a tarefa para Alexandre de Moraes.

Em algum momento dos anos 1990, o social-democrata Fernando Henrique Cardoso olhou para a direita brasileira, suspirou de desgosto e disse "OK, dá aqui essa porcaria, vocês não sabem fazer". Quem teria disposição para assumir essa tarefa civilizatória hoje em dia? Por que, com as emendas dando grana e as igrejas dando voto, a direita de hoje se deixaria civilizar?

Celso Rocha de Barros, o autor deste artigo, é servidor federal, doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de "PT, uma História". Publicado originalmente na edição impressa da Folha de S. Paulo, em 20.04.24.

Voçorocas: os gigantescos buracos que engolem bairros inteiros pelo mundo

 Esse tipo de cânion nasce de uma das formas mais agressivas de degradação do solo, causada pela água da chuva e de outras fontes.

E avança em uma velocidade preocupante, destruindo milhares de casas na América Latina e na África.

Essa já foi uma rua movimentada de Buriticupu, uma cidade do interior do Maranhão.



Agora se tornou um abismo de 80 metros de profundidade: a altura de um prédio de 20 andares.

É o resultado de um fenômeno conhecido como voçoroca, palavra que significa "terra rasgada" em tupi-guarani.

Tenente José Ribamar Silveira quase morreu quando caiu dentro de uma voçoroca

Em maio de 2023, o ex-policial militar de 79 anos se perdeu quando voltava para casa de carro, depois de uma festa.

Tenente Silveira, como é mais conhecido na região, percebeu o engano, freou seu veículo e engatou marcha à ré. Eram 2h da manhã e a escuridão escondia a voçoroca. Após alguns segundos, Silveira caía em um grande vazio.

"Quando eu vi o carro deslizando, mesmo caindo com rapidez, lembrei do meu filho mais novo", ele conta à BBC News Brasil.

O bebê Gael completava, no dia anterior, quatro meses de vida. "Pedi a Deus que me protegesse, para criar meu filho pequeno.”

Tenente Silveira desmaiou e acordou no fundo da voçoroca três horas depois. Após um resgate com muitos obstáculos e meses de convalescência, ele já consegue andar sem muletas.

O episódio ilustra os riscos existentes para os 70 mil habitantes de Buriticupu.

Com o crescimento das voçorocas, há a preocupação de que a cidade possa rachar em duas partes. Buriticupu está a 350 metros acima do nível do mar e tem quase 30 dessas grandes erosões. As duas maiores estão separadas por menos de 1 km.

“Sem intervenção das autoridades, elas vão se encontrar e formar um rio no futuro”, afirma Edilea Dutra Pereira, geóloga e professora da Universidade Federal do Maranhão.

Voçorocas são parte da história geológica da Terra há milhões de anos.

Mas Dutra Pereira e outros cientistas que a BBC News Brasil ouviu afirmam que elas estão se expandindo mais rápido e temem que novas voçorocas surjam com a mudança climática — que influencia a intensidade das chuvas.

Imagens de satélite de Buriticupu

Os riscos aumentam se a cidade não conta com infraestrutura específica (para evitar a chegada da água da chuva até a região da erosão) e nem saneamento básico (a água do esgoto muitas vezes corre para as voçorocas).

O Brasil é o país mais afetado na América Latina, mas Argentina, Colômbia, Equador e México também enfrentam problemas com esse fenômeno geológico. E em países da África como Angola, República Democrática do Congo e Nigéria, o problema já tem status de crise nacional.

Mapa-múndi mostrando o risco de voçorocas causadas por erosão pelo mundo. Esse tipo de erosão também ameaça áreas agrícolas férteis em partes da China, Europa e dos Estados Unidos.

‘É perigoso demais viver aqui’

A prefeitura não tem dados oficiais sobre mortes relacionadas a voçorocas, mas há registro de ao menos 50 casas engolidas. Centenas de pessoas abandonaram suas residências, criando “quarteirões fantasmas” em Buriticupu.

A casa de Marisa Cardoso Freire foi classificada de “alto risco” pela Defesa Civil local. A construção ainda permanece à beira de uma voçoroca larga e profunda.

Marisa, assim como outras 100 famílias, teve que deixar o imóvel para trás e se mudar para outra parte da cidade.

A prefeitura se comprometeu a pagar o aluguel das casas provisórias, mas ela diz que o repasse do dinheiro atrasa constantemente, o que leva a ameaças de despejo.

A BBC News Brasil procurou diversas vezes o prefeito de Buriticupu, João Carlos Teixeira da Silva (PP), mas não foram enviados esclarecimentos sobre o caso.


Foto de Marisa Cardoso Freire em sua antiga casa em Buriticupu.  Marisa diz que é difícil aceitar que ela perdeu a casa que construiu. Na antiga casa, dois cães da família caíram no fosso e morreram.

Um episódio com Enzo, seu filho de 10 anos diagnosticado com autismo, foi determinante para a saída definitiva.

"Às vezes eu falava alto com ele, gritava para entrar em casa e ele se irritava. Um dia ele saiu correndo para beira da voçoroca e disse: 'Se tu gritar de novo comigo, eu me jogo no buraco'”, conta Marisa.

“Foi aí que eu falei para o meu marido que não dava mais para a gente ficar aqui. É muito perigoso."

“Quando a gente foi embora, saí com o coração doendo porque a gente lutou tanto para conquistar.”

Como chegou a esse ponto?

O desmatamento é um fator que contribui decisivamente para o surgimento de voçorocas.

Buriticupu, área de floresta amazônica, hoje em dia tem um aspecto árido e pedregoso. Mas já foi rica em árvores como cedro, jatobá e ipê de diversas cores.

Nos anos 1990, a indústria madeireira se instalou na região. Mais de 50 serrarias trabalhavam 24 horas por dia.

"A questão da vegetação é primordial, porque durante um evento chuvoso ela diminui o impacto da gota de chuva no solo." Edilea Dutra Pereira, geóloga e professora da Universidade Federal do Maranhão

Quando a água da chuva não é absorvida no solo por plantas e árvores…


ela empurra partículas do solo e varre a superfície.


Canais se formam e desgastam o solo.

Isso leva ao desenvolvimento de ravinas e voçorocas.

A mudança climática, por meio de chuvas extremas, pode agravar o processo em áreas vulneráveis ao aparecimento de erosões.

Buriticupu tem registrado mais tempestades do que no passado, diz Juarez Mota Pinheiro, climatologista da Universidade Federal do Maranhão.

Nos primeiros meses de 2023, o Estado do Maranhão enfrentou uma das piores enchentes de sua história. Mais de 60 cidades entraram em estado de emergência, milhares de pessoas ficaram desabrigadas e houve dezenas de mortes.

Voçoroca em Buriticupu

Uma das principais voçorocas das quase 30 existentes em Buriticupu

“A intensidade da chuva tem previsão de subir de 10% a 15% (globalmente, até o fim do século). Pode não parecer muito, mas se você tem cada vez mais episódios de chuva extrema, a dinâmica da erosão muda”, afirma o pesquisador Matthias Vanmaercke, da Universidade Católica de Leuven, na Bélgica.

Ele e seu colega Jean Poesen analisaram dados de mais de 700 voçorocas ao redor do mundo e concluíram que, se a intensidade da chuva aumentar nesse nível, o risco de erosões como as de Buriticupu podem dobrar (e até triplicar, em caso de um cenário ainda pior).

“É difícil encontrar um cientista decente que não vá concordar que a mudança climática piora o problema”, diz Vanmaercke

Medo da chuva

O fenômeno atinge milhões pelo mundo, principalmente na África.

Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, tem centenas de voçorocas — uma delas de 2 km de extensão. São mais de 165 km desse tipo de erosão em uma cidade de 12 milhões de habitantes.

Rodovia do distrito de Mont Ngafula, em Kinshasa, virou uma voçoroca em 2021

Em dezembro de 2022, em uma noite de forte chuva, 60 pessoas morreram após suas casas serem engolidas por uma gigantesca erosão.

Alexandre Kadada acordou no meio daquela madrugada.

“Aconteceu em um espaço de 30 a 40 minutos. A voçoroca começou a abrir e todas as casas desapareceram. O bairro ficou irreconhecível”, ele relata.

“Minhas coisas, minha casa, tudo foi embora. Só consegui salvar meus filhos e minha mulher.”

Uma vizinha dele e os quatro filhos dela morreram na tragédia. O marido dela ficou paralítico.

Alexandre Kadada se tornou presidente do grupo que representa vítimas da tragédia

Os filhos de Kadada agora temem qualquer sinal de chuva forte.

“Foi a chuva que perturbou tudo. A chuva trouxe morte e desespero”, ele diz.

“Nós realmente consideramos isso um novo risco geológico do Antropoceno”, afirma Vanmaercke. Antropoceno é um termo usado por alguns cientistas para se referir aos tempos atuais, quando as atividades humanas exercem influência profunda sobre o planeta.

A população de Kinshasa deverá alcançar 20 milhões de habitantes em 2030 e 35 milhões em 2050, de acordo com o Banco Mundial. A cidade se tornará a maior megalópole da África.

O crescimento urbano descontrolado envolve quase sempre perda da vegetação — uma barreira natural para a erosão — e ocupação ilegal de áreas de risco.


Imagens de satélite mostram Kinshasa em 2004 e 2023

Em Buriticupu, as pessoas também já sentem medo da chuva.

"Tem vezes que cai algo do tamanho de uma casa. Faz um barulhão. Estremece tudo. Aí os olhos de todo mundo enchem de água. A tristeza é uma coisa louca", diz João Batista, de 52 anos, dono de uma oficina que está bem perto de uma voçoroca.

“Eu perdi 40% dos meus clientes. Muita gente tem medo de parar”, conta. Mas ele se recusa a deixar o local.

Onde hoje há uma espécie de minicânion, no passado ficava uma rua onde crianças brincavam, relembra João Batista. Mas tudo foi engolido pela erosão.

Outras casas perto da oficina de João Batista foram abandonadas

Ele decidiu plantar taboca (bambu) com o objetivo de frear o avanço da erosão. Mas dada a escala do problema, a cidade vai precisar de soluções mais amplas.

O que pode ser feito?

Planejamento, obras adequadas e investimentos conseguem evitar desastres, afirma Vanmaercke.

Para interromper o avanço da erosão, as cidades necessitam de bons sistemas de drenagem e escoamento, além de saneamento básico, explica o pesquisador Jean Poesen. Tudo com o intuito de evitar que a água atinja a área das voçorocas.

Imagens de satélite mostram as voçorocas de Buriticupu em 2014 e 2022

Mas são obras de grandes custos que desafiam o orçamento de cidades menores.

O Ministério Público do Maranhão está cobrando na Justiça a execução dos termos de um Acordo Civil Público em que o município se compromete a fazer obras de prevenção e ajudar as pessoas que tiveram suas casas atingidas.

O prefeito João Carlos Teixeira da Silva não quis comentar o processo, mas disse que pediu ajuda financeira ao governo federal para realizar as obras.

Em nota, por meio de dois ministérios diferentes, o governo federal diz que analisa a liberação de R$ 300 milhões para Buriticupu. E afirma que já foram repassados cerca de R$ 630 mil para obras de contenção, restauração de rodovias e demolição de casas.

O Ministério do Meio Ambiente declarou que possui um programa para implementar “sistemas resilientes em cidades”, mas que não há projetos atualmente em Buriticupu.

“Buriticupu não corre risco de desaparecer. Sim, são obras complexas, obras de grandes recursos“, diz o prefeito. “O que nós precisamos é de responsabilidade. Em nível municipal, estadual e federal.”

Mas João Batista sabe que se a voçoroca avançar mais em direção a sua oficina mecânica, ele vai precisar sair do local.

“Isso aqui é a natureza mostrando que se nós não tomarmos conta deste mundo, ele vai se acabar. Se continuar chovendo desse jeito, aí a gente entrega na mão do Senhor. A gente não pode fazer mais nada.”

Shin Suzuki, Jornalista, da BBC News Brasil. Publicado originalmente em 22.04.24

Créditos

Reportagem: Shin Suzuki

Colaboraram na reportagem: Stephanie Hegarty e Emery Makumeno

Editores: Tamara Gil, Alison Gee e Carol Olona

Design: Caroline Souza

Modelo em 3D: Daniel Arce López

Programação: Matthew Taylor, Marta Martí e Simon Frampton

Gerentes de projeto: Holly Frampton e Carol Olona

Produtor: Paul Ivan Harris

Fotografia: Vitor Serrano, Paul Ivan Harris, Dareck Tuba e Alex Huguet/AFP via Getty Images

Outras fontes consultadas: Antonio Guerra, Universidade Federal do Rio de Janeiro; Fernando Bezerra, Universidade Estadual do Maranhão; Gilberto Salviano Almeida Filho e Claudio Luiz Ridente Gomes, Instituto de Pesquisas Tecnológicas; Marco Antônio Gomes e Helena Filizola, Embrapa; Ryan Anderson, University of South Africa Mapa global de erosão: Vanmaercke, M., Chen, Y., De Geeter, S., Poesen, J., Campforts, B., Borrelli, P., and Panagos, P.: Data-driven prediction of gully densities and erosion risk at the global scale, EGU General Assembly 2022, Vienna, Austria, 23–27 May 2022, EGU22-2921 Borrelli, P., Alewell, C., Yang, J. E., Bezak, N., Chen, Y., Fenta, A. A., Fendrich, A.N., Gupta, S., Matthews, F., Modugno, S., Haregeweyn, N., Robinson, D.A., Tan, F. Vanmaercke M., Verstraeten, G., Vieira, D.C.S., Panagos, P. (2023). Towards a better understanding of pathways of multiple co-occurring erosion processes on global cropland. International Soil and Water Conservation Research, 11(4), 713-725.

Como juízes podem divergir tanto?

Só uma possibilidade: não se trata mais de questão jurídica, mas de política

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso (à esq.), e o corregedor do CNJ, Luis Felipe Salomão — Foto: Cristiano Mariz/O Globo e G. Dettmar/Agência CNJ

Divergências entre juízes de Cortes superiores são normais, isso no campo das interpretações jurídicas. Por isso não foi normal a divergência verificada na semana passada no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre os ministros Luis Felipe Salomão, do STJ, e Luís Roberto Barroso, do STF. Passou longe do âmbito jurídico.

Tratava-se do caso de Gabriela Hardt, juíza que, em fevereiro de 2019, condenou Lula a 12 anos e 11 meses de reclusão, por corrupção, no caso do sítio de Atibaia. Foi o momento mais importante da Lava-Jato. O CNJ julgava o comportamento profissional de Hardt, mas não pelo processo de Lula. E sim pela acusação de envolvimento dela na criação de uma fundação para administrar recursos provenientes de pagamento de multas por empresas apanhadas na Lava-Jato.

A fundação não saiu, mas Salomão entendeu, em resumo de leigo, que a intenção de criá-la já era forte indício de faltas disciplinares e violações de deveres funcionais. Mais que isso. À juíza podem ser atribuídos crimes de peculato-desvio, prevaricação, corrupção privilegiada e passiva.

Com base nessa argumentação, o desembargador determinou o afastamento da juíza, isso na segunda-feira desta semana. Um dia depois, em reunião do plenário, o presidente do CNJ e do STF, Barroso, definiu com palavras duras a decisão de Salomão: ilegítima, arbitrária, desnecessária, sumária, prematura, injusta e perversa.

Como podem divergir tanto?

Só uma possibilidade: não se trata mais de questão jurídica, mas de política. De um lado, a tentativa de arrasar tudo o que se refere à Lava-Jato. De outro, o entendimento de que, problemas à parte, a operação de Curitiba deixa um legado importante, a demonstração da existência de grossa corrupção no país. E no exterior.

A maioria do CNJ acompanhou Barroso, e a punição a Hardt foi suspensa. Foi o melhor. A acusação contra a juíza parte de uma suposição perversa: que o pessoal da Lava-Jato queria meter a mão no dinheiro das multas e que tudo foi feito para encher os bolsos de procuradores e juízes da operação.

Já está praticamente consumado o cancelamento das condenações da Lava-Jato. De novo, não se inocentam os acusados, mas anulam-se processos. O pessoal, entretanto, quer sangue. Não basta desmontar a operação, é preciso cassar e condenar promotores e juízes do caso. Daí a bronca de Barroso. Parece dizer: calma aí, pessoal.

Foi correto. Mas o ponto é outro: não é normal esse movimento radical para eliminar qualquer possibilidade de combate à corrupção. A quem interessa? Também não é normal o modo tolerante, para ser educado, com que se tratam ações de autoridades.

A Controladoria Geral da União (CGU) negocia com empreiteiras um bom desconto nas multas que haviam concordado em pagar, por meio de acordos de leniência. O chefe da CGU, ministro Vinícius Marques de Carvalho, é dono de um escritório de advocacia que representa a Novonor, ex-Odebrecht, em negociações com o Cade. Ele diz que não tem nada de mais, porque se afastou totalmente do escritório para assumir o cargo público. Está longe de parecer normal.

O ministro das Comunicações, Juscelino Filho, também parece ter uma noção particular da normalidade na gestão pública. Ele abriu seu gabinete para o sogro, Fernando Fialho, que lá despachava sem ter cargo algum. O caso foi parar na Comissão de Ética da Presidência da República, que considerou normal essa ajudazinha administrativa do sogro.

Outra: tendo seu gabinete informado que ele estava em missão oficial, o que lhe dava direito a voar no jato da FAB e ainda receber diária, o ministro passou três dias acompanhando leilões de cavalos. Revelado o fato, veio a explicação do gabinete: falha no sistema, que registrou indevidamente o pagamento de diárias para dias de folga. O jato da FAB? Estava de carona. Afinal, é o que fazem muitos ministros.

E fica tudo por isso mesmo. Não pode ser normal.

N. da R.: Uma versão anterior deste texto informava incorretamente que a Novonor (antiga Odebrecht) é representada em negociações na CGU pelo escritório do ministro-chefe da CGU, Vinícius Marques de Carvalho. Ele já havia divulgado nota informando que seu escritório, de que está licenciado, representa a Novonor apenas no Cade, e não na CGU. O texto foi corrigido.

Carlos Alberto Sardenberg, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em  20.04.24.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

‘É absurdo que grandes fortunas escapem de tributos’, diz economista que propõe taxar bilionários

Francês Gabriel Zucman quer tributar em 2% riqueza acima de US$ 1 bilhão. Ideia foi levada ao G20 e mira 3 mil pessoas no mundo, com potencial de arrecadação de US$ 250 bilhões por ano

Gabriel Zucma, economista francês que propõe taxar em 2% riqueza acima de US$ 1 bilhão — (Foto: Nelson ALMEIDA / AFP)

Tributar bilionários e grandes multinacionais é tarefa moral, econômica e política, na avaliação do diretor do Observatório Fiscal Europeu, Gabriel Zucman. Apontado como “guru tributário" do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o economista francês de 37 anos se desvencilha da alcunha por considerar-se jovem demais.

Em entrevista ao GLOBO, ele defende não apenas a criação de um imposto mínimo de 2% sobre a fortuna de pessoas com patrimônio superior a US$ 1 bilhão, mas também o aumento da alíquota aplicada às multinacionais, de 15% para 20%. Juntas, segundo ele, as duas medidas arrecadariam pelo menos US$ 500 bilhões ao ano. Suas propostas foram apresentadas aos pares de Haddad no G20.

Em fevereiro, a convite do Ministério da Fazenda, você apresentou aos G20 a proposta de tributar as grandes riquezas. Quem são elas?

O ponto de partida são os super-ricos, pessoas que têm US$ 1 bilhão, sobre as quais incidem alíquotas de impostos significativamente mais baixas do que as que pagam outras categorias sociais. Uma série de estudos confirma este fato em vários países.

Por que isso ocorre?

Os ultrarricos têm tudo planejado. Quando você é extremamente rico, é muito fácil estruturar seu patrimônio de forma que gere pouco ou até nenhum lucro tributável. A noção de rendimento não está muito bem definida em se tratando dos muito ricos. É precisamente assim que conseguem evitar o imposto sobre o rendimento.

Em 2021, a mídia americana revelou que, por vários anos, bilionários como Jeff Bezos (dono da Amazon) e Elon Musk (dono de Tesla e X) pagaram zero ou quase zero de Imposto de Renda. Pesquisas acadêmicas mostram que isso vai muito além de casos isolados. É uma realidade global.

Como é sua proposta?

Consiste em criar um imposto mínimo sobre os ultrarricos igual a 2% de sua fortuna por ano. Se um bilionário paga hoje muito Imposto de Renda, e isso existe, não teria de pagar nada mais. Mas, se alguém como Bezos e Musk paga zero, teria de pagar um tributo igual a 2% de sua fortuna. Se seu patrimônio for de US$ 100 bilhões, recolheria US$ 2 bilhões em imposto.

Vivian Oswald, jornalista, originalmente, de Brasília - DF para O Globo,em 19.04.24

Como ser imortal

Os filósofos da escola estóica ou cínica já nos deixaram a fórmula de uma eternidade andando pela casa sem passar pela faca. Eles nunca pensaram no futuro

Estátua do Imperador Marco Aurélio na Gliptoteca Ny Carlsberg em Copenhague. (Getty)

A imortalidade está agora ao alcance de qualquer pessoa. Não se trata dos avanços da ciência médica que permitirão que os órgãos e tecidos do corpo se renovem como numa oficina automóvel. Em breve você poderá guardar na geladeira vários corações, fígados, estômagos e pâncreas sobressalentes, embrulhados em papel albal, para quando precisar substituí-los pelos velhos e desgastados. 

Na realidade, será possível ter uma réplica completa do seu corpo de 35 anos, incluindo o cérebro com todos os segredos da memória armazenados num armazém graças à inteligência artificial. Morrer ou continuar neste mundo será um jogo ao capricho do usuário. Se você ficar entediado, você vai embora, só isso. 

Só que os ditadores poderão permanecer no poder indefinidamente e os idiotas continuarão brincando, os ladrões roubando, os assassinos matando, os crentes rezando, os poetas sonhando, os atores dançando, as crianças chorando, os políticos mentindo. 

Esta imortalidade clínica será extremamente rude e, como o mundo continuará a não fazer sentido, os sábios irão por vontade própria para o além a bordo do barco de Caronte, numa viagem noturna em que não há farol. Pouco importa, porque os filósofos da escola estóica ou cínica já nos deixaram a fórmula para sermos imortais andando pela casa sem ter que passar por cirurgia. Seu experimento foi muito simples.

 Eles nunca pensaram no futuro. Eles sabiam que o tempo era apenas um horizonte que poderiam adaptar aos seus sonhos. Eles dividiram o tempo em dias, horas, minutos e segundos. Na hora de viver plenamente, só deram importância àqueles últimos segundos que fluem pelos sentidos e através deles desceram àquela profundidade onde não existe mais um antes ou um depois, mas sim o nó de todos os prazeres que em seu o tempo final permitiu-lhes ser puros, felizes e incontaminados. 

De resto, acreditavam, tal como Marco Aurélio, que a vida era apenas uma opinião. Enquanto você estiver vivo, você será imortal.

Manuel Vicente, o autor deste artigo, éescritor e jornalista. Vencedor, entre outros, dos prêmios de romance Alfaguara e Nadal. Como jornalista começou no jornal 'Madrid' e nas revistas 'Hermano Lobo' e 'Triunfo'. Ingressou no EL PAÍS como colunista parlamentar. Desde então publicou artigos, crônicas de viagens, reportagens e daguerreótipos de diversas personalidades. Publicado no EL PAÍS, de Madrid  - Espanha, em 25.02.24.

Liturgia democrática

É um avanço ver o diálogo civilizado entre o ministro da Justiça e a bancada da bala no Congresso

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, foi nesta semana a uma audiência da Comissão de Segurança Pública da Câmara e de lá saiu com um triunfo imprescindível para um País cindido e polarizado: a retomada da liturgia da democracia, aquela segundo a qual se assenta o princípio elementar de convivência respeitosa entre contrários, a busca de consensos e a relação harmoniosa entre representantes de dois Poderes. A comissão é um espaço de maioria oposicionista e concentrada na chamada bancada da bala, e parlamentares bolsonaristas não hesitaram em provocar o ministro e demarcar suas diferenças, sobretudo na política de armas. Mas nem a oposição nem o convidado ficaram presos nas armadilhas das discordâncias, como se inimigos fossem.

Lewandowski tratou os parlamentares não como irresponsáveis armamentistas, mas como lideranças experientes no assunto. Sugeriu canal de diálogo em torno de pontos pleiteados pela bancada, como o direito adquirido de clubes de tiro fechados por decreto. Deixou alternativas em aberto para acomodar demandas e criticou a inflexibilidade em relação à oposição – recomendação a ser ouvida por muitos dos seus colegas ministros, do PT e do próprio Palácio do Planalto, que costumam enxergar oposicionistas ou como potenciais cooptados ou, repetindo os métodos do ex-presidente Jair Bolsonaro, como inimigos a serem aniquilados. Em contrapartida, foi elogiado. O próprio presidente do colegiado, Alberto Fraga (PL-DF), prometeu no início da sessão que o ministro não seria destratado. E não foi.

A demonstração de civilidade na comissão é mais notável quando se observa o atual panorama das relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário e sua espiral descendente de revanches e conflitos (ver o editorial Freios e contrapesos em frangalhos, 18/4/2024). E mais ainda quando se recorda das diatribes produzidas pelo antecessor de Lewandowski. Quem não se lembra das ruidosas polêmicas protagonizadas por Flávio Dino? À época, substituía a liturgia do cargo pela vocação exibicionista, opinava histrionicamente sobre tudo e sobre todos, fustigava adversários, fazia prejulgamentos sobre casos e se convertia numa espécie de influencer militante, mais preocupado em atingir corações e memes nas redes sociais do que zelar pelas funções do cargo.

A mudança não ocorre sem riscos. Há um equilíbrio tênue a buscar, sobretudo num terreno onde não faltam convicções enraizadas. O próprio ministro deu um exemplo disso, o veto ao artigo da nova Lei de Execuções Penais que proibia saídas temporárias de presos por razões familiares. Por outro lado, a bancada da bala claramente pressionou Lewandowski contra uma diretora da pasta que ajudou a elaborar o decreto que reviu a política de controle de armas. A resposta do ministro deu sinais de que pode rifá-la.

Já se trata, porém, de um avanço extraordinário poder assistir a uma audiência do ministro da Justiça sem parecer que estamos diante de um teatro de guerra ou de animadores de auditório. A liturgia da democracia dá mais trabalho, mas é o melhor caminho para aperfeiçoar ideias e reconstruir o País.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 19.04.24

Poderes estão fora de órbita no Brasil

Judiciário legisla, Congresso sequestra Orçamento, Executivo ataca equilíbrio fiscal; urge corrigir essa anomalia

Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF) - Pedro Ladeira/Folhapress

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), criticou o ministro responsável pela articulação política do governo, Alexandre Padilha (PT), e teve um primo demitido de uma prebenda federal. O Planalto dobrou a aposta no ministro, e o centrão trama maneiras de retaliar o Executivo.

Lira também se incomodou com mais uma provável reviravolta em entendimentos do Supremo Tribunal Federal —que mudou de ideia e se inclina a ampliar sua alçada sobre autoridades com foro especial— e ameaçou criar uma CPI para investigar supostos abusos em decisões de ministros da corte.

Reagindo a uma investida do STF em temas legislativos, o Senado aprovou emenda à Constituição que, ao estilo das nações mais regressistas do planeta, criminaliza o porte e a posse de drogas.

Um grupo de juízes da corte manifestou sua preocupação com a saliência do Congresso num jantar em "petit comité" com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Um dos comensais, Alexandre de Moraes, entabulou depois conversas diretas com Lira e o chefe do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Como costuma ocorrer em Brasília, o que inicialmente parece configurar uma "crise entre os Poderes" caminha depressa para a prática secular do acordão entre poderosos. O objetivo, no fim das contas, não é mais que acomodar interesses mesquinhos.

Passa como se fosse virtude a doença crônica que acomete a tríade dos Poderes no Brasil. Não é normal que juízes da corte suprema dediquem o seu tempo a tricotagens com autoridades que nomeiam, controlam e aprovam magistrados constitucionais.

Mas esses convescotes são frequentes, sintoma epidérmico da falta de respeito às fronteiras institucionais em Brasília.

Nessa geleia geral em que se confundem os papéis, não constitui surpresa que juízes se intrometam corriqueiramente em assuntos do Legislativo e do Executivo, como ocorre agora no julgamento sobre descriminalização dos usuários de maconha.

Também o Congresso conspurca fronteiras. Absorveu ao longo dos últimos anos a prerrogativa, contraditória com o presidencialismo, de distribuir, sob critérios paroquiais e eleitoreiros, uma montanha de recursos públicos sob a forma de emendas parlamentares que distorcem o jogo político.

Já o Executivo abriu mão de ser o fiador do equilíbrio orçamentário de longo prazo e joga lenha na fornalha da gastança. O equilíbrio orçamentário caminha ao lado da estabilidade política.

Os Poderes estão fora de órbita no Brasil. Como corrigir essa anomalia deveria ser uma prioridade da agenda nacional.

Editorial da Folha de S. Paulo, edição impressa, em 18.04.24 (editoriais@grupofolha.com.br)

Reação a afastamentos de juízes mostra insatisfação de Barroso com revanche a Lava Jato

Presidente do STF se indispõe com revisionismos de ações de combate à corrupção

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso - Rosinei Coutinho - 29.fev.24/SCO/STF

O julgamento que revogou o afastamento da juíza Gabriela Hardt expôs publicamente uma insatisfação que o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Luís Roberto Barroso, vem cultivando sobre as tentativas de punição a agentes públicos que atuaram na Lava Jato.

O episódio também brecou, ao menos temporariamente, avanços de um grupo de integrantes de tribunais superiores contra magistrados e procuradores que trabalharam em ações da operação.

Barroso foi um dos principais defensores da Lava Jato no Supremo no auge da operação.

Nos últimos anos, com a pauta do STF mais voltada para a defesa do tribunal contra os ataques de aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o ministro reduziu as manifestações sobre o tema e se aproximou de Gilmar Mendes, decano da corte e principal crítico da Lava Jato.

No entanto, Barroso passou a mostrar, nos últimos meses, incômodo a interlocutores a respeito de decisões que fizeram revisionismo das ações de combate à corrupção da última década.

Entre o fim do ano passado e o início desse ano, ele ouviu críticas de uma ala de ministros do STF a respeito das decisões de Dias Toffoli que suspenderam o pagamento de multas das leniências firmadas por empresas como a J&F e Odebrecht.

A preocupação deles era, sobretudo, com a imagem de um Supremo condescendente com atos de corrupção e de desvio de dinheiro público, tanto no Brasil como no exterior.

A questão acabou resolvida internamente no STF com a criação, pelo ministro André Mendonça, de uma mesa de conciliação entre órgãos públicos e empresas que firmaram esses acordos.

Mas, no caso do afastamento de Gabriela Hardt pelo corregedor do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), Luís Felipe Salomão, Barroso teve que resolver a questão em uma sessão pública.

Salomão, que também é ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça), tem uma posição mais alinhada às de Gilmar Mendes e Dias Toffoli contra a Lava Jato.

Desde o ano passado, o corregedor decidiu iniciar uma inspeção nos gabinetes da Justiça Federal do Paraná e do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) que atuaram em processos da Lava Jato, em busca de suspeitas de irregularidades cometidas pela operação.

Na segunda-feira (15), ele afastou, em decisão monocrática (individual), Hardt, que foi a substituta de Sergio Moro na 13ª Vara Federal de Curitiba, Danilo Pereira Júnior, atual titular da vara da Lava Jato, e dois integrantes do TRF-4 que atuaram em ações da operação.

Ao decidir dessa forma, Salomão forçou Barroso a pautar o julgamento desses magistrados na sessão do CNJ desta terça. O presidente do Supremo também preside o conselho.

A iniciativa do corregedor irritou Barroso, que votou contra o afastamento e se manifestou de forma ríspida, afirmando que nem os ministros do STF têm atuado dessa forma hoje em dia.

"Nada justifica que essa medida fosse tomada monocraticamente", disse Barroso, em seu voto.

"Considero que a medida foi ilegítima, arbitrária e desnecessária, [com] o afastamento dos juízes por decisão monocrática, sem deliberação da maioria [do CNJ], e sem nenhuma urgência que não pudesse aguardar 24 horas para ser submetida a esse plenário."

"Sem querer cultivar a ironia, entendo que tal decisão contrariou frontalmente com decisão do STF", afirmou Barroso.

Apesar de ter votado para reverter os afastamentos, o presidente do CNJ pediu vista (mais tempo para análise) sobre a possibilidade de abertura de abertura de processo disciplinar contra os quatro magistrados.

Mas antecipou que, a princípio, não viu irregularidade na conduta de nenhum dos juízes.

"Essa moça não tinha absolutamente nenhuma mácula sobre a carreira dela para ser sumariamente afastada", disse, ao mencionar Gabriela Hardt.

O plenário do CNJ, composto por 15 conselheiros, acabou revogando o afastamento de Hardt e Danilo, mas manteve os dois membros do TRF-4 fora das atividades.

O resultado no conselho foi apertado. Dos 15 conselheiros, votaram para derrubar o afastamento de Hardt e de Danilo 8 deles.

A divisão de influências foi clara: votaram para manter todos os afastamentos o próprio Salomão, os dois indicados da OAB, os dois indicados da Câmara dos Deputados e do Senado e as duas indicadas do STJ (tribunal ao qual Salomão é integrante).

Advogados e a maioria dos parlamentares sempre foram críticos à Lava Jato

Do outro lado, votaram para revogar o afastamento os dois indicados do STF, os dois indicados do TST e o indicado que representa o Ministério Público Federal, além de Barroso.

Dois conselheiros votaram de forma dividida: um ministro do TST, Caputo Bastos, e um membro de Ministério Público Estadual, João Paulo Schoucair, se manifestaram a favor da revogação dos afastamentos de Hardt e de Danilo, mas não em relação aos outros dois magistrados.

Um dos motivos para Salomão ter afastado Hardt foi por ela ter validado, em 2019, um acordo entre a Petrobras e o Ministério Público Federal que criaria uma fundação privada, sob coordenação da Procuradoria e com participação da sociedade civil, com valores oriundos dos acordos de delação e leniência. O STF acabou suspendendo a criação dessa fundação.

Em relação aos demais juízes, Salomão afastou, sobretudo, devido à decisão do TRF-4 de determinar a suspeição de Eduardo Appio, juiz crítico à Lava Jato que passou meses à frente da 13ª Vara de Curitiba e revisou atos dos seus antecessores no posto. O juiz Danilo Pereira Júnior estava atuando como substituto no TRF-4.

O ministro afirmou que os magistrados desobedeceram ordem de Dias Toffoli ao decidir pela suspeição.

José Marques, o autor desta matéria, é jornalista. Publicada originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em  18.04.24

O acusado Donald Trump

Justiça quebra a aura de intocabilidade do ex-presidente ao colocá-lo na magistratura como mais um cidadão

Donald Trump comparece esta quinta-feira perante o juiz do tribunal criminal de Nova Iorque. (JABIN BOTSFORD / PISCINA (EFE)

Desde segunda-feira passada, durante algumas horas por dia, Donald Trump nada mais é do que um réu que tem de se sentar num tribunal de Manhattan para ouvir o desenvolvimento do caso contra ele por contabilidade falsa e financiamento ilegal de campanha. Esta imagem durará entre mais seis e oito semanas, em quatro sessões por semana. Sentado naquela sala, o antigo presidente e candidato in pectore do Partido Republicano às eleições de Novembro é simplesmente um cidadão à mercê do sistema de justiça, sujeito à rigidez do processo judicial como qualquer outro. Assim, pela primeira vez, um momento transcendental de sobriedade institucional obrigatória foi alcançado dentro do turbilhão histérico que envolve tudo o que o magnata faz e diz.

O caso decorre do pagamento a uma atriz pornográfica, Stormy Daniels , para silenciar uma suposta relação sexual com Trump poucos dias antes das eleições de 2016. O escândalo não se materializou judicialmente até que o procurador Alvin Bragg, um democrata, lançou uma acusação histórica há um ano e acabou com a timidez do sistema judicial quando se tratou de perseguir Trump. Há consenso entre os especialistas sobre a força do caso no aspecto da falsificação contábil, especialidade do Ministério Público de Manhattan. As principais testemunhas são contra Trump. Porém, há dúvidas que exigem encarar o futuro do caso com ceticismo. Certamente, este será o único julgamento criminal dos quatro pendentes que será realizado antes das eleições.

Até quinta-feira, as partes só conseguiram selecionar 7 dos 12 membros do júri . Destes, dois foram posteriormente rejeitados. A lentidão responde à dificuldade em encontrar jurados que ambos os partidos considerem imparciais num distrito onde os democratas venceram com 86% em 2020. Apesar dos seus insultos ao sistema de justiça, do seu desprezo público pelo juiz e pelo procurador, e da sua clara intenção de intimidar testemunhas em declarações públicas, Trump está a receber um tratamento requintado que resultou em várias vitórias processuais parciais para a sua defesa, para frustração dos seus críticos. Assim deve ser. O julgamento será um teste crucial para diluir o discurso vitimizador do ex-candidato a presidente nesta campanha.

Trump gaba-se de que os seus problemas judiciais lhe dão votos, mas não é o caso, e a prova é que ele tentou por todos os meios não sentar-se no banco. As pesquisas revelam que uma condenação seria letal para suas aspirações. A lentidão da burocracia judicial americana fez parecer que Trump nunca seria responsabilizado. Se essa burocracia conseguir abstrair-se completamente do carácter e da campanha para levar a cabo o julgamento, talvez alguns eleitores consigam finalmente vê-lo simplesmente pelo que é: um cidadão acusado de quase 90 crimes.

Editorial do EL PAÍS, em 19.04.24

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Brasil hoje é governado com base na pirraça, na vingança e no rancor nos Três Poderes

Comandos da Câmara e do Senado retaliam STF, que quer se vingar de Bolsonaro e Lava Jato, enquanto Lula opera política externa em represália aos Estados Unidos e seus aliados

Lula, Lira e Pacheco, assim como alguns ministros do STF têm agido com o fígado  (Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO)

Por onde se olha, no Executivo, no Legislativo ou no Judiciário, o que se vê é um país governado ou movimentado por pirraças, rancores e vinganças. É o que dá o tom dos temas que dominam os debates, declarações e decisões que, em uma democracia saudável e pacificada, tenderiam a ser baseados nos ideais de interesse público.

Exemplo claro dessa gestão baseada nos revides se dá nas atuações de Rodrigo Pacheco e, sobretudo, Arthur Lira, no comando das duas Casas no Congresso. Lira, por exemplo, irritado com a perda de espaço no governo, a briga pessoal com Alexandre Padilha, e com o fato de que teima em não aceitar o esvaziamento de sua força diante do inevitável fim do mandato no comando da Mesa, inventou de resgatar CPIs inócuas sobre assuntos debatidos cotidianamente, sem fatos determinados, que, como as demais recentemente realizadas no Congresso, não vão levar o país a nenhuma solução prática. Tudo, claro, para fustigar o governo e mostrar que ele ainda pode atrapalhar bastante qualquer pauta que Lula queira levar adiante. Em uma das CPIs, também move uma peça no sentido de se vingar do Supremo Tribunal Federal (STF) após decisões que levaram a buscas em gabinetes de parlamentares e à prisão do deputado Chiquinho Brazão, acusado de matar Marielle Franco.

O estilo vingativo de Lira, embora emblemático, se assemelha ao sentimento de grande parte dos parlamentares atualmente, na mesma cruzada contra o STF. Tanto na Câmara quanto no Senado, onde o presidente Rodrigo Pacheco, desde que foi avisado de que não seria indicado pelo governo a uma vaga na Corte e que seu futuro estava em uma disputa eleitoral de 2026, passou a também confrontar o STF com decisões que agradam ao público e à bancada bolsonarista. Foi o que se deu na votação da PEC das Drogas, criada e votada às pressas apenas para peitar o debate em andamento na Corte.

O próprio STF também parece agir com rancor e vingança em primeiro plano, que empurra penas excessivamente altas aos executores utilizados para os ataques de 8 de janeiro, que muda suas decisões para puxar de volta inquéritos contra políticos para tê-los nas mãos ou enfia tudo o que envolve ilícitos e supostos ilícitos praticados por Bolsonaro e sua trupe em um inquérito só, comandado justamente pelo principal alvo do bolsonarismo: o ministro Alexandre de Moraes. Também no STF e em outros espaços do Judiciário controlados por aliados de Moraes e Gilmar, há um claro sentimento de vingança e rancor com a Lava Jato que, entre erros (foram muitos) e acertos (igualmente), ousou desafiar o topo da classe política e flertou com investigações contra integrantes do próprio Judiciário.

STF é alvo do Legislativo e parte da Corte mira Lava Jato e bolsonarismo Foto: Antonio Augusto/STF

Também Lula chegou inegavelmente ao poder movido por um sentimento de vingança contra Sergio Moro e a Lava Jato, que impuseram a ele mais de 580 dias preso na Superintendência da Polícia Federal no Paraná. A ponto de ter dito publicamente que, enquanto preso, afirmava que só estaria tudo bem ao “f… o Moro”.

Mas fosse apenas o embate contra um hoje senador com pouca expressão e articulação no Congresso, seria menos pior. O aspecto de vingança, pirraça e rancor no governo a afetar a imagem e a vida do brasileiro se dá no cenário externo. Movido pela ideia de que os norte-americanos tiveram papel preponderante na Lava Jato (seu entorno acha que tudo não passou de uma conspiração de americanos com a turma de Curitiba para quebrar players brasileiros no exterior), Lula resolveu romper a histórica relação de aliança entre o Brasil e os Estados Unidos para se alinhar a um outro bloco de países que inclui China, Rússia, Irã e mais uma penca de Nações que se unem na denominação de “Sul Global”. Na mesma linha da pirraça e rancor estão os embates com Israel, um aliado dos americanos e que foi usado como bandeira pelo bolsonarismo evangélico. Fosse pragmático e não agisse com o fígado, Lula não teria tirado o país da posição que sempre esteve nos conflitos no Oriente Médio: a de defensor da solução pacífica dos conflitos, com repúdio frontal ao terrorismo. O mesmo vale para o conflito entre os invasores russos e os ucranianos.

Onde mais uma gestão baseada no rancor, com uma guerra geral entre os representantes dos Três Poderes, vai nos levar? Dificilmente será na superação do cenário fiscal difícil que se avizinha, do alastramento do crime organizado se transformando em máfia, ou da epidemia de dengue. Problemas suficientes para render prioridade e atenção de nossos governantes se não estivessem hoje movidos por vingança.

Ricardo Corrêa, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 18.04.24

‘Guerra Civil’, a guerra civil que triunfa e aterroriza os Estados Unidos ao mesmo tempo que envia uma mensagem ao resto do mundo

Alex Garland dirige um filme “anti-guerra” contra a polarização: “Seria uma loucura pensar que dois estados não concordariam sequer em derrubar um presidente fascista”

Alex Garland, diretor de cinema, retratado em 16 de abril de 2024. (San Burgos)

Alex Garland se preocupa com o rumo que o mundo está tomando. Especialmente com as competições internacionais em todas as reportagens e as eleições nos EUA tão próximas. Felizmente, este cineasta britânico de 53 anos está menos preocupado com as discussões acirradas que o seu último filme abre: “É inevitável. “Hoje está tudo polarizado”, aponta com alguma frustração, mas resignado. Neste constante confronto social é justamente onde germinou a ideia de Guerra Civil , preocupada com questões que levantam bolhas, como indica o seu nome guerra civil.

“Há uma histeria coletiva. É por isso que eu queria filmar esse filme. Isto é demonstrado pela resposta distorcida ao discurso de Jonathan Glazer sobre Gaza na cerimónia dos Óscares. Nem pararam para ouvir o que ele dizia, o que era bastante claro ”, explica Garland ao EL PAÍS de Madrid, tão sério e meditativo nas suas palavras como fez o diretor da Zona de Interesse na gala. É por isso que, num clima tão dividido, seu quarto filme atraiu discussão desde o primeiro trailer. Porque Guerra Civil , que estreia esta sexta-feira nos cinemas espanhóis, não procura dar respostas e deixa parte do seu discurso em aberto. “Talvez estejamos acostumados a receber mensagens mastigadas, mas os pontos estão aí para juntá-las”, repetiu ele em plena promoção. Numa sequência do filme, um miliciano aponta uma espingarda para os protagonistas: “Que tipo de americano você é?” Sua pergunta já está carregada de mensagem e política. Nos EUA ou na Espanha.

Na sua sinopse mais simples, o filme é a viagem de um grupo de jornalistas pelos Estados Unidos destruídos em busca de grandes furos sobre este conflito. No centro emocional não está a política, mas o choque geracional entre dois fotógrafos de guerra: o veterano Lee ( Kirsten Dunst ), imerso em dezenas de horrores, e a jovem Jessie ( Cailee Spaeny ), pronta para conquistar o mundo com sua Nikon. e fotos em preto e branco.

É a própria Dunst quem explica no filme o símile jornalístico que Garland procura: o objetivo da fotografia de guerra não é fornecer respostas, mas deixar o público chegar às suas próprias conclusões. O personagem, assim como o diretor, tem dúvidas se conseguirá atingir esse objetivo. A Guerra Civil opta por não destacar as suas filiações políticas, não menciona partidos ou espectro ideológico. As colunas de análise não deixaram de enfatizar este ponto, no The New York Times, mas também em jornais não tão dados à crítica cinematográfica como o Financial Times ou o Foreign Affairs , que intitulavam: “Ele triunfa porque a sua política não faz sentido”. Eles o criticam por não tomar partido: por não brincar de polarização.

Nick Offerman, como presidente dos Estados Unidos em imagem de ‘Guerra Civil’.

Garland, de fato, deixou claro ao escrever o roteiro em 2020, nascido da raiva, que o importante não era a política americana, mas um extremismo que pudesse ser transferido para qualquer lugar: “A polarização é global, tanto nas democracias ocidentais como fora dela. Não é tudo por causa de Donald Trump; O ex-presidente não explica outros fenómenos como a estupidez do Brexit. Por que isso acontece? Em parte por causa das redes sociais e também por causa do fracasso do centrismo. Sou centro...esquerda, embora centrista. Durante anos, esquerda e direita trocaram poder, mas a vida das pessoas não muda. Aqueles que são pobres continuam pobres e, obviamente, ficam irritados e frustrados. Não é surpreendente”, explica Garland, falando em tom lento e prolongado, mas deixando clara a sua posição política, a mesma pela qual tem sido criticado. “Falo como ser humano e sinto que rompi o cordão umbilical com o filme, porque dirigir é um trabalho, então qualquer discussão é reconfortante. O que me incomoda é a posição política inabalável de alguns dos grandes meios de comunicação, não só pela forma como o contam, mas pelo que escolhem contar”, aponta, numa crítica à divisão também dentro dos meios de comunicação social.

Garland simplesmente localizou a acção nos Estados Unidos porque é o sistema que o resto do mundo conhece, por vezes “mais do que o nosso”. Mas, claro, a discussão sobre o filme ficou ainda mais acalorada depois do sucesso nos cinemas de lá. Civil War é o lançamento de maior bilheteria da história do estúdio independente A24 , seu primeiro número um. O jornalista Matthew Belloni, no podcast da indústria The Town, questionou se os americanos estariam dispostos a ver no grande ecrã os “problemas que aparecem nas notícias todos os dias”, levando as catástrofes da CNN um passo em frente e a Fox News num ano eleitoral. Mas parece que eles queriam. Pelo menos ficaram curiosos ou mórbidos em ver tudo destruído, porque 17% do público aproveitou nas salas IMAX (imagem máxima), para apreciar o carácter espectacular da distopia e do filme mais caro da distribuidora, com um orçamento de cerca de 50 milhões. dólares.

A partir da esquerda, Stephen McKinley Henderson, Kirsten Dunst, Cailee Spaeny e Wagner Moura, em ‘Guerra Civil’.

Um presidente de três mandatos

No seu zelo frio e jornalístico, o filme não explica como chegou às circunstâncias em que a acção se desenrola, embora as pistas estejam aí: o presidente (Nick Offerman) prolongou a sua estadia na Casa Branca com um terceiro mandato, contornar a Constituição e dissolver o FBI; “o massacre da antifa” aconteceu, mesmo que o espectador não saiba quem são as vítimas e os algozes; e um grupo maoísta rebelou-se em Portland. A Califórnia e o Texas, antagonistas na vida política real, estão unidos com um objectivo: derrubar um presidente fascista. Garland acredita que há um certo otimismo nesse movimento: “Para alguns foi uma loucura. Para mim seria uma loucura pensar que dois estados nem sequer concordariam em derrubar um presidente fascista. No final da Segunda Guerra Mundial também vejo um certo otimismo. Acabaram por dizer que o fascismo não era uma boa ideia e que os direitos humanos tinham de ser protegidos. O pessimismo é que os humanos não são bons em evitar problemas terríveis. Mesmo que aprendamos mais tarde, sempre caímos.” Ele também vislumbra esse otimismo ao colocar o ideal jornalístico como protagonista, apesar de ter consciência de que a profissão hoje não é muito popular: “Todo mundo te odeia”, disseram-lhe.

Seu amor pela profissão vem de seu pai, que durante décadas desenhou caricaturas políticas para o The Telegraph. Quando jovem, Garland tentou fazer carreira como enviado especial. Aos 26 anos escreveu The Beach sobre sua juventude desesperada, que posteriormente adaptou para o cinema com o diretor Danny Boyle , e aos poucos foi se deixando levar pelas ondas. Mas ao longo de seus quatro filmes, Garland nunca deixou de lado os temas comuns dos jornais. Em Ex_Machina (como na série Devs ) ele mergulhou no poder das empresas de tecnologia, na inteligência artificial e até no consentimento, que depois desenvolveu até limites surreais em Men ; Enquanto isso, com Aniquilação ele criou uma metáfora bucólica em torno das mudanças climáticas. Deixando sempre parte das conclusões à mercê do espectador.

Diretor Alex Garland, durante as filmagens de ‘Guerra Civil’.

Guerra Civil certamente tem a embalagem mais fácil de entender, pois, embora ele a tenha escrito antes, as imagens evocam inevitavelmente o que aconteceu desde 2020: do assalto ao Capitólio à guerra na Ucrânia. Hoje é inevitável falar de Israel, onde vê um claro extremismo, e do tratamento dispensado aos jornalistas lá: “Suspeito que a razão pela qual Israel não permite a entrada de jornalistas em Gaza é para controlar a guerra de relações públicas. Na Guerra do Vietname, os jornalistas tinham acesso aberto e isso criou um problema no governo dos EUA. O jornalismo levou a opinião pública contra a guerra. Desde então, os governos têm tentado restringir os jornalistas de todas as atividades na guerra. No Iraque, eles foram com os militares, que os protegeram, mas também os controlaram”.

Esse olhar anti-guerra é o que move Garland. O diretor recomendou Massacre aos atores . Venha e veja , drama russo sobre a invasão alemã na Segunda Guerra Mundial. Ele acredita que “não existem tantos filmes anti-guerra” como este. Apocalypse Now o inspirou, sim, mas ele reconhece que tem uma parte de romantismo com músicas e imagens que confunde o pacifismo. Para ele isso é normal: “Não creio que a intenção seja alguma vez fazer um trabalho a favor da guerra, mas isso não os impede de o fazer. Eles não a aplaudem, mas também não se opõem a ela, simplesmente mergulham na sua emoção. Espero não ter feito isso aqui”, ressalta, evocando o momento em que o jornalista interpretado por Wagner Moura vê uma batalha entre dois exércitos e fica animado para ir conferir por iniciativa própria . “Quando você mergulha nos soldados você pode ver em um dia medo, diversão, piadas, tédio… é o estado humano. Tal como a amnésia de esquecer os horrores de um conflito após o outro. Da Ucrânia a Gaza.”

Cailee Spaeny e Kirsten Dunst (à direita) em imagem de ‘Guerra Civil’.

Esse processo de reflexão e um filme tão bom o deixaram exausto. Ele reconhece isso ao tocar os olhos: “Eu só quero parar; não para sempre, mas pare.” Talvez agora ele deseje ser o homem mencionado no filme que vive pacificamente em sua fazenda esperando que tudo acabe. Por enquanto, ele acompanhará Ray Mendoza, ex-membro do Navy Seal e conselheiro militar em Guerra Civil , dirigindo seu primeiro filme, Warfare , "para lhe explicar a parte mais técnica". Agora que a direção não o estimula, ele se reencontra com Danny Boyle e Cillian Murphy na nova trilogia da saga do apocalipse zumbi 28 anos depois , após décadas adiando esse projeto. A experiência de ter conhecido uma pandemia real como a Covid influenciará você? “Eu não tinha pensado nisso, mas talvez tenha pensado: tenho uma ideia de como algo pode ser terrível, mas libertador. É um filme que tenta conceituar como é um apocalipse quando tanto tempo passa.” Diante de tudo que o preocupa, o apocalipse zumbi quase acalma o diretor.

Eneko Ruiz Jiménez, o autor deste artigo,é jornalista.Publicado originalmente no EL PAÍS,  em 18.04.24

Da necessária paridade no Judiciário

O aumento na atuação feminina não se reflete na esfera pública do poder: ainda são poucas as mulheres que alcançaram o cargo de ministras das Cortes superiores

Advogada Anna Maria da Trindade dos Reis - (crédito: Divulgação)

Quando iniciei minha trajetória na advocacia, só existiam ministros homens e poucas eram as mulheres advogadas atuantes perante as Cortes Superiores, destacando-se Maria Cristina Peduzzi (atual ministra do TST), Rosa Maria Brochado, Heloísa Mendonça e Marisa Polletti

Nessa caminhada, fui acompanhada por Mônica Goes, Fernanda Hernandez, Ana Tereza Basílio e Renata Fontes. Como se vê, contavam-se nos dedos as advogadas em constante atuação. Hoje, com alegria, o número aumentou sensivelmente e não causa surpresa a atuação feminina perante os tribunais.

Infelizmente, esse aumento na atuação feminina não se reflete na esfera pública do poder: ainda são poucas as mulheres que alcançaram o cargo de ministras das Cortes superiores e a sua ocupação forma, em realidade, um desenho piramidal, com muitas magistradas em atuação no primeiro grau, algumas alçadas a desembargadoras e pouquíssimas nos Tribunais Superiores.

Recentemente muito se louvou, e com razão, sobre os 35 anos da instalação do STJ, mas não passou despercebido que dos 103 ministros que já o compuseram ou, ainda, o compõem, apenas nove mulheres foram alçadas ao cargo de ministra, sendo que a primeira, Eliana Calmon, somente foi empossada em 1999.

Com as recentes aposentadorias das ministras Laurita Vaz e Assusete Magalhães, remanescem apenas cinco ministras. As ministras Nancy Andrighi, Maria Isabel Gallotti e Regina Helena são oriundas do TJDF, TRF1 e TRF3, respectivamente. Provenientes da advocacia, apenas as ministras Maria Thereza de Assis Moura, atual presidente, e Daniela Teixeira.

É muito pouco diante do gigantismo da jurisdição e da harmonização de composição do STJ, formado por membros egressos da Justiça Federal, Ministério Público e advocacia.

No STF, não é diferente: somente em 2000 foi empossada a primeira ministra, Ellen Gracie, já aposentada e, até hoje, uma referência de jurista -, seguida apenas pelas ministras Cármen Lúcia (única remanescente) e Rosa Weber, recentemente aposentada e sua vaga foi preenchida por um homem.

No TSE, além da atuação das citadas ministras do STF, apenas quatro mulheres foram nomeadas até o momento como ministras juristas: Luciana Lóssio (2011), Maria Claudia Bucchianeri (2021), Edilene Lôbo, primeira negra da história do TSE, e Vera Lúcia Araújo, segunda negra a ocupar a mesma posição (2023).

Dos 26 ministros que compõem o TST, apenas sete são mulheres. No STM, a ministra Maria Elizabeth, empossada em 2007, segue sendo a única representante feminina.

No TCU não é diferente. A presidência só foi exercida em duas oportunidades por mulheres: Elvia Lordello Castelo Branco (1994) e Ana Arraes (2020). No momento, não há nenhuma representante feminina na Corte.

Até o momento, o Ministério Público Federal foi chefiado por uma mulher apenas uma vez, de 2017 a 2019, pela subprocuradora-geral Raquel Dodge.

Essa constatação também atinge a advocacia no que se refere aos cargos de direção. A despeito de sermos a maioria nas faculdades de direito e de o número de advogadas superar o de advogados em várias seccionais, até o momento, nenhuma mulher exerceu a presidência e poucas a diretoria da OAB Federal — atualmente, composta paritariamente — sendo concedida apenas a uma, a festejada Dra. Cléa Carpi, a honrosa medalha Rui Barbosa.

Sob a presidência de Felipe Santa Cruz foi aprovada a histórica paridade de gênero nas eleições da OAB, obrigando a que as chapas sejam compostas por 50% de mulheres. Ainda assim, em exercício no Conselho Federal, o percentual masculino supera em muito a presença feminina, jamais foi indicada uma advogada para o CNJ, a despeito de ter apresentado lista paritária para o CNPM, hoje composto por 12 homens e 2 mulheres.

O CNJ, apesar de contar apenas com quatro mulheres em sua composição, recentemente editou a importante Resolução CNJ 525/2023, de relatoria da então Conselheira Salise Sanchotene, prevendo que, por ocasião do preenchimento das vagas por merecimento, os tribunais utilizem lista exclusivamente para mulheres, alternadamente, com a tradicional lista mista, justamente para combater a ausência de mulheres na estrutura de poder.

A despeito da necessária ação afirmativa, essencial para refletir a atuação feminina e a pluralidade que resultarão em formação jurisprudencial mais humanista, muitos magistrados, inconformados e não compreendendo o objetivo democrático e social da medida, tentaram, sem êxito, impedir a realização do primeiro concurso pela atual regra.

Esses fatos, antigamente ignorados ou raramente contestados, agora atraem um necessário olhar para a disparidade perpetrada, e têm provocado manifestações e estudos visando à efetivação da paridade de gênero, que culminará em futura paridade racial, em busca da verdadeira democracia que a pluralidade pode ofertar à humanidade. Avanços são impositivos e devem ser celebrados. A reflexão da celebrada escritora e Des. Andrea Pachá de que "a magistratura só faz sentido se for no coletivo, no plural, na afirmação dos direitos humanos e das garantias sociais" se aplica também à advocacia e às demais funções do Direito.

Ana Maria Trindade dos Reis, a autora deste artigo, é advogada desde 1986 e fundadora do Trindade & Reis Advogados Associados, composto igualitariamente por advogados e advogadas, com atuação nas Cortes sediadas em Brasília, presidente do Cesa/DF, membro da Alumni/UnB, IAB, ABMCJ/DF, IADF e do coletivo Elas Pedem Vista. Publicado originalmente no suplemento Direito e Justiça do Correio Braziliense, em 18.04.24

Futuro da juíza Gabriela Hardt é decidido entre ódios e paixões

A divisão do CNJ mostra como a maior operação de combate à corrupção do país conquistou amor e ódio, elogios e críticas, na mesma proporção

 

Gabriela Hardt é tão combatida por defensores do presidente Lula, como seu antecessor, o hoje senador Sérgio Moro (União-PR -  (crédito: kleber sales)

A Operação Lava-Jato dividiu o plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Entre os 15 membros, oito votaram contra o afastamento dos juízes Danilo Pereira Júnior e Gabriela Hardt (atual e ex-titular da Vara da Lava-Jato em Curitiba), nos moldes da posição defendida pelo presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), Luis Roberto Barroso. Sete conselheiros concordaram com a deliberação do corregedor nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O placar apertado manteve Hardt e Pereira em suas funções. Mas os desembargadores federais Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz e Loraci Flores de Lima, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), não tiveram a mesma sorte. Por nove votos a seis, prevaleceu a decisão de Salomão de afastamento cautelar dos magistrados por supostas irregularidades em julgamentos envolvendo a Lava-Jato, com descumprimento de decisões do STF.

A divisão do CNJ mostra como a maior operação de combate à corrupção do país conquistou amor e ódio, elogios e críticas, na mesma proporção. Barroso e Salomão defenderam suas opiniões com veemência. "Considero que foi medida ilegítima, arbitrária e desnecessária o afastamento dos juízes por decisão monocrática sem deliberação da maioria e sem nenhuma urgência que não pudesse aguardar 24h para ser submetida a esse plenário. Entendo que tal decisão contrariou frontalmente decisão do STF", declarou o presidente do CNJ, que pediu vista quanto à abertura de processo administrativo disciplinar para apreciar o caso.

Barroso ressaltou que recebeu várias manifestações de associações de magistrados que defenderam a permanência dos juízes e ressaltou que, em 30 anos na advocacia, nunca ouviu qualquer rumor quanto à honestidade de Gabriela Hardt. "(Essa juíza) que todos dizem ter reputação ilibada, ser dedicadíssima, seríssima, não é uma pessoa que, no meio jurídico, quem é do ramo, eu fui advogado 30 anos, todo mundo sabe quem é quem", afirmou. "Quando o juiz é incorreto, tem má fama, todo mundo sabe. Essa moça não tinha absolutamente nenhuma mácula sobre a carreira dela, para ser sumariamente afastada", acrescentou. 

Salomão, por sua vez, apontou indícios de prática de crimes como corrupção, peculato e desvios de recursos na homologação de uma fundação que ficaria encarregada de gerir recursos bilionários obtidos por meio de acordos de leniência no âmbito da Operação Lava-Jato. A entidade nunca chegou a ser criada, mas teve o aval de Gabriela Hardt.

Em seu voto pelo afastamento dos juízes, Salomão citou a frustração pelos rumos da Operação Lava-Jato. "É bem verdade que a denominada 'Operação Lava-Jato' desbaratou um dos maiores esquemas de corrupção do país, vitimando a Petrobras, também seu maior acionista a União Federal, centenas de acionistas minoritários da empresa, além de terceiros atingidos direta e indiretamente pelas práticas criminosas', afirmou o corregedor nacional de Justiça.

Salomão conclui: "No entanto, constatou-se — com enorme frustração — que, em dado momento, tal como apurado no curso dos trabalhos, a ideia de combate a corrupção foi transformada em uma espécie de 'cash back' para interesses privados, ao que tudo indica com a chancela e participação dos ora reclamados. Portanto, não se trata de pura atuação judicante, mas sim uma atividade que utiliza a jurisdição para outros interesses específicos, não apenas políticos (como restou notório), mas também — e inclusive — obtenção de recursos".

Gabriela Hardt é tão combatida por defensores do presidente Lula, como seu antecessor, o hoje senador Sérgio Moro (União-PR). Na última segunda-feira, quando foi afastada de suas funções de forma cautelar pelo corregedor nacional de Justiça, um vídeo da audiência em que a juíza interrogou o presidente Lula, então réu da Operação Lava-Jato, circulou em vários perfis nas redes sociais, com comentários apontando a suposta arrogância da magistrada que tentava conduzir o depoimento. "Doutor, e assim, senhor ex-presidente, esse é um interrogatório e se o senhor começar nesse tom comigo a gente vai ter problema", afirmou Hardt. 

Na ocasião, Lula era ex-presidente e estava representado na audiência pelo então advogado Cristiano Zanin, hoje ministro do STF, nomeado pelo presidente. A juíza condenou Lula a 12 anos e 11 meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, em processo que posteriormente foi anulado pelo Supremo.

Apesar de ter permanecido no cargo, Gabriela Hardt e Danilo Pereira Júnior estão bem distantes do desfecho do caso. Barroso pediu vista do pedido de abertura de processo administrativo disciplinar, mas, assim que a análise for retomada, é bem possível que a investigação seja aberta, com provável aplicação de penalidade. Contra Sérgio Moro também há um pedido de investigação. Embora ele não seja mais magistrado, na visão de Salomão, poderá pagar com inelegibilidade por eventuais atos praticados na 13ª Vara Federal de Curitiba.

Ana Maria Campos, a autora deste comentário, é jornalista.  Publicado originalmente no suplemento Direito e Justiça do Correio Braziliense, em 18.04.24

quarta-feira, 17 de abril de 2024

A ministra oficiosa

Janja se apresenta como ‘articuladora’ de políticas públicas e diz que Lula lhe dá ‘total autonomia’

A julgar pelo que disse em recente entrevista à BBC, a primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja, decidiu autonomear-se, certamente com a anuência do marido, como “articuladora” do governo de Lula da Silva. “Meu papel é de articuladora, que fala sobre política pública”, informou Janja candidamente, numa reportagem sobre as funções exercidas por primeiras-damas na América Latina. Além de estar convicta de que precisa “ressignificar” o papel de primeira-dama, Janja disse mais: “(Lula) me dá total autonomia para eu fazer o que faço”, sem hierarquia entre ambos.

Pois fazer o que faz parece ser o grande problema da primeira-dama e seu esforço desmedido para exercer influência política e desempenhar papel prático no governo – tarefa para a qual não tem mandato concedido nem pelos eleitores nem pela legislação vigente. Pelo que Janja faz e da maneira como faz, o País corre o risco de ter uma espécie de poder paralelo nas mãos da primeira-dama, lastreado em sua condição singularíssima de cônjuge de Lula, borrando os limites entre o público e o privado.

Antes fosse, portanto, uma demonstração meramente retórica do ativismo político de Janja, ou antes se resumisse a uma tentativa de promover o debate sobre o papel de primeira-dama, historicamente associado a estereótipos. Não. O que Janja admitiu foi a tradução, em palavras, do que tem materializado em atos: imiscuir-se em assuntos do governo, interferir na ação de ministérios, direcionar escolhas de políticas públicas e demonstrar poder, pura e simplesmente.

Seus tentáculos políticos avançam inclusive em poder de veto em áreas como economia, defesa e comunicação. Ademais, Janja rapidamente aprendeu a cosmologia palaciana, segundo a qual a ocupação dos espaços físicos é também uma forma de exercício do poder: a primeira-dama é hoje um anteparo entre o gabinete presidencial e os visitantes, incluindo ministros que precisam despachar com o chefe.

Não se deseja aqui que Janja restrinja suas atividades à “organização de chás de caridade”, como sublinhou na entrevista. Nem se discute sua autonomia para exercer, na intimidade, o papel de primeira-conselheira do presidente ou a disposição de Lula para ouvi-la em assuntos para os quais deseja saber sua opinião. Tampouco a liberdade da primeira-dama para debater, publicamente, temas em que supostamente inspire conhecimento. Mas convém pedir bom senso.

Certamente há um caminho do meio entre o papel decorativo e o excessivo ativismo. Não à toa, recentes tentativas de definir cargos e protagonismos excessivos para primeiras-damas esbarraram em resistência e recuos em diferentes países. Foi o caso do Chile de Irina Karamanos, mulher do presidente Gabriel Boric, e da França de Brigitte Macron, mulher de Emmanuel Macron.

Acreditando ter prerrogativas para tanto, Janja já representou Lula numa visita ao BNDES para debater projetos do Fundo Amazônia e atropelou o rito de conversas da equipe econômica ao fazer um pedido expresso para redução dos juros do cartão de crédito. Como Janja é em tese indemissível, porque primeira-dama não é cargo, seria bom que ao menos não competisse com os ministros formalmente nomeados e remunerados para auxiliar o presidente.

 Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 17.04.24