sábado, 30 de março de 2024

Guerra é ameaça real e Europa não está preparada, diz premiê da Polônia

O primeiro-ministro polonês, Donald Tusk, fez um aviso contundente de que a Europa entrou numa "era pré-guerra" e afirmou que se a Ucrânia for derrotada pela Rússia, ninguém na Europa poderá se sentir seguro.

Tusk (à direita, acompanhado pelo chanceler alemão Olaf Scholz e o presidente francês, Emmanuel Macron) elogiou a mudança de mentalidade entre os aliados europeus, mas disse que os próximos dois anos serão críticos (Crédito: Hannibal Hanschke / EPA-EFE)

"Não quero assustar ninguém, mas a guerra já não é um conceito do passado", disse ele à imprensa europeia. "É real e começou há mais de dois anos."

Sua declaração vem após um recente lançamento de mísseis russos que tinham como alvo a Ucrânia.

A Polônia disse que aeronaves da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) foram enviadas para proteger o seu espaço aéreo.

A Rússia intensificou os ataques à Ucrânia nas últimas semanas. A Força Aérea da Ucrânia disse ter abatido 58 drones e 26 mísseis e o primeiro-ministro Denys Shmyhal disse que a infraestrutura energética foi danificada em seis regiões no oeste, centro e leste do país.

Tusk, que foi presidente do Conselho Europeu, apontou que o presidente russo, Vladimir Putin, culpou a Ucrânia pelo ataque jihadista à casa de shows Crocus, em Moscou, sem qualquer prova e "evidentemente sente necessidade de justificar ataques cada vez mais violentos a alvos civis na Ucrânia".

Ele afirmou que a Rússia atacou Kiev com mísseis hipersônicos à luz do dia pela primeira vez no início desta semana. E fez um apelo direto aos líderes europeus para que façam mais esforço para reforçar as suas defesas.

Independentemente de Joe Biden ou Donald Trump vencerem as eleições presidenciais dos EUA em novembro, ele argumentou que a Europa se tornaria um parceiro mais atraente para os EUA se ela se tornasse mais autossuficiente militarmente.

Não se trata de a Europa alcançar a autonomia militar em relação aos EUA ou de criar "estruturas paralelas à Otan", disse ele.

A Polônia gasta agora 4% da sua produção econômica em defesa e Tusk defendeu que todos os outros países europeus deveriam gastar 2% do PIB nessa área.

Desde que a Rússia lançou a sua guerra em grande escala na Ucrânia, as relações com o Ocidente atingiram o seu ponto mais baixo desde os piores dias da Guerra Fria, embora Putin tenha dito nesta semana que Moscou "não tinha intenções agressivas" em relação aos países da Otan.

A ideia de que o seu país atacaria a Polônia, os Estados Bálticos e a República Tcheca era "total absurdo", disse. No entanto, também alertou que se a Ucrânia utilizasse aviões de guerra F-16 ocidentais de aeródromos de outros países, eles se tornariam "alvos legítimos, onde quer que estivessem localizados".

Tusk e o presidente polonês, Andrzej Duda, tiveram encontro no início deste mês com o presidente dos EUA, Joe Biden, na Casa Branca (Cr´dito: EPA-EFE / Jacub Szymvzuk / Kprp)

Não é o primeiro alerta

Este não é o primeiro aviso de Tusk sobre uma era pré-guerra. Ele transmitiu aos líderes europeus de centro-direita uma mensagem semelhante no início deste mês.

No entanto, ele revelou que o primeiro-ministro de Espanha, Pedro Sánchez, pediu aos colegas líderes da União Europeia que parassem de usar a palavra "guerra" nas suas declarações no encontro, porque as pessoas não queriam se sentir ameaçadas.

Tusk disse ter respondido que na sua parte da Europa a guerra já não era uma ideia abstrata.

Apelando à ajuda militar urgente à Ucrânia, afirmou que os próximos dois anos de guerra decidiriam tudo: "Vivemos o momento mais crítico desde o fim da 2ª Guerra Mundial".

O mais preocupante agora, disse ele aos jornalistas de alguns dos maiores jornais europeus, era que "literalmente qualquer cenário é possível".

Ele se lembrou de uma foto na parede da casa de sua família na Polônia, que mostrava pessoas rindo na praia de Sopot, perto de Gdansk, onde ele nasceu, na costa sul do Báltico.

A imagem era de 31 de agosto de 1939, disse ele, e algumas horas depois e a 5 km de distância, a Segunda Guerra Mundial começou.

"Sei que parece devastador, especialmente para as pessoas da geração mais jovem, mas temos de nos habituar mentalmente à chegada de uma nova era. A era pré-guerra", alertou.

Apesar das suas observações assustadoras, Tusk mostrou-se mais otimista quanto ao que chamou de uma verdadeira revolução de mentalidade em toda a Europa.

Quando foi primeiro-ministro da Polônia pela primeira vez, de 2007 a 2014, disse que poucos outros líderes europeus, além da Polônia e dos Estados Bálticos, perceberam que a Rússia era uma ameaça potencial.

Tursk elogiou vários líderes europeus e destacou a importância da cooperação em segurança entre a Polônia, a França e a Alemanha – uma aliança conhecida como Triângulo de Weimar. E citou a Suécia e a Finlândia, outrora modelos de pacifismo e neutralidade, mas agora membros da Otan.

Paul Kirby, jornalista, originalmente, para BBC News,  em 29 .03.24

sexta-feira, 29 de março de 2024

Quem foi Pôncio Pilatos, poderoso governador romano que teria 'lavado as mãos' diante de Jesus

O Pilatos apropriado pela religião parece um homem equilibrado e preocupado em ser justo. Seu papel na narrativa da morte de Jesus é o daquele que não condena alguém no qual não vê crime algum. "Lava as mãos" e deixa que o povo judeu decida pela sentença de morte.

Jesus sendo julgado por Pilatos, em pintura de 1881 do pintor húngaro Mihály Munkácsy (Dominio Público)

Estudiosos do cristianismo primitivo identificam uma curiosa diferença na maneira como Pôncio Pilatos, o procurador romano que governava a província da Judeia na época da crucificação de Jesus, é retratado, se compararmos as narrativas religiosas contidas nos evangelhos e os textos historiográficos de autores não cristãos.

O Pilatos apropriado pela religião parece um homem equilibrado e preocupado em ser justo. Seu papel na narrativa da morte de Jesus é o daquele que não condena alguém no qual não vê crime algum. "Lava as mãos" e deixa que o povo judeu decida pela sentença de morte.

Já o Pilatos dos autores não religiosos é cruel, sanguinário — alguém que não poupa seus inimigos.

"É curioso como as narrativas dos evangelhos são muito favoráveis a Pilatos, enquanto determinadas fontes da época são muito críticas a ele", observa à BBC News Brasil o historiador, teólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

O que pesquisas indicam, contudo, é que a visão simpática a Pilatos, construída pelos cristãos daquele tempo, tenha um fundo de antissemitismo — afinal, o governador era o representante da Roma dominante naquela terra onde viviam os judeus. E os cristãos primitivos tinham na aristocracia judaica os seus rivais, aqueles que não aceitavam a nova seita que surgia.

"Todas as quatro narrativas evangélicas [Marcos, Mateus, Lucas e João] afirmam de forma categórica que Pôncio Pilatos teve participação direta sobre a morte de Jesus. Mas não confundamos. Não são quatro autores independentes entre si falando sobre Pilatos", atenta à BBC News Brasil o historiador André Leonardo Chevitarese, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de, entre outro livros, Jesus de Nazaré — O que a História tem a dizer sobre ele.

Ele explica: Marcos, autor do texto mais antigo dentre os quatro evangelhos, foi fonte para as versões de Mateus e Lucas. "E eles simplesmente seguiram a narrativa marcana, aumentando ou diminuindo um detalhe aqui ou acolá", pontua Chevitarese.

"João também fala de Pilatos, mas de forma independente. Então temos dois autores, no fundo, dizendo que Pilatos participou da morte de Jesus", conclui.

Antissemitismo

Segundo as narrativas bíblicas, há um consenso: ele seria um homem que não identifica em Jesus qualquer crime, qualquer responsabilidade. "Ao contrário, tenta argumentar às lideranças judaicas, no particular, e ao povo judeu, no geral, que Jesus não merecia morrer. No máximo, merecia tomar ali umas chicotadas, umas pancadas e depois que fosse mandado embora. Essa era a decisão de Pilatos conforme as narrativas evangélicas", analisa o historiador.

Essa leitura denota que há um antissemitismo nas narrativas. Afinal, quem "lava as mãos" é o representante do império romano opressor. E quem condena, segundo esses textos, são os judeus — o povo e as autoridades religiosas.

A explicação, esclarece Chevitarese, tem lastro histórico. "No momento em que as narrativas evangélicas estão sendo escritas, Marcos na primeira metade dos anos 70 [do primeiro século da Era Comum], Mateus nos anos 80, Lucas entre os anos 90 e 100, e a própria narrativa de João, situada aí na virada de século, entre 100 e 110, qual é a questão? O Templo de Jerusalém havia sido destruído por um incêndio quando [o general] Tito entra em Jerusalém [no ano 70], parte da cidade havia sido destruída pelas legiões romanas, a muralha já estava em ruínas..."

"Todos esses acontecimentos em torno de Jerusalém foram lidos pelos seguidores de Jesus como uma vingança ou um castigo divino pelo fato de os judeus terem matado Jesus. Então esse é o contexto, essa é a ideia", contextualiza.

"E já estava em curso um diálogo, que havia começado com [o apóstolo] Paulo, entre seguidores de Jesus e autoridades romanas nos âmbitos locais das cidades sob o domínio imperial disseminadas pela bacia mediterrânea", acrescenta.

Professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e na Faculdade São Bento, o teólogo, filósofo e jornalista Domingos Zamagna ressalta à BBC News Brasil que "os relatos da Paixão de Jesus não devem ser lidos como um boletim de ocorrência, semelhante aos que são lavrados nos nossos distritos policiais".

"A leitura deles, do ponto de vista acadêmico, requer o conhecimento dos textos antigos. Fazer história, para muitas tradições, significa compôr discursos, sentenças, parábolas, etc, e colocá-los nos lábios das figuras as quais se quer apresentar", analisa ele. "Para isso, os redatores recolhem tradições, quase sempre orais, e as inserem, no caso da Bíblia, na esfera propriamente teológica."

O historiador Chevitarese chama o fenômeno de "teologia da cruz". "São muito mais relatos teológicos do que históricos. Dizem mais a respeito de como um homem bom, Jesus, conheceu a morte de um sujeito mau, na cruz, e como Deus, no terceiro dia, trouxe de volta aquele sujeito bom para mostrar que ele nunca foi um sujeito mau", resume.

"Mas as religiões judaica e cristã são religiões históricas", pondera Zamagna. "Dão muito valor à proximidade, à inserção da revelação na comunidade humana, que se realiza, obviamente, no tempo, no espaço, nas culturas."

Pilatos interroga Jesus, em pintura de 1890 do russo Nikolai Ge.(Domínio Público)

Violento e corrupto

Para traçar um perfil o mais abrangente possível de Pilatos é preciso recorrer também aos autores não religiosos. A autoridade romana aparece em textos de pelo menos três outros: o historiador Flávio Josefo (37-100), o filósofo Fílon de Alexandria (15 a.C. - 50 d.C.) e o senador romano e historiador Caio Tácito (56-117).

Além desses relatos praticamente contemporâneos a ele, um índicio que comprova sua existência, há também achados arqueológicos que atestam que Pilatos foi um personagem historicamente real.

"Três autores não cristãos falando sobre Pilatos, isso quer dizer que Pilatos existiu, não é uma invenção, uma criação cristã", avalia Chevitarese. "E temos, do ponto de vista arqueológico, uma pedra com uma inscrição, descoberta nos anos 1960, que fala de Pilatos como o procurador da Judeia. Portanto, Pilatos efetivamente existiu, é uma figura histórica."

Mas a junção do quebra-cabeças entre fontes históricas e religiosas ainda conta um pouco sobre quem foi realmente Pôncio Pilatos. Sabe-se que ele foi o quinto a governar a então província romana da Judeia, e que sua gestão durou 10 anos, em algum intervalo entre os anos 25 e 37.

Pobre e distante da capital, a Judeia não era das províncias mais cobiçadas, o que indica que Pilatos não gozava de tanto prestígio assim no império. No cargo, ele tinha poder literalmente de vida e morte sobre os cidadãos — ou seja, podia condenar à morte. Entre suas atribuições também estava a de nomear o sumo sacerdote, o que o tornava próximo, na esfera de poder, dos poderosos judeus. Ele tinha ainda poder militar, judicial e fiscal — era o responsável pela coleta dos impostos.

"Pilatos não vem das grandes famílias senatoriais, os grandes proprietários de terra ou o que nós chamaríamos de os patrícios romanos. Ele é da ordem dos cavaleiros. Portanto, seria alguém que, guardadas as devidas proporções, chegou a ocupar altos postos da estrutura imperial romana sem ter um grande pedigree atrás de si", analisa Chevitarese. "Mas ele tinha suas conexões, suas relações de amizade. E soube jogar o jogo das relações dentro do império romano."

Antes de assumir o posto na Judeia, ele foi procurador em Alexandria. "Ali, na riquíssima cidade egípcia, Fílon o acusa de ser um indivíduo absolutamente inconsequente nos seus atos, violento, que não tem o mínimo de respeito e sensibilidade para lidar com quem não é romano. E corrupto", diz o historiador Chevitarese. "Fílon chega a falar que ele é ladrão, alguém que mete a mão no dinheiro e nos bens dos outros."

"Há um elemento comum sobre o caráter de Pilatos [nos relatos históricos] que deixa claro: ele era alguém violento. E, sem sombra de dúvidas, alguém que percorreu os caminhos administrativos e militares para ocupar postos elevados", complementa.

"Tanto Fílon quanto Josefo citam uma carta na qual a figura de Pilatos aparece, e o fazem de uma maneira extremamente desfavorável. Ele seria um cara áspero, obstinado, um sujeito violento, cruel, um verdadeiro saqueador, alguém que agia de maneira intempestiva executando pessoas sem o processo legal", conta Moraes. "Ele tinha uma série de defeitos."

Um exemplo: por respeito aos judeus, quando os procuradores romanos assumiam uma administração territorial em região de maioria judaica não traziam os estandartes com a imagem do imperador. "Os judeus não gostavam porque aquilo poderia representar uma espécie de idolatria", explica o teólogo. "Só Pilatos teria [quebrado essa tradição e] trazido essas imagens quando assumiu o cargo, secretamente, à noite. Os judeus ficaram sabendo e acabaram pedindo uma audiência com ele."

Segundo os relatos, ele aceitou a audiência, reuniu uma multidão em um estádio e, de repente, ordenou que seus soldados se voltassem contra o povo ali confinado. "Houve um grande número de mortos", afirma Moraes.

"Ele também teria desviado dinheiro do templo de Jerusalém para construir um aqueduto. Só que esse dinheiro era considerado sagrado pelos judeus. Não há indícios de que tenha havido corrupção, mas como ele interferiu em uma questão religiosa, os judeus também protestaram contra ele. E, mais uma vez, os soldados teriam matado alguns judeus de maneira traiçoeira", narra. "Bastava um protesto e ele agia com muita força."

Por volta do ano 35 teria ocorrido uma procissão samaritana ao Monte Gerizim e ele ordenou que o movimento fosse reprimido à força, deixando novamente muitos mortos. "No final das contas, são relatos que vão aparecendo e atestam a historicidade dele", salienta Moraes.

Pilatos apresenta Jesus à multidão judaica, em pintura de 1850, do suíço-italiano Antonio Ciseri (Dominio Público)

Na Bíblia, um homem justo

"Há um consenso entre os exegetas [aqueles que se dedicam a interpretar textos, sobretudo os religiosos] que Pilatos teria sido uma figura histórica, embora historicamente não se confunda com aquele Pilatos bíblico, aquele apresentado pelos evangelhos", enfatiza à BBC News Brasil o pesquisador Thiago Maerki, estudioso de Cristianismo antigo e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.

"Nos evangelhos, vemos nele um homem indeciso, preocupado com a justiça. Enquanto em outros relatos há descrições de crueldade e obstinação", pontua o especialista. "Enquanto na Bíblia temos em Pilatos uma espécie de representação da justiça, essa imagem cai por terra quando a gente lê os relatos de Josefo e vemos um homem cujos objetivos era controlar a população a ferro e fogo."

Ele lembra que, logo nas primeiras décadas do cristianismo, diversas lendas passam a surgir sobre a vida dessa autoridade. "Florescem narrativas, algumas chegam a considerá-lo santo, mártir. Ele é lembrado como mártir pela igreja copta e como santo pela igreja etíope, isso é extremamente curioso e poucos sabem disso", comenta. Em comum, essas histórias tratam de um suposto arrependimento de Pilatos por não intervir a favor de Jesus — e que a antiga autoridade romana teria, por fim, se convertido ao cristianismo.

De acordo com análise do teólogo Moraes, a presença de Pilatos nas narrativas bíblicas serve a dois propósitos simbólicos. O primeiro é demonstrar a presença forte do Estado romano na terra onde Jesus nasceu. "A decisão de condenar alguém à morte só poderia ser dada por essa autoridade", enfatiza. "Simbolicamente falando, isso mostra que o julgamento de Jesus teve seu nascedouro no embate com a tradição judaica. Lendo os evangelhos, principalmente o de João, percebemos Pilatos tentando se desvencilhar daquela situação, dizendo [às autoridades judaicas]: isso é um problema de vocês."

A segunda função de citar essa figura é conferir um lastro histórico à própria vida de Jesus. "Dá um caráter histórico", pontua Moraes. "A presença de uma autoridade romana [nos relatos] confirmam não só o domínio de Roma naquela região, naquele território da Palestina, mas também a historicidade de tudo aquilo."

Ele pontua que há apenas uma passagem bíblica em que Pilatos é pintado com cores ruins. Está no texto de Lucas. "Nesse momento, aproximaram-se pessoas que relataram o caso dos galileus, cujo sangue Pilatos misturara ao dos seus sacrifícios", diz o trecho, referindo-se às execuções que teriam sido autorizadas pela autoridade.

"Em geral, os evangelhos apontam Pilatos como uma figura importante e justa", reafirma. Na narrativa de Mateus, ele pergunta "que mal ele fez?", quando Jesus é trazido até ele para a sentença de morte. Em João, sua hesitação é semelhante: "Que acusação trazem contra este homem?".

"Perguntou-lhe Pilatos: 'Que é a verdade?'. Tendo dito isto, voltou aos judeus e lhes disse: 'Eu não acho nele crime algum'", também consta do evangelho de João.

Outros textos do Novo Testamento também buscam redimi-lo -- e atribuir a condenação de Jesus como culpa exclusiva dos judeus. É o caso do trecho de Atos dos Apóstolos, escrito pelo mesmo Lucas do evangelho, que diz assim: "[...] o Deus de nossos pais glorificou o seu servo Jesus que vós entregastes e rejeitastes na presença de Pilatos, que estava decidido a soltá-lo".

"Percebe-se [nos relatos bíblicos] uma pressão muito forte para tentar mostrar quem são de fato os verdadeiros inimigos que entregaram Jesus para a autoridade romana, enfatizando com muita força que os judeus teriam feito até chantagem [a Pilatos], dizendo 'olha, se você é amigo de César, não pode tolerar que alguém queira estabelecer um reino neste mundo'", ressalta Moraes.

O único registro da vida pessoal de Pilatos, considerando tanto os textos religiosos quanto os não religiosos, é uma passagem do evangelho de Mateus em que fica dito que ele era casado. Curiosamente, o trecho mostra que sua mulher teria tentado interferir no caso de Jesus. "[...] sua esposa mandou dizer-lhe: 'Não te envolvas na questão deste justo! Pois hoje estive muito aflita em sonho por causa dele'", afirma o trecho.

As narrativas bíblicas ainda demonstram empatia da autoridade romana com aquela situação ao, segundo esses registros, ter autorizado que o corpo de Jesus fosse sepultado. "Os costumes prescreviam que os corpos daqueles supliciados deveriam ser jogados numa vala comum, mas os quatro evangelistas relatam que Pilatos entregou o corpo e foram tomadas as providências para o seu sepultamento. Isso indica que ele foi alguém caridoso a esse ponto", pontua Moraes. "Contrariando os interesses dos judeus, que não gostariam de ter visto aquilo, [os evangelhos indicam que] Jesus teve um enterro digno."

Na simbologia que se tornou mais forte — e fez com que Pilatos merecesse ser lembrado inclusive na oração do Credo —, o evangelho de Mateus conta que, durante o julgamento, "vendo que aquilo de nada adiantava", ou seja, que os judeus estavam convencidos da necessidade da pena capital para Jesus e "que a situação ia dando em revolta, Pilatos tomou água e lavou as mãos na presença da multidão, dizendo: 'Eu sou inocente deste sangue. Toda a responsabilidade é vossa!'".

Lavou as mãos.

Teologia da cruz

Zamagna explica que "quase todos os personagens e fatos ali mencionados" -- no episódio da morte de Jesus, a chamada Paixão -- "têm um lastro que pode ser controlado pela história, pela arqueologia, pela linguística, etc.". "Mas a intenção da narrativa é teológica, para suscitar a fé dos leitores. Logo, não se deve dar excessivo valor a tudo, como se os cristãos estivessem registrando o que serviria para pleitear uma herança, uma indenização, uma promoção", pondera.

Mas para dar lustre e lastro histórico à real participação de Pilatos na morte de Jesus é preciso separar a tal "teologia da cruz" da historiografia da época. Em primeiro lugar, ressalta Chevitarese, "Jesus nunca foi julgado".

"Não percamos de vista o contexto da prisão de Jesus. E prisão aqui entre aspas, muito entre aspas", comenta. O contexto era a Páscoa, festa judaica que celebra a saída dos hebreus do Egito, onde viviam na escravidão, para a chamada Terra Prometida, "onde corria o leite e o mel".

"Ou seja: Jerusalém estava fervilhando de judeus, tanto dos próprios territórios judaicos quanto também os vindos dos mais diferentes lugares da bacia mediterrânea e para além dela", diz o historiador. "E Páscoa não é uma festa religiosa, mas uma festa política."

Mas se a data celebrava um povo que, depois da escravidão encontrava a liberdade na nova terra, como ficava a situação do domínio romano? "Nós, historiadores, nos perguntamos: que liberdade os judeus viviam sendo suas terras ocupadas pelo império romano?", questiona Chevitarese. "Então a Páscoa é uma festa política, muito mais do que religiosa, e havia um mau estar muito grande de se relembrar o que Deus teria feito pelos seus filhos e, ao mesmo tempo, ver os romanos como senhores dessas terras, e não os judeus."

Por isso, o historiador entende que Pilatos "estava muito preocupado em garantir que a festa da Páscoa não virasse um motim judaico ou explodisse uma violência dentro de Jerusalém contra as guarnições romanas". Provavelmente encastelado na fortaleza Antônia, praça-forte na extremidade oriental de Jerusalém, ele buscava administrar o caos. "Acompanhava a pressão, o zunzunzum e todo o contexto que poderia, a qualquer momento, como um rastilho de pólvora, explodir", pontua.

"Pilatos não estava preocupado em sair pelas ruas para prender um agitador qualquer que aparecesse por ali. Mas ele já tinha dado ordens: 'olha, se aparecer um agitador, pega e manda para a cruz'", explica o historiador.

Nesse sentido, não houve julgamento. "Imagina se num contexto político desses um judeu ia ser julgado por uma autoridade romana. Imagina se um judeu sairia arrastando uma cruz pelo meio das estreitas ruas de Jerusalém velha até chegar ao Gólgota [o Calvário, nome da colina que ficava fora de Jerusalém e era onde se faziam as crucificações]. Isso tudo seria um rastilho de pólvora. Esta é a narrativa teológica, não a histórica", argumenta.

"Histórico é: Jesus foi identificado como possível candidato messiânico, possível líder popular. Então, soldados romanos o prenderam e o arrebentaram de pancada, torturaram, quebraram de paulada já no caminho para a cruz. Sofrendo todas essas violências ele chegou ao Gólgota", conta Chevitarese. "Chegou lá, acabou. Prendem-no na cruz e deixam-no morrer."

"Pilatos tem participação? Em última instância ele mandou matar Jesus, mas nunca houve julgamento de Jesus", conclui o historiador.

Para provar seu ponto, ele argumenta que mesmo a Roma antiga tendo sido um Estado que "produziu milhões e milhões e milhões de documentos", não chegou aos dias atuais nenhum texto falando sobre julgamento de crucificados.

E o mesmo valeria para o relato bíblico do sepultamento de Jesus. De acordo com pesquisas historiográficas e arqueológicas, os condenados à cruz não tinham direito a enterro: seus corpos ficavam dependurados até apodrecerem e, depois, acabavam devorados por aves de rapina e outros animais carniceiros.

"Seis mil escravizados foram crucificados durante a revolta de Espartáco [nos anos 70 d. C.] na Via Apia, no coração de Roma. E onde estão seus ossos? Nunca foram encontrados. Porque nunca foram enterrados", justifica. "Nos anos finais do cerco a Jerusalém por parte dos romanos, em 69 e 70, Josefo fala em 500 crucificados por dia. Cadê os ossos desses caras? Nunca encontramos, nunca foram encontrados."

Os pouquíssimos achados arqueológicos de restos mortais de sepultamento com marcas indicando morte por crucificação se configurariam como exceções — provavelmente porque eram executados ligados, de alguma forma, às esferas de poder. "Jesus era a regra, não a exceção. Pelo seu estatuto socioeconômico e político, era um miserável, paupérrimo. Jamais seria enterrado", afirma.

Edison Veiga, jornalista, originalmente, de Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil,  em 28.03.24

quarta-feira, 27 de março de 2024

O apodrecimento do Estado

Os bandidos do caso Marielle são doutores ou policiais

Domingos Brazão desembarca do avião da PF em Brasília — Foto: Cristiano Mariz

Desvendada a trama do assassinato de Marielle Franco, resulta que nela não havia um só bandido desorganizado, daqueles que assaltam, roubam casas ou celulares. Um era chefe da Polícia Civil do Rio; outro, conselheiro do Tribunal de Contas; seu irmão, deputado federal; o pistoleiro e seu motorista, ex-PMs. Essa casta não rouba carros, alguns usam veículos oficiais.

Pior: Marielle foi assassinada porque atrapalhava os negócios de grilagem de terras e as milícias dos irmãos Brazão. Novamente, os bandidos que mataram Marielle relacionavam-se com o crime que age nas frestas da ausência do Estado, quer na barafunda fundiária, quer na exploração da falta de segurança pública.

Se existisse um sindicato do crime desorganizado, ele protestaria diante da concorrência desleal praticada pelos doutores e pelos policiais. Esse mesmo sindicato defenderia a classe contra a expansão de suas atividades criminosas.

Se tudo isso fosse pouco, Marielle foi executada três semanas depois da presepada da intervenção militar na segurança do Rio, e o crime foi planejado pelo chefe da Polícia Civil do Rio, nomeado pelos generais que poriam ordem na casa.

Inicialmente, pensou-se que o atentado era uma resposta dos criminosos convencionais demarcando o domínio do território. (O signatário caiu nessa.) Ilusão democrática. Não havia bandidos avulsos no lance. Só bandidos articulados no aparelho estatal. Gente que defende seu mercado estimulando a repressão aos PPPPs (pretos, pardos e pobres da periferia). Nela, as polícias matam pelo país afora, dizendo que são “suspeitos”.

Faz tempo, o assaltante Lúcio Flávio Vilar Lírio enunciou sua lei:

— Polícia é polícia, bandido é bandido.

Ela nunca foi respeitada, mas a morte de Marielle mostrou que o apodrecimento do Estado foi além. Ao longo de seis anos, a engrenagem da segurança pública foi sabotada para proteger os criminosos.

Foi a entrada da Polícia Federal no caso que interrompeu a putrefação. Vale lembrar que um policial federal alertou os generais sobre a periculosidade do delegado colocado à frente da polícia do Rio. Não foi ouvido. Naqueles dias, um general foi a um quartel da PM, e a tropa não lhe deu imediata continência. Não desconfiaram de nada. Achava-se que muita coisa se resolveria se fosse criado o instituto das autorizações para invasão de domicílios a partir da suspeita contra ruas. Pura demofobia.

De forma esparsa, a metástase do Estado fluminense repete-se em muitos outros. Até hoje, a reação do poder público tem oscilado entre a benevolência e as presepadas.

A crise da segurança pública não será resolvida por balas de prata, mas a Polícia Federal está aí, mostrando que, bem ou mal, resolve alguns casos que lhe chegam.

No início do século XX, os Estados Unidos tinham crime organizado, polícia corrupta e Justiça venal. Criado o Federal Bureau of Investigation, o jogo virou. Seu diretor era um sujeito detestável, mas criou o FBI.

É palpite, mas se a execução de Marielle tivesse capitulado um crime federal, a quadrilha que planejou e executou o crime não teria o atrevimento de embaçar a investigação por seis anos. O respeito à autonomia constitucional dos estados serviu apenas para proteger bandidos encastelados no aparelho do Estado.

Elio Gaspari, o autor deste artigo, é jornalista e escritor.  Publicado originalmente n'O GLOBO, em 27.03.27

A traição de Bolsonaro e o 31 de Março

Cabe ao ministro Moraes decidir onde o ex-presidente vai comemorar a data que se aproxima

O general Antonio Carlos de Andrada Serpa Foto: Exército Brasileiro

O general Antonio Carlos de Andrada Serpa produziu em 1996 uma carta aos colegas militares que hoje está esquecida em Brasília. Jair Bolsonaro, que não é homem de letras, deveria ao menos ler o documento do general. Assim como o ex-presidente, Serpa era oficial da Arma de Artilharia. Mas, diferentemente do ex-mandatário, ele esteve na guerra – comandou uma companhia de obuses de 105 mm, na Itália, participando da campanha vitoriosa, conforme contava seu amigo, o general Ruy Leal Campello.

Bolsonaro passou duas noites na embaixada da Hungria após ter passaporte apreendido, diz NYT; jornal americano divulgou vídeos e imagens do ex-presidente na representação diplomática em fevereiro 

Na carta, Serpa reclamava que a versão dos “vencidos em 1964″ se estabelecera como verdade; ninguém dava ouvido aos vencedores. Mas, ao mesmo tempo, defendia a pacificação e a concórdia nacional. E concluía seu documento lembrando o exemplo de Caxias.

“Quando solicitado a comemorar a vitória sobre os farrapos, em 1845, (Caxias) respondeu: ‘Não, antes rezemos um Te Deum pelas almas dos imperiais e farroupilhas, pois eram brasileiros’.” Para Serpa, reconhecer “o idealismo equivocado dos terroristas e os excessos da repressão será um convite à verdadeira Anistia e Justiça”. O general dizia que, para “seus colegas de hoje, é o espírito de Caxias que deve prevalecer, pois essa é a tradição do Exército”. Foi para essa tradição que Bolsonaro virou as costas ao determinar que o Ministério da Defesa, em 2019, voltasse a comemorar o 31 de março, data que marca uma “vitória de seu Exército” contra nacionais, contra brasileiros.

Não se comemora uma vitória contra brasileiros. Serpa apoiara a abertura de Ernesto Geisel, inclusive a decisão de afastar do comando do 2.º Exército, em 1976, o general Ednardo D’Ávila Mello, após as mortes de um militar, um jornalista e um operário nas dependências do DOI-Codi. Todos investigados por ligações com o PCB.

Serpa dizia que Geisel puniu os abusos ao demitir o comandante – segundo ele, “traído por maus auxiliares” – em razão do “princípio militar de que o chefe é responsável por tudo o que fizer ou deixar de fazer (C 101-5, Estado-Maior e Ordens)”. O mesmo vale para Bolsonaro.

Não adianta culpar Mauro Cid pelas falsificações de cartões de vacinação ou pela venda de joias. Não adianta dizer que assessores lhe propuseram um golpe, travestido da falsa legalidade de um estado de sítio ou de defesa. Um chefe militar jamais delega sua missão. Nem se isenta de suas responsabilidades.

É por se furtar a elas que Geisel concluiu sobre Bolsonaro: “É um mau militar”. Quem procura à sorrelfa a Embaixada da Hungria parece saber que tem contas a acertar com a Justiça. Cabe agora ao ministro Alexandre de Moraes decidir onde e como Bolsonaro vai comemorar o próximo 31 de março.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é jornalista especializado na cobertura das relações entre o Poder Civil e o poder Militar. Punlicado n'O Estado de S. Paulo,em 27.03.24

A tardia e tímida crítica do Itamaraty a Maduro

Mesmo quando finalmente resolve manifestar ‘preocupação’ diante das novas arbitrariedades do ditador, o governo Lula acha que é possível ‘fortalecer’ a inexistente democracia na Venezuela


Maria Corina Machado, candidata única da Oposição venezuelana, impedida por Maduro

Não surpreende que o regime ditatorial de Nicolás Maduro tenha impedido o registro da candidatura da principal chapa de oposição na eleição presidencial de julho, pois é a culminação de um processo integralmente eivado de irregularidades, fraudes e violência política, aliás característico do chavismo desde sempre. Tampouco surpreende que só agora o governo brasileiro, por meio do Itamaraty, tenha manifestado alguma “preocupação” com a evidente destruição da democracia venezuelana.

Antes tarde do que nunca, mas mesmo no momento em que tomou coragem de reconhecer que o regime do companheiro Nicolás Maduro, ora vejam, está descumprindo suas promessas de permitir uma eleição minimamente competitiva e limpa, o Itamaraty o fez escolhendo bem as palavras, para não melindrar o ditador amigo de Lula da Silva – aquele mesmo Lula da Silva que não escolheu palavras quando comparou Israel à Alemanha nazista.

Diz a nota envergonhada do Itamaraty que, “com base nas informações disponíveis”, a candidata Corina Yoris, indicada pela Plataforma Unitaria, força política de oposição, “sobre a qual não pairavam decisões judiciais”, foi “impedida de registrar-se”, o que “não é compatível com os acordos de Barbados” – em referência ao acerto em que Maduro garantiu a lisura da eleição para presidente em troca da suspensão das sanções dos EUA à Venezuela.

Ora, há tempos o regime chavista vem impedindo sistematicamente que os principais nomes de oposição possam disputar as eleições, seja prendendo-os, seja impedindo que se candidatem. O caso mais escandaloso foi o da ex-deputada María Corina Machado, que foi considerada inelegível pela Justiça Eleitoral, inteiramente controlada pelo governo. María Corina era líder de intenção de voto nas pesquisas independentes.

Em vez de denunciar a evidente arbitrariedade da ditadura venezuelana, Lula da Silva achou que era o caso de criticar María Corina, recomendando que ela parasse de “chorar” e escolhesse outro candidato para disputar em seu lugar.

Pois foi o que María Corina fez: escolheu Corina Yoris. De nada adiantou. Corina Yoris não conseguiu registrar sua candidatura porque simplesmente não teve acesso ao sistema de inscrição. O prazo se encerrou ontem. Com razão, María Corina suspeita que qualquer candidato que ela indicasse teria o mesmo destino: a impossibilidade de disputar a eleição. Somente “opositores” chancelados pelo regime conseguiram registrar suas chapas.

Ainda assim, pisando em ovos, o Itamaraty reiterou sua crença de que é possível fazer da eleição de julho “um passo firme para que a vida política se normalize e a democracia se fortaleça na Venezuela, país vizinho e amigo do Brasil”. Se isso já era difícil antes, agora é virtualmente impossível. Não é possível “fortalecer” a democracia na Venezuela porque há décadas não existe democracia na Venezuela, e a ditadura só se aprofunda.

A diplomacia de Lula da Silva para a Venezuela em seu terceiro mandato é coerente com a dos dois anteriores, na década de 2000, quando assistiu passivamente à gradual captura do Legislativo, do Judiciário, das Forças Armadas e das instituições de controle de Estado pelo regime de Hugo Chávez. Não houve um pio de Brasília diante da demolição do Estado de Direito venezuelano e da imprensa livre e da brutal perseguição à oposição política. O silêncio de Lula jamais resultou em arrefecimento do regime. No entanto, essa mesma estratégia pusilânime prevalece como posição oficial do Brasil.

O governo Lula jamais considerou a possibilidade de integrar o grupo de países da região – entre os quais, os três sócios do Brasil na fundação do Mercosul – que manifesta coletivamente sua preocupação a cada arbitrariedade de Maduro nos últimos meses. Brasília tem se mantido apartada até mesmo de vozes respeitáveis da esquerda, como a do ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, que condenam sem rodeios o caráter autoritário do regime venezuelano.

O tardio esboço de surpresa do Itamaraty com a mais recente prova de autoritarismo de Maduro ainda está longe, na forma e no tom, de fazer jus ao interesse brasileiro na condenação inequívoca a qualquer regime autoritário, independentemente de sua coloração ideológica.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 27.03.24

terça-feira, 26 de março de 2024

Se não é a economia, o que será?

O que o Datafolha mostra é que ações do governo ou do presidente influenciam mais a opinião pública do que avanços na economia

(Crédito: terra.com.br)

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está perdendo popularidade. Pesquisa recente mostra que a população está dividida em três partes de dimensões comparáveis. Segundo o Datafolha, a parcela que considera o governo bom ou ótimo corresponde a 35% dos entrevistados; a que considera o governo ruim ou péssimo é de tamanho estatisticamente igual, pois corresponde a 33%; e a terceira, que acha a atual gestão apenas regular, representa 30%, pouco menor do que as outras duas. Um ano antes, a margem favorável ao governo era mais confortável. O governo era bem avaliado por 38% e os que o consideravam ruim correspondiam a 30% dos entrevistados, fatia igual à dos que achavam o governo regular.

Há pouco mais de 30 anos, um dos responsáveis pela campanha de Bill Clinton à Presidência dos Estados Unidos, James Carville, tornou famosa a frase “é a economia, estúpido!”. A expressão conclamava o eleitor, no momento de decidir seu voto, a avaliar os problemas que enfrentava para pagar suas contas em vez de se deslumbrar com as vitórias na Guerra do Golfo, iniciada pelo então presidente e candidato à reeleição George Bush (o pai). Clinton, como se sabe, ganhou em 1992 (e foi reeleito quatro anos depois). Era a economia.

Mas há momentos em que talvez se deva dizer que “não é a economia, estúpido!”. Dados conjunturais sugerem que a queda da avaliação do governo não tem relação direta com a atividade econômica.

Reconheça-se que a economia nacional está longe de apresentar os resultados exuberantes que ostentou há alguns anos, quando muitos chegaram a supor que o Brasil tinha a seu alcance o ingresso no mundo dos países desenvolvidos. A média do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) dos últimos 10 ou 15 anos é muito baixa, se comparada com a da segunda metade do século passado.

No entanto, num período mais curto, de um ano, por exemplo – como o intervalo no qual a popularidade do governo caiu –, é possível identificar melhoras que têm efeito expressivo sobre o bolso da população, sobre suas condições de vida, enfim. São dados positivos que os meios de comunicação divulgam, mas que não despertam grandes emoções entre os analistas lidos pelo mundo das finanças, nem, muito menos, entre os operadores dos mercados financeiros. Nos últimos dias, surgiram alguns dados desse tipo. São números relevantes, embora não espetaculares.

Cálculos do pesquisador Marcos Hecksher, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostram que no ano passado, para um crescimento de 2,9% do PIB, a massa de rendimentos do trabalho teve aumento real (descontada a inflação) de 11,7%. É o melhor resultado desde 1995, quando o Plano Real, ao vencer a superinflação, promoveu um verdadeiro programa de aumento de renda real e fez a massa de rendimentos do trabalho crescer 12,9%.

Desse modo, a participação dos salários no PIB voltou a crescer, depois de ter diminuído de 35,5% em 2016 para 31% em 2021, segundo dados do IBGE. É indicação forte de que os trabalhadores estão tendo mais participação na economia, pois dispõem de parcela maior de tudo o que se produz no País. Têm, assim, proporcionalmente, mais renda para sustentar as despesas para sua manutenção e a de sua família e para eventualmente poupar. Em termos individuais, o rendimento real médio teve aumento de 3,9% no ano passado, na comparação com o valor de 2022.

E a economia está mais eficiente. Acompanhando ganhos reais de salários pelos trabalhadores, a produtividade do trabalho voltou a crescer em 2023, depois de dois anos de queda. Segundo o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV), a produtividade do trabalho consiste no valor adicionado gerado por trabalhador ou por hora trabalhada. A produtividade total dos fatores, de sua parte, inclui a eficiência do uso do capital. Relatório do Observatório da Produtividade Regis Bonelli, do Ibre-FGV, informa que em 2023 houve elevação em todas as medidas de produtividade. A que considera as horas efetivamente trabalhadas cresceu 1,9% e a que considera a população ocupada aumentou 1,6%.

Ganha-se mais por trabalho mais eficiente, que melhora o desempenho da economia, mas a popularidade do governo cai.

O que o Datafolha mostra é que ações do governo ou do presidente influenciam mais a opinião pública do que avanços na economia. Exemplos recentes disso há vários. A imposição por Lula a seus subordinados do silêncio sobre o golpe empresarial-militar de 1964 desagradou boa parte dos que apoiam seu governo. A transformação de uma banalidade – o destino dos móveis da residência oficial – em assunto de governo apequenou a Presidência. Declarações controvertidas de Lula afetam sua imagem e estimulam a oposição. O grande público que compareceu à manifestação bolsonarista na Avenida Paulista há um mês é, além de demonstração de força e convicção dessa parcela do eleitorado, um alerta para o governo – e para os que prezam as liberdades democráticas. Muitos ainda têm saudades da truculência do governo anterior.

Jorge J. Okubaro, o autor deste artigo, é jornalista, é autor, entre outros, do livro 'O Súdito (Banzai, Massateru!)' (Editora Terceiro Nome) e Presidente do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo,em 26.03.24

Sangue russo, combustível de Putin

Só incompetência ou conivência explicam fracasso da segurança nos atentados jihadistas. Seja como for, Putin já capitaliza a tragédia para intensificar seus crimes dentro e fora da Rússia

O massacre em um show de rock em Moscou que deixou mais de 130 mortos expôs dois grandes riscos à segurança global: primeiro, a ressurgência do grupo terrorista Estado Islâmico (EI); segundo, a combinação de negligência e oportunismo do regime terrorista de Vladimir Putin.

O grupo EI-K (da Província de Khorasan) assumiu a autoria. A milícia baseada no Afeganistão compete com o Talebã e a Al Qaeda pela supremacia jihadista, e em janeiro matou mais de 100 pessoas em atentados a bomba no Irã. Uma das fontes de hostilidade contra a Rússia é o apoio do país ao regime de Bashar al-Assad contra o EI e outros rebeldes na Síria.

Há uma massa de imigrantes islâmicos na Rússia herdada das antigas colônias soviéticas na Ásia Central – só do Tajiquistão, país de origem dos quatro suspeitos presos, são cerca de 8 milhões. As distrações com a guerra na Ucrânia, a marginalização e as tensões étnicas fazem dessas populações um óbvio estoque de oportunidades ao recrutamento jihadista.

Putin dispensou publicamente como “desinformação” e “chantagem” alertas dos EUA sobre preparações de um ataque do EI em Moscou. Como tudo em seu regime, os fatos estão envoltos numa nuvem de incertezas que se torna mais espessa a cada comunicado do Kremlin.

Numa das cidades mais patrulhadas do mundo, onde um cidadão pode ser preso em segundos por sussurrar “não à guerra”, como os terroristas conseguiram perpetrar a carnificina por uma hora e escapar num carro? O serviço de segurança alega ter detido os suspeitos perto da fronteira da Ucrânia. Mas, dada a capacidade material e tática necessária para um ataque dessa ordem, qual a plausibilidade dos perpetradores terem planejado sua fuga por uma das fronteiras mais fortificadas do mundo com seus passaportes do Tajiquistão?

Não há alternativa para uma falha dessa magnitude senão incompetência ou conivência. Mesmo as mais exorbitantes teorias da conspiração não podem ser descartadas. Putin já deu mostras de que não tem escrúpulos em derramar sangue estrangeiro ou russo para conquistar seus objetivos criminosos.

Há 25 anos, uma série de atentados a bomba em prédios na Rússia serviu como luva para o então premiê Vladimir Putin detonar uma carnificina na Chechênia como sua principal plataforma de campanha à presidência. Ativistas e pesquisadores reuniram vários indícios de que se tratava de uma operação “bandeira falsa”.

Hoje, para se perpetuar no poder e reconstruir o império russo, Putin precisa fomentar um estado de guerra permanente que crie condições para radicalizar o povo russo, reprimir dissidentes e justificar sua mobilização de recursos. Poucos dias antes do ataque, o Kremlin abandonou o eufemismo “operação militar especial” e passou a se referir à agressão à Ucrânia como um “estado de guerra”. Também deu ordens para alistar dezenas de milhares de russos.

Mesmo se admitindo como hipótese mais plausível que a segurança simplesmente tenha falhado, o ataque foi oportuno para as ambições de Putin e já está sendo oportunistamente explorado. Em seu pronunciamento público, após sumir por 19 horas, Putin não mencionou o EI. Se, em vez de culpar abertamente a Ucrânia, só insinuou uma vaga “conexão” do atentado com Kiev, foi certamente menos por prudência do que por temor de desmoralização ante as informações que a inteligência americana possa revelar.

Grupos de monitoramento cibernético apontaram uma súbita alta na atividade de bots controlados por agências de segurança russas disseminando fake news que culpam a Ucrânia, os EUA e o Reino Unido pelos atentados em Moscou. A hesitação das lideranças ocidentais em fornecer apoio financeiro e militar a Kiev também está criando condições favoráveis para uma nova ofensiva russa no verão.

Em um Estado minimamente democrático e de direito, o presidente pagaria um preço caro pelo sangue russo derramado sob o show de horrores que foi a atuação de suas forças de segurança. No Estado fascista de Putin, este preço será pago com mais repressão doméstica, mais sangue ucraniano e mais ameaças ao Ocidente.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 26.03.24

Asilo de Bolsonaro, na prática, já aconteceu

 Ex-presidente ficou dois dias na embaixada da Hungria, em Brasília, logo após ação da Polícia Federal


Imagens de câmera de segurança mostram Bolsonaro na embaixada da Hungria

Quando o STF (Supremo Tribunal Federal) pediu que o ex-presidente Jair Bolsonaro entregasse seu passaporte à Justiça, a intenção era impedir que ele deixasse o país.

Se Bolsonaro passou dois dias dentro da embaixada da Hungria, em Brasília, ele, de alguma forma, burlou essa medida judicial, pois, nos termos da Convenção de Viena de 1961, embaixadas e consulados, assim como seus veículos, são protegidos.

Ou seja, nos dois dias em que esteve abrigado ali, Bolsonaro estava inalcançável pela Justiça de seu próprio país. Se a Justiça foi atrás dele nessas 48 horas ou não, isso é apenas um detalhe. No que diz respeito à oferta de proteção internacional, ela ocorreu na prática.

Quem duvida pode dar uma relembrada no caso de Julian Assange, o fundador do Wikileaks, que passou sete anos vivendo dentro da embaixada do Equador, em Londres, para evitar a captura, ordenada por autoridades inglesas.

Ou ainda o caso do senador boliviano Roger Molina Pinto, que, em 2013, passou 15 meses vivendo num quartinho da embaixada do Brasil, em La Paz, onde foi recebido porque dizia ser um opositor perseguido pelo governo do então presidente Evo Morales.

O asilo é uma figura jurídica criada para proteger perseguidos políticos.

Não deixa de ser irônico que um político cuja carreira foi construída sobre o enaltecimento da ditadura militar possa ter buscado amparo num instrumento que se tornou célebre justamente por ter protegido dissidentes políticos que, nos anos 1960 e 1970, buscavam nas embaixadas estrangeiras uma espécie de última instância extraordinária e informal de recurso contra os governos militares latino-americanos, na esperança de conseguir algo que, na prática, fizesse as vezes de um habeas corpus.

A rigor, Bolsonaro até pode pedir asilo, assim como o premiê húngaro, Viktor Orbán, tem o direito de conceder.

Para a operação funcionar, basta que os dois estejam de acordo sobre o fato de que o ex-presidente brasileiro é vítima de uma perseguição injusta, movida com objetivo político e sem respeito às garantias e liberdades individuais. Não precisa ser verdade. Basta que ambos estejam de acordo.

(Bolsonaro passa 2 dias em embaixada após ter passaporte retido pela PF; veja vídeo

Frequento embaixadas pelo país, converso com embaixadores, diz Bolsonaro

Defesa diz que Bolsonaro se hospedou em embaixada só para manter contato com autoridades de país amigo

PF investigará permanência de Bolsonaro em embaixada da Hungria logo após operação

Bolsonaro convocou ato da Paulista no dia em que entrou na embaixada da Hungria)

A concessão de asilo é normalmente uma prerrogativa de presidentes da República e primeiros-ministros. Não é o tipo de instrumento jurídico que dependa de análise de cortes supremas e de parlamentos nacionais para que seja concedido.

É, em muitos países, uma espécie de superpoder presidencial, assim como são os famosos indultos e perdões presidenciais, sobre os quais recai grande dose de personalismo de parte de quem concede e de quem recebe.

Apesar dessa grande dose de discricionariedade, esse direito está previsto no artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 –direitos humanos que, aliás, já foram chamados de "esterco da vagabundagem" pelo ex-presidente brasileiro.

Há, portanto, regras, embora elas sejam muito menos estritas que as aplicáveis aos refugiados, categoria que só pode ser acessada por quem de fato prova, diante de um comitê de análise de pedidos, a existência de um fundado temor de perseguição, nos termos da Convenção Relativa ao Estatuto do Refugiado de 1951.

O asilo é, portanto, uma espécie de faixa preferencial em relação ao refúgio, por onde tramitam pedidos personalíssimos de proteção internacional, sem requerer tanta fundamentação e trâmite burocrático – é um instrumento mais fácil de ser pervertido, portanto, que o refúgio.

A defesa do ex-presidente brasileiro já afirmou que ele esteve na "embaixada magiar" apenas para atualizar "os cenários políticos das duas nações".

De acordo com os advogados de Bolsonaro, "quaisquer outras interpretações que extrapolem as informações aqui repassadas se constituem em evidente obra ficcional, sem relação com a realidade dos fatos e são, na prática, mais um rol de fake news".

Então, de acordo com essa versão da realidade, Bolsonaro passou dois dias atualizando autoridades húngaras sobre os cenários políticos dos dois países. Em 48 horas, daria para contar toda a história do Brasil. Em todo caso seria mais uma reunião que poderia ter sido um email.

João Paulo Charleaux, o autor deste artigo, é jornalista e autor de “Ser Estrangeiro – Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História”.Trabalhou no Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 25.03.25,às 17h08

Os tentáculos do crime organizado no mundo político

As investigações do caso Marielle Franco desvendaram uma grande vulnerabilidade do sistema político e partidário local.

Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio, chega à Brasília após ser preso (Crédito EPA)

Câmara dos Deputados, Assembleia Legislativa, Câmara Municipal, Tribunal de Contas do Estado do Rio. Em cada uma dessas instituições, atua um Brazão, clã que teve dois membros, Chiquinho e Domingos, presos no domingo (24/3) no âmbito da investigação das mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes.

Entre o fim de 2023 e início de 2024, na prefeitura do Rio de Janeiro, a Secretaria Especial de Ação Comunitária também teve Chiquinho como titular.

Para este ano, os Brazão já preparam a renovação: o jovem Kaio Brazão, de 22 anos, deve concorrer para vereador, tentando garantir a sobrevivência do clã político, agora sob investigação policial.

A presença ostensiva em instituições públicas indica a pujança da máquina política fundada por Domingos Brazão em 1996, quando se elegeu pela primeira vez vereador pelo antigo PL. Ela não é a única do gênero a atuar no Estado, mas tem características próprias.

Uma é seu forte enraizamento na Zona Oeste do Rio, a partir da Taquara, bairro da região de Jacarepaguá, com assistencialismo, prestação de favores e serviços sociais em áreas com presença de milícias.

Outra particularidade é a forte proximidade com agentes do Estado — policiais, por exemplo. A terceira é sua penetração, por meios legais, em instituições públicas, como os vários níveis do Legislativo — às vezes, importante para a governabilidade, abrindo espaço no Executivo.

Quem são os presos pela PF suspeitos de encomendar morte de Marielle Franco

24 março 2024

Quem é Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil preso pela PF no caso Marielle Franco:

24 março 2024

Como matador de Marielle teve 'alvo paralelo' encomendado por bicheiro famoso

24 março 2024

Não foi por acaso que o então candidato à reeleição, governador Cláudio Castro (PL) elogiou Chiquinho em discurso na campanha passada.

Também não foi sem motivo que o prefeito Eduardo Paes foi a um evento de pré-lançamento da candidatura de Kaio Brazão recentemente.

Os dois eventos foram gravados em vídeo, que circularam nas redes sociais e aplicativos de mensagem depois que a Polícia Federal prendeu Chiquinho e Domingos Brazão na manhã do domingo.

A nomeação do deputado federal para a Secretaria Municipal no fim do 2023 — ele pediu demissão no começo de fevereiro — foi outro sinal da força da família.

Atualmente, a estrutura política do clã inclui:

Chiquinho Brazão, deputado federal;

Manoel Inácio (conhecido como Pedro) Brazão, deputado estadual;

Waldir Rodrigues Moreira Júnior (sem parentesco direto, mas ligado politicamente à família e conhecido como Waldir Brazão), vereador;

Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio, após carreira parlamentar.

Chiquinho e Manoel se elegeram pelo União Brasil; Waldir não tem filiação, segundo seu perfil no site da Câmara. Domingos chegou ao cargo na corte de Contas em 2015, com apoio do seu último partido, o MDB de Sérgio Cabral Filho. O governador era Luiz Fernando Pezão.

Para o cientista político Ricardo Ismael, da PUC-RJ, embora tráfico e milícia de outros Estados também atuem politicamente, a situação no Rio e Janeiro tem particularidades que a tornam única.

Aqui, observa, a presença de traficantes e milicianos na política é “muito mais forte” do que em outros Estados.

O pesquisador ressalta que, em território fluminense, ocorre a confluência da política institucional com a dominação de territórios por milicianos e a influência desses grupos no aparelho de Estado, fortalecendo-os.

Para ele, as investigações do caso Marielle Franco desvendaram uma grande vulnerabilidade do sistema político e partidário local.

“Não se pode naturalizar que uma das pessoas presas tivesse influência na Polícia Civil”, afirmou. “O outro [preso] é deputado federal… Não se pode achar tudo isso natural ou normal.”

Além de Chiquinho e Domingos Brazão, o ex-chefe de polícia do Estado do Rio Rivaldo Barbosa também foi preso preventivamente neste domingo (24/3).

Os Brazão negam qualquer participação no caso. A BBC News Brasil ainda não conseguiu contato com a defesa de Barbosa.

Estado e prefeitura dizem apoiar investigações

Procurados pela BBC News Brasil, o governo do Rio e a prefeitura da capital responderam com notas de apoio às investigações do caso Marielle.

Sem comentar o discurso de apoio de Cláudio Castro a Chiquinho Brazão na campanha de 2022, o governo estadual divulgou o seguinte texto:

“O Governo do Estado vem desde cedo acompanhando a operação da Polícia Federal, inclusive três delegados da Subsecretaria de Inteligência da Polícia Civil, escolhidos em comum acordo com a PF, acompanharam as diligências que envolvem dois delegados e um comissário.”

“O desfecho do brutal assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes é um passo importante para enfrentarmos o crime organizado em nosso estado. A participação, seja qual for, de agentes públicos neste crime, será rigorosamente apurada para que sejam punidos exemplarmente.”

“A Corregedoria Geral Unificada, sob a liderança do desembargador Antônio José Ferreira Carvalho, vai apurar a conduta destes policiais com o devido rigor necessário. Continuamos apoiando as instituições para o desfecho final desse crime!”

Já a prefeitura do Rio, também sem comentar a presença de Eduardo Paes no evento de Kaio Brazão, afirmou, por escrito, o seguinte:

"A Prefeitura do Rio informa que o Partido Republicanos, ao estabelecer aliança com a administração municipal, escolheu no final de 2023 o deputado federal Chiquinho Brazão como representante da legenda para ocupar a Secretaria de Ação Comunitária. Quando surgiram especulações sobre o caso, foi solicitada ao partido a indicação de um nome para substituí-lo e ele foi exonerado no início de 2024. A Prefeitura do Rio reforça seu apoio às investigações sobre o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes e espera que o caso seja elucidado pela Justiça."

Wilson Tosta, do Rio de Janeiro - RJ para a BBC News Brasil, em 25.03.25

segunda-feira, 25 de março de 2024

Voto e valores

Não deveria causar nenhuma surpresa que a aprovação do governo Lula tenha caído entre os evangélicos

Políticos, em busca incessante pelo voto, são frequentemente orientados por visões unidimensionais, como se o ser humano fosse regido por apenas um tipo de interesse ou desejo. Ainda recentemente, o presidente Lula se teria dito perplexo por sua queda de popularidade, como se sua concepção de certas melhorias sociais não tivesse sido compreendida. O problema revela, isso sim, uma apreensão equivocada, senão restritiva da natureza humana, tendo como consequência a compreensão de que o voto seria exclusivamente ou predominantemente orientado por certos avanços nos domínios sociais e econômicos. Os valores, nessa perspectiva, desapareceriam do horizonte propriamente político e eleitoral.

A natureza humana caracteriza-se por uma multiplicidade de fatores, todas as pessoas procurando ser atendidas das mais diferentes maneiras, uns se contrapondo aos outros. Uns agem segundo desejos sexuais dos mais diversos tipos, hetero ou homossexuais, e ainda aqui conforme uma imensa variedade de comportamentos. Outros agem por interesses econômicos, desde os salariais até os que visam ao lucro, e também seguindo passos que diferenciam enormemente uma pessoa de outra. Alguns almejam ser empreendedores; outros, assalariados; outros, sindicalizados; outros, ricos; outros, detentores de uma renda média conforme a profissão escolhida.

Outros agem segundo valores de cunho religioso, oriundos do culto determinado que professam. E aqui a diversidade é grande na escolha de uma religião e no interior de cada uma delas. Judeus, católicos, muçulmanos, protestantes, evangélicos e cultos de origem africana são, na maior parte dos casos, contraditórios entre si, nem mesmo a noção de um Deus único podendo uni-los. Outros desprezam todas as religiões afirmando-se como ateus, sendo sua bússola uma ideia determinada de moralidade ou humanidade, tendo como fonte formulações céticas e iluministas dos séculos 17-19. Outros, ainda, procuram fazer uma mescla de diferentes visões de desejos, interesses e concepções de mundo. O interesse político, sob essa ótica, seria somente um entre os inúmeros em jogo.

Os primeiros cristãos são um belo exemplo do que está em questão. Afirmaram sua fé de uma maneira inquebrantável, preferindo a morte à abjuração de sua crença. Entre abandoná-la e serem devorados pelos leões, optaram pela morte, baseando-se nos novos valores que então defendiam e que viriam a se afirmar mundialmente. Os romanos, diante desse quadro, ficaram perplexos, uma vez que estes novos crentes agiam segundo novos padrões de conduta, de moralidade e valores, em tudo diferentes da racionalidade romana. Esta, racional no sentido ocidental, jurídica e estatal, não conseguia captar o que de novo se afirmava. A luta pelos valores durou aproximadamente quatro séculos, quando os cristãos se tornaram os novos governantes, tendo a nova mentalidade se tornado vitoriosa. No século IV, Santo Agostinho é seu grande pensador.

Atualmente, os evangélicos, entre nós, mas igualmente em outros lugares, como nos EUA, mostram um comportamento que não se deixa reduzir aos padrões políticos das melhorias sociais e econômicas. O governo, diante dessa situação, só consegue expor a sua perplexidade, visto que não consegue compreender a diversidade dos comportamentos humanos e, mais especificamente, a relação estreita entre voto e valores. Na concepção petista, as pessoas mais desfavorecidas buscariam apenas um trabalho assalariado, de preferência com a escolha de um sindicato amigo, enquanto os evangélicos estão muito centrados na ideia do empreendedorismo, da iniciativa individual e do mérito, buscando a autonomia financeira.

Na concepção petista, Israel é um país colonizador e os judeus são os novos opressores, numa retomada do antissemitismo clássico, enquanto para os evangélicos Israel é o povo de Deus, do qual seriam os sucessores. Agem seguindo a fé, alicerçada na Torá ou, segundo a linguagem cristã, no Antigo Testamento. Na visão petista, que se diz “progressista”, as pessoas deveriam se comportar conforme o politicamente correto, confrontando diretamente com a visão tradicional dos evangélicos, contrários ao aborto, ao casamento homossexual e à educação sexual em escolas segundo a perspectiva de esquerda.

Não deveria, portanto, causar nenhuma surpresa que a aprovação do governo Lula tenha caído entre os evangélicos. Estão atônitos porque pouco conseguem compreender do seu comportamento, orientado segundo valores. Pautam-se pela ideia de que a mera mudança das condições socioeconômicas, orientada por uma “narrativa” bem construída, poderia alterar essa situação. O reducionismo reaparece de uma forma nítida. Na verdade, não conseguem compreender a diversidade do comportamento humano, tudo reduzindo a interesses político-sociais, e, sobretudo, menosprezando a relação intrínseca entre voto e valores. Não tem como dar certo!

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de S.Paulo. Publicado originalmente em 25.03.24

Avanço da dengue expõe ineficiência do governo

Descaso com a doença é histórico, mas fatores da epidemia atual eram notórios e poder público poderia ter se precavido

Nísia Trindade, ministra da Saúde, durante entrevista sobre distribuição de vacinas contra dengue, em Brasília (DF) - Lucio Tavora - 20.mar.24/Xinhua

O Brasil vive uma tragédia anunciada com a epidemia de dengue. Do começo do ano até 21 de março, o país ultrapassou a marca de 2 milhões de casos prováveis, alta de 19% em relação ao registrado ao longo de todo o ano de 2023. Em apenas 81 dias, foram 682 mortes em decorrência da doença e outras 1.042 são investigadas.

Sabe-se que a enfermidade é periódica e cíclica, com piora no verão e picos epidêmicos a cada quatro ou cinco anos. Mas o que se verifica em 2024 é ponto fora da curva e, pior, há sinais de que o governo poderia ter se antecipado.

Nísia Trindade, chefe da pasta da Saúde, disse no começo do mês que o elevado número de casos se deve à mudança climática, que aumenta temperaturas e chuvas, intensificada pelo fenômeno El Niño.

A ministra está certa. O problema é que essa correlação era notória desde janeiro do ano passado, quando a Organização Mundial da Saúde emitiu alerta global para a "ameaça pandêmica" da dengue, justamente devido à questão ambiental. Em julho, novamente, a entidade chamou a atenção para possível recorde de casos em 2023.

A alta do calor e das chuvas em regiões de clima mais temperado, como Sul e Sudeste, tende a multiplicar contaminações. As populações dessas regiões, que historicamente tiveram menos contato com alguns dos sorotipos do vírus, estão mais desprotegidas.

São quatro sorotipos e, como uma pessoa só adquire imunidade para o qual já contraiu, a interação com um novo pode agravar sintomas, levando até a mortes.

Assim, a crise era previsível —e cabia ao poder público se precaver com campanha de conscientização robusta sobre o perigo vindouro e alocação de verbas em estrutura ambulatorial, considerando diferenças regionais.

A morosidade para aprovar a distribuição de imunizantes pelo sistema de saúde foi particularmente temerária. A vacina japonesa Qdenga, que age contra os quatro sorotipos, havia sido aprovada para venda no país pela Anvisa em março de 2023, mas a oferta pelo SUS só foi autorizada em dezembro.

Até 21 de março, apenas 14,5% do público-alvo (crianças de 10 a 14 anos) e 0,2% da população brasileira haviam sido vacinados.

Por óbvio, há também um descaso histórico de diversos governos com fatores ligados à doença, como saneamento básico precário e crescimento urbano desordenado.

A presente epidemia, porém, recebeu impulsos recentes, conhecidos pela gestão de turno. Resta, agora, correr atrás do prejuízo para minimizar os efeitos da crise.

Ademais, já passou da hora de o Brasil aprender que o combate à dengue deve ser feito a partir de ações contínuas e no longo prazo.

Editorial da Folha e S.Paulo, edição impressa, em 24.03.24 (editoriais@grupofolhacom.br)

domingo, 24 de março de 2024

Na privacidade de María Corina Machado: “Se a oposição competir, Maduro pode perder”

Uma manhã no escritório em Caracas da oposição com maior capital político para ameaçar a hegemonia do chavismo

María Corina Machado durante entrevista em Caracas, Venezuela, em fevereiro de 2024. (Gaby Oraa - Reuters)

Ao se aproximar do escritório de María Corina Machado, seu celular perde sinal. Alguns caras com atitude vigilante andam de moto de ponta a ponta, enquanto outros, agrupados, observam com cautela o que está acontecendo ao seu redor. Não deixe nenhum detalhe escapar deles. Que nada saia do controle: o olho que tudo vê do serviço secreto chavista. O mundo que se gerou em torno da política que Nicolás Maduro mais teme é de uma estranha normalidade. Para finalmente alcançá-la você tem que passar por um altar de virgens e velas de diferentes lugares do mundo que seus seguidores lhe deram; uma parede repleta de caricaturas e retratos dela; o filtro de seus colaboradores mais próximos que cuidam dela como um tesouro e, principalmente, ela deve superar o cerco que lhe foi imposto por um governo determinado a não deixá-la ser candidata presidencial.

Estamos falando da mulher que poderia destronar um homem que herdou o poder de Hugo Chávez em 2013, como se a Venezuela fosse uma monarquia, e que está disposta a tudo para não deixar que isso lhe seja tirado. Machado, inabilitado para participar nas eleições por estar nas mãos do partido no poder, vai tentar esse feito através de Corina Yoris, uma prestigiada académica de 80 anos para quem transferiu a sua candidatura e todo o seu capital político . Quase toda a oposição cerrou fileiras em torno deles. Há duas mulheres que têm Maduro sob controle, que sabem que seu país é como um tigre faminto: se ele sair, ele o comerá. E se vencer novamente as eleições deste 28 de junho - por mais ilegítimas que sejam perante a comunidade internacional devido à repressão chavista dos últimos dois meses - permaneceria no poder por mais seis anos, ou seja, pelo menos até 2031. O chavismo permaneceria três décadas no poder e Maduro ultrapassaria o próprio Chávez em anos de governabilidade. María Corina diz que, então, 3.000.000 milhões de venezuelanos que ainda não partiram deixariam a Venezuela.

“ Seria brutal se Maduro vencesse novamente ”, diz ela, sentada à minha frente. “Os países da América Latina e, sobretudo, a Colômbia, sofreriam com isso porque seriam os maiores receptores da onda migratória”, explica. E de acordo com a Organização Internacional para as Migrações, 7,2 milhões de pessoas deixaram a Venezuela nos últimos anos. É o êxodo mais escandaloso deste lado do mundo e nestas eleições, se a oposição conseguisse competir com um mínimo de garantias, Maduro poderia realmente perder. “Pela primeira vez, em 25 anos, vamos a uma eleição presidencial onde estamos 80/20, ninguém duvida. Há aqui competitividade e seria uma vitória esmagadora para o regime, seria uma vitória para os cidadãos”, afirma.

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, em um evento governamental em 19 de março em Caracas, Venezuela. (Imprensa EFE / Miraflores)

Os venezuelanos que hoje têm trinta e cinco anos ou menos não conheceram outra forma de governar que não o chavismo e cresceram num país de escassez como se fosse normal: baldes de água abundam em casas e escritórios porque o líquido raramente chega. vezes na semana; A eletricidade sai de forma intermitente durante o dia e é por isso que quem pode pagar por controladores de energia para que seus eletrodomésticos não queimem. É um país petrolífero que passou de produzir 3.000.000 de barris por dia para menos de 1.000.000 hoje, e onde a gasolina tem sido ainda mais barata que a água, mas onde as filas para encher o tanque de um carro são de quinze, vinte quarteirões. O Governo tem postos de abastecimento onde a gasolina é subsidiada e, claro, mais barata. Existem outros postos não subsidiados com linhas mais curtas e preços mais elevados onde o gás ainda é mais barato do que em qualquer país vizinho.

Caracas é hoje uma cidade vibrante, muito diferente de antes da pandemia, quando a oposição e o partido no poder se enfrentavam furiosamente nas ruas, a comida era escassa, a força pública era dona das ruas e era impossível comprar uma cerveja se não se não tenho um monte de bolívares. Quando era uma cidade inflamável pronta para explodir o tempo todo. Agora é diferente. A economia está completamente dolarizada e há muito dinheiro porque as sanções económicas internacionais dificultam a sua saída da Venezuela.

Já há comida nos supermercados, mercadorias nas lojas, Ferraris e Lexuses circulando pela cidade sem placa e restaurantes caros lotados de pessoas vestidas com roupas de grife gastando em dólares como se estivessem em Nova York. A capital venezuelana move-se ao ritmo de uma grande metrópole. Existem luxos. Você não vê lixo velho em suas ruas e nem há medo de ladrões tirarem seu celular à noite. Os amigos e inimigos do chavismo já não protagonizam as marchas frenéticas que terminaram em violência, com meninos assassinados e prisioneiros injustos. Agora a injustiça tem prioridade: desde janeiro, María Corina teve sete dos seus colaboradores mais próximos presos, acusados ​​de participação em atos conspiratórios, e mais sete têm mandados de prisão .

Ela, sentada em seu escritório onde se destaca uma foto dos filhos, uma parede sem mais terços pendurados, uma bandeira da Venezuela e uma placa que diz nunca desista , frase imortalizada pelo ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill como o Os nazistas bombardeiam Londres, sorri gentilmente. Ele sai da perseguição que está enfrentando por um momento e pergunta se parece bem. Se as roupas combinam com você. Se estiver preparado o suficiente. A situação é triste e tensa e ela faz o possível para que o momento seja o mais sereno possível.

Ele explica que desta vez as coisas são diferentes. “A Venezuela mudou, nós, venezuelanos, mudamos, não temos mais medo”, afirma. "Uma senhora me disse um dia: 'María Corina, mas o que mais vão tirar de mim? Se já tiraram meus filhos de mim, o que mais vão tirar de mim?' derrubar as barreiras que o sistema construiu porque a primeira coisa que Chávez fez foi nos dividir: ricos, pobres, brancos, negros, esquerda, direita, mas essa mesma coisa nos uniu”, acrescenta.

Desses tempos de tanta luta e tanta repressão, é o único que resta. Saíram Antonio Ledezma, Juan Guaidó, Leopoldo López e Lilian Tintori. Eles os perseguiram, torturaram, silenciaram e, finalmente, fugiram do seu país. O que resta é Henrique Capriles que não tem a riqueza eleitoral de Machado e que também ficou turvo com esses altos e baixos de uma história cheia de infâmias. Embora muitos insistam que a oposição da Venezuela está dividida, María Corina assegura que há unidade. "O que mais você quer? Fizemos as primárias e foram impecáveis, consegui mais de 90% dos votos, isso é unidade”, explica.

Ela é uma mulher magra e bonita, de 56 anos, que parece imperturbável. Ele fala com as mãos, olha nos olhos, enfatiza suas palavras com os gestos do rosto, engole saliva toda vez que uma lágrima está para sair e repete suas convicções como se fossem um mantra. Ela tem a certeza de que pode retirar Maduro do poder: “O regime é fraco, muito mais fraco… é mais rude, mais descarado e opressivo, e tudo isto são sinais da sua fraqueza. Recorrem à violência porque não têm outros mecanismos para se imporem. Perderam toda a capacidade social e a capacidade de chantagem”, afirma.

Mas todo aquele temperamento sólido que ele expressa vacila quando fala dos filhos. Tem três. Ela os vê uma ou duas vezes por ano porque tiveram que sair da Venezuela e ela não pode visitá-los. Cada viagem deles é um risco que a mãe prefere correr muito pouco. “Faz dez anos que não consigo sair do país. Faz sete anos que não consigo pegar um voo doméstico. Digo que não sei como é o meu país visto do céu, mas cometeram um grande erro porque graças a isso me fizeram vivenciar a Venezuela por dentro. Conheço cada estrada, cada buraco na calçada, as pessoas me reconhecem”, explica.

Os seus filhos, que são o mais importante da sua vida – diz e reitera – são a sua fonte de culpa e dor. “Eu era a única mãe que não estava na mesma série dos meus filhos. Implorei ao juiz que me deixasse sair da Venezuela e ele não deixou. Não pude ir e foram os dias mais difíceis da minha vida”, lembra ele com a voz rouca e os olhos encharcados. A culpa é das mães ausentes. “Se você está no trabalho, você não está com seus filhos. Se você está com seus filhos, você não está brigando com sua comunidade. Queremos fazer tudo e bem feito. Lidar com a culpa tem sido um desafio muito grande”, afirma.

Casou-se com o empresário Ricardo Sosa antes dos 20 anos e aos 27 já tinha três filhos. “Disse aos meus amigos para não se casarem e acabei sendo a primeira a casar, porque me apaixonei”, conta. Ela estava destinada a trabalhar no grupo empresarial de seu pai, que era presidente da siderúrgica Venezolana SIVENSA, mas se apaixonou pela política mais do que pelo primeiro marido.

Sua história na política começou um dia quando sua mãe a convidou para visitar um centro correcional para menores em Caracas e desde então ela se convenceu de que poderia impactar positivamente as pessoas. “Isso mudou minha vida”, diz ele. Criou a Fundação Atenea e o que começou como um trabalho colateral tomou conta do seu dia a dia. “Até aquele momento, eu não tinha vivenciado tão de perto a realidade de um ser humano que não tem ninguém”, afirma.

María Corina Machado e Corina Yoris Villasana, a quem ela indicou para substituí-la como candidata presidencial, durante entrevista coletiva em Caracas, Venezuela, em 22 de março de 2024. (Gabby Oraoo - Reuters)

Desde então, respirou política. Ela deixou de ser esposa quando o desgosto entrou em sua casa e, com o tempo, tornou-se namorada de um advogado constitucional que conheceu em uma de suas muitas campanhas. É um amor construído na admiração e na lealdade. “Ele é um ser excepcional, vivemos momentos muito complexos”, afirma.

Ela e ele conhecem os perigos que enfrentam. É difícil compreender por que não a prenderam naquele país onde o atrevimento se tornou habitual. A explicação mais viável reside na comunidade internacional. María Corina Machado é um símbolo muito poderoso. A única mulher daquela geração de valentes aposentados, a mãe ausente e a filha exemplar que hoje enfrenta uma tristeza maior que a causada pelo chavismo: a recente morte do pai.

“É um vazio muito grande, não imaginava que conseguiria viver sem ele. Quando eu estava naquela época eu disse a ela 'não me deixe em paz'. Agora não'. Ele era um homem visionário que amava a Venezuela e tinha senso de responsabilidade pelo país. Sua morte me empurrou. “Isso me deu mais força”, diz ele e engole novamente para desabar.

Enquanto fala sobre sua vida e seus desejos, ele combina a tristeza com as poucas alegrias que esses tempos complexos lhe deixaram. Ele reitera suas convicções. Sorriso. Respire fundo; Ela faz uma pausa e fala novamente sobre o povo, o seu povo, os seus seguidores, a sua Venezuela destruída, as mães como ela que cresceram sem os filhos, a mudança que ela está obcecada em alcançar. Nas ruas de Caracas, todos que são questionados respondem sussurrando que querem uma mudança. María Corina Machado é perseguida, mas não amarrada. Corina Yoris carrega a tocha. O mundo observa seus movimentos com expectativa e quando você tem isso diante de você, a descrença se transforma em uma confiança raríssima. É uma mãe que pede ao deus dos filhos que a perdoe pelo tempo que não pôde passar com eles, mas é, acima de tudo, uma mulher decidida a fazer história.

Vanessa da Torre, de Caracas - Venezuela para o EL PAÍS, em 24.03.24

As lições sobre felicidade que podemos aprender com astecas e sua filosofia da 'vida digna de ser vivida'

Havia filósofos e sofistas, educação formal para ensinar valores e ideias profundas sobre a vida, tudo expressado em tratados, exortações e diálogos.





A comunidade era de essencial importância para os astecas (Getty Images)

Mas não se trata da Grécia antiga e, sim, do império asteca.

Entre os séculos 15 e o início do 16, os astecas construíram um império com uma cultura de grande riqueza filosófica onde hoje é o centro e sul do México.

"Temos muitos volumes de seus textos gravados na língua nativa, o náhuatl", escreveu Lynn Sebastian Purcell, professor de filosofia na Universidade Estadual de Nova York (SUNY) em Cortland, nos Estados Unidos, em um artigo publicado há alguns anos na revista de divulgação científica Aeon.

"Poucos dos livros pré-coloniais de tipo hieróglifo sobreviveram às queimadas espanholas, então nossas principais fontes de conhecimento derivam dos registros feitos pelos sacerdotes católicos até o início do século 17."

Purcell pesquisou extensamente a filosofia e a ética antigas, em especial as da América Latina e dos astecas.

"Acho fascinante que os nahuas (astecas) tenham sido outra cultura pré-moderna com uma ética das virtudes, apesar de bastante diferente da de Aristóteles e Confúcio", disse ele à Associação Americana de Filosofia (APA, na sigla em inglês) em uma entrevista de 2017.

E reconheceu que era interessante para ele aprofundar-se em um campo no qual, ao longo de todos esses séculos, a academia havia deixado um "vazio evidente".

Ele acrescentou, inclusive, que os dois grandes estudiosos da filosofia asteca, o antropólogo mexicano Miguel León-Portilla e o filósofo americano James Maffie, fizeram um grande trabalho em analisar sua metafísica, mas não sua ética.

A boa vida

O famoso Códice Florentino, uma compilação de conhecimentos dos astecas feita pelo missionário franciscano espanhol Bernardino de Sahagún, reproduz o discurso de um rei antes de assumir seu posto.




Uma página do famoso Códice Florentino, compilação feita pelo missionário franciscano espanhol Bernardino de Sahagún (Getty Images)

Ali, ele fala sobre como vive um homem "venerado": ele é "defensor e provedor", diz ele, "como a árvore de cipreste, na qual as pessoas se refugiam".

Mas esse mesmo homem também "chora e aflige-se". O rei então se pergunta: "Há alguém que não deseje a felicidade?".

O texto, segundo Purcell, revela uma das maiores diferenças entre a filosofia da Grécia antiga e a do império asteca.

"Os astecas não acreditavam que houvesse qualquer ligação conceitual entre levar a melhor vida que podemos e experimentar prazer ou 'felicidade'", escreveu ele.

Ou seja, para eles, ter uma boa vida e ser feliz não estavam associados, algo que pode soar estranho dada a tradição filosófica do Ocidente.

Terra escorregadia

Em um artigo premiado pela APA como melhor ensaio sobre a América Latina de 2016, Purcell explicou que essa dissociação tem sua raiz em um problema existencial descrito pelos filósofos ou tlamatinime.

Existe um ditado asteca que resume este problema e que poderia ser traduzido como "escorregadia, escorregadia é a terra".

Tenochtitlán era a capital do império asteca e estava onde é hoje a Cidade do México (Getty Images)

"O que eles queriam dizer é que, apesar de ter as melhores intenções, nossa vida na terra é uma na qual as pessoas são propensas a erros, propensas ao fracasso em seus objetivos e propensas a 'cair', como se estivessem na lama", detalhou Purcell.

"Além disso, esta terra é um lugar onde as alegrias só vêm misturadas com dor e complicações."

Os astecas acreditavam que por mais que uma pessoa fosse boa, talentosa e inteligente, coisas ruins poderiam acontecer. Ou você poderia errar, escorregar e cair.

Por isso, antes de procurar deliberadamente uma felicidade que, na melhor das hipóteses, seria passageira e aleatória, o objetivo, para os astecas, era levar uma vida digna de ser vivida.

Os astecas elaboraram sua própria ética das virtudes, que é diferente da de filósofos como Aristóteles ou Confúcio (Getty Images)

Quatro níveis

Para definir o que é uma vida digna de ser vivida, os astecas usavam a palavra neltiliztli, que pode ser traduzida como "arraigada" ou "enraizada".

Esta vida enraizada poderia ser alcançada em quatro níveis, escreveu Purcell em um artigo também publicado na Aeon em 2016.

O primeiro nível "começa com o próprio corpo, algo que muitas vezes é negligenciado na tradição europeia, preocupada com a razão e a mente", afirmou o filósofo.

Para isso, os astecas tinham um regime de exercícios diários surpreendentemente semelhante à ioga.

O segundo nível envolve enraizar-se com a própria psique, um conceito que igualmente não dizia respeito apenas à mente, mas também aos sentimentos.

Em terceiro lugar estava a comunidade, algo de importância crucial para os astecas.

Diferentemente de Platão ou Aristóteles, que propuseram uma ética das virtudes centrada no indivíduo, essa civilização indígena colocava a sociedade como o eixo principal.

Uma vida digna de ser vivida não era possível sem laços familiares, amigos e vizinhos, que o ajudarão a se levantar das inevitáveis quedas na terra escorregadia.

E, por último, estava o enraizamento a teotl, uma divindade que não era outra coisa senão a natureza.

É assim que esse quarto nível era alcançado com os três anteriores. Mas compondo filosofia poética alcançava-se ainda mais rápido.

Os conquistadores espanhóis podem ter derrubado o império asteca. Mas suas ideias persistem (Getty Images)

A decisão de Ulisses

As ideias filosóficas dos astecas são por vezes recebidas com algum ceticismo.

Purcell costuma usar A Odisséia de Homero para explicar em suas aulas na SUNY por que essa civilização tinha razão ao afirmar que a felicidade é um objetivo de vida equivocado.

Em um trecho do poema épico grego, o protagonista, Ulisses, passa sete anos em uma ilha paradisíaca com a deusa Calipso.

A deusa, então, apresenta-lhe um dilema: ele pode ficar com ela e desfrutar da imortalidade e da eterna juventude na ilha, ou retornar ao mundo real, cheio de dor e sacrifício, mas onde também vive sua família.

Ulisses “decide se aventurar em águas abertas em um barco frágil em busca de sua esposa e filho”, recapitulou Purcell no artigo da APA.

É então que ele pergunta a seus alunos o que eles teriam escolhido: “Nunca houve quem discordasse de Ulisses”.

Ana Pais, jornalista, para a BBC News Mundo, em 21 março 2024. Publicado originalmente em março de 2019.