domingo, 24 de março de 2024

Na privacidade de María Corina Machado: “Se a oposição competir, Maduro pode perder”

Uma manhã no escritório em Caracas da oposição com maior capital político para ameaçar a hegemonia do chavismo

María Corina Machado durante entrevista em Caracas, Venezuela, em fevereiro de 2024. (Gaby Oraa - Reuters)

Ao se aproximar do escritório de María Corina Machado, seu celular perde sinal. Alguns caras com atitude vigilante andam de moto de ponta a ponta, enquanto outros, agrupados, observam com cautela o que está acontecendo ao seu redor. Não deixe nenhum detalhe escapar deles. Que nada saia do controle: o olho que tudo vê do serviço secreto chavista. O mundo que se gerou em torno da política que Nicolás Maduro mais teme é de uma estranha normalidade. Para finalmente alcançá-la você tem que passar por um altar de virgens e velas de diferentes lugares do mundo que seus seguidores lhe deram; uma parede repleta de caricaturas e retratos dela; o filtro de seus colaboradores mais próximos que cuidam dela como um tesouro e, principalmente, ela deve superar o cerco que lhe foi imposto por um governo determinado a não deixá-la ser candidata presidencial.

Estamos falando da mulher que poderia destronar um homem que herdou o poder de Hugo Chávez em 2013, como se a Venezuela fosse uma monarquia, e que está disposta a tudo para não deixar que isso lhe seja tirado. Machado, inabilitado para participar nas eleições por estar nas mãos do partido no poder, vai tentar esse feito através de Corina Yoris, uma prestigiada académica de 80 anos para quem transferiu a sua candidatura e todo o seu capital político . Quase toda a oposição cerrou fileiras em torno deles. Há duas mulheres que têm Maduro sob controle, que sabem que seu país é como um tigre faminto: se ele sair, ele o comerá. E se vencer novamente as eleições deste 28 de junho - por mais ilegítimas que sejam perante a comunidade internacional devido à repressão chavista dos últimos dois meses - permaneceria no poder por mais seis anos, ou seja, pelo menos até 2031. O chavismo permaneceria três décadas no poder e Maduro ultrapassaria o próprio Chávez em anos de governabilidade. María Corina diz que, então, 3.000.000 milhões de venezuelanos que ainda não partiram deixariam a Venezuela.

“ Seria brutal se Maduro vencesse novamente ”, diz ela, sentada à minha frente. “Os países da América Latina e, sobretudo, a Colômbia, sofreriam com isso porque seriam os maiores receptores da onda migratória”, explica. E de acordo com a Organização Internacional para as Migrações, 7,2 milhões de pessoas deixaram a Venezuela nos últimos anos. É o êxodo mais escandaloso deste lado do mundo e nestas eleições, se a oposição conseguisse competir com um mínimo de garantias, Maduro poderia realmente perder. “Pela primeira vez, em 25 anos, vamos a uma eleição presidencial onde estamos 80/20, ninguém duvida. Há aqui competitividade e seria uma vitória esmagadora para o regime, seria uma vitória para os cidadãos”, afirma.

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, em um evento governamental em 19 de março em Caracas, Venezuela. (Imprensa EFE / Miraflores)

Os venezuelanos que hoje têm trinta e cinco anos ou menos não conheceram outra forma de governar que não o chavismo e cresceram num país de escassez como se fosse normal: baldes de água abundam em casas e escritórios porque o líquido raramente chega. vezes na semana; A eletricidade sai de forma intermitente durante o dia e é por isso que quem pode pagar por controladores de energia para que seus eletrodomésticos não queimem. É um país petrolífero que passou de produzir 3.000.000 de barris por dia para menos de 1.000.000 hoje, e onde a gasolina tem sido ainda mais barata que a água, mas onde as filas para encher o tanque de um carro são de quinze, vinte quarteirões. O Governo tem postos de abastecimento onde a gasolina é subsidiada e, claro, mais barata. Existem outros postos não subsidiados com linhas mais curtas e preços mais elevados onde o gás ainda é mais barato do que em qualquer país vizinho.

Caracas é hoje uma cidade vibrante, muito diferente de antes da pandemia, quando a oposição e o partido no poder se enfrentavam furiosamente nas ruas, a comida era escassa, a força pública era dona das ruas e era impossível comprar uma cerveja se não se não tenho um monte de bolívares. Quando era uma cidade inflamável pronta para explodir o tempo todo. Agora é diferente. A economia está completamente dolarizada e há muito dinheiro porque as sanções económicas internacionais dificultam a sua saída da Venezuela.

Já há comida nos supermercados, mercadorias nas lojas, Ferraris e Lexuses circulando pela cidade sem placa e restaurantes caros lotados de pessoas vestidas com roupas de grife gastando em dólares como se estivessem em Nova York. A capital venezuelana move-se ao ritmo de uma grande metrópole. Existem luxos. Você não vê lixo velho em suas ruas e nem há medo de ladrões tirarem seu celular à noite. Os amigos e inimigos do chavismo já não protagonizam as marchas frenéticas que terminaram em violência, com meninos assassinados e prisioneiros injustos. Agora a injustiça tem prioridade: desde janeiro, María Corina teve sete dos seus colaboradores mais próximos presos, acusados ​​de participação em atos conspiratórios, e mais sete têm mandados de prisão .

Ela, sentada em seu escritório onde se destaca uma foto dos filhos, uma parede sem mais terços pendurados, uma bandeira da Venezuela e uma placa que diz nunca desista , frase imortalizada pelo ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill como o Os nazistas bombardeiam Londres, sorri gentilmente. Ele sai da perseguição que está enfrentando por um momento e pergunta se parece bem. Se as roupas combinam com você. Se estiver preparado o suficiente. A situação é triste e tensa e ela faz o possível para que o momento seja o mais sereno possível.

Ele explica que desta vez as coisas são diferentes. “A Venezuela mudou, nós, venezuelanos, mudamos, não temos mais medo”, afirma. "Uma senhora me disse um dia: 'María Corina, mas o que mais vão tirar de mim? Se já tiraram meus filhos de mim, o que mais vão tirar de mim?' derrubar as barreiras que o sistema construiu porque a primeira coisa que Chávez fez foi nos dividir: ricos, pobres, brancos, negros, esquerda, direita, mas essa mesma coisa nos uniu”, acrescenta.

Desses tempos de tanta luta e tanta repressão, é o único que resta. Saíram Antonio Ledezma, Juan Guaidó, Leopoldo López e Lilian Tintori. Eles os perseguiram, torturaram, silenciaram e, finalmente, fugiram do seu país. O que resta é Henrique Capriles que não tem a riqueza eleitoral de Machado e que também ficou turvo com esses altos e baixos de uma história cheia de infâmias. Embora muitos insistam que a oposição da Venezuela está dividida, María Corina assegura que há unidade. "O que mais você quer? Fizemos as primárias e foram impecáveis, consegui mais de 90% dos votos, isso é unidade”, explica.

Ela é uma mulher magra e bonita, de 56 anos, que parece imperturbável. Ele fala com as mãos, olha nos olhos, enfatiza suas palavras com os gestos do rosto, engole saliva toda vez que uma lágrima está para sair e repete suas convicções como se fossem um mantra. Ela tem a certeza de que pode retirar Maduro do poder: “O regime é fraco, muito mais fraco… é mais rude, mais descarado e opressivo, e tudo isto são sinais da sua fraqueza. Recorrem à violência porque não têm outros mecanismos para se imporem. Perderam toda a capacidade social e a capacidade de chantagem”, afirma.

Mas todo aquele temperamento sólido que ele expressa vacila quando fala dos filhos. Tem três. Ela os vê uma ou duas vezes por ano porque tiveram que sair da Venezuela e ela não pode visitá-los. Cada viagem deles é um risco que a mãe prefere correr muito pouco. “Faz dez anos que não consigo sair do país. Faz sete anos que não consigo pegar um voo doméstico. Digo que não sei como é o meu país visto do céu, mas cometeram um grande erro porque graças a isso me fizeram vivenciar a Venezuela por dentro. Conheço cada estrada, cada buraco na calçada, as pessoas me reconhecem”, explica.

Os seus filhos, que são o mais importante da sua vida – diz e reitera – são a sua fonte de culpa e dor. “Eu era a única mãe que não estava na mesma série dos meus filhos. Implorei ao juiz que me deixasse sair da Venezuela e ele não deixou. Não pude ir e foram os dias mais difíceis da minha vida”, lembra ele com a voz rouca e os olhos encharcados. A culpa é das mães ausentes. “Se você está no trabalho, você não está com seus filhos. Se você está com seus filhos, você não está brigando com sua comunidade. Queremos fazer tudo e bem feito. Lidar com a culpa tem sido um desafio muito grande”, afirma.

Casou-se com o empresário Ricardo Sosa antes dos 20 anos e aos 27 já tinha três filhos. “Disse aos meus amigos para não se casarem e acabei sendo a primeira a casar, porque me apaixonei”, conta. Ela estava destinada a trabalhar no grupo empresarial de seu pai, que era presidente da siderúrgica Venezolana SIVENSA, mas se apaixonou pela política mais do que pelo primeiro marido.

Sua história na política começou um dia quando sua mãe a convidou para visitar um centro correcional para menores em Caracas e desde então ela se convenceu de que poderia impactar positivamente as pessoas. “Isso mudou minha vida”, diz ele. Criou a Fundação Atenea e o que começou como um trabalho colateral tomou conta do seu dia a dia. “Até aquele momento, eu não tinha vivenciado tão de perto a realidade de um ser humano que não tem ninguém”, afirma.

María Corina Machado e Corina Yoris Villasana, a quem ela indicou para substituí-la como candidata presidencial, durante entrevista coletiva em Caracas, Venezuela, em 22 de março de 2024. (Gabby Oraoo - Reuters)

Desde então, respirou política. Ela deixou de ser esposa quando o desgosto entrou em sua casa e, com o tempo, tornou-se namorada de um advogado constitucional que conheceu em uma de suas muitas campanhas. É um amor construído na admiração e na lealdade. “Ele é um ser excepcional, vivemos momentos muito complexos”, afirma.

Ela e ele conhecem os perigos que enfrentam. É difícil compreender por que não a prenderam naquele país onde o atrevimento se tornou habitual. A explicação mais viável reside na comunidade internacional. María Corina Machado é um símbolo muito poderoso. A única mulher daquela geração de valentes aposentados, a mãe ausente e a filha exemplar que hoje enfrenta uma tristeza maior que a causada pelo chavismo: a recente morte do pai.

“É um vazio muito grande, não imaginava que conseguiria viver sem ele. Quando eu estava naquela época eu disse a ela 'não me deixe em paz'. Agora não'. Ele era um homem visionário que amava a Venezuela e tinha senso de responsabilidade pelo país. Sua morte me empurrou. “Isso me deu mais força”, diz ele e engole novamente para desabar.

Enquanto fala sobre sua vida e seus desejos, ele combina a tristeza com as poucas alegrias que esses tempos complexos lhe deixaram. Ele reitera suas convicções. Sorriso. Respire fundo; Ela faz uma pausa e fala novamente sobre o povo, o seu povo, os seus seguidores, a sua Venezuela destruída, as mães como ela que cresceram sem os filhos, a mudança que ela está obcecada em alcançar. Nas ruas de Caracas, todos que são questionados respondem sussurrando que querem uma mudança. María Corina Machado é perseguida, mas não amarrada. Corina Yoris carrega a tocha. O mundo observa seus movimentos com expectativa e quando você tem isso diante de você, a descrença se transforma em uma confiança raríssima. É uma mãe que pede ao deus dos filhos que a perdoe pelo tempo que não pôde passar com eles, mas é, acima de tudo, uma mulher decidida a fazer história.

Vanessa da Torre, de Caracas - Venezuela para o EL PAÍS, em 24.03.24

As lições sobre felicidade que podemos aprender com astecas e sua filosofia da 'vida digna de ser vivida'

Havia filósofos e sofistas, educação formal para ensinar valores e ideias profundas sobre a vida, tudo expressado em tratados, exortações e diálogos.





A comunidade era de essencial importância para os astecas (Getty Images)

Mas não se trata da Grécia antiga e, sim, do império asteca.

Entre os séculos 15 e o início do 16, os astecas construíram um império com uma cultura de grande riqueza filosófica onde hoje é o centro e sul do México.

"Temos muitos volumes de seus textos gravados na língua nativa, o náhuatl", escreveu Lynn Sebastian Purcell, professor de filosofia na Universidade Estadual de Nova York (SUNY) em Cortland, nos Estados Unidos, em um artigo publicado há alguns anos na revista de divulgação científica Aeon.

"Poucos dos livros pré-coloniais de tipo hieróglifo sobreviveram às queimadas espanholas, então nossas principais fontes de conhecimento derivam dos registros feitos pelos sacerdotes católicos até o início do século 17."

Purcell pesquisou extensamente a filosofia e a ética antigas, em especial as da América Latina e dos astecas.

"Acho fascinante que os nahuas (astecas) tenham sido outra cultura pré-moderna com uma ética das virtudes, apesar de bastante diferente da de Aristóteles e Confúcio", disse ele à Associação Americana de Filosofia (APA, na sigla em inglês) em uma entrevista de 2017.

E reconheceu que era interessante para ele aprofundar-se em um campo no qual, ao longo de todos esses séculos, a academia havia deixado um "vazio evidente".

Ele acrescentou, inclusive, que os dois grandes estudiosos da filosofia asteca, o antropólogo mexicano Miguel León-Portilla e o filósofo americano James Maffie, fizeram um grande trabalho em analisar sua metafísica, mas não sua ética.

A boa vida

O famoso Códice Florentino, uma compilação de conhecimentos dos astecas feita pelo missionário franciscano espanhol Bernardino de Sahagún, reproduz o discurso de um rei antes de assumir seu posto.




Uma página do famoso Códice Florentino, compilação feita pelo missionário franciscano espanhol Bernardino de Sahagún (Getty Images)

Ali, ele fala sobre como vive um homem "venerado": ele é "defensor e provedor", diz ele, "como a árvore de cipreste, na qual as pessoas se refugiam".

Mas esse mesmo homem também "chora e aflige-se". O rei então se pergunta: "Há alguém que não deseje a felicidade?".

O texto, segundo Purcell, revela uma das maiores diferenças entre a filosofia da Grécia antiga e a do império asteca.

"Os astecas não acreditavam que houvesse qualquer ligação conceitual entre levar a melhor vida que podemos e experimentar prazer ou 'felicidade'", escreveu ele.

Ou seja, para eles, ter uma boa vida e ser feliz não estavam associados, algo que pode soar estranho dada a tradição filosófica do Ocidente.

Terra escorregadia

Em um artigo premiado pela APA como melhor ensaio sobre a América Latina de 2016, Purcell explicou que essa dissociação tem sua raiz em um problema existencial descrito pelos filósofos ou tlamatinime.

Existe um ditado asteca que resume este problema e que poderia ser traduzido como "escorregadia, escorregadia é a terra".

Tenochtitlán era a capital do império asteca e estava onde é hoje a Cidade do México (Getty Images)

"O que eles queriam dizer é que, apesar de ter as melhores intenções, nossa vida na terra é uma na qual as pessoas são propensas a erros, propensas ao fracasso em seus objetivos e propensas a 'cair', como se estivessem na lama", detalhou Purcell.

"Além disso, esta terra é um lugar onde as alegrias só vêm misturadas com dor e complicações."

Os astecas acreditavam que por mais que uma pessoa fosse boa, talentosa e inteligente, coisas ruins poderiam acontecer. Ou você poderia errar, escorregar e cair.

Por isso, antes de procurar deliberadamente uma felicidade que, na melhor das hipóteses, seria passageira e aleatória, o objetivo, para os astecas, era levar uma vida digna de ser vivida.

Os astecas elaboraram sua própria ética das virtudes, que é diferente da de filósofos como Aristóteles ou Confúcio (Getty Images)

Quatro níveis

Para definir o que é uma vida digna de ser vivida, os astecas usavam a palavra neltiliztli, que pode ser traduzida como "arraigada" ou "enraizada".

Esta vida enraizada poderia ser alcançada em quatro níveis, escreveu Purcell em um artigo também publicado na Aeon em 2016.

O primeiro nível "começa com o próprio corpo, algo que muitas vezes é negligenciado na tradição europeia, preocupada com a razão e a mente", afirmou o filósofo.

Para isso, os astecas tinham um regime de exercícios diários surpreendentemente semelhante à ioga.

O segundo nível envolve enraizar-se com a própria psique, um conceito que igualmente não dizia respeito apenas à mente, mas também aos sentimentos.

Em terceiro lugar estava a comunidade, algo de importância crucial para os astecas.

Diferentemente de Platão ou Aristóteles, que propuseram uma ética das virtudes centrada no indivíduo, essa civilização indígena colocava a sociedade como o eixo principal.

Uma vida digna de ser vivida não era possível sem laços familiares, amigos e vizinhos, que o ajudarão a se levantar das inevitáveis quedas na terra escorregadia.

E, por último, estava o enraizamento a teotl, uma divindade que não era outra coisa senão a natureza.

É assim que esse quarto nível era alcançado com os três anteriores. Mas compondo filosofia poética alcançava-se ainda mais rápido.

Os conquistadores espanhóis podem ter derrubado o império asteca. Mas suas ideias persistem (Getty Images)

A decisão de Ulisses

As ideias filosóficas dos astecas são por vezes recebidas com algum ceticismo.

Purcell costuma usar A Odisséia de Homero para explicar em suas aulas na SUNY por que essa civilização tinha razão ao afirmar que a felicidade é um objetivo de vida equivocado.

Em um trecho do poema épico grego, o protagonista, Ulisses, passa sete anos em uma ilha paradisíaca com a deusa Calipso.

A deusa, então, apresenta-lhe um dilema: ele pode ficar com ela e desfrutar da imortalidade e da eterna juventude na ilha, ou retornar ao mundo real, cheio de dor e sacrifício, mas onde também vive sua família.

Ulisses “decide se aventurar em águas abertas em um barco frágil em busca de sua esposa e filho”, recapitulou Purcell no artigo da APA.

É então que ele pergunta a seus alunos o que eles teriam escolhido: “Nunca houve quem discordasse de Ulisses”.

Ana Pais, jornalista, para a BBC News Mundo, em 21 março 2024. Publicado originalmente em março de 2019.

sexta-feira, 22 de março de 2024

Russos que lutam com a Ucrânia alertam que só a luta armada pode derrubar Putin

O ultranacionalista Corpo de Voluntários Russos, a Legião da Liberdade Russa e o Batalhão Siberiano afirmam ter ocupado várias aldeias em território inimigo

Combatentes russos contra Putin Alexei Baranovski, Jolod e Denis Kapustin, esta quinta-feira em Kiev. (Thomas Peter - Reuters)

O tempo de oposição pacífica ao líder russo Vladimir Putin acabou e é hora de pegar em armas. Esta é a mensagem que os três grupos paramilitares russos que lutam nas fileiras ucranianas reiteraram esta quinta-feira numa conferência de imprensa em Kiev. O Corpo de Voluntários Russos (RDK), a Legião da Liberdade Russa e o Batalhão Siberiano informam que desde 12 de março asseguraram posições nas províncias russas de Kursk e Belgorod – na fronteira com a Ucrânia – e até assumiram o controlo de duas aldeias nesta última. “Cada vez mais pessoas na Rússia assumem que a única alternativa contra Putin são as armas. Infelizmente, o protesto pacífico não funciona, apenas armas nas mãos”, disse Jolod, codinome de um representante do Batalhão Siberiano.

Os comandantes do RDK e da Legião da Liberdade da Rússia expressaram-se no mesmo sentido. “Temos que acabar com algumas das ilusões da oposição. Os esforços devem concentrar-se nas unidades que lutam nesta guerra”, disse Denis Kapustin, fundador do RDK, o maior dos três grupos, com uma ideologia ultranacionalista e de extrema direita. “Somos contra declarações confusas e ações inúteis. Não há outra opção senão pegar em armas”, acrescentou Kapustin. Explicou que manteve conversações com Gari Kasparov, um dos líderes da oposição política a Putin, e que lhe deu o seu apoio: “Se eles não querem participar [no conflito armado], dê-nos apoio, porque se não, não podem ser chamados de oposição.”

O RDK e a Legião da Liberdade Russa já entraram na província de Belgorod vindos da Ucrânia por algumas semanas na primavera de 2023, e no inverno, na província de Bryansk. A operação é agora maior, dizem, porque têm mais voluntários e armas, razão pela qual expandiram os combates para Kursk. Representantes das três organizações confirmaram que, tal como em 2023, contam com combatentes de outras nacionalidades , incluindo a Ucrânia, embora a maioria seja russa. O EL PAÍS tem conhecimento de que em 2023 voluntários polacos, mas também mercenários da América Latina, entraram em Belgorod.

Algumas das armas utilizadas no ano passado vieram de países da NATO. Isto causou tensões entre a Ucrânia e os seus aliados porque os membros da Aliança Atlântica reiteraram que não querem que o seu arsenal seja usado contra o território russo. Nesta ocasião asseguram que a maior parte do seu equipamento, incluindo tanques e infantaria blindada, provém de material capturado ao exército russo, além de aquisições que fizeram. “Estamos perante uma oportunidade histórica de combater o regime de Putin com armas”, enfatizou Alexei Baranovski, membro da Legião da Liberdade Russa. Tanto os Serviços de Inteligência Ucranianos (GUR) como estes grupos armados russos confirmaram que a coordenação entre eles é activa e necessária para levar a cabo as incursões. Baranovski comentou que os seus homens “lutam com a Ucrânia para vencer a guerra”, como forma de fazer “política radical” para derrubar Putin.

A conferência de imprensa, apresentada pelo exército ucraniano, foi preparada com elevado sigilo e sob fortes medidas de segurança. Em todos os cantos da sala de conferências havia homens usando balaclavas e armados com rifles de assalto, pertencentes ao RDK. As três organizações indicaram que estão unidas pelo objectivo da liberdade na Rússia, mas também reconheceram diferenças importantes entre elas. Kapustin lembrou que a RDK é uma espécie de “irmandade” ultranacionalista a favor de uma sociedade de valores conservadores. “Temos uma forma diferente de recrutamento e formação, oferecemos doutrinação ideológica e introduzimos tradições nas nossas unidades.” Kapustin, em particular, destacou a diferença que mantêm com o Batalhão Siberiano em termos de modelo de Estado. O RDK foi rejeitado pelos grupos de oposição política russa devido à sua ideologia extremista. Até mesmo o fundador do Batalhão Siberiano, Vladislav Amosov, foi rejeitado das fileiras do RDK por ser de etnia Yakut .

Jolod respondeu que o Batalhão Siberiano persegue um modelo de Estado descentralizado, mais autonomia para as nações que compõem a Rússia e até a sua autodeterminação. Baranovski resumiu que a Legião da Liberdade Russa tem membros de diferentes nacionalidades e segue o liberalismo de Alexei Navalny, a quem considera a sua referência política . O opositor Navalni morreu em fevereiro passado numa prisão russa.

O ataque a Belgorod e Kursk começou na semana das eleições presidenciais russas, numa tentativa de desestabilizar o poder de Putin nas urnas. Representantes do RDK, da Legião da Liberdade Russa e do Batalhão Siberiano também salientaram que as suas ações estão a ajudar o exército russo a alocar unidades contra eles e não na frente de guerra ucraniana, onde as tropas de Moscovo têm superioridade em todas as áreas.

Nas últimas semanas, a verdadeira extensão das incursões destes grupos em território russo tem sido questionada. Kapustin avançou que para demonstrar os seus sucessos, “nas próximas 48 horas, serão tornados públicos vídeos ao estilo de Hollywood, com combates e explosões”. Apesar da mensagem optimista sobre um futuro derrube pelas armas de Putin, e sobre o número crescente de russos que se alistam nas suas fileiras, segundo a versão dos três paramilitares, Baranovski admitiu que as suas operações são de guerrilha. “Não é tão importante controlarmos dois municípios, seguimos táticas partidárias e é inevitável diante de um inimigo muito maior.” Nenhum deles quis especificar quantos homens têm. “A mídia russa disse em 2023 que éramos um pequeno grupo fazendo vídeos no Tiktok”, comentou Kapustin, “e agora o Ministério da Defesa informa que matam entre 50 e 100 de nossos combatentes todos os dias”. Isto, concluem, é a prova do seu crescimento.

Cristian Segura, o autor deste artigo, escreve no EL PAÍS desde 2014. Formado em Jornalismo e diplomado em Filosofia, exerce a profissão desde 1998. Foi correspondente do jornal Avui em Berlim e posteriormente em Pequim. É autor de três livros de não ficção e dois romances. Em 2011 recebeu o prêmio Josep Pla de narrativa. Publicado no EL PAÍS, em 21.03.24

Como aumentar o valor da democracia?

Provar que Bolsonaro orquestrou um golpe de Estado não parece reduzir seu apoio popular

O então presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, participava de cerimônia militar em Brasília em agosto de 2022. (Ag. Anadolu)

Até agora, dois generais confirmaram que Jair Bolsonaro, o ex-presidente de extrema direita do Brasil, queria dar um golpe para permanecer no poder depois de perder as eleições para Luiz Inácio Lula da Silva. E não quaisquer generais, mas os mais altos oficiais do Exército e da Aeronáutica do próprio Governo de Bolsonaro. Mesmo assim, Bolsonaro – inelegível até 2030 – sente-se à vontade para fazer campanha para apresentar prefeitos e vereadores para as eleições deste ano. Bolsonaro tem certeza de que não perderá prestígio entre seus seguidores mesmo que seja julgado por ataque à democracia. Infelizmente, parece que ele está certo.

Em países como o Brasil, a democracia está longe de ser um valor absoluto pelo qual a maioria luta. Em parte, porque muitos não acreditam que isso mudará especialmente as suas vidas. A ditadura militar (1964-1985) sequestrou, torturou e executou opositores. Mas quando o país se redemocratizou, a polícia continuou a invadir casas, sequestrar e matar pessoas nas favelas e bairros pobres, onde vive a maioria da população. Com impunidade, e sem incomodar particularmente os mais ricos, geralmente brancos, que continuam a ocupar posições de poder nas instituições democráticas.

Esta democracia selectiva, que deixou de fora ou incluiu apenas parcialmente os mais pobres, está hoje a cobrar o seu preço. Lula sempre acreditou que o voto depende da economia, da sensação das pessoas de que sua vida material melhorou, o que de fato funcionou nos seus dois primeiros mandatos, que terminaram com índices recordes de aprovação. Mas já não. Nada parece ser mais importante para uma parcela significativa dos brasileiros do que sentir-se seguro num momento de tantas incertezas, quando até o clima está mudando. Certeza de que seu celular não será roubado numa esquina, mas também certeza de que a única família abençoada por Deus é a de um “homem com uma mulher”.

A segurança física e material tem sido articulada de forma decisiva com o que poderia ser chamado de segurança moral, cada vez mais determinada pelas igrejas evangélicas neopentecostais no Brasil atual. Um tornou-se obrigatoriamente ligado ao outro.

Se a contradição é que os policiais que matam os pobres e os negros são em sua maioria apoiadores de Bolsonaro, a extrema direita convence seus seguidores de que a esquerda transformou o Brasil numa Sodoma. A insegurança urbana, nesse discurso, seria resultado da corrosão dos valores morais e dos costumes conservadores, e quem vive fora desses valores torna-se um inimigo que deve ser eliminado. Quando o debate político é reduzido a uma guerra do bem contra o mal, com o mal encarnado por todos os que discordam do grupo que afirma ter o monopólio do bem, a democracia pouco pode contar.

Tanto é verdade que a palavra que une este setor da população que se reúne em torno de Bolsonaro não é democracia, mas “liberdade”: a liberdade de eliminar tanto as leis como os direitos de todos aqueles que ameaçam o seu lugar precário e mutável. mundo inóspito.

Ainda assim, o Brasil está longe de se tornar a Rússia. As investigações avançam e existe a possibilidade de Bolsonaro finalmente ser preso, mesmo que isso desagrade parte do país. Mas tão crucial como punir aqueles que a atacaram é fazer com que valha a pena defender a democracia, não apenas nas instituições, mas nas ruas. Como aumentar rapidamente o valor da democracia num contexto tão hostil é a questão mais difícil que um governante como Lula deve responder.

Eliane Brum, Jornalista, a autora deste artigo, trabalha para O EL PAÍS. Publicado originalmente em 20.03.24. Tradução de Meritxell Almarza .

Salgado Maranhão é eleito para a Academia Maranhense de Letras

A Academia Maranhense de Letras (AML) elegeu nesta quinta-feira, 21, em primeiro escrutínio, o poeta Salgado Maranhão para a Cadeira 7, que era ocupada pelo jornalista e escritor Antônio Carlos Lima, morto em outubro de 2023. Salgado obteve 32 dos 35 votos válidos.

José Salgado Santos Costa Maranhão é natural de Caxias (MA). Na adolescência migrou para Teresina, com a família, e descobriu a poesia canônica lendo Camões, Gonçalves Dias, Fernando Pessoa, Maiakovski, entre outros. Em 1972, conheceu o poeta tropicalista Torquato Neto, que o aconselhou a ir para o Rio de Janeiro, onde vive até hoje.

Seus primeiros poemas saíram na antologia “Ebulição da Escrivatura” (Ed. Civilização Brasileira, RJ, 1978). De lá para cá, publicou 19 livros e ganhou uma dezena de prêmios literários, tais como o Prêmio Jabuti (2 vezes), o Pen Clube e o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras. Sua obra tem reconhecimento internacional, com poemas traduzidos em inglês, francês, espanhol, japonês, alemão esperanto e árabe. Mais de 100 universidades americanas lhe convidaram para conferências nos últimos 12 anos, e seus textos saíram no “The New York Times”.

Além de poeta e jornalista, Salgado Maranhão é também compositor-letrista, tendo realizado parcerias e gravações com os principais artistas da música brasileira, entre eles Ivan Lins, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Zé Américo Bastos, Zeca Baleiro, Vital Farias, Martinho da Vila, Dominguinhos, Ney Matogrosso, Elba Ramalho Zizi Possi e Alcione.

Por conta da história de vida e da sua impactante trajetória literária, o poeta recebeu, em 2017, o Título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Piauí. E, em 2022, foi a vez da UFMA lhe acolher com a mesma láurea.

O poeta eleito tem o prazo de seis meses para tomar posse na Academia Maranhense de Letras.

Publicado originalmente n'O Imparcial,em21.03.23

quinta-feira, 21 de março de 2024

As cidades que estão tirando concreto das ruas para que plantas cresçam de novo

A ideia da despavimentação é simples: substituir o máximo de concreto, asfalto ou outras formas de construção urbana por plantas e terra.

Muitos dos projetos de despavimentação são realizados por voluntários (Crédito: Elle Hygge)

Em um dia quente de julho, Katherine Rose pegou uma barra de metal e a colocou sob uma laje de concreto.

Rose, diretora de comunicações da Depave — uma organização sem fins lucrativos de Portland, nos Estados Unidos — suava por causa do calor, mas não se deixou derrotar por um pesado pedaço de cimento.

O grande bloco de crosta urbana à sua frente estava prestes a se mover. Usando um pouco de força com a barra de metal, Rose conseguiu remover o retângulo de concreto e colocá-lo fora da calçada.

"É como libertar a terra", diz ela.

Em meados do ano passado, ela e outros 50 voluntários removeram cerca de 1.670 metros quadrados de concreto perto de uma igreja local.

"É como realizar um sonho que todos nós tornamos realidade", diz ele.

Esse sonho é trazer a natureza de volta para ambientes urbanos.

A ideia da despavimentação é simples: substituir o máximo de concreto, asfalto ou outras formas de construção urbana por plantas e terra.

Na cidade de Portland isso é feito desde 2008, quando foi fundada a Depave.

Os idealizadores do programa argumentam que a despavimentação permite algo muito simples: a água da chuva passa a ser absorvida pela terra e, desta forma, evitam-se inundações.

O processo também permite que plantas silvestres cresçam no espaço urbano e, ao plantar mais árvores, é possível produzir mais sombra, o que, por sua vez, protege os moradores das cidades da radiação solar e das ondas de calor.

Sem contar que ampliar a área verde de uma cidade pode ajudar na saúde mental das pessoas.

A despavimentação é um processo que permite a utilização do terreno para a plantação de jardins ou áreas verdes. (Cidade de Lovaina)

Além dos voluntários

Mas se a remoção de pavimentação puder realmente se tornar uma solução, terá de ir muito além do que algumas dezenas de voluntários podem fazer.

Com o agravamento das mudanças climáticas, cidades e regiões inteiras começaram a adotar a despavimentação como parte da sua estratégia de adaptação aos novos tempos.

É hora, dizem alguns, de começar a remover o concreto das ruas de forma mais eficaz para criar melhores espaços para a natureza.

Por isso, toda vez que Rose caminha por uma cidade ela não consegue deixar de notar onde o asfalto poderia ser retirado para colocar algumas plantas.

"Eu sempre quero fazer mais. É impossível não ver os espaços para fazer isso", afirma.

Ela observa que seu grupo conseguiu "descascar" cerca de 33 mil metros quadrados de asfalto em Portland desde 2008 (o que equivale a quatro campos e meio de futebol).

Ela descreve o trabalho como "divertido", porque reúne muitos voluntários, que fazem um curso de segurança antes de iniciarem a tarefa.

A Green Venture é outra organização sem fins lucrativos que opera em Ontário, no Canadá, inspirada no trabalho realizado em Portland.

Giuliana Casimirri, diretora executiva, conta que ela e seus colegas conseguiram inserir pequenos jardins com árvores nativas em um bairro da cidade de Hamilton.

"Antes eram lugares por onde você passava rapidamente e agora são lugares onde você pode parar e começar a conversar", explica.

Em Hamilton, as inundações podem fazer com que o esgoto se misture com os afluentes do Lago Ontário, que é a principal fonte de água potável da cidade.

A ideia da Green Venture e de outras organizações locais é reduzir as chances de isso acontecer, diz Casimirri.

Sua visão é uma estratégia fundamental para a cidade.

Na verdade, estudos demonstraram que superfícies impermeáveis, como o concreto, aumentam os riscos de inundações em áreas urbanas.

Rose observa que os esforços de sua equipe em Portland resultaram no desvio anual de cerca de 83 milhões de litros de água da chuva para o sistema de drenagem da cidade.

Em Leuven, na Bélgica, Baptist Vlaeminck, líder do projeto local de adaptação às mudanças climáticas, estima que só em 2023 a remoção de 6.800 metros quadrados de concreto permitiu que 1,7 milhão de litros de água da chuva fossem absorvidos pela terra.

"Com as mudanças climáticas, as tempestades vão aumentar, por isso a despavimentação não é apenas algo agradável, é uma necessidade", diz Casimirri.

A questão agora é se as autoridades municipais estão cientes disso.

Em muitas partes do mundo, a despavimentação é vista como uma atividade marginal.

"Vamos precisar de uma escala de investimento com muito mais zeros para continuar", disse Thami Croeser, da Universidade RMIT em Melbourne, Austrália.

Mudança de mentalidade

Os esforços comunitários para libertar ruas são "fantásticos", diz Croeser.

Mas ela acrescenta que o ideal é que, em vez de não pavimentar e tornar os locais mais verdes, haja investimentos em criar uma nova forma de construir estruturas urbanas.

Na Europa, pelo menos, algumas cidades começaram a despavimentar de forma consistente.

Os residentes de Londres, por exemplo, foram estimulados a recuperar o verde do solo dos seus jardins.

A cidade de Leuven, na Bélgica, está abraçando a ideia de despavimentação em grande escala.

O bairro Spaanse Kroon desta cidade, onde vivem cerca de 550 pessoas, é um dos mais recentes alvos da iniciativa local de regeneração de espaços verdes.

Os planos envolvem a remoção de um volume significativo de asfalto de áreas residenciais e a obrigação de ciclovias e áreas para pedestres nas ruas.

"Estamos ampliando o programa, agora estamos criando uma equipe dedicada à despavimentação", afirma Vlaeminck.

Projetos como esse devem atender às necessidades de todos na cidade, ressalta.

Vlaeminck afirma que, para ajudar quem tem problemas de visão ou mobilidade, as áreas não utilizadas das ruas ou calçadas têm prioridade na despavimentação, deixando uma área de mais de um metro nas próprias calçadas para que as pessoas tenham espaço suficiente para se movimentar.

O pavimento existente que não é removido também é renovado ou reparado para garantir que não haja buracos ou desníveis.

Os responsáveis ​​pela Depave em Portland e pela Green Venture em Ontário dizem que trabalham com as comunidades para que os requisitos de acessibilidade sejam atendidos.

Casimirri está se referindo a um projeto recente que substituiu concreto danificado e dilapidado por arbustos e caminhos nivelados no meio.

Entre as iniciativas promovidas em Leuven está o "táxi de detritos".

Trata-se de um pequeno caminhão que é enviado até casas de moradores que tenham entulho ou pedaços de concreto retirados de seus jardins.

O material é reutilizado, diz Vlaeminck, acrescentando que Leuven destinou vários milhões de euros para financiar projetos de remoção e renaturalização como este.

Desde janeiro de 2024, os promotores desta iniciativa tiveram de demonstrar que qualquer chuva que caia em casas novas ou significativamente renovadas pode ser reutilizada no local ou filtrada no jardim da propriedade, em vez de se acumular e causar inundações.

Se os promotores não conseguirem demonstrar que os seus projetos estão preparados para chuvas extremas, não serão aprovados, explica Vlaeminck.

A França também está oficializando a despavimentação, diz Gwendoline Grandin, ecologista da Agência Regional de Biodiversidade de Île-de-France.

A nível nacional, o governo francês destinou quase U$ 540 milhões (cerca de R$ 2,7 bilhões) para projetos de ecologia urbana. Isto inclui a remoção do pavimento, mas também a instalação de paredes e telhados verdes, por exemplo.

Parte da motivação é tornar as vilas e cidades mais resilientes às ondas de calor do verão, que afetaram gravemente grandes áreas da França nos últimos anos.

Alguns dos projetos em curso são de dimensão significativa, como um antigo parque de estacionamento perto de uma floresta na região de Paris.

Uma das áreas despavimentadas tem 45 mil metros quadrados.

Retirado o cimento, o terreno nivelado está sendo remodelado para introduzir declives e barrancos que retêm água. Em breve, toda a área também será plantada.

Na cidade natal de Croeser, em Melbourne, ele e seus colegas estudaram o espaço potencial disponível para regeneração com jardins e paredes verdes.

Um estudo de 2022 simulou o impacto com base em diferentes cenários, o mais ambicioso dos quais envolveu a eliminação de metade dos lugares de estacionamento exteriores da cidade, cerca de 11 mil vagas.

Croeser argumenta que há estacionamento suficiente disponível em Melbourne para garantir que ninguém fique sem um lugar para deixar seu veículo, mas que essas vagas de estacionamento internas devem ser públicas e acessíveis.

"O princípio básico é que não há perda líquida de acesso ao estacionamento", diz ele.

"E temos disponíveis entre 50 e 60 hectares de espaços verdes, que mantêm a cidade fresca e evitam inundações", destaca.

Pode parecer improvável que pequenas áreas verdes espalhadas aqui e ali numa cidade grande como Melbourne beneficiem significativamente a vida selvagem, mas Croeser diz que essas áreas de habitat são cruciais.

Segundo ele, esses espaços podem permitir que as espécies se locomovam e se desenvolvam em um ambiente que, em última análise, é bem diferente daquele em que vivem há anos.

Em seu estudo de 2022 sobre pavimentação em Melbourne, a equipe de Croeser incluiu modelos que sugeriam que um aumento modesto na vegetação poderia permitir que espécies como a abelha-de-faixa-azul vagassem por uma área urbana muito maior do que ocupavam anteriormente.

Rose concorda com Croeser que, para mudar o mundo, cidades inteiras, e até países inteiros, terão que abraçar totalmente a proposta.

Mas sublinha que, para chegar a esse ponto, as comunidades devem manifestar o seu apoio à ideia.

"Tudo começa com as pessoas pressionando o seu governo e iniciando essas conversas em um nível pequeno e local", diz ele. "É assim que acontece."

Chris Baraniuk, originalmente, para a BBC Culture,  em 19.03.24

Lula é 'um gerente muito ruim' de sua coalizão de poder, diz cientista político Carlos Pereira

O segundo ano de mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) começa marcado por reveses para o presidente.

Queda de popularidade do presidente Lula se deve principalmente à inflação, fruto de política fiscal frouxa, mas ainda há tempo de mudar, diz professor da FGV (Crédito: Reuters)

 Apesar do desempenho acima do esperado da economia, o petista vê sua popularidade cair nas pesquisas de opinião e sofre derrotas no Congresso, como a eleição de nomes da oposição para a presidência de comissões estratégicas na Câmara dos Deputados.

Seria um sinal de fracasso do presidencialismo de coalizão, modelo político em que a governabilidade é garantida através da distribuição de cargos e verbas aos diferentes partidos?

Carlos Pereira, professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV), acredita que não.

"O presidencialismo de coalizão está mais firme do que nunca. O problema é que o presidente Lula é um mau gerente de coalizão. Ele montou uma coalizão grande demais – tem 16 partidos, é uma coalizão gigante, muito difícil de coordenar", diz Pereira, em entrevista à BBC News Brasil.

Para o analista, a queda de popularidade de Lula se deve principalmente à inflação resiliente, que é impactada pela política fiscal frouxa adotada pelo governo. A boa notícia é que ainda dá tempo de mudar, diz Pereira.

"Ainda é cedo. Início do segundo ano de mandato, o governo ainda tem tempo para recuperar. Mas ele não dá sinais críveis de que irá implementar uma política responsável do ponto de vista fiscal e orçamentário. Pelo contrário, o governo tem sinalizado que a saída para aumentar sua popularidade é aumentar gasto", critica.

Em meio ao avanço das investigações sobre suposta tentativa de golpe conduzida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o cientista político tem sido uma das poucas vozes a defender reiteradamente que não houve chance real de ruptura ou mesmo fragilização da democracia no governo Bolsonaro.

"Minha interpretação é de que os generais se recusaram [a embarcar no golpe] porque os custos políticos, institucionais e reputacionais, para qualquer um que pudesse enveredar em uma tentativa de ataque à democracia, são impagáveis", afirma.

"No momento em que esses generais peitam Bolsonaro, eles não o fazem apenas motivados pelas suas preferências individuais ou pelo seu heroísmo individual, mas porque estão inseridos em um contexto institucional que os constrange."

Pereira discute este e outros temas no livro Por que a democracia brasileira não morreu?, escrito em coautoria com Marcus André Melo, e que deverá ser lançado pela Companhia das Letras em maio.

Para o cientista político, o cenário que se coloca para as eleições municipais com Lula com a popularidade em queda e Bolsonaro pressionado pela Justiça é de oportunidade.

"Bolsonaro, com os custos políticos de uma eventual condenação judicial, possivelmente vai perder capital político. E Lula vai perder esse antagonismo, que também o beneficia", afirma.

"Com um dos polos se tornando carta fora do baralho e o outro fragilizado, é uma oportunidade para os partidos e os candidatos tentarem outras agendas e não essa agenda nacional polarizada."

Confira os principais trechos da entrevista.

Carlos Pereira (foto) lança em maio, pela Companhia das Letras, o livro Por que a democracia brasileira não morreu?, em coautoria com Marcus André Melo (Divulgação)

BBC News Brasil - O senhor tem defendido que não houve chance real de ruptura no governo Bolsonaro, devido à resiliência das instituições brasileiras. À luz dos depoimentos dos comandantes das Forças Armadas que revelaram que o ex-presidente chegou a conduzir reuniões para discutir documentos com teor golpista, o senhor ainda avalia que a democracia do país não correu risco?

Carlos Pereira - Sim. Acredito que os depoimentos confirmam exatamente o que eu venho defendendo.

BBC News Brasil - Por quê?

Pereira - Porque existem duas avaliações nisso. Quanto a esse general e esse tenente-brigadeiro [os ex-comandantes do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Carlos Almeida Baptista Junior] que foram os que deram depoimentos e que, de certa forma, se opuseram à ideia golpista de Bolsonaro, uma interpretação é percebê-los como heróis.

O próprio presidente Lula disse isso na reunião ministerial [realizada na segunda-feira, 18/3]. Ele faz uma análise individual, como se o Brasil tivesse escapado do risco porque esses generais se recusaram a embarcar no golpe.

Já a minha interpretação é de que esses generais se recusaram porque os custos políticos, institucionais e reputacionais para qualquer um que pudesse enveredar em uma tentativa de ataque à democracia são impagáveis.

A sociedade brasileira é uma sociedade muito sofisticada, que tem múltiplos interesses, mas que tem a democracia como um valor de agregação importante e revela essa agregação em vários momentos.

Quanto o Brasil esteve perto de um golpe militar em 2022?

'Generais se recusam a embarcar no golpe e peitam Bolsonaro, não motivados por preferências individuais ou heroísmo, mas porque estão inseridos em um contexto institucional que os constrange', diz cientista política da FGV.(Crédito: Reuters)

BBC News Brasil - Quais momentos, por exemplo?

Pereira - Por exemplo, quando o governo Bolsonaro se recusou a compartilhar os dados de contaminação e mortes na pandemia, ocorreu um movimento espontâneo de competidores no mercado de mídia – Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo, G1, Extra e UOL – todos eles montarem um consórcio de imprensa em que eles se responsabilizaram por pesquisar dados sobre contaminação e morte das pessoas na pandemia.

Isso mostra uma capacidade absurda, mesmo de competidores, de abrir mão da sua competição diante de um bem coletivo maior.

Outro exemplo importante foi quando Bolsonaro chamou aquela fatídica reunião com os embaixadores contra a urna eletrônica e organizou uma parada militar em Brasília no dia da votação [na Câmara dos Deputados da proposta de emenda constitucional] do voto impresso.

A sociedade deu uma resposta fortíssima, com mobilizações puxadas pelo departamento de Direito da USP, em que mais de 1 milhão de pessoas assinaram a carta em defesa da democracia, mostrando que uma diversidade enorme de pessoas que pensam diferente, que têm ideologias diferentes, que têm preferências políticas e partidárias diferentes, se agregaram em torno da democracia.

BBC News Brasil - E quanto às instituições?

Pereira - Você tem o multipartidarismo, que torna muito difícil para um populista, seja ele de esquerda ou de direita, fazer valer sua preferência de forma autoritária. Ele vai ter que convencer muita gente, porque são muitos partidos, com vários pontos de veto em potencial.

Temos o federalismo, constituições estaduais, judiciários estaduais, governadores.

Quer dizer, é um gama tão grande de atores que um populista tem que convencer em torno de um projeto autoritário, que esse projeto não tem chance de vingar.

Então, no momento que esses generais se recusam e peitam Bolsonaro, eles não o fazem apenas motivados pelas suas preferências individuais ou pelo seu heroísmo individual, mas porque eles estão inseridos em um contexto institucional que os constrange e que restringe o leque de opções que esses caras teriam para atuar fora do campo democrático.

Então o golpe fracassou porque esse conjunto complexo de instituições da sociedade impõe custos muito altos – custos impagáveis – para quem decide trilhar um caminho dessa natureza.

Após reunião de Bolsonaro com embaixadores, sociedade deu 'resposta fortíssima' através de carta em defesa da democracia com mais de 1 milhão de assinaturas, diz Pereira (Reprodução)

BBC News Brasil - O senhor citou a questão do multipartidarismo e como é difícil para um populista fazer valer suas preferências nesse cenário. Isso leva à minha próxima pergunta: por que o presidencialismo de coalizão parece não ter sido capaz de moderar Bolsonaro, já que ele aparentemente cogitou a possibilidade de golpe até o fim do governo?

Pereira - Eu acredito que moderou sim. Veja, Bolsonaro foi eleito negando a própria política. Ele fez uma associação direta entre o presidencialismo de coalizão e a corrupção do PT no passado.

Com poucos meses de governo, em que ele não tinha maioria [no Congresso], não tinha coalizão, ele saiu de seu próprio partido [então o PSL] e governou por quase um ano e meio sem qualquer partido.

Nesse momento, Bolsonaro era muito perigoso, porque ele estava negando as instituições e surfando de forma não institucional.

Mas veio a pandemia e uma série de pedidos de impeachment começaram a chegar na mesa do presidente da Câmara – ainda um presidente da Câmara hostil a Bolsonaro, que era Rodrigo Maia [então do DEM-RJ] na época. E Bolsonaro saiu desesperado tentando construir uma coalizão.

No momento em que Bolsonaro faz uma coalizão com o Centrão, ele se domestica, ele perde esse discurso antipolítica, e ele começa a fazer política.

Entretanto, todo bom populista não pode abrir mão na sua totalidade do discurso que o faz viável eleitoralmente.

Então ele foi nesse fio da navalha até o final de seu governo, namorando com o perigo, mas com as instituições o tempo inteiro dando limites para ele.

Por exemplo, o governo Bolsonaro foi o governo que mais enfrentou derrotas sucessivas no Judiciário e derrotas sucessivas no Legislativo.

Isso significa que as instituições estavam muito atentas e muito vigilantes, a despeito de ele ficar namorando com o perigo não institucional o tempo inteiro, enquanto também jogava o jogo institucional o tempo inteiro.

Foi esse jogo duplo que Bolsonaro jogou a partir do momento em que procurou o Centrão em 2020.

O deputado federal bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG) foi eleito presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados (Crédito: Ag. Câmara de Noticias)

BBC News Brasil - Falando então de derrotas do governo, mas agora puxando para o governo atual. O governo petista tem enfrentado sucessivas derrotas no Congresso, sendo a mais recente a vitória da oposição para o comando de comissões estratégicas, como CCJ [Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania] e Educação. Na sua visão, ainda faz sentido falar em presidencialismo de coalizão na conjuntura atual ou isso parou de funcionar?

Pereira - O presidencialismo de coalizão está mais firme do que nunca. O problema é que o presidente Lula é um mau gerente de coalizão. Ele montou uma coalizão grande demais – tem 16 partidos na sua coalizão, é uma coalizão gigante, muito difícil de coordenar.

E ele chamou 16 partidos muito heterogêneos, completamente diferentes um do outro, com preferências ideológicas e políticas muito díspares.

Há desde a extrema esquerda, como Psol, PCdoB, até partidos de direita, como União Brasil, PSD, como partidos de centro, como o MDB.

Então o presidente Lula enfrenta altíssimos custos de coordenação. Além disso, o governo Lula também não compartilha poder e recursos com os parceiros, levando em consideração o peso proporcional de cada um deles no Congresso.

Por exemplo, dos 37 ministérios do governo Lula atual, o PT tem 22 ministérios.

Então se coloque na posição do União Brasil, que tem mais ou menos o mesmo número de cadeiras do PT no Congresso, e tem três ministério. Por que que ele vai ser disciplinado na coalizão, se não está sendo recompensado?

Isso obviamente vai criar animosidades entre os parceiros, vai criar ressentimentos. E esses parceiros vão se posicionar estrategicamente a cada votação.

Quando o presidente sinaliza que precisa muito aprovar alguma coisa, esse é o momento por excelência de um parceiro que está sendo sub recompensado de tentar equilibrar o jogo.

Então o problema não é do presidencialismo de coalizão, o problema é do gerente. O problema é que o gerente é muito ruim.

'Problema não é do presidencialismo de coalizão, o problema é do gerente, que é muito ruim', diz Pereira, sobre Lula (Crédito: Lula Marques / Ag. Brasil)

BBC News Brasil - Como o senhor avalia o cenário atual do governo Lula? Esse momento de perda de popularidade do presidente, que realizou até essa reunião ministerial na última segunda-feira.

Pereira - Nos meus estudos, a popularidade impacta muito pouco sobre a taxa de sucesso do presidente no Congresso, bem como sobre o custo de governabilidade. A popularidade não é a variável mais importante. Entretanto, ela é fundamental para a relação do presidente com a sociedade.

Então é um momento em que o governo sinaliza vulnerabilidade. Em que, de certa forma, a política econômica do governo está em xeque, porque, em última instância, a população está reagindo à inflação de alimentos. Acho que esse é o ponto-chave.

Normalmente, a popularidade tem duas variáveis-chaves: a inflação e o desemprego. O eleitor brasileiro é avesso à inflação. E o governo Lula tem tido políticas frouxas do ponto de vista fiscal, e isso tem gerado déficits crescentes, que têm um impacto inflacionário.

Então é uma escolha também do presidente namorar com o perigo.

Ainda é muito cedo. Início do segundo ano [de mandato], o governo ainda tem tempo para recuperar. Mas ele não dá sinais críveis de que irá implementar uma política responsável do ponto de vista fiscal e orçamentário. Pelo contrário, o governo tem sinalizado que a saída para aumentar sua popularidade é aumentar gasto.

Então essa é uma lição de casa que o PT e o governo Lula não aprenderam. Porque eles já viveram isso no passado e eles continuam se comportando do mesmo jeito, acreditando que o Estado tem um papel importante na economia. E essa postura mais frouxa em relação ao controle das contas públicas tem um preço.

Cedo ou tarde, [a conta] vai chegar. A grande oportunidade do governo Lula é que tenha chegado cedo. Então dá tempo para o governo fazer ajustes no sentido de sinalizar mas crivelmente compromissos com o equilíbrio macroeconômico.

BBC News Brasil - E como essa questão da popularidade em queda pesa sobre as relações entre Executivo e Legislativo?

Pereira - Eu interpreto isso muito mais com uma restrição do que com um impeditivo. Então vai dificultar, vai criar mais um barulho, mas não vai impedir o presidente de desenvolver uma relação boa com o Legislativo, se ele fizer as escolhas certas de como se relacionar com seus parceiros.

O problema é que, como o presidente Lula não sinaliza nenhuma reforma ministerial que pudesse acomodar melhor os seus parceiros, e cortar na própria carne, no próprio PT, esses problemas vão estar presentes sempre no governo.

Vai ter momentos em que o governo vai conseguir aprovar mais, gastando mais, e vai ter momentos que vai aprovar menos.

O custo de governabilidade vai ser diretamente proporcional à necessidade que o governo terá de aprovar essa ou aquela matéria.

Quanto mais o governo sinalizar que precisa muito que o legislador vote com ele, mais o Legislativo vai se posicionar de forma estratégica, inflacionando o custo do voto dele.

'Cenário em que Bolsonaro muito provavelmente vai enfrentar punições judiciais, e com Lula perdendo conexões eleitorais, é uma oportunidade para os partidos que não estão diretamente vinculados a esses dois polos', diz cientista político (Reprodução)

BBC News Brasil - E que cenário Lula com popularidade em queda e Bolsonaro pressionado pelas investigações sobre a tentativa de golpe colocam para as eleições municipais desse ano?

Pereira - Estamos com um cenário muito polarizado. Tem algumas pessoas até defendendo a ideia de que essa polarização está calcificada.

Mas um cenário em que Bolsonaro muito provavelmente vai enfrentar punições judiciais daqui a algum tempo, e com Lula perdendo conexões eleitorais, é uma oportunidade para os partidos que não estão diretamente vinculados a esses dois polos e para que o eleitorado busque alternativas.

Então talvez seja uma oportunidade boa para diminuir essa polarização entre Lula e Bolsonaro.

Porque Bolsonaro, com os custos políticos de uma eventual condenação judicial, possivelmente vai perder capital político. E Lula vai perder esse antagonismo, que também o beneficia, porque ele também nutre essa polarização.

E quanto mais o jogo é polarizado, mais difícil é para uma alternativa aos polos se tornar competitiva.

Com um dos polos se tornando carta fora do baralho e o outro fragilizado, é uma oportunidade para os partidos e os candidatos tentarem outras agendas e não essa agenda nacional polarizada.

É uma oportunidade para os outros partidos se livrarem desse karma, se livrarem desses pesos. Porque, se por um lado Lula e Bolsonaro são um ativo, uma ferramenta, são ferramentas muito pesadas. A esquerda já teve chance de se livrar de Lula no passado e não conseguiu.

Está se aproximando uma oportunidade para a direita se livrar de Bolsonaro e buscar outros candidatos melhores, mais comprometidos com a democracia, com as instituições, então pode ser uma chance, pode ser uma oportunidade.

Ainda é muito cedo para dizer, mas talvez abra-se essa janela para que os partidos considerem outras estratégias, ao ancorar suas candidaturas a prefeito em 2024 em outros temas e outras alternativas.

Thais Carrança, de S. Paulo, originalmente, para a BBC News Brasil,  em 20.03.24

terça-feira, 19 de março de 2024

'Toc, toc, toc, é a PF': como foi o dia zero da Lava Jato

No dia 17 de março de 2014, o então ministro da Justiça José Eduardo Cardozo e o então procurador da República Deltan Dallagnol não poderiam ter tido dias mais diferentes.

Agentes da Polícia Federal durante fase da Operação Lava Jato (Crédito: Tânia Rego / Ag. Brasil)

Cardozo acordou em seu apartamento em Brasília por volta das 7h. O horário significava que, no seu radar, nenhuma operação politicamente relevante da Polícia Federal (PF) havia sido deflagrada.

Isso porque o protocolo determinava que operações consideradas sensíveis lhe seriam informadas apenas após a deflagração das primeiras ações, por volta das 6h, para evitar possíveis vazamentos.

Dallagnol, por sua vez, estava a mais 15 mil quilômetros de distância dali, nas Ilhas Mentawai, na Indonésia.

O local é um paraíso tropical de ondas consideradas perfeitas e que atraiu o paranaense e um grupo de amigos também praticantes do surfe.

Em Curitiba, no entanto, cidade onde era lotado, um grupo de procuradores da República acompanhava com atenção o desenrolar de uma operação que, naquele momento, não parecia importante o suficiente para fazer o telefone de Cardozo tocar de manhã.

"Para mim, era um caso de rotina", diz Dallagnol à BBC News Brasil ao lembrar daquele dia dez anos depois.

Cardoso fez uma avaliação semelhante: "Era a prisão de um doleiro e estava dentro da rotina mais cotidiana do Ministério da Justiça".

"Não me lembro de qualquer coisa naquele dia que me indicasse que aquela operação pudesse abalar o país ou o mundo político no futuro", diz o ex-ministro.

O doleiro, porém, era Alberto Youssef. E aquela era a primeira fase da Operação Lava Jato.

O nome, considerado inusitado à época foi dado porque um dos estabelecimentos usados pelos doleiros investigados para lavar dinheiro ilegal era um posto de lavagem de carros em Brasília.

Naquela época, operações da Polícia Federal já chamavam atenção e eram criticadas por advogados e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) como Gilmar Mendes por sua suposta "espetacularização".

Mas foi depois da Lava Jato que termos como o "Toc, Toc" da Polícia Federal se tornaram nacionalmente conhecidas. No auge da Lava Jato, críticos da esquerda e de políticos como o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) faziam piadas sobre o dia em que a PF bateria em sua porta.

Dez anos depois, é vez de militantes de esquerda fazerem usarem o mesmo termo para especular sobre uma eventual prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Nos anos que se seguiram à primeira fase da Lava Jato, Dallagnol e Cardozo ficaram em lados opostos em meio aos desdobramentos da Lava Jato.

Dallagnol se tornou um dos rostos mais conhecidos da operação cujo legado ele ainda defende. Um dos momentos em que sua visibilidade ficou ainda mais evidente aconteceu durante a apresentação da primeira denúncia da Lava Jato contra o então Lula.

Foi neste episódio que Dallagnol utilizou uma apresentação de slides em que o nome Lula aparecia dentro de um círculo e que ficou famosa gerando memes e críticas.

Cardozo, por sua vez, acabou deixando o comando do ministério em 2016 com o agravamento da crise política gerada pela operação.

Assumiu então a Advocacia Geral da União (AGU) e foi o principal defensor de Dilma Rousseff (PT) durante o processo de impeachment que acabou tirando-a do poder naquele mesmo ano.

Uma década depois da primeira fase ser deflagrada, a BBC News Brasil conversou com três pessoas que contaram, a partir de suas perspectivas, como viveram o dia "zero" da operação.

Além de Cardozo e Dallagnol, protagonistas desta história, um observador privilegiado: o cientista político Leonardo Avritzer, um dos principais especialistas em corrupção no Brasil e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Em comum, os três relatos convergem ao apontar que naquele 17 de março havia poucas indicações do grande impacto que a operação teria nos anos seguintes.

Deltan Dallagnol foi coordenador da Força-Tarefa da Lava Jato. No dia da primeira fase da operação, ele surfava com amigos na Indonésia  (Crédito: Reuters)

Surfe e cabeça rachada

Enquanto agentes da PF prendiam Youssef, Deltan Dallagnol descansava depois de mais um dia intenso de surfe no paraíso indonésio.

Onze horas à frente no fuso horário, já era de tarde em Mentawai quando os agentes da PF bateram à porta do doleiro.

"A gente estava surfando em pequenas ilhas no dia da deflagração", diz Dallagnol.

As Ilhas Mentawai são um arquipélago composto por quatro ilhas principais com natureza bem preservada no Oceano Índico.

Elas têm areia fina e branca, palmeiras abundantes, mar verde e ondas cobiçadas. A temperatura da água pode atingir os 27º C.

Nascido em Pato Branco, no interior do Paraná, Dallagnol contou que aprendeu a surfar ainda adolescente, por volta dos 15 anos de idade, nas praias de Matinhos e Guarda do Embaú, nos litorais do Paraná e de Santa Catarina.

A cada dois anos, ele e um grupo de amigos organizavam uma viagem para locais badalados do circuito internacional de surfe onde ficavam entre 10 e 15 dias.

Havia alguns anos, porém, que Dallagnol não se juntava ao grupo, porque ele havia passado um tempo fora do Brasil fazendo mestrado na Universidade Harvard, nos Estados Unidos.

Para aquela viagem, Dallagnol e seu grupo de amigos alugaram um barco com camarotes onde dormiam e se alimentavam enquanto viajavam de uma ilha para a outra em busca das melhores ondas.

Naquele dia, ele conta, não teve nenhuma informação sobre a operação. "Não tinha internet no barco. Nada", lembra.

Dallagnol diz que uma de suas memórias mais fortes daquela viagem não foi de nenhuma onda, mas de um acidente.

Um amigo caiu da prancha enquanto descia uma onda, bateu nos recifes a cabeça, que teve cortes profundos nos dois lados.

"Na hora que isso aconteceu, um amigo nosso que é dentista foi para o barco e pegou o material de sutura. Foi um momento tenso porque não sabíamos se havia lesão interna", diz Dallagnol.

"Meu amigo precisava de alguém que fizesse a assistência para ele costurar a cabeça, e eu fiquei atuando como instrumentador cirúrgico."

Traumas à parte, Dallagnol conta que seu desejo de surfar na Indonésia quase o tirou da Lava Jato.

Ele diz que, poucas semanas antes da viagem, foi convidado por uma procuradora da República para fazer parte de uma operação envolvendo lavagem de dinheiro.

Dallagnol afirma que, na época, não havia indicações de que a operação poderia ter impactos políticos.

O então procurador lembra que mencionou então que já havia marcado a viagem e que não poderia perder a oportunidade.

Ao mesmo tempo, nos dias anteriores à operação, os procuradores que já atuavam no caso entenderam que ela demandaria mais gente do que o normal.

Sem internet ou outro meio de comunicação, Dallagnol disse que não chegou a ficar ansioso com a deflagração da primeira fase da Lava Jato porque já tinha atuado em outras grandes operações complexas de lavagem de dinheiro com doleiros.

"O que eu não sabia é que nós íamos esbarrar no maior monstro da corrupção política já revelado na história do país e talvez do mundo", diz Dallagnol.

"Se soubesse, eu ficaria sim preocupado e avaliaria até cancelar a viagem".

Logo após retornar de viagem, Deltan conta que se deparou com um enorme volume de documentos apreendidos durante a primeira fase.

"Voltei da praia e mergulhei num mar de mais de 80 mil documentos aprendidos, alguns deles criptografados", diz o procurador que, segundo ele, por pouco não ficou de fora da operação, mas que, em seguida, passou a ocupar a coordenação do grupo.

O então ministro da Justiça José Eduardo Cardozo disse que, em março de 2014, não imaginava que a Lava Jato teria as consequências políticas que teve. "Nada fora do script", disse à BBC News Brasil (Crédito: Reuters)

O ministro e o 'jogo bruto' com Eduardo Cunha

Longe de qualquer praia que não fossem as do Lago Paranoá, em Brasília, José Eduardo Cardozo começou aquela semana de março de 2014 de um jeito aparentemente muito menos divertido do que Dallagnol.

Seu apartamento fica em um condomínio a pouco mais de 300 metros do lago e a um quilômetro da então residência da então presidente Dilma.

Cardozo conta que chegou a ir de bicicleta ao Palácio do Planalto para se reunir com sua chefe.

Ele era, à época, um quadro histórico do PT. Havia sido vereador em São Paulo e deputado federal por dois mandatos consecutivos.

Desde o primeiro ano do governo Dilma, comandava o Ministério da Justiça e, por consequência, a PF, uma das principais engrenagens da Lava Jato.

Naquela segunda-feira, porém, sua principal missão não era lidar com as questões típicas do ministério. Dilma havia lhe confiado uma tarefa diferente: negociar o Marco Civil da Internet, projeto de lei que tramitava no Congresso com princípios, regras e garantias do uso deste meio de comunicação no país.

"Um dos problemas que nós tínhamos era o então líder do PMDB na Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Ele não aceitava a neutralidade da rede, e esse era um ponto que nós não abriríamos mão", diz Cardozo.

"A relação de Dilma com Eduardo nunca foi boa e ela sabia que ali o jogo seria bruto."

Naquele momento, no seu horizonte, não estava uma operação da PF contra doleiros, "por mais relevantes que fossem", diz Cardozo.

Meses mais tarde, Cunha se tornaria uma peça central do desenrolar da Lava Jato.

Acusado de envolvimento no esquema de corrupção denunciado pela PF e sentindo-se abandonado por parlamentares governistas, ele deu início ao processo de impeachment que resultou na perda de mandato de Dilma dois anos depois, em 2016.

No mesmo ano em que Dilma foi tirada do Planalto, Cunha teve o mandato cassado e foi preso.

Ele chegou a ser condenado a mais de 15 anos de prisão por corrupção, mas teve sua prisão anulada pelo STF em 2023.

Cunha sempre alegou ser inocente de todas as acusações e negou seu envolvimento em quaisquer irregularidades.

Cardozo disse que, exceto pelas reuniões com Cunha, o dia zero da Lava Jato transcorreu com tranquilidade e sem nenhum sinal de que a operação Jato se transformaria em um problema para o governo.

"Só fui avisado da operação depois que um doleiro tinha sido preso. Ou seja, foi uma situação de maior normalidade para o Ministério da Justiça", disse.

Cardozo contou que só começou a suspeitar das possíveis implicações da operação três dias depois da sua primeira fase.

No dia 20 de março, a PF informou que havia prendido o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa por tentativa de destruição de provas.

Costa foi um dos primeiros delatores da operação e apontou a existência do pagamento de propinas a membros da diretoria da Petrobras feito por empreiteiras em troca de contratos com a estatal.

Delações subsequentes apontaram que a nomeação de diretores de áreas estratégicas da Petrobras eram definidas por líderes de partidos da base aliada ao governo.

Em troca, parte das propinas pagas pelas empreiteiras deveriam ser direcionadas a políticos e partidos, entre eles o PT de Dilma, o PMDB de Michel Temer, seu vice, e o PP.

Costa havia saído da Petrobras dois anos antes da operação, em 2012. Dilma disse que demitiu Costa em 2012 em meio a suspeitas de irregularidades.

A ata da reunião em que a saída de Costa foi definida, porém, aponta que ele teria renunciado ao cargo.

"O diretor-geral da PF (Leandro Daiello) falou: 'Olha, ministro. À tarde, aconteceu uma situação. Foi preso um diretor da Petrobras'. Eu perguntei quem era. Ele falou que era Paulo Roberto Costa. Não lembrava do nome dele", diz Cardozo.

O ex-ministro conta que só então se recordou de Costa e de que como, quando ele foi demitido no início do governo Dilma, "muita gente da área política havia ficado insatisfeita com a presidente".

"Inclusive, gente da situação e da oposição. Foi aí que percebi que esse Paulo Roberto tinha um apoio político imenso", diz Cardozo.

"Comecei a avaliar que aquilo tudo podia desdobrar em consequências políticas, embora, para mim, era impossível mensurá-las naquele momento."

Cardozo afirma que chegou a comentar com Dilma sobre a prisão do ex-diretor da Petrobras.

"Conversei com ela rapidamente. Ela olhou para mim com uma cara assim: 'Vamos ver no que vai dar'. E mais nada. Não fez nenhum comentário", diz o ex-ministro.

"Mas depois ficou claro que ela tinha botado ele pra fora porque já tinha uma percepção do problema."

Durante o processo de impeachment de Dilma, em 2016, Cardozo ganhou ainda mais notoriedade. Se tornou a principal face da defesa da então presidente no processo que acabou por cassar o seu mandato. Com a queda da petista, Cardozo também saiu da cena política e não assumiu mais cargos públicos desde então.

Cardozo montou um escritório em São Paulo e voltou a atuar como advogado.

Um dia normal do professor

No dia 17 de março de 2014, o professor Leonardo Avritzer já era uma das principais referências brasileiras no estudo da corrupção e dava aulas na UFMG desde 1989.

Avritzer conta que estava em sua casa em Belo Horizonte e que as primeiras informações que chegaram sobre aquela operação de nome curioso não eram particularmente chamativas.

"A única coisa que chamou atenção foi a prisão de Alberto Youssef, mas até onde eu podia supor, foi uma prisão genérica, se é que podemos dizer assim", diz Avritzer à BBC News Brasil.

"Ainda não se sabia que ele já havia sido preso antes. Não era uma pessoa importante no meu radar."

Avritzer diz que, assim como Cardozo, o primeiro indício de que aquela poderia ser uma operação diferente foi a prisão de Paulo Roberto Costa.

"Quando o Costa foi preso, aí chegamos a uma prisão importante", lembra o professor.

Avritzer relata que, coincidentemente, na época em que a Lava Jato teve sua primeira fase, ele se dedicava a um projeto que monitorava a percepção da população sobre temas como a corrupção.

"A gente fazia pesquisas anuais e já notava que havia uma certa alta", diz.

"A corrupção, naquela época, ainda não despontava como a principal preocupação do brasileiro como eventualmente aconteceu nos anos após a Lava Jato."

Decisões do STF contrárias à Lava Jato permitiram que Lula pudesse voltar a ser candidato a cargos eletivos. Lula sempre alegou inocência sobre as acusações feitas pela operação. Em 2022, foi eleito pela terceira vez como presidente da República (Crédito: EPA)

Legado em disputa

Dez anos depois, a Operação Lava Jato continua despertando opiniões divergentes e, muitas vezes, diametralmente opostas.

A partir de 2019, a Lava Jato passou a ser alvo de uma intensa leva de críticas após a divulgação pelo portal Intercept Brasil e outros veículos de uma série de mensagens trocadas entre procuradores da força-tarefa por meio de um aplicativo. As mensagens foram extraídas por um hacker.

De acordo com os veículos, as mensagens mostravam diálogos entre Deltan e o então juiz Sergio Moro que levantaram questões sobre parcialidade do agora senador.

Em 2021, por exemplo, o STF reconheceu a parcialidade de Moro no caso de obras em um apartamento tríplex no Guarujá (SP) que teria sido dado a Lula por uma empreiteira investigada pela Lava Jato. Moro sempre negou qualquer irregularidade em sua atuação na operação.

Seus críticos passaram a reforçar o coro de que a operação havia cometido abusos como prisões demoradas para obter delações premiadas.

O caso, conhecido como Vaza Jato, foi usado pela defesa de Lula e de outros condenados pela Lava Jato para pedir a anulação de sentenças.

Em 2021, o STF reconheceu a parcialidade de Moro no caso de obras em um apartamento tríplex no Guarujá (SP) que teria sido dado a Lula por uma empreiteira investigada pela Lava Jato. Moro sempre negou qualquer irregularidade em sua atuação na operação.

Dallagnol nunca admitiu que as mensagens eram autênticas e sempre negou o cometimento de irregularidades na condução da operação.

Em 2019, ele tentou explicar o contexto das supostas conversas em uma entrevista à BBC News Brasil.

"As pessoas têm que entender que essas conversas são conversas que você teria na mesa de casa com a família, são pessoas que estão trabalhando há cinco anos juntas, são amigas", disse o então procurador-chefe da Lava Jato.

"São conversas que você tem com o círculo de intimidade, conversas que você fica à vontade para falar até alguma besteira, uma bobagem, para ser até certo modo irresponsável."

Questionado na semana passada ao ser entrevistado pela BBC News Brasil sobre o legado da Lava Jato e as acusações de abusos cometidos por ela, Dallagnol preferiu não responder.

Em novembro de 2021, ele deixou o MPF e abriu mão da carreira como procurador da República.

No ano seguinte, se filiou ao Podemos, disputou e venceu a eleição para deputado federal, elegendo-se como o deputado federal mais votado do Paraná naquele ano, com 344.917 votos.

Em maio do ano passado, no entanto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou seu mandato no curso de um processo aberto com base na Lei da Ficha Limpa.

A acusação era de que ele havia pedido exoneração do MPF para evitar uma condenação disciplinar por conta de processos instaurados contra ele em função de sua atuação na Lava Jato.

Sua exoneração foi interpretada pelos ministros da Corte como uma manobra para escapar da Lei da Ficha Limpa, que impede pessoas condenadas por órgãos colegiados de se candidatarem a cargos eletivos.

À época, Dallagnol negou qualquer irregularidade e afirmou que sua cassação fez parte de uma perseguição política contra ele.

"Na minha leitura, isso é uma tentativa do PT me derrubar, mas não se trata só do Deltan. Para eles, é uma tentativa de resgate e de redenção política do Lula", disse Dallagnol à BBC News Brasil em maio de 2023.

"É uma forma de impor uma narrativa de que a Lava Jato foi, na realidade, uma perseguição política e não uma tentativa de construir um país mais justo e sem corrupção."

Apesar da cassação, Dallagnol vem sendo apontado como um nome forte na disputa pela Prefeitura de Curitiba, neste ano.

Eleitor declarado de Jair Bolsonaro em 2022, o agora ex-procurador e ex-deputado federal tem apoio de segmentos como o eleitorado evangélico (há anos, ele frequenta a Igreja Batista do Bacacheri).

Segundo o jornal O Globo, um juiz do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR) entendeu que, mesmo tendo o mandato cassado pelo TSE, Dallagnol não está inelegível e, em tese, poderia disputar as eleições municipais deste ano.

Para Cardozo e Avritzer a Lava Jato teve impactos negativos na política e na economia brasileiras.

"Ela tinha um propósito virtuoso que combater a corrupção, só que a sua abusividade foi colocada à mostra e ficou evidente que houve um desvirtuamento do próprio fim da operação", diz o ex-ministro da Justiça.

"A operação, claramente, criou condições para o impeachment (de Dilma) sem que houvesse causa justificada."

Avritzer afirma que o fato de a Lava Jato ter, supostamente, cometido abusos, faz com que ela não tenha deixado nenhum legado ao país.

"Argumentam que ela deixou um legado pelas pessoas que prendeu, mas o aprimoramento institucional, que é o que de fato funciona no combate à corrupção, não ocorreu. Não houve contribuição neste sentido", diz o professor.

Apesar disso, outros estudiosos apontam que a Lava Jato teria deixado para trás a criação de algumas inovações jurídicas que ainda perduram.

Entre elas estaria a proibição do financiamento empresarial de campanhas políticas, determinado pelo STF em 2016. O financiamento empresarial das eleições foi apontado como um dos causadores do esquema investigado pela operação.

Outro ponto seria a Lei da Estatais, também de 2016, que criou normas mais rígidas para a nomeação de cargos de direção em empresas estatais.

Um terceiro seria o fim das financiamentos por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) à exportação de serviços de infraestrutura em países estrangeiros, também em 2016. Segundo os seus críticos, empreiteiras utilizavam seus contatos no Brasil para ganhar contratos no exterior e repassar propina a agentes públicos estrangeiros.

Desde o início do seu novo mandato, Lula tem defendido o retorno dos financiamentos para empresas brasileiras executarem serviços de infraestrutura no exterior, mas a medida ainda não foi revertida.

À BBC News Brasil, Dallagnol afirma que uma suposta perseguição a pessoas ligadas à Lava Jato tem impedido-as de falar sobre o caso no aniversário de dez anos da operação.

"Quem está no Ministério Público hoje, no Judiciário ou na polícia tem medo de dar entrevista e de falar sobre o caso porque existe uma censura, uma repressão e uma retaliação contra quem combater a corrupção no Brasil", diz Dallagnol.

No início de março, o STF divulgou um relatório sobre os dez anos da Lava Jato.

Apesar de decisões da Corte terem resultado na anulação de condenações, o Supremo aponta que acordos de colaboração premiada oriundos da investigação resultaram na recuperação de R$ 2 bilhões em recursos que teriam sido desviados pelo esquema.

Ainda no campo jurídico, as decisões que anularam sentenças proferidas durante a operação fizeram com que algumas das empresas investigadas passassem a tentar renegociar acordos de leniência que fizeram durante o auge da operação.

Em fevereiro deste ano, por exemplo, o ministro do STF, Dias Toffoli, suspendeu uma multa de R$ 8,5 bilhões que havia sido imposta à empreiteira Odebrecht e autorizou o governo a reavaliar os termos do acordo de leniência feito pela empresa.

Acordos de leniência são uma espécie de "delação premiada" para empresas que reconhecem condutas irregulares ou ilegais às autoridades em troca de benefícios.

Leandro Prazeres,  de Brasília - DF para a BBC News Brasil,  em 19.03.24

segunda-feira, 18 de março de 2024

Para ex-ministro, STF minou Lava Jato e enfraqueceu luta anticorrupção

Em entrevista, ministro aposentado sustenta que Supremo Tribunal Federal ajudou enterrar a operação.

 Professor Marco Aurélio Mello, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (Crédito da foto:Dida Sampaio  / Estadão)

Em um de seus últimos julgamentos no Supremo Tribunal Federal (STF), concluído menos de um mês antes de sua aposentadoria, em junho de 2021, o ministro Marco Aurélio Mello votou contra a suspeição do exjuiz Sérgio Moro na ação do triplex do Guarujá (SP), que levou à prisão do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ficou vencido, como tantas vezes ao longo dos 31 anos que passou na Corte.

A decisão que declarou a parcialidade do ex-juiz da Operação Lava Jato foi um dos principais reveses impostos pelo STF à investigação, mas não o único. O tribunal ainda proibiu a execução da pena antes do esgotamento de todos os recursos, o que favoreceu Lula, e concluiu que a 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba manteve sob sua jurisdição inquéritos e processos da Lava Jato que, para os ministros, deveriam ter sido transferidos para outros Estados. A decisão esvaziou o berço da operação e levou à anulação das condenações do atual presidente.

“O que eu acho é que houve uma concepção equivocada por parte do Supremo. Só não houve a mesma concepção quanto ao mensalão porque foi o Supremo quem julgou, aí, evidentemente, o tribunal ficaria muito mal na fotografia se viesse a declarar vícios na investigação”, disse Marco Aurélio em entrevista ao Estadão.

Ele também afirmou não ver com bons olhos a decisão do ministro Dias Toffoli que suspendeu o pagamento de multas dos acordos de leniência da J&F e Odebrecht. “O grande problema é que nós passamos a ter, não pronunciamentos de órgão único, que seria o Supremo reunido em plenário, mas a visão individual de cada qual. Hoje a insegurança grassa.”

Como um ministro que acompanhou, no Supremo Tribunal Federal, o auge e o declínio da Lava Jato, acredita que a Corte ajudou a enterrar a operação? Sem dúvida alguma. Quando se concluiu, por exemplo, que o Juízo da 13.ª Vara Criminal do Paraná não seria competente, esmoreceu o combate à corrupção. Aí, talvez, a colocação daquele senador da República que disse que “precisamos estancar essa sangria” acaba se mostrando procedente (em 2016, Romero Jucá (MDB-RR) sugeriu em uma conversa gravada deter o avanço da Lava Jato).

Por que o STF mudou o posicionamento em relação à investigação?

Estivesse vivo o relator inicial, grande juiz, Teori Zavascki, se teria caminhado no sentido que se caminhou? A resposta, para mim, é negativa.

Mas foi simplesmente pela troca de relatoria?

O que acho é que houve uma concepção equivocada por parte do Supremo. Só não houve a mesma concepção quanto ao mensalão porque foi o Supremo quem julgou, aí, evidentemente, o tribunal ficaria muito mal na fotografia se viesse a declarar vícios na investigação e no próprio processo-crime.

Houve prejuízo ao direito de defesa na Lava Jato?

O direito de espernear, principalmente pelos que cometeram desvios de conduta, é latente. Eles vão, evidentemente, aproveitar a onda contrária à investigação para lograr proveitos.

Então o devido processo legal foi respeitado?

O nosso sistema é equilibrado. Quando há um pronunciamento, ele é passível de impugnação no órgão revisor. O Tribunal Regional Federal da 4.ª Região confirmou as decisões de primeira instância e andou, inclusive, aumentando penas.

A relação entre Sérgio Moro e procuradores da Lava Jato foi republicana? Fala-se em conluio entre a magistratura e o Ministério Público, julgador e acusador. Que conluio? O diálogo é saudável, sempre existiu. O juiz sempre esteve aberto a ouvir o Ministério Público, fazendo a ponderação cabível. Colocar cada qual em uma redoma, em um isolamento de não poder conversar, é passo demasiadamente largo e não é democrático. Na vida em sociedade, nós temos que presumir a postura digna, principalmente por aqueles que ocupam cargos públicos, e não que sejam salafrários até que provem o contrário.

Como vê o processo disciplinar aberto pelo Conselho Nacional de Justiça para investigar a conduta de Moro e a gestão das multas dos acordos de colaboração e leniência?

O CNJ e o CNMP (Conselho Nacional no Ministério Público) atuam no campo administrativo e devem fazê-lo observando o figurino legal.

Concorda com a cassação de Deltan Dallagnol?

A meu ver, ele foi caçado, com “ç” e não com “ss”. Simplesmente se presumiu que, quando ele pediu exoneração, o fez para fugir a um processo administrativo que poderia levar à declaração de inelegibilidade. É presumir o excepcional e não o corriqueiro, que é a postura digna por parte do cidadão.

Moro fez “um favor” para críticos da Lava Jato ao assumir o Ministério da Justiça no governo Bolsonaro? Quando eu integrava o Supremo, ele foi me visitar. E eu disse, com a franqueza própria dos cariocas, que ele tinha cometido um ato, a meu ver, insano. Abandonar cargo alcançado por concurso público, uma função que o tornou herói nacional, para ser auxiliar de um presidente da República demissível a qualquer momento. Eu disse: “Rapaz, como você abandona uma caneta dessa?” Aí ele disse: “A minha caneta ainda tem muita tinta”. Ainda bem que o Paraná o elegeu senador.

Uma decisão como a que suspendeu o pagamento das multas dos acordos de leniência da J&F e da Odebrecht poderia ter sido tomada monocraticamente? O grande problema é que nós passamos a ter, não pronunciamentos de órgão único, que seria o Supremo reunido em plenário, mas a visão individual de cada qual. Hoje a insegurança grassa, o que é péssimo. Mais do que isso: grassa o descrédito da instituição na qual eu estive durante 31 anos. Para mim, é uma tristeza enorme perceber isso. Avançamos assim? Como fica a sociedade? Fica decepcionada. Eu só ouço críticas quanto ao Supremo. Indago: hoje qualquer dos integrantes (do STF) sai à rua? Não creio que qualquer colega que tenha assento no Supremo saia sozinho hoje e frequente locais públicos sem estar com uma segurança maior.

Toffoli deveria ter se declarado impedido para julgar o pedido da J&F, já que a mulher do ministro presta assessoria jurídica para a empresa em um litígio?

Lá atrás, acho que foi no mensalão, ele disse que não tinha qualquer relação com a doutora Roberta. Quem sabe ele continua sem relação.

Deve haver uma ponderação dos órgãos públicos sobre a repactuação das multas de acordos de leniência? Acordo que resulta da manifestação de vontade só é passível de anulação se ficar comprovado vício. Para mim, esse vício fica excluído no caso. Agora, vivenciamos essa época de tempos estranhos e já se fala em repactuação do acordado, isso acaba colando a tudo uma insegurança muito grande. As defesas e os acusados sempre foram ouvidos. As empresas que fizeram acordo foram intimidadas? Tiraram as multas do capital de giro? Não. Foi dinheiro que entrou indevidamente na contabilidade. Imaginar que aqueles que formalizaram os acordos estiveram pressionados, intimidados e coagidos não se coaduna com a realidade.

O combate à corrupção avançou ou retrocedeu depois da Lava Jato?

Para mim, houve um grande retrocesso.

É possível ver novamente algo como a Lava Jato? Dar-se a Lava Jato como algo sepultado é ruim. A decepção é incrível. E repito que não avançamos dessa forma.

Para onde o Brasil precisa olhar para avançar no combate à corrupção?

Para a percepção, pelo homem público, de que o cargo é para servir aos semelhantes e não para o ocupante se servir do cargo em benefício dele e da família. Essa é a grande questão. Precisamos avançar em termos de compreensão, principalmente por aqueles que ocupam cargos públicos. 

Rayssa Motta, de S. Paulo e Julia Affonso, de Brasília, para O Estado de S. Paulo, em 18.03.24