terça-feira, 19 de março de 2024

'Toc, toc, toc, é a PF': como foi o dia zero da Lava Jato

No dia 17 de março de 2014, o então ministro da Justiça José Eduardo Cardozo e o então procurador da República Deltan Dallagnol não poderiam ter tido dias mais diferentes.

Agentes da Polícia Federal durante fase da Operação Lava Jato (Crédito: Tânia Rego / Ag. Brasil)

Cardozo acordou em seu apartamento em Brasília por volta das 7h. O horário significava que, no seu radar, nenhuma operação politicamente relevante da Polícia Federal (PF) havia sido deflagrada.

Isso porque o protocolo determinava que operações consideradas sensíveis lhe seriam informadas apenas após a deflagração das primeiras ações, por volta das 6h, para evitar possíveis vazamentos.

Dallagnol, por sua vez, estava a mais 15 mil quilômetros de distância dali, nas Ilhas Mentawai, na Indonésia.

O local é um paraíso tropical de ondas consideradas perfeitas e que atraiu o paranaense e um grupo de amigos também praticantes do surfe.

Em Curitiba, no entanto, cidade onde era lotado, um grupo de procuradores da República acompanhava com atenção o desenrolar de uma operação que, naquele momento, não parecia importante o suficiente para fazer o telefone de Cardozo tocar de manhã.

"Para mim, era um caso de rotina", diz Dallagnol à BBC News Brasil ao lembrar daquele dia dez anos depois.

Cardoso fez uma avaliação semelhante: "Era a prisão de um doleiro e estava dentro da rotina mais cotidiana do Ministério da Justiça".

"Não me lembro de qualquer coisa naquele dia que me indicasse que aquela operação pudesse abalar o país ou o mundo político no futuro", diz o ex-ministro.

O doleiro, porém, era Alberto Youssef. E aquela era a primeira fase da Operação Lava Jato.

O nome, considerado inusitado à época foi dado porque um dos estabelecimentos usados pelos doleiros investigados para lavar dinheiro ilegal era um posto de lavagem de carros em Brasília.

Naquela época, operações da Polícia Federal já chamavam atenção e eram criticadas por advogados e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) como Gilmar Mendes por sua suposta "espetacularização".

Mas foi depois da Lava Jato que termos como o "Toc, Toc" da Polícia Federal se tornaram nacionalmente conhecidas. No auge da Lava Jato, críticos da esquerda e de políticos como o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) faziam piadas sobre o dia em que a PF bateria em sua porta.

Dez anos depois, é vez de militantes de esquerda fazerem usarem o mesmo termo para especular sobre uma eventual prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Nos anos que se seguiram à primeira fase da Lava Jato, Dallagnol e Cardozo ficaram em lados opostos em meio aos desdobramentos da Lava Jato.

Dallagnol se tornou um dos rostos mais conhecidos da operação cujo legado ele ainda defende. Um dos momentos em que sua visibilidade ficou ainda mais evidente aconteceu durante a apresentação da primeira denúncia da Lava Jato contra o então Lula.

Foi neste episódio que Dallagnol utilizou uma apresentação de slides em que o nome Lula aparecia dentro de um círculo e que ficou famosa gerando memes e críticas.

Cardozo, por sua vez, acabou deixando o comando do ministério em 2016 com o agravamento da crise política gerada pela operação.

Assumiu então a Advocacia Geral da União (AGU) e foi o principal defensor de Dilma Rousseff (PT) durante o processo de impeachment que acabou tirando-a do poder naquele mesmo ano.

Uma década depois da primeira fase ser deflagrada, a BBC News Brasil conversou com três pessoas que contaram, a partir de suas perspectivas, como viveram o dia "zero" da operação.

Além de Cardozo e Dallagnol, protagonistas desta história, um observador privilegiado: o cientista político Leonardo Avritzer, um dos principais especialistas em corrupção no Brasil e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Em comum, os três relatos convergem ao apontar que naquele 17 de março havia poucas indicações do grande impacto que a operação teria nos anos seguintes.

Deltan Dallagnol foi coordenador da Força-Tarefa da Lava Jato. No dia da primeira fase da operação, ele surfava com amigos na Indonésia  (Crédito: Reuters)

Surfe e cabeça rachada

Enquanto agentes da PF prendiam Youssef, Deltan Dallagnol descansava depois de mais um dia intenso de surfe no paraíso indonésio.

Onze horas à frente no fuso horário, já era de tarde em Mentawai quando os agentes da PF bateram à porta do doleiro.

"A gente estava surfando em pequenas ilhas no dia da deflagração", diz Dallagnol.

As Ilhas Mentawai são um arquipélago composto por quatro ilhas principais com natureza bem preservada no Oceano Índico.

Elas têm areia fina e branca, palmeiras abundantes, mar verde e ondas cobiçadas. A temperatura da água pode atingir os 27º C.

Nascido em Pato Branco, no interior do Paraná, Dallagnol contou que aprendeu a surfar ainda adolescente, por volta dos 15 anos de idade, nas praias de Matinhos e Guarda do Embaú, nos litorais do Paraná e de Santa Catarina.

A cada dois anos, ele e um grupo de amigos organizavam uma viagem para locais badalados do circuito internacional de surfe onde ficavam entre 10 e 15 dias.

Havia alguns anos, porém, que Dallagnol não se juntava ao grupo, porque ele havia passado um tempo fora do Brasil fazendo mestrado na Universidade Harvard, nos Estados Unidos.

Para aquela viagem, Dallagnol e seu grupo de amigos alugaram um barco com camarotes onde dormiam e se alimentavam enquanto viajavam de uma ilha para a outra em busca das melhores ondas.

Naquele dia, ele conta, não teve nenhuma informação sobre a operação. "Não tinha internet no barco. Nada", lembra.

Dallagnol diz que uma de suas memórias mais fortes daquela viagem não foi de nenhuma onda, mas de um acidente.

Um amigo caiu da prancha enquanto descia uma onda, bateu nos recifes a cabeça, que teve cortes profundos nos dois lados.

"Na hora que isso aconteceu, um amigo nosso que é dentista foi para o barco e pegou o material de sutura. Foi um momento tenso porque não sabíamos se havia lesão interna", diz Dallagnol.

"Meu amigo precisava de alguém que fizesse a assistência para ele costurar a cabeça, e eu fiquei atuando como instrumentador cirúrgico."

Traumas à parte, Dallagnol conta que seu desejo de surfar na Indonésia quase o tirou da Lava Jato.

Ele diz que, poucas semanas antes da viagem, foi convidado por uma procuradora da República para fazer parte de uma operação envolvendo lavagem de dinheiro.

Dallagnol afirma que, na época, não havia indicações de que a operação poderia ter impactos políticos.

O então procurador lembra que mencionou então que já havia marcado a viagem e que não poderia perder a oportunidade.

Ao mesmo tempo, nos dias anteriores à operação, os procuradores que já atuavam no caso entenderam que ela demandaria mais gente do que o normal.

Sem internet ou outro meio de comunicação, Dallagnol disse que não chegou a ficar ansioso com a deflagração da primeira fase da Lava Jato porque já tinha atuado em outras grandes operações complexas de lavagem de dinheiro com doleiros.

"O que eu não sabia é que nós íamos esbarrar no maior monstro da corrupção política já revelado na história do país e talvez do mundo", diz Dallagnol.

"Se soubesse, eu ficaria sim preocupado e avaliaria até cancelar a viagem".

Logo após retornar de viagem, Deltan conta que se deparou com um enorme volume de documentos apreendidos durante a primeira fase.

"Voltei da praia e mergulhei num mar de mais de 80 mil documentos aprendidos, alguns deles criptografados", diz o procurador que, segundo ele, por pouco não ficou de fora da operação, mas que, em seguida, passou a ocupar a coordenação do grupo.

O então ministro da Justiça José Eduardo Cardozo disse que, em março de 2014, não imaginava que a Lava Jato teria as consequências políticas que teve. "Nada fora do script", disse à BBC News Brasil (Crédito: Reuters)

O ministro e o 'jogo bruto' com Eduardo Cunha

Longe de qualquer praia que não fossem as do Lago Paranoá, em Brasília, José Eduardo Cardozo começou aquela semana de março de 2014 de um jeito aparentemente muito menos divertido do que Dallagnol.

Seu apartamento fica em um condomínio a pouco mais de 300 metros do lago e a um quilômetro da então residência da então presidente Dilma.

Cardozo conta que chegou a ir de bicicleta ao Palácio do Planalto para se reunir com sua chefe.

Ele era, à época, um quadro histórico do PT. Havia sido vereador em São Paulo e deputado federal por dois mandatos consecutivos.

Desde o primeiro ano do governo Dilma, comandava o Ministério da Justiça e, por consequência, a PF, uma das principais engrenagens da Lava Jato.

Naquela segunda-feira, porém, sua principal missão não era lidar com as questões típicas do ministério. Dilma havia lhe confiado uma tarefa diferente: negociar o Marco Civil da Internet, projeto de lei que tramitava no Congresso com princípios, regras e garantias do uso deste meio de comunicação no país.

"Um dos problemas que nós tínhamos era o então líder do PMDB na Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Ele não aceitava a neutralidade da rede, e esse era um ponto que nós não abriríamos mão", diz Cardozo.

"A relação de Dilma com Eduardo nunca foi boa e ela sabia que ali o jogo seria bruto."

Naquele momento, no seu horizonte, não estava uma operação da PF contra doleiros, "por mais relevantes que fossem", diz Cardozo.

Meses mais tarde, Cunha se tornaria uma peça central do desenrolar da Lava Jato.

Acusado de envolvimento no esquema de corrupção denunciado pela PF e sentindo-se abandonado por parlamentares governistas, ele deu início ao processo de impeachment que resultou na perda de mandato de Dilma dois anos depois, em 2016.

No mesmo ano em que Dilma foi tirada do Planalto, Cunha teve o mandato cassado e foi preso.

Ele chegou a ser condenado a mais de 15 anos de prisão por corrupção, mas teve sua prisão anulada pelo STF em 2023.

Cunha sempre alegou ser inocente de todas as acusações e negou seu envolvimento em quaisquer irregularidades.

Cardozo disse que, exceto pelas reuniões com Cunha, o dia zero da Lava Jato transcorreu com tranquilidade e sem nenhum sinal de que a operação Jato se transformaria em um problema para o governo.

"Só fui avisado da operação depois que um doleiro tinha sido preso. Ou seja, foi uma situação de maior normalidade para o Ministério da Justiça", disse.

Cardozo contou que só começou a suspeitar das possíveis implicações da operação três dias depois da sua primeira fase.

No dia 20 de março, a PF informou que havia prendido o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa por tentativa de destruição de provas.

Costa foi um dos primeiros delatores da operação e apontou a existência do pagamento de propinas a membros da diretoria da Petrobras feito por empreiteiras em troca de contratos com a estatal.

Delações subsequentes apontaram que a nomeação de diretores de áreas estratégicas da Petrobras eram definidas por líderes de partidos da base aliada ao governo.

Em troca, parte das propinas pagas pelas empreiteiras deveriam ser direcionadas a políticos e partidos, entre eles o PT de Dilma, o PMDB de Michel Temer, seu vice, e o PP.

Costa havia saído da Petrobras dois anos antes da operação, em 2012. Dilma disse que demitiu Costa em 2012 em meio a suspeitas de irregularidades.

A ata da reunião em que a saída de Costa foi definida, porém, aponta que ele teria renunciado ao cargo.

"O diretor-geral da PF (Leandro Daiello) falou: 'Olha, ministro. À tarde, aconteceu uma situação. Foi preso um diretor da Petrobras'. Eu perguntei quem era. Ele falou que era Paulo Roberto Costa. Não lembrava do nome dele", diz Cardozo.

O ex-ministro conta que só então se recordou de Costa e de que como, quando ele foi demitido no início do governo Dilma, "muita gente da área política havia ficado insatisfeita com a presidente".

"Inclusive, gente da situação e da oposição. Foi aí que percebi que esse Paulo Roberto tinha um apoio político imenso", diz Cardozo.

"Comecei a avaliar que aquilo tudo podia desdobrar em consequências políticas, embora, para mim, era impossível mensurá-las naquele momento."

Cardozo afirma que chegou a comentar com Dilma sobre a prisão do ex-diretor da Petrobras.

"Conversei com ela rapidamente. Ela olhou para mim com uma cara assim: 'Vamos ver no que vai dar'. E mais nada. Não fez nenhum comentário", diz o ex-ministro.

"Mas depois ficou claro que ela tinha botado ele pra fora porque já tinha uma percepção do problema."

Durante o processo de impeachment de Dilma, em 2016, Cardozo ganhou ainda mais notoriedade. Se tornou a principal face da defesa da então presidente no processo que acabou por cassar o seu mandato. Com a queda da petista, Cardozo também saiu da cena política e não assumiu mais cargos públicos desde então.

Cardozo montou um escritório em São Paulo e voltou a atuar como advogado.

Um dia normal do professor

No dia 17 de março de 2014, o professor Leonardo Avritzer já era uma das principais referências brasileiras no estudo da corrupção e dava aulas na UFMG desde 1989.

Avritzer conta que estava em sua casa em Belo Horizonte e que as primeiras informações que chegaram sobre aquela operação de nome curioso não eram particularmente chamativas.

"A única coisa que chamou atenção foi a prisão de Alberto Youssef, mas até onde eu podia supor, foi uma prisão genérica, se é que podemos dizer assim", diz Avritzer à BBC News Brasil.

"Ainda não se sabia que ele já havia sido preso antes. Não era uma pessoa importante no meu radar."

Avritzer diz que, assim como Cardozo, o primeiro indício de que aquela poderia ser uma operação diferente foi a prisão de Paulo Roberto Costa.

"Quando o Costa foi preso, aí chegamos a uma prisão importante", lembra o professor.

Avritzer relata que, coincidentemente, na época em que a Lava Jato teve sua primeira fase, ele se dedicava a um projeto que monitorava a percepção da população sobre temas como a corrupção.

"A gente fazia pesquisas anuais e já notava que havia uma certa alta", diz.

"A corrupção, naquela época, ainda não despontava como a principal preocupação do brasileiro como eventualmente aconteceu nos anos após a Lava Jato."

Decisões do STF contrárias à Lava Jato permitiram que Lula pudesse voltar a ser candidato a cargos eletivos. Lula sempre alegou inocência sobre as acusações feitas pela operação. Em 2022, foi eleito pela terceira vez como presidente da República (Crédito: EPA)

Legado em disputa

Dez anos depois, a Operação Lava Jato continua despertando opiniões divergentes e, muitas vezes, diametralmente opostas.

A partir de 2019, a Lava Jato passou a ser alvo de uma intensa leva de críticas após a divulgação pelo portal Intercept Brasil e outros veículos de uma série de mensagens trocadas entre procuradores da força-tarefa por meio de um aplicativo. As mensagens foram extraídas por um hacker.

De acordo com os veículos, as mensagens mostravam diálogos entre Deltan e o então juiz Sergio Moro que levantaram questões sobre parcialidade do agora senador.

Em 2021, por exemplo, o STF reconheceu a parcialidade de Moro no caso de obras em um apartamento tríplex no Guarujá (SP) que teria sido dado a Lula por uma empreiteira investigada pela Lava Jato. Moro sempre negou qualquer irregularidade em sua atuação na operação.

Seus críticos passaram a reforçar o coro de que a operação havia cometido abusos como prisões demoradas para obter delações premiadas.

O caso, conhecido como Vaza Jato, foi usado pela defesa de Lula e de outros condenados pela Lava Jato para pedir a anulação de sentenças.

Em 2021, o STF reconheceu a parcialidade de Moro no caso de obras em um apartamento tríplex no Guarujá (SP) que teria sido dado a Lula por uma empreiteira investigada pela Lava Jato. Moro sempre negou qualquer irregularidade em sua atuação na operação.

Dallagnol nunca admitiu que as mensagens eram autênticas e sempre negou o cometimento de irregularidades na condução da operação.

Em 2019, ele tentou explicar o contexto das supostas conversas em uma entrevista à BBC News Brasil.

"As pessoas têm que entender que essas conversas são conversas que você teria na mesa de casa com a família, são pessoas que estão trabalhando há cinco anos juntas, são amigas", disse o então procurador-chefe da Lava Jato.

"São conversas que você tem com o círculo de intimidade, conversas que você fica à vontade para falar até alguma besteira, uma bobagem, para ser até certo modo irresponsável."

Questionado na semana passada ao ser entrevistado pela BBC News Brasil sobre o legado da Lava Jato e as acusações de abusos cometidos por ela, Dallagnol preferiu não responder.

Em novembro de 2021, ele deixou o MPF e abriu mão da carreira como procurador da República.

No ano seguinte, se filiou ao Podemos, disputou e venceu a eleição para deputado federal, elegendo-se como o deputado federal mais votado do Paraná naquele ano, com 344.917 votos.

Em maio do ano passado, no entanto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou seu mandato no curso de um processo aberto com base na Lei da Ficha Limpa.

A acusação era de que ele havia pedido exoneração do MPF para evitar uma condenação disciplinar por conta de processos instaurados contra ele em função de sua atuação na Lava Jato.

Sua exoneração foi interpretada pelos ministros da Corte como uma manobra para escapar da Lei da Ficha Limpa, que impede pessoas condenadas por órgãos colegiados de se candidatarem a cargos eletivos.

À época, Dallagnol negou qualquer irregularidade e afirmou que sua cassação fez parte de uma perseguição política contra ele.

"Na minha leitura, isso é uma tentativa do PT me derrubar, mas não se trata só do Deltan. Para eles, é uma tentativa de resgate e de redenção política do Lula", disse Dallagnol à BBC News Brasil em maio de 2023.

"É uma forma de impor uma narrativa de que a Lava Jato foi, na realidade, uma perseguição política e não uma tentativa de construir um país mais justo e sem corrupção."

Apesar da cassação, Dallagnol vem sendo apontado como um nome forte na disputa pela Prefeitura de Curitiba, neste ano.

Eleitor declarado de Jair Bolsonaro em 2022, o agora ex-procurador e ex-deputado federal tem apoio de segmentos como o eleitorado evangélico (há anos, ele frequenta a Igreja Batista do Bacacheri).

Segundo o jornal O Globo, um juiz do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR) entendeu que, mesmo tendo o mandato cassado pelo TSE, Dallagnol não está inelegível e, em tese, poderia disputar as eleições municipais deste ano.

Para Cardozo e Avritzer a Lava Jato teve impactos negativos na política e na economia brasileiras.

"Ela tinha um propósito virtuoso que combater a corrupção, só que a sua abusividade foi colocada à mostra e ficou evidente que houve um desvirtuamento do próprio fim da operação", diz o ex-ministro da Justiça.

"A operação, claramente, criou condições para o impeachment (de Dilma) sem que houvesse causa justificada."

Avritzer afirma que o fato de a Lava Jato ter, supostamente, cometido abusos, faz com que ela não tenha deixado nenhum legado ao país.

"Argumentam que ela deixou um legado pelas pessoas que prendeu, mas o aprimoramento institucional, que é o que de fato funciona no combate à corrupção, não ocorreu. Não houve contribuição neste sentido", diz o professor.

Apesar disso, outros estudiosos apontam que a Lava Jato teria deixado para trás a criação de algumas inovações jurídicas que ainda perduram.

Entre elas estaria a proibição do financiamento empresarial de campanhas políticas, determinado pelo STF em 2016. O financiamento empresarial das eleições foi apontado como um dos causadores do esquema investigado pela operação.

Outro ponto seria a Lei da Estatais, também de 2016, que criou normas mais rígidas para a nomeação de cargos de direção em empresas estatais.

Um terceiro seria o fim das financiamentos por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) à exportação de serviços de infraestrutura em países estrangeiros, também em 2016. Segundo os seus críticos, empreiteiras utilizavam seus contatos no Brasil para ganhar contratos no exterior e repassar propina a agentes públicos estrangeiros.

Desde o início do seu novo mandato, Lula tem defendido o retorno dos financiamentos para empresas brasileiras executarem serviços de infraestrutura no exterior, mas a medida ainda não foi revertida.

À BBC News Brasil, Dallagnol afirma que uma suposta perseguição a pessoas ligadas à Lava Jato tem impedido-as de falar sobre o caso no aniversário de dez anos da operação.

"Quem está no Ministério Público hoje, no Judiciário ou na polícia tem medo de dar entrevista e de falar sobre o caso porque existe uma censura, uma repressão e uma retaliação contra quem combater a corrupção no Brasil", diz Dallagnol.

No início de março, o STF divulgou um relatório sobre os dez anos da Lava Jato.

Apesar de decisões da Corte terem resultado na anulação de condenações, o Supremo aponta que acordos de colaboração premiada oriundos da investigação resultaram na recuperação de R$ 2 bilhões em recursos que teriam sido desviados pelo esquema.

Ainda no campo jurídico, as decisões que anularam sentenças proferidas durante a operação fizeram com que algumas das empresas investigadas passassem a tentar renegociar acordos de leniência que fizeram durante o auge da operação.

Em fevereiro deste ano, por exemplo, o ministro do STF, Dias Toffoli, suspendeu uma multa de R$ 8,5 bilhões que havia sido imposta à empreiteira Odebrecht e autorizou o governo a reavaliar os termos do acordo de leniência feito pela empresa.

Acordos de leniência são uma espécie de "delação premiada" para empresas que reconhecem condutas irregulares ou ilegais às autoridades em troca de benefícios.

Leandro Prazeres,  de Brasília - DF para a BBC News Brasil,  em 19.03.24

segunda-feira, 18 de março de 2024

Para ex-ministro, STF minou Lava Jato e enfraqueceu luta anticorrupção

Em entrevista, ministro aposentado sustenta que Supremo Tribunal Federal ajudou enterrar a operação.

 Professor Marco Aurélio Mello, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (Crédito da foto:Dida Sampaio  / Estadão)

Em um de seus últimos julgamentos no Supremo Tribunal Federal (STF), concluído menos de um mês antes de sua aposentadoria, em junho de 2021, o ministro Marco Aurélio Mello votou contra a suspeição do exjuiz Sérgio Moro na ação do triplex do Guarujá (SP), que levou à prisão do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ficou vencido, como tantas vezes ao longo dos 31 anos que passou na Corte.

A decisão que declarou a parcialidade do ex-juiz da Operação Lava Jato foi um dos principais reveses impostos pelo STF à investigação, mas não o único. O tribunal ainda proibiu a execução da pena antes do esgotamento de todos os recursos, o que favoreceu Lula, e concluiu que a 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba manteve sob sua jurisdição inquéritos e processos da Lava Jato que, para os ministros, deveriam ter sido transferidos para outros Estados. A decisão esvaziou o berço da operação e levou à anulação das condenações do atual presidente.

“O que eu acho é que houve uma concepção equivocada por parte do Supremo. Só não houve a mesma concepção quanto ao mensalão porque foi o Supremo quem julgou, aí, evidentemente, o tribunal ficaria muito mal na fotografia se viesse a declarar vícios na investigação”, disse Marco Aurélio em entrevista ao Estadão.

Ele também afirmou não ver com bons olhos a decisão do ministro Dias Toffoli que suspendeu o pagamento de multas dos acordos de leniência da J&F e Odebrecht. “O grande problema é que nós passamos a ter, não pronunciamentos de órgão único, que seria o Supremo reunido em plenário, mas a visão individual de cada qual. Hoje a insegurança grassa.”

Como um ministro que acompanhou, no Supremo Tribunal Federal, o auge e o declínio da Lava Jato, acredita que a Corte ajudou a enterrar a operação? Sem dúvida alguma. Quando se concluiu, por exemplo, que o Juízo da 13.ª Vara Criminal do Paraná não seria competente, esmoreceu o combate à corrupção. Aí, talvez, a colocação daquele senador da República que disse que “precisamos estancar essa sangria” acaba se mostrando procedente (em 2016, Romero Jucá (MDB-RR) sugeriu em uma conversa gravada deter o avanço da Lava Jato).

Por que o STF mudou o posicionamento em relação à investigação?

Estivesse vivo o relator inicial, grande juiz, Teori Zavascki, se teria caminhado no sentido que se caminhou? A resposta, para mim, é negativa.

Mas foi simplesmente pela troca de relatoria?

O que acho é que houve uma concepção equivocada por parte do Supremo. Só não houve a mesma concepção quanto ao mensalão porque foi o Supremo quem julgou, aí, evidentemente, o tribunal ficaria muito mal na fotografia se viesse a declarar vícios na investigação e no próprio processo-crime.

Houve prejuízo ao direito de defesa na Lava Jato?

O direito de espernear, principalmente pelos que cometeram desvios de conduta, é latente. Eles vão, evidentemente, aproveitar a onda contrária à investigação para lograr proveitos.

Então o devido processo legal foi respeitado?

O nosso sistema é equilibrado. Quando há um pronunciamento, ele é passível de impugnação no órgão revisor. O Tribunal Regional Federal da 4.ª Região confirmou as decisões de primeira instância e andou, inclusive, aumentando penas.

A relação entre Sérgio Moro e procuradores da Lava Jato foi republicana? Fala-se em conluio entre a magistratura e o Ministério Público, julgador e acusador. Que conluio? O diálogo é saudável, sempre existiu. O juiz sempre esteve aberto a ouvir o Ministério Público, fazendo a ponderação cabível. Colocar cada qual em uma redoma, em um isolamento de não poder conversar, é passo demasiadamente largo e não é democrático. Na vida em sociedade, nós temos que presumir a postura digna, principalmente por aqueles que ocupam cargos públicos, e não que sejam salafrários até que provem o contrário.

Como vê o processo disciplinar aberto pelo Conselho Nacional de Justiça para investigar a conduta de Moro e a gestão das multas dos acordos de colaboração e leniência?

O CNJ e o CNMP (Conselho Nacional no Ministério Público) atuam no campo administrativo e devem fazê-lo observando o figurino legal.

Concorda com a cassação de Deltan Dallagnol?

A meu ver, ele foi caçado, com “ç” e não com “ss”. Simplesmente se presumiu que, quando ele pediu exoneração, o fez para fugir a um processo administrativo que poderia levar à declaração de inelegibilidade. É presumir o excepcional e não o corriqueiro, que é a postura digna por parte do cidadão.

Moro fez “um favor” para críticos da Lava Jato ao assumir o Ministério da Justiça no governo Bolsonaro? Quando eu integrava o Supremo, ele foi me visitar. E eu disse, com a franqueza própria dos cariocas, que ele tinha cometido um ato, a meu ver, insano. Abandonar cargo alcançado por concurso público, uma função que o tornou herói nacional, para ser auxiliar de um presidente da República demissível a qualquer momento. Eu disse: “Rapaz, como você abandona uma caneta dessa?” Aí ele disse: “A minha caneta ainda tem muita tinta”. Ainda bem que o Paraná o elegeu senador.

Uma decisão como a que suspendeu o pagamento das multas dos acordos de leniência da J&F e da Odebrecht poderia ter sido tomada monocraticamente? O grande problema é que nós passamos a ter, não pronunciamentos de órgão único, que seria o Supremo reunido em plenário, mas a visão individual de cada qual. Hoje a insegurança grassa, o que é péssimo. Mais do que isso: grassa o descrédito da instituição na qual eu estive durante 31 anos. Para mim, é uma tristeza enorme perceber isso. Avançamos assim? Como fica a sociedade? Fica decepcionada. Eu só ouço críticas quanto ao Supremo. Indago: hoje qualquer dos integrantes (do STF) sai à rua? Não creio que qualquer colega que tenha assento no Supremo saia sozinho hoje e frequente locais públicos sem estar com uma segurança maior.

Toffoli deveria ter se declarado impedido para julgar o pedido da J&F, já que a mulher do ministro presta assessoria jurídica para a empresa em um litígio?

Lá atrás, acho que foi no mensalão, ele disse que não tinha qualquer relação com a doutora Roberta. Quem sabe ele continua sem relação.

Deve haver uma ponderação dos órgãos públicos sobre a repactuação das multas de acordos de leniência? Acordo que resulta da manifestação de vontade só é passível de anulação se ficar comprovado vício. Para mim, esse vício fica excluído no caso. Agora, vivenciamos essa época de tempos estranhos e já se fala em repactuação do acordado, isso acaba colando a tudo uma insegurança muito grande. As defesas e os acusados sempre foram ouvidos. As empresas que fizeram acordo foram intimidadas? Tiraram as multas do capital de giro? Não. Foi dinheiro que entrou indevidamente na contabilidade. Imaginar que aqueles que formalizaram os acordos estiveram pressionados, intimidados e coagidos não se coaduna com a realidade.

O combate à corrupção avançou ou retrocedeu depois da Lava Jato?

Para mim, houve um grande retrocesso.

É possível ver novamente algo como a Lava Jato? Dar-se a Lava Jato como algo sepultado é ruim. A decepção é incrível. E repito que não avançamos dessa forma.

Para onde o Brasil precisa olhar para avançar no combate à corrupção?

Para a percepção, pelo homem público, de que o cargo é para servir aos semelhantes e não para o ocupante se servir do cargo em benefício dele e da família. Essa é a grande questão. Precisamos avançar em termos de compreensão, principalmente por aqueles que ocupam cargos públicos. 

Rayssa Motta, de S. Paulo e Julia Affonso, de Brasília, para O Estado de S. Paulo, em 18.03.24

Trump diz que alguns imigrantes ‘não são pessoas’ e prevê um ‘banho de sangue’ se perder eleição

Em fala cáustica em Ohio, o ex-presidente Donald J. Trump mais uma vez dobrou a sua aposta em uma visão apocalíptica dos EUA e prometeu ajudar presos do 6 de janeiro se eleito

O ex-presidente dos Estados Unidos e pré-candidato republicano nas eleições dos EUA de 2024, Donald Trump. (AP Photo/Mike Stewart, File) 

O ex-presidente dos Estados Unidos Donald J. Trump, em um evento no sábado supostamente destinado a impulsionar seu candidato preferido nas primárias republicanas para o Senado de Ohio, fez um discurso que não seguia uma linha, no qual usou uma linguagem desumanizante para descrever os imigrantes, manteve um fluxo constante de insultos e vulgaridades e previu que os Estados Unidos nunca teriam outras eleições se ele não ganhasse na disputa que acontecerá em novembro.

Com o seu confronto nas eleições gerais contra o presidente Joe Biden à vista, Trump mais uma vez reforçou a visão apocalíptica do país que animou a sua terceira campanha presidencial e energizou a sua base durante as primárias republicanas.

A visão sombria ressurgiu ao longo de seu discurso. Ao discutir a economia dos EUA e a sua indústria automobilística, Trump prometeu impor tarifas sobre carros fabricados no exterior se ganhasse em novembro. Ele acrescentou: “Agora, se eu não for eleito, será um banho de sangue para todos – isso será o mínimo. Será um banho de sangue para o país.”

Durante quase 90 minutos do lado de fora do Aeroporto Internacional de Dayton, em Vandalia, Ohio, Trump fez uma fala discursiva, repleta de ataques e retórica cáustica. Ele disse diversas vezes que estava tendo dificuldade para ler o teleprompter.

Linguagem desumanizadora para falar de imigrantes

O ex-presidente abriu seu discurso elogiando as pessoas que cumprem penas relacionadas ao motim de 6 de janeiro de 2021 no Capitólio. Trump, que enfrenta acusações criminais relacionadas com os seus esforços para anular a derrota eleitoral, chamou-os de “reféns” e “patriotas inacreditáveis”, elogiou o espírito deles e prometeu ajudá-los se for eleito em novembro. Ele também repetiu as suas falsas alegações de que as eleições de 2020 foram roubadas, que foram desacreditadas por uma montanha de provas.

Se não vencesse as eleições presidenciais deste ano, Trump disse: “Não creio que teremos outra eleição, ou certamente não teremos uma eleição que seja significativa”.

Trump também alimentou temores sobre o influxo de imigrantes que chegam aos Estados Unidos pela fronteira sul. Tal como fez durante a sua campanha bem-sucedida em 2016, Trump usou uma linguagem incendiária e desumanizadora para apresentar muitos imigrantes como ameaças aos cidadãos americanos.

Afirmou, sem provas, que outros países estavam a esvaziar as suas prisões de “jovens” e a enviá-los através da fronteira. “Não sei se você os chama de ‘pessoas’, em alguns casos”, disse ele. “Eles não são pessoas, na minha opinião.” Mais tarde, ele se referiu a eles como “animais”.

Os funcionários fronteiriços, incluindo alguns que trabalharam na administração Trump, afirmam que a maioria dos imigrantes que atravessam a fronteira são membros de famílias vulneráveis que fogem da violência e da pobreza, e os dados disponíveis não apoiam a ideia de que os migrantes estão a estimular o aumento da criminalidade.

Trump mencionou Bernie Moreno, seu candidato preferido ao Senado em Ohio, apenas com moderação. Embora tenha o apoio de Trump, Moreno tem lutado para se separar em uma acalorada disputa nas primárias republicanas para enfrentar o senador Sherrod Brown, democrata de Ohio, neste outono. Trump foi redirecionado de uma viagem planejada ao Arizona para aparecer com Moreno como um empurrão de última hora.

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“Presidente idiota” e “filho da mãe burro”

Trump fez comentários vulgares e depreciativos sobre vários democratas, incluindo aqueles que ele frequentemente visa, como Biden e Fani Willis, o promotor de Atlanta que supervisiona seu caso criminal na Geórgia, bem como aqueles amplamente vistos como possíveis futuros candidatos presidenciais. como o governador Gavin Newsom da Califórnia e o governador J.B. Pritzker de Illinois.

Trump chamou Biden de “presidente idiota” várias vezes e a certa altura se referiu a ele como um “filho da mãe burro” antes de parar. Ele também comparou o primeiro nome da mulher de Willis a uma vulgaridade, chamou . Newsom de “escória de Gavin New” e criticou a aparência física de Pritzker.

As palavras duras de Trump não foram reservadas aos políticos nacionais: ele mirou brevemente um dos principais oponentes de Moreno, Matt Dolan, um rico senador do Estado de Ohio que tem aumentado nas pesquisas recentes. Voltando aos comentários preparados, Trump disse que não conhecia Dolan, mas o descreveu como “tentando se tornar o próximo Mitt Romney”.

“Minha atitude é que qualquer pessoa que mude o nome de Cleveland Indians para Cleveland Guardians não deveria ser senador”, disse Trump, referindo-se ao time profissional de beisebol no qual a família de Dolan detém participação majoritária.

Quando Moreno foi brevemente chamado de volta ao palco no final dos comentários de Trump, ele elogiou o ex-presidente como um “bom homem”. Mas Moreno não lembrou explicitamente à multidão que o apoiasse em sua candidatura ao Senado na terça-feira. Trump, por sua vez, disse que Moreno era um “cara fantástico”.

Os discursos de campanha de Trump geralmente oscilam entre comentários programados e digressões aparentemente improvisadas. No sábado, ele reconheceu ter dificuldades para ler o teleprompter enquanto tentava citar estatísticas sobre a inflação.

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“Está tudo mais caro: o frango está caro, o pão está caro e não consigo ler esse maldito teleprompter”, disse Trump. “Esse otário está se movendo. É como ler uma bandeira em movimento num vento de 56 quilómetros por hora.”

Então, Trump, que antes de sua presidência era conhecido em Nova York por se recusar a pagar suas contas a uma ampla gama de prestadores de serviços, brincou sobre não pagar à empresa de teleprompter. “Então dizem que Trump é um cara mau, porque direi o seguinte: não paguem à empresa de teleprompter”, disse ele enquanto a multidão ria. “Não pague.”

Por Anjali Huynh (The New York Times) e Michael Gold (The New York Times). Reproduzido no Brasil pelo O Estado de S. Paulo, em 17.03.24. / Este conteúdo foi traduzido com o auxílio de ferramentas de Inteligência Artificial e revisado pela equipe editorial do Estadão. Saiba mais na Política de IA do jornal.

Haja lábia

Rui Costa acha que a queda na popularidade de Lula vem das falhas da comunicação, mas não há marketing capaz de vender um produto ruim – e que parece ter passado do prazo de validade

Um dos principais auxiliares do presidente Lula da Silva, o ministro Rui Costa (Casa Civil) assim identificou a razão da notável corrosão na popularidade do chefe: a comunicação do governo. Minimizando as pesquisas que indicaram crescente reprovação ao presidente e tentando reduzir o peso de qualquer fragilidade da atual gestão, Costa acha que é preciso aperfeiçoar a comunicação do governo e aproximá-lo de quem lê notícias via WhatsApp. “É alcançar as pessoas com informações corretas”, disse ele, em entrevista recente à GloboNews. O ministro do PT está convicto de que os números da popularidade não representam a realidade do governo.

Questão de fé, por definição, não se discute. Segundo a parolagem petista, o atual mandato do demiurgo só tem produzido boas notícias; o problema estaria na percepção popular, ruim porque o governo não conseguiu fazer suas “informações corretas” chegarem às redes. Em outras palavras, a piora não teria se dado em razão dos fatos: além dos bons resultados apresentados, o presidente estaria cumprindo fielmente seu desiderato de trabalhar para reunir eleitores, famílias e amigos afastados por divergências políticas, governaria com sabedoria e conciliação, tentando conjugar as ideias do PT com outras forças e pensamentos fora das tribos petistas, e não teria espalhado diatribes que afrontam mentes moderadas – católicas, evangélicas, judaicas ou agnósticas.

Pelo menos neste caso, Costa não recorreu à habitual criminalização do inimigo preferencial da esquerda: a “grande mídia corporativa”. Tampouco lançou mão de teorias conspiratórias comuns aos governos de natureza populista – a crença numa grande articulação entre veículos jornalísticos, como um esforço intencional da mídia e dos críticos para desestabilizar o governo. Em outros termos e outros tempos, a narrativa de perseguição da imprensa não raro era também adotada pelo então presidente Jair Bolsonaro. Mas a intenção de Costa de fazer chegar as “informações corretas” ao distinto público denota a habitual má vontade lulopetista com o trabalho da imprensa.

Se o problema está na percepção pública, sugere Rui Costa, no fim das contas quem será responsabilizado por isso é a comunicação do governo – aquela que, em última instância, atua na mediação entre o que o governo faz e como atinge a opinião de cidadãos. Ao aderir à tese, o ministro reforça a máxima segundo a qual a comunicação é o “mordomo” das crises dos governos, isto é, aquele sobre o qual habitualmente recai a culpa, ainda que seja necessário reconhecer as deficiências da comunicação lulopetista, em que imperam a falta de conhecimento sobre as exigências do ambiente digital, as falhas improvisadas ou bem pensadas do grande líder e a pajelança palaciana, incapaz de achar uma voz crítica que dissuada, divirja, aponte ao presidente as armadilhas das bombas que solta. Ao contrário, não falta quem surja para dobrar a aposta e justificar as lambanças do companheiro-em-chefe, como ocorreu no trágico episódio da comparação do conflito de Israel com o Hamas ao Holocausto.

Se Lula fala e faz o que quer, como quer e para quem quer (e não para quem precisa), não há estratégia de comunicação genial o suficiente para consertar o defeito de origem. Eis o ponto: marketing político ou comunicação oficial não substituem o que só um bom produto pode suprir. Na ausência deste, não há boa estratégia, mensagens, bons canais ou quaisquer outras artimanhas narrativas para convencer o distinto público do contrário e assegurar outra percepção popular. O governo Lula tem se mostrado um produto que passou do prazo de validade, concebido para as afinidades tribais, não para um País complexo e uma população diversa e com expectativas de mudança real em suas condições de vida. Antes de tentar seduzir os brasileiros com a ladainha antediluviana sobre luta de classes, que não faz nenhum sentido para os cidadãos que querem liberdade para aproveitar as novas oportunidades de trabalho e empreendedorismo, é preciso chegar à vida real das pessoas – que Lula, ocupado demais consigo mesmo e com seus devaneios, parece desconhecer. O ministro pode não enxergar, mas o culpado pelos problemas de comunicação está no gabinete presidencial, a poucos metros do seu.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em18.03.24

Putin reafirma seu poder após a farsa eleitoral

O presidente russo admite pela primeira vez que planejavam trocar o adversário Alexei Navalny antes de sua morte

Vladimir Putin, à chegada à sede da sua equipa eleitoral em Moscovo, onde deu uma conferência de imprensa após a sua vitória eleitoral, este domingo. (Maxim Shemetov / Reuters)

“Isto é a vida”, declarou Vladimir Putin assim que venceu as eleições presidenciais na Rússia relativamente à morte do dissidente Alexei Navalny há apenas um mês e um dia . O presidente ousou pronunciar o nome do seu grande inimigo político pela primeira vez desde que morreu, durante uma conferência de imprensa que ofereceu este domingo à meia-noite na sede da sua equipa eleitoral, em Moscovo, para comemorar a sua vitória numa eleição. onde nenhuma oposição real foi permitida . Porém, em seu discurso não deu detalhes sobre a morte repentina do opositor, aos 47 anos, em uma prisão do Círculo Polar Ártico. A comitiva de Navalny informou que ele foi assassinado quando seria trocado por um assassino do Serviço de Segurança Federal (FSB) preso na Alemanha. “Eu concordei, queria trocá-lo [Navalni] e não voltar, mas essas coisas acontecem, é a vida”, acrescentou Putin.

O escrutínio, com 99,6% dos votos apurados, dá-lhe 87,3% dos votos, segundo a Comissão Central Eleitoral. A presidente desta organização, Ela Pamfilova, informou esta segunda-feira que a participação atingiu 77,44% do eleitorado, um número recorde na história moderna da Rússia.

Putin demonstrou renovada autoconfiança aos jornalistas e à sua equipa de campanha eleitoral. Em primeiro lugar, ele afirmou que os seus resultados são um impulso para os seus planos, incluindo a invasão da Ucrânia quando “a nação defende o seu progresso com armas nas mãos”. “[A vitória eleitoral] é um sinal de confiança por parte dos cidadãos e de esperança de que tudo o que temos pela frente será cumprido”, disse à sua equipa de campanha. “Nossos planos são ótimos”, acrescentou, ressaltando que um deles é “expandir as armas russas”.

Para Putin, estas eleições apenas decorrem “de acordo com o planeado”. Após dois anos e um mês de guerra, as suas regiões fronteiriças tornaram-se alvo diário de drones e foguetes ucranianos. Porém, o mais importante para ele é que o poder esteja sob controle.

Moscovo e a fronteira russa com a Ucrânia estão separadas por 800 quilómetros, a distância entre viver como se a guerra não existisse ou ter de procurar refúgio a qualquer momento das bombas. Nestas duas Rússias muito diferentes, Vladimir Putin reinou durante 24 anos, e o seu governo será prolongado a partir deste domingo por mais seis anos, até 2030. O líder russo ganhou um apoio supostamente massivo do seu povo, ainda maior que 76,7. % que foi atribuído em 2018, com uma participação de 74,2% dos cadernos eleitorais. Objetivo cumprido para justificar suas próximas e impopulares ordens.

Os rivais de Putin foram esmagados, o sistema eleitoral apresenta enormes suspeitas , a começar pela opaca votação electrónica, e as forças de segurança e os seus juízes não deixam espaço para protestos pacíficos . Os eleitores insatisfeitos com o Kremlin mal conseguem demonstrar a sua raiva com gestos que são tão simbólicos quanto inofensivos. Segundo Putin, o apelo dos grupos de oposição para comparecerem às escolas ao meio-dia e votarem em qualquer outro candidato como sinal de protesto “não teve um efeito especial”.

“Se houve apelos ao voto – por parte da oposição – eles são louváveis, mas o importante é que alguns estragaram as cédulas e isso é mau”, criticou Putin.

Contudo, uma parte importante da população, senão uma esmagadora maioria, apoia o presidente. É impossível verificar isto sem eleições abertas, mas de acordo com o centro de votação independente Levada, a aprovação de Putin na Rússia ronda os 85%.

O presidente nunca teve menos rivais em uma eleição. Apenas três candidaturas foram aprovadas pelo seu conselheiro sombra, Sergei Kiriyenko. Todos eles provenientes de formações leais ao poder. Especificamente, Nikolai Kharitonov, que nem sequer é o líder do Partido Comunista e já falhou miseravelmente nas eleições de 2004; Leonid Slutski, sucessor do populista Vladimir Zhirinovski e cuja popularidade à frente do Partido Liberal Democrático da Rússia (LDPR) é zero; e Vladislav Davankov, chefe do New People, um partido satélite do Kremlin criado em 2019 para envolver as novas gerações.

Para além das cosmopolitas Moscovo e São Petersburgo, inúmeras cidades russas alimentam o seu exército com voluntários. Muitos fazem-no por patriotismo e outros por um salário inimaginável nas suas províncias: 205.000 rublos (cerca de 2.000 euros), entre quatro a seis vezes mais do que um emprego médio oferece. E se eles morrerem ou forem feridos, a indenização para suas famílias dispara em vários milhões de rublos.

Moscou, uma cidade liberal longe da morte

Moscou vive alheia à guerra. Os seus restaurantes e discotecas nunca foram evacuados devido a um alarme de ataque aéreo, e os soldados não são vistos nas suas ruas, exceto nas estações ferroviárias, por onde passam voluntários e pessoas mobilizadas de outras regiões mais pobres da Rússia a caminho da frente.

Também quase não há cartazes dos candidatos presidenciais, embora anúncios incentivando as pessoas a votar inundem todos os cantos da cidade. A propaganda eleitoral do candidato Putin é inexistente, mas as notícias e elogios ao Presidente Putin são constantes.

Dezenas de russos fazem fila às 12h de domingo na entrada do posto de votação 51 em Moscou. É o momento em que foram chamados a protestar simbolicamente. A ligação foi feita pela equipe de Navalni . Esta é uma das inúmeras pequenas reuniões que se repetem nos restantes centros eleitorais do país, que também têm ecoado em diferentes capitais europeias onde os dissidentes russos se reuniram ao meio-dia. São pequenos protestos silenciosos que não oferecem a imagem espetacular de oposição que o funeral de Navalni conseguiu, porque os eleitores estão dispersos em milhares de pontos do país.

“Não é um ato que vai mudar alguma coisa, mas é uma manifestação para mim mesma”, afirma Alexandra, uma mulher que foi votar acompanhada pela filha pequena, numa escola da capital russa. “Apoio Navalny”, reconhece enquanto espera para votar. A polícia observa de longe.

“Moscou é uma cidade liberal, não é a Rússia”, comenta Andréi, na casa dos trinta anos, a este jornal enquanto espera na fila. “Além disso, aqui também estamos divididos”, acrescenta o jovem antes de afirmar que vai votar no atual presidente russo.

“Nunca votei em Putin, mas em 2022 – ano em que começou a invasão da Ucrânia – mudei de ideias. Vi a hipocrisia dos valores europeus, como dão abraços falsos. As suas sanções, o seu ódio aos russos", diz Andréi, que expressa uma opinião muito difundida na Rússia: "Navalni não era o político favorito de muitos russos", diz antes de afirmar que a sua imagem "foi exagerada na Europa, como o de sua viúva, Yulia Navalnaya ”.

Pelo menos 75 pessoas foram detidas em 17 cidades russas durante este domingo, terceiro e último dia das eleições presidenciais, segundo a plataforma OVD-Info. Esta organização de protecção dos manifestantes revela que alguns eleitores foram detidos por introduzirem boletins de voto inválidos ou por mostrarem abertamente as suas opiniões nas assembleias de voto.

Outros meios de comunicação russos revelaram que algumas cédulas continham mensagens manuscritas como “Não à guerra!” ou “Navalni”. Na verdade, alguns seguidores do dissidente depositaram boletins eleitorais no túmulo do grande inimigo político de Putin.

Belgorod, cidade fantasma em tensão contínua

Na cidade russa de Belgorod, a cerca de 40 quilómetros da fronteira com a Ucrânia, as eleições são vividas de uma forma muito diferente de Moscovo. Belgorod mudou radicalmente no ano passado e agora é uma cidade fantasma. Uma grande parte da sua população partiu à medida que os ataques ucranianos se intensificaram nos últimos meses e abrigos de concreto anti-drones surgiram por toda parte nas ruas.

Mikhail é um ex-piloto militar, veterano russo da guerra do Afeganistão de 1979-1989, que não pensa em deixar Belgorod e defende o presidente: “Não é necessário que Putin tenha concorrentes nas eleições”, afirma Mikhail. “Ele tem o poder, é uma questão de ser forte.” Também justifica a guerra. "Não há como evitar. Invadimos a Ucrânia e entendo que precisamos disso”, afirma Mijaíl. No entanto, sua esposa Yana ressalta ao marido: “Mas antes de 2022 eles nunca nos atacaram”. No entanto, ambos partilham que Putin é a melhor opção para a Rússia e para eles.

O trem de Belgorod para Moscou estava lotado no sábado, especialmente com crianças acompanhadas por suas mães e avós, e soldados voltando do front. Na capital, muito mais segura, aguardava um Putin pronto para iniciar o seu quinto mandato após a conclusão da farsa eleitoral.

Javier G. Cuesta, de Moscou - Rússia para o EL PAÍS, em 17.03.24

domingo, 17 de março de 2024

Golpista até o fim

Depoimentos dos ex-chefes do Exército e da Aeronáutica à PF não dão margem a dúvidas: Brasil esteve à beira da ruptura nas mãos de um liberticida incorrigível. Que isso não saia barato

                                                                                                                                Douglas Magno / AFP

O Brasil esteve à beira de um golpe de Estado nos estertores do governo de Jair Bolsonaro. Já não se trata mais de uma conjectura ou de um mero exagero retórico. Um golpe para impedir a posse de Lula da Silva como presidente da República legitimamente eleito foi uma possibilidade real, como ficou claro a partir dos depoimentos dos ex-comandantes do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, prestados à Polícia Federal (PF) no início de março.

A julgar pelo que disseram os ex-comandantes, a ruptura do regime democrático foi tramada por Bolsonaro sem recurso a meias palavras. De forma direta, o ex-presidente considerou empregar meios violentos para fazer letra morta da Constituição e se aferrar ao poder. É assim, como uma trama concreta, que a tentativa de golpe deve ser tratada pelas autoridades incumbidas de investigar, processar e julgar Bolsonaro e todos os sediciosos que a ele se associaram – até as últimas consequências.

São estarrecedoras as revelações dos militares, trazidas a público agora que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes decidiu retirar o sigilo das investigações. Aos policiais, Freire Gomes afirmou que Bolsonaro convocou reuniões no Palácio da Alvorada com a cúpula das Forças Armadas após a derrota no segundo turno para apresentar aos comandantes “hipóteses de utilização de institutos jurídicos como GLO (Garantia da Lei e da Ordem) e estados de defesa e sítio em relação ao processo eleitoral”.

Baptista Júnior, por sua vez, relatou à PF que, diante da insistência de Bolsonaro em encontrar meios para subverter a ordem democrática, por pura irresignação com o resultado da eleição, o então comandante do Exército chegou a ameaçá-lo de prisão. “O general Freire Gomes afirmou que, caso (Bolsonaro) tentasse tal ato, teria de prender o presidente da República”, disse o brigadeiro, que, assim como Freire Gomes, foi ouvido pela PF na condição de testemunha.

Para além do fato de terem chegado ao topo da carreira em suas respectivas Forças, Freire Gomes e Baptista Júnior estiveram no centro nevrálgico da conspiração bolsonarista. Dessa posição de destaque, o general e o brigadeiro foram determinantes para o fracasso do golpe, independentemente das razões que os tenham motivado a agir como agiram. Agora, como testemunhas, têm servido ao País para elucidar a anatomia do golpe urdido. Por isso o peso de suas palavras.

Que Bolsonaro é um ressentido com a democracia e um golpista de marca maior, já era fato público e notório desde muito antes de ele cogitar concorrer à Presidência da República. Seus quatro anos de mandato como chefe de Estado e de governo só deixaram claro para um público mais amplo a sua índole liberticida. A natureza golpista de Bolsonaro, no entanto, não diminui a importância das revelações feitas por seus ex-comandantes militares – ao contrário.

Também em depoimento à PF, o presidente do PL, o notório Valdemar Costa Neto, revelou as pressões que teria sofrido de Bolsonaro para que o partido bancasse com dinheiro público um relatório fajuto lançando suspeitas contra o sistema eleitoral. Fica claro, assim, que Bolsonaro procurou se cercar de meios políticos e militares para levar a cabo a intentona.

Inconformado com a derrota eleitoral, Bolsonaro se moveu para pôr tropas armadas nas ruas a fim de sustentá-lo no cargo, sob a falsa justificativa de que a eleição não teria sido limpa. Tramou prender autoridades políticas e judiciárias. Por óbvio, teria lançado suas garras também sobre a imprensa profissional e independente. No limite, Bolsonaro assumiu o risco de derramar o sangue de concidadãos em nome de um projeto pessoal de poder. Um doidivanas, assim como os fardados que anuíram com essa loucura.

Eis a dimensão da sordidez. Ao tempo que fazia chegar ao País a informação de que estaria “deprimido” por não ter sido reeleito, Bolsonaro, na verdade, estava maquinando o fim da democracia, cuja reconquista tanto custou aos brasileiros. Que isso não saia barato.

Editorial  / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 17.03.24

Uma Rússia incontrolável ameaça o mundo inteiro, não apenas Kiev

País tem de mostrar que o inimigo é Vladimir Putin, não os 143 milhões de russos comuns

Vladimir Putin em entrevista coletiva às vésperas da invasão da Ucrânia. Foto: Sergey Guneyev/ Sputnik, Kremlin Pool via AP

Como o czar que ele toma de modelo, Vladimir Putin está prestes a ser ungido líder da Rússia por mais seis anos. A eleição que ele vencerá em 17 de março será uma fraude. Mas ainda assim deve servir como alerta para o Ocidente. Ao contrário de colapsar, o regime russo tem se provado resiliente. E as ambições de Putin representam uma ameaça a longo prazo que vai muito além da Ucrânia. Putin pode disseminar mais discórdia na África e no Oriente Médio, vilipendiar a ONU e levar armas nucleares ao espaço. O Ocidente precisa de uma estratégia a longo prazo para lidar com uma Rússia incontrolável muito mais ampla que meramente ajudar a Ucrânia. Neste momento, essa estratégia não existe. O Ocidente também precisa mostrar que seu inimigo é Putin, não os 143 milhões de russos.

Muitos no Ocidente esperaram que as sanções ocidentais e os equívocos de Putin na Ucrânia, incluindo o sacrifício sem sentido de legiões de jovens russos, poderiam desgraçar seu regime. Mas ele sobreviveu. Conforme mostra esta semana nosso estudo a respeito da vida em Vladivostok, essa resiliência tem várias fundações. A economia russa foi remodelada. Exportações de petróleo contornam sanções e são enviadas para o Sul Global. Marcas ocidentais, da BMW à H&M, foram substituídas por alternativas chinesas e locais. Nos livros escolares e nos meios de comunicação, uma sedutora narrativa de nacionalismo russo e vitimização vem sendo promulgada. A dissidência interna foi esganada. O rival político de Putin mais carismático, Alexei Navalni, foi assassinado no gulag em fevereiro. E até aqui o Kremlin não teve nenhuma dificuldade em controlar as corajosas multidões que choram sua morte.

Com o tempo o regime encarará novas vulnerabilidades. Os efeitos cumulativos de ser apartado das tecnologias ocidentais prejudicarão a produtividade: pensem no desgaste dos aviões Boeing ou em ter que depender de softwares pirateados. A militarização da economia prejudicará padrões de vida. A população vai encolher em cerca de um décimo nas próximas duas décadas. E conforme Putin, de 71 anos, envelhecer, uma luta por sucessão se aproximará. Sempre é difícil prever quando um tirano cairá. Mas uma previsão prudente é que Putin permanecerá anos no poder.

Durante a Guerra Fria, a União Soviética foi uma ameaça militar e ideológica para o mundo livre. O Ocidente a conteve com sucesso e, depois que o regime soviético colapsou, a Rússia democrática e suas reformas capitalistas foram bem recebidas pelos governos ocidentais. Putin, que assumiu o poder em 1999, fez a democracia russa recuar, lentamente no início mas com mais rapidez após russos jovens e urbanos protagonizarem manifestações massivas na década de 2010. Ele culpa o Ocidente pelos desafios ao seu governo e busca salvaguardar seu regime tentando extirpar a influência ocidental e unindo o povo russo numa luta contra uma caricatura dos Estados Unidos e da Otan. Hoje a Rússia tem uma economia apenas mediana e nenhuma ideologia coerente para exportar. Ainda assim, representa uma ameaça global. O perigo imediato é a Ucrânia ser derrotada e, depois disso, a Rússia atacar vizinhos como Moldávia e os países bálticos; mas não é aí que as ambições de Putin terminam.

Considerem armas novas ou não convencionais. Relata-se que a Rússia está fazendo experimentos para colocar ogivas nucleares no espaço. Seus drones e guerreiros cibernéticos a permitem projetar força para além de suas fronteiras. Sua indústria de desinformação dissemina mentiras e confusão. Essa combinação maligna desestabilizou países no Sahel e fortaleceu déspotas na Síria e na África Central. A Rússia poderia também influenciar algumas das tantas eleições que o mundo testemunhará este ano. Muitos no Sul Global acreditam na falsa narrativa de que Putin está salvando a Ucrânia de nazistas, a Otan é a verdadeira agressora e que o Ocidente busca impingir suas decadentes normas sociais sobre todos os demais.

A capacidade russa de estorvar as instituições globais estabelecidas após 1945, principalmente o Conselho de Segurança da ONU, não deve ser subestimada. A Rússia tornou-se um inimigo niilista e imprevisível da ordem mundial liberal, dedicada a perturbar e sabotar. É como uma Coreia do Norte ou um Irã sob efeito de esteroides e armada com milhares de ogivas nucleares.

O que o Ocidente deve fazer? Os EUA e a Europa apostaram em duas estratégias: defender a Ucrânia e aplicar sanções. Armar e financiar os defensores da Ucrânia continua a maneira de melhor custo-benefício para conter a agressão russa, mas a determinação do Ocidente em seguir nesse intento titubeia escandalosamente.

As sanções, enquanto isso, têm sido menos eficazes que o esperado. E podem ser contraproducentes, além de uma desculpa para evitar escolhas difíceis. Mais de 80% do mundo segundo a população e 40% segundo o PIB aplicam as sanções, o que permite à Rússia fazer negócios livremente e minar a percepção de legitimidade das restrições. O Ocidente tentar sanções secundárias para forçar o mundo a obedecer sairia pela culatra, levando alguns países a abandonar o sistema financeiro liderado pelos EUA. No longo prazo, o caminho mais plausível é o mais modesto: manter sanções direcionadas contra indivíduos ligados ao Kremlin e garantir que tecnologias avançadas, qu e ainda tendem a ser ocidentais, sejam caras ou impossíveis para a Rússia obter.

Isso significa que uma estratégia eficaz em relação à Rússia precisa colocar mais peso sobre outros dois pilares. O primeiro é um incremento militar para dissuadir outras agressões russas. Na Europa, a debilidade é gritante. Seu gasto anual em defesa é menor que 2% do PIB, e se Donald Trump reconquistar a Casa Branca o comprometimento dos EUA com a Otan deverá minguar. A Europa precisa gastar pelo menos 3% de seu PIB em defesa e se preparar para um Tio Sam mais isolacionista.

Luta de ideias

O Ocidente também precisa acionar uma de suas armas mais poderosas: os valores liberais universais. Foram esses valores, assim como a trilogia original de Guerra nas Estrelas e os dólares americanos, que ajudaram a derrubar o regime soviético expondo a desumanidade de seu sistema totalitário. A diplomacia do Ocidente deve buscar se contrapor à desinformação da Rússia no Sul Global. Também precisa cuidar dos cidadãos russos, em vez de tratá-los como párias. Isso significa expor abusos de direitos humanos, apoiar dissidentes e abrir as portas para russos que desejem fugir de seu país. Significa apoiar as forças da modernização, promovendo o fluxo de notícias e informações reais para a Rússia. E significa garantir que haja exceções humanitárias às sanções, de kits médicos a materiais educativos. No curto prazo, há pouca chance de a elite russa ou os russos comuns expulsarem o regime de Putin. Mas no longo prazo a Rússia só deixará de ser uma nação incontrolável quando seu povo o quiser. 

Publicado originalmente por The Economist - Reproduzido no Brasil pelo  O Estado de S. Paulo,  em17.03.24 / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

terça-feira, 12 de março de 2024

Defenda cada centímetro da democracia

Embora a UE resista melhor do que outras à deterioração democrática global, há muitos motivos de preocupação que apelam ao fim da polarização selvagem

Da esquerda, os primeiros-ministros da Eslováquia, Robert Fico; Polónia, Donald Tusk; República Tcheca, Petr Fiala, e Hungria, Viktor Orbán, no dia 27, em reunião do Grupo de Visegrad, em Praga. (Crédito: David W. Cerny /Reuters)

No seu discurso sobre o Estado da União, Joe Biden disse que, na sua opinião, a democracia e a liberdade nos Estados Unidos estão sob ataque como nunca antes “desde o Presidente Lincoln e a Guerra Civil”. É certo. A possibilidade de um regresso de Trump ao poder é um risco enorme. Biden também destacou as ameaças que a democracia enfrenta em outros lugares. Na verdade, as perspectivas globais não são promissoras. O estudo anual da The Economist Intelligence Unit (publicado em Fevereiro) registou, mais uma vez, uma deterioração da qualidade democrática global, agravando uma trajectória de declínio quase ininterrupto desde 2015.

No que diz respeito à UE, o veredicto do relatório para a Europa Ocidental – uma categoria que inclui grande parte do bloco – foi de estabilidade entre 2022 e 2023, mas a região permanece claramente abaixo do pico de qualidade alcançado em 2008. No geral, visões apocalípticas são injustificados. Mas não há espaço para complacência.

Os motivos de preocupação são múltiplos. Do lado da acção governamental, para além de extremos como a brutal deriva autoritária da Hungria, assistimos ao surgimento de episódios perturbadores, como as manobras do Primeiro-Ministro eslovaco, Robert Fico, que acaba de encerrar a procuradoria especial anti-corrupção, ou aqueles que conseguiram para a Grécia uma resolução do Parlamento Europeu expressando preocupações sobre a liberdade de imprensa, o tratamento dispensado pela polícia aos migrantes e as escutas telefónicas de opositores políticos.

Do lado dos eleitores, assistimos a taxas de abstenção muito fortes nas últimas eleições em França e Itália, um claro sintoma de descomprometimento. Um estudo publicado no final de Fevereiro pelo Pew Center (com cerca de 31 mil entrevistados em 24 países) fornece outros dados valiosos sobre o descontentamento democrático. Entre eles, dois muito interessantes sobre Espanha: é o país dos 24 em estudo onde é mais elevada a percentagem de inquiridos que consideram que os políticos não se importam com o que pessoas como eles pensam (85%, contra uma média de 74%). ); e é um dos países onde, comparativamente a uma radiografia equivalente feita em 2017, a percentagem dos que consideram favoravelmente um Governo de técnicos em vez de políticos mais aumentou (era de 49% a favor e o mesmo número contra então; agora 65% vêem bem e apenas 34% vêem mal).

Do lado dos eleitores, é claro, devemos também tomar nota do aumento do voto extremista. Hoje, na Alemanha, a AfD, um partido com componentes extremamente perturbadoras, é o segundo em intenção de voto. À esquerda, está a tomar forma uma formação céptica em relação às alterações climáticas e relutante em apoiar a Ucrânia. Em Itália, Meloni governa de forma mais pragmática do que alguns pensavam, mas é um facto que o panorama político é dominado por forças excêntricas e não particularmente tranquilizadoras em termos de perspectivas de reforço de uma democracia insatisfatória (de qualidade inferior, segundo a EIU, às França, Alemanha ou Espanha).

O diagnóstico não tem segredos. Muitos estão revoltados com a forma como as democracias europeias lidaram com fenómenos como a globalização ou a imigração. Episódios graves de indignação contra a corrupção. A polarização, alimentada pelas redes sociais, é galopante, dificultando uma ação política consensual e moderada. A lentidão e a ineficácia das respostas democráticas num mundo cada vez mais turbulento, em mudança e vertiginoso criam frustração.

Claro, há luzes no horizonte. As democracias da UE responderam de forma solidária à crise pandémica. A Polónia conseguiu libertar-se nas urnas dos promotores de uma terrível tendência autoritária. A França acaba de enviar uma mensagem maravilhosa ao elevar-se acima das muitas vezes patéticas trincheiras partidárias para consagrar, por uma esmagadora maioria na Constituição, o direito das mulheres ao aborto. Mas as ameaças são graves, não podemos deixar de constatar que incubamos vírus, que a defesa da democracia exige um esforço constante e uma disposição generosa e corajosa.

Em fórum publicado recentemente neste jornal, o presidente do Brasil. Luis Inácio Lula da Silva defendeu que “a resposta aos ataques à democracia é melhorar a vida das pessoas”. Claro que você esta certo. Os serviços públicos que garantam a coesão social, como ele promove no seu país, são essenciais. É também importante responder aos ataques à democracia, como o da Rússia na Ucrânia, com tanques. Se não for enviando tanques ou sancionando o agressor, pelo menos as equidistâncias entre o agressor e o atacado, que ele marcou publicamente, devem ser evitadas.

A democracia não pode ser tomada como garantida. Você tem que defendê-lo centímetro por centímetro. Todos somos chamados a fazer isso, cada um dentro das suas capacidades. Na UE há muito trabalho interno a fazer, especialmente para superar a doença de uma polarização inflamada, longe do interesse colectivo e de dados verificáveis, que alguns estimulam sem escrúpulos, e em que muitos outros acabam por alimentar a espiral. Mas também existe uma forma de defesa contra ameaças externas. Há um – a Rússia, com o apoio militar do Irão e da Coreia do Norte, e o apoio político-económico da China – que exige que não olhemos para o outro lado.

Andrea Rizzi, o autor deste artigo,  é Correspondente de assuntos globais do EL PAÍS e autor de uma coluna dedicada a questões europeias que é publicada aos sábados. Anteriormente foi editor-chefe do Internacional e vice-diretor de Opinião do jornal. É licenciado em Direito (La Sapienza, Roma), mestre em Jornalismo (UAM/EL PAÍS, Madrid) e em Direito da UE (IEE/ULB, Bruxelas). Publicado originalmente no EL PAÍS, em 09.03.24

"Na Ucrânia se decide o futuro do mundo democrático"

Em entrevista à DW, prefeito de Kiev afirma que apoiar a Ucrânia é defender a democracia. Apesar de questionar centralização de poder no presidente Zelenski, Vitali Klitschko é contra eleições enquanto durar a guerra.

Prefeito de Kiev, Vitali Klitschko: "Nós lutamos para que a Ucrânia se torne um Estado europeu"Foto: DW

O ex-pugilista Vitali Klitschko, com numerosos títulos mundiais, é um dos principais políticos da Ucrânia e há dez anos prefeito da capital, Kiev.

Em entrevista à DW, ele falou sobre seu choque com o governo nacional, em especial com o presidente Volodimir Zelenski, e afirmou que não se deve "adentrar pela via da centralização de todas as instituições do poder estatal, colocar todas elas nas mesmas mãos".

Ele também questionou a pertinência de se realizar eleições durante a guerra , iniciada por Vladimir Putin em 24 de fevereiro de 2022. "No momento, 9 milhões de ucranianos estão no exterior, o número dos deslocados internos é mais ou menos o mesmo. Mais de 1 milhão portam uniformes militares para defender o nosso país. Como é que se vai contar esses votos?", argumentou.

DW: Em dezembro de 2023, o senhor declarou à revista alemã Der Spiegel que estava vendo a Ucrânia tomar o caminho do autoritarismo e que um dia ela deixaria de se distinguir da Rússia, onde tudo depende da vontade de um único homem. Quem seria esse homem?

Vitali Klitschko: Nós lutamos para que a Ucrânia se torne um Estado europeu. É muito importante preservar as conquistas democráticas da Ucrânia mesmo sob condições de guerra. Não se deve, de forma alguma, adentrar pela via da centralização de todas as instituições do poder estatal, colocar todas elas nas mesmas mãos. Há questões em aberto em muitos setores. Eu gostaria que as minhas palavras não fossem entendidas como crítica, mas como um bom conselho.

Essa pessoa a quem o seu bom conselho se dirige é o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski?

Hoje em dia todo o poder estatal está centralizado e todas as decisões são tomadas por uma única pessoa.

O parlamento ucraniano instituiu uma comissão especial temporária para investigar a eficácia das autoridades da cidade de Kiev. O que isso significa de um modo geral e para o senhor, como prefeito?

Significa a continuação da luta política no país. Tem alguém que não gosta de Klitschko, que é o responsável por Kiev, então vai se encontrar todo tipo possível de coisas para... Em resumo, é um recurso de luta política.

"Alguém" se refere ao gabinete presidencial?

Sem o aval do gabinete presidencial, nada acontece no nosso país, infelizmente. Estou convencido disso. Existe bem claramente uma definição de funções.

Bucha em 03/04/2022: imagens da cidade devastada pelo exército russo mudaram a percepção da guerra na UcrâniaFoto: Rodrigo Abd/AP Photo/picture alliance

Ao mesmo tempo o senhor se pronuncia contra a realização de eleições na Ucrânia durante a guerra: as parlamentares estavam marcadas para outubro de 2023, a presidencial deverá ocorrer em março de 2024. Em sua opinião, quanto tempo o país poderá passar sem votar?

Estou convencido de que não é possível realizar eleições. No momento, 9 milhões de ucranianos estão no exterior, o número dos deslocados internos é mais ou menos o mesmo. Mais de 1 milhão portam uniformes militares para defender o nosso país. Como é que se vai contar esses votos? E agora que somos confrontados com um desafio externo, uma luta política interna pode levar ao colapso de todo o país.

Tem quem goste de Zelenski, outros não. Mas acho que ele exerce uma função muito importante como presidente, que deve seguir cumprindo até o fim da guerra. Só depois podemos realizar na Ucrânia eleições parlamentares, presidencial e outras.

O senhor pretende se candidatar para o cargo de presidente, se houver possibilidade para tal?

É um grande erro fazer agora qualquer plano para o futuro. Pensar agora sobre postos, sobre algum tipo de projeto político num país que está lutando pela sobrevivência, é um disparate enorme. Perdoe-me, mas vou responder a sua pergunta com grande prazer no momento em que a guerra tiver acabado.

Recentemente o senhor participou da Conferência de Segurança de Munique. Alguns países praticamente não alteraram sua postura em relação à Ucrânia nos últimos dois anos. Isso é algo que não se pode dizer da Alemanha: daquela oferta inicial de 5 mil capacetes chegou-se hoje ao maior apoio na Europa, com planos de construir fábricas de armamentos e assim por diante. Como se deu essa mudança?

Desde o começo da guerra eu tenho explicado o que ocorre a muitos dos nossos parceiros, pois não estava claro para eles. Mas as terríveis imagens de Bucha, Irpin, Hostomel e Mariupol, com os mortos, mostraram nitidamente que não se trata só de guerra, uma "operação especial", mas sim genocídio e terrorismo. É importante tudo fazer para deter os russos, através de sanções, de respaldo político, de auxílio econômico para a Ucrânia.

Quero enfatizar mais uma vez, e isso é importantíssimo: hoje não estamos defendendo só o nosso país, mas o mundo democrático. Precisamos de apoio, pois na Ucrânia vai se decidir sobre o futuro de todo o mundo. Hoje, o mundo é preto ou branco: quem é a favor, e quem é contra essa guerra; quem pela democracia ou pela ditadura? Cada um de nós precisa responder a essa pergunta.

Entrevista concedida a Roman Huba para a Deutsche Welle. Publicada originalmente em 11.03.24

'Mesmo sem golpe, Bolsonaro pode responder por crimes contra a democracia'

A Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/2021) é falha, especialmente por ter tipos penais muito abertos. Mas não deixa de ser um avanço em relação à Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983), editada ainda durante a ditadura militar. 

Professor Nilo Batista, muito respeitado entre os mais destacados criminalistas do Brasil

E essa norma de 2021, foi a ferramenta que viabilizou a contenção à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, na avaliação dos advogados criminalistas Nilo Batista e Rafael Borges, autores do livro Crimes contra o Estado Democrático de Direito (Revan).

A obra é dividida em duas partes. A primeira conta a história da legislação brasileira de segurança nacional. Muitas das análises sobre as normas, especialmente aquelas editadas durante a ditadura, foram escritas por Nilo Batista à época em que elas entraram em vigor. Já a segunda seção traz comentários sobre a Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito.

Para Batista e Borges, o ex-presidente Jair Bolsonaro pode responder pelos crimes de tentativa de abolição do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado (previstos nos artigos 359-L e M da lei), desde que fique provado que ele agiu ou deixou de agir no sentido de desacreditar o sistema eleitoral e incentivar os ataques às sedes dos Três Poderes, em Brasília.

O advogado Rafael Borges é co-autor de "Crimes Contra o Estado Democrático de Direito", em parceria com o  Professor Nilo Batista. (Crédito: Spacca, Conjur)

“Se o grande evento de ruptura (os ataques de 8 de janeiro) não foi exitoso apenas porque houve a resistência de oficiais leais aos votos que fazem quando recebem as armas da nação, isso não afeta a consumação delitiva. A ocupação violenta de sedes de poderes da República pode atender ao requisito típico, se isso está em linha de continuidade com a conspiração”, avaliam eles, referindo-se à reunião recentemente divulgada em que Bolsonaro e seus ministros discutiram estratégias golpistas.

De acordo com os criminalistas, o Supremo Tribunal Federal está acertando na tipificação das condutas dos bolsonaristas que participaram do 8 de janeiro. Porém, opinam eles, a corte está errando ao considerar que os atos configuram concurso material de delitos, quando na verdade deveriam configurar concurso formal. Isso porque os golpistas praticaram apenas uma conduta: a de invadir as sedes dos Três Poderes com o fim de transformar o regime. Devido a esse entendimento do STF, as penas impostas aos arruaceiros têm sido exageradamente elevadas, analisam os advogados.

Um dos maiores penalistas brasileiros, Nilo Batista advoga há quase 60 anos. Ele defendeu presos políticos durante a ditadura militar, foi governador e secretário de Justiça e Polícia Civil do Rio de Janeiro, presidente da seccional fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil e professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Rafael Borges é sócio do escritório Nilo Batista & Advogados Associados, coordenador do curso de pós-graduação lato sensu da OAB-RJ-Uerj e diretor-secretário do Instituto Carioca de Criminologia.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Por que a Lei Rao, de 1935, pode ser considerada a “verdadeira matriz da nossa tradição legislativa autoritária”?

Rafael Borges — A Lei Rao é apelidada de Lei Monstro. (O ex-ministro da Justiça) Vicente Rao foi quem a escreveu. Era uma lei que tinha inspiração no fascismo italiano. Foi a primeira vez que se estabeleceram, de forma clara, inequívoca, parâmetros de defesa daquilo que se convencionou denominar de segurança nacional. Na verdade, já existiam dispositivos referentes à segurança nacional em leis anteriores. A Lei Rao não foi a primeira norma brasileira a tratar do assunto. Isso já vinha sendo tratado desde as Ordenações Filipinas, passando pelo Código Criminal do Império e, depois, permanecendo no Código Penal da República, de outras formas. Mas a lei de 1935 é a lei que estabelece a segurança nacional como um bem jurídico e cria normas bastante duras para quem cometesse delitos contra ela. A partir da Lei Rao, desenham-se todas as leis de segurança nacional do Brasil, como as da ditadura militar.

Nilo Batista — A Lei Rao foi uma legislação muito imperfeita, um modelo de imperfeição. E os legisladores não se preocuparam com isso. Vicente Rao foi autor de uma lei completamente monstruosa. As ideias daquela lei torturaram e mataram muita gente.

ConJur — A Lei 136/1935 alterou a Lei Rao para, entre outras medidas, criar o crime de abuso de liberdade de imprensa. Hoje se discute o Projeto de Lei das Fake News (PL 2.630/2020), que cria regras para combater as notícias falsas nas redes sociais. Alguns afirmam que esse projeto restringe indevidamente a liberdade de expressão. Como combater a desinformação sem criar regras autoritárias?

Nilo Batista — É uma grande preocupação. Estamos em uma zona limítrofe de ofender a liberdade de imprensa. Nós devíamos recorrer à responsabilidade sucessiva, uma invenção brasileira, criada no Código Criminal do Império, que responsabilizava veículos jornalísticos ao mesmo tempo em que protegia a liberdade de imprensa. Pela regra geral da coautoria e da participação do Direito brasileiro, todo mundo que contribui para um crime responde por tal crime. Mas se fosse um crime de imprensa, seria absurdo pensar em responsabilizar o jornaleiro, o impressor do jornal, o motorista do caminhão, os colegas de redação do autor… A responsabilidade sucessiva abria uma exceção à regra geral e estabelecia que, em crimes de imprensa, só respondia o autor. Se o autor fosse inacessível, o redator-chefe do veículo passava a responder, porque deveria ter mantido o autor acessível. Havia essa sequência de só responsabilizar um agente, em nome da liberdade de imprensa.

Pois bem, o Supremo disse que isso era inconstitucional (ao declarar a inconstitucionalidade da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67)) por razões que consistiam, essencialmente, em puxar o saco da imprensa. Seria um mecanismo interessante de se restabelecer. Se uma plataforma resolve noticiar, passa a ter responsabilidade sucessiva, caso não se consiga chegar ao autor. Se a plataforma veicula um conteúdo, ela tem de saber minimamente quem é o autor. Não pode se eximir da responsabilidade sob o argumento de que não produziu o conteúdo.

Rafael Borges — O projeto de lei aprovado no Senado (da Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito) previa o tipo penal das fake news. E o ex-presidente Jair Bolsonaro, por razões muito distintas das nossas, vetou. Mas a verdade é que era um tipo penal muito mal feito. Era construído na perspectiva de transformar o juiz no responsável por emitir a verdade estatal sobre um determinado assunto. Isso sempre nos assustou muito.

Nilo Batista — No Estado democrático de Direito, não existe verdade oficial. Não pode existir. Onde houve verdade oficial, houve autoritarismo. Assim como sempre houve autoritarismo em locais com tribunais muito envolvidos na política. É só olhar o século XX.

ConJur — Como a doutrina de segurança nacional influenciou as leis repressivas da ditadura militar de 1964?

Nilo Batista — Influenciou muito. Era um corpo teórico que foi adotado pela legislação, não só pela Lei de Segurança Nacional. Era um método muito autoritário e completamente desvinculado de qualquer compromisso com o povo brasileiro. Era uma doutrina forjada em câmaras de tortura, em aventuras imperialistas, e que chegou ao Brasil e foi encampada pela ditadura.

Rafael Borges — (O jurista argentino Eugenio Raúl) Zaffaroni ironiza a expressão doutrina. Não dá para chamar isso de doutrina. Era muito mais um conjunto desorganizado de ideias do que exatamente um corpo teórico criado sob tal perspectiva. Foi algo muito funcional para o imperialismo, especialmente o francês.

ConJur — Qual foi o impacto de atribuir à Justiça Militar, em 1967, a competência para julgar militares e civis acusados de crimes contra a segurança nacional?

Nilo Batista — Primeiro quiseram alargar ainda mais a competência da Justiça Militar, atribuindo-lhe também crimes contra a economia popular. Aí viram que não dava muito certo. Mas essa experiência da ditadura revelou que, dentro das Forças Armadas, havia espíritos democráticos. Em primeiro lugar, existia cortesia. O advogado não era discriminado, como é hoje. Era muito melhor trabalhar no Tribunal de Segurança Nacional do que trabalhar na vara de Sergio Moro (13ª Vara Federal de Curitiba), na vara de Marcelo Bretas (7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro) ou em outras varas federais e estaduais. Havia pessoas interessadas em dar uma solução para o caso. E muitas vezes houve boas soluções. Claro que havia limites, que de vez em quando surgia um oficial fascistinha, mas não era a regra. E no Superior Tribunal Militar houve compreensão com a juventude que se insurgiu contra a ditadura — nem sempre, é claro.

Atribuir à Justiça Militar a competência para julgar militares e civis acusados de crimes contra a segurança nacional foi um movimento de endurecimento da ditadura, mas os advogados enfrentaram a situação. E viram que, ao contrário do que a ditadura pensou, a Justiça Militar não foi uma servil cumpridora de um programa condenatório que o Executivo lhe passava.

ConJur — Como o Decreto-Lei 898/1969 restringiu o direito de defesa?

Nilo Batista — O Decreto-Lei 898/1969 não foi o problema. O problema foi o Decreto-Lei 314/1967, que previa a pena de morte — embora ela não tenha chegado a ser executada.

Rafael Borges — O Decreto-Lei 314/1967 foi a norma que incorporou a doutrina de segurança nacional de forma definitiva à legislação brasileira. É o que toda a doutrina fala. Foi sob a égide desse decreto que as maiores atrocidades foram praticadas. O decreto tinha uma estrutura muito dura, muito pesada, tinha tipos penais muito abertos. Mas a ditadura cometeu as maiores atrocidades extrapolando os limites legais. Era o Direito Penal subterrâneo, aquilo que era feito nos porões.

ConJur — Por que definir o que é “segurança do Estado”, como fazia o Decreto-Lei 898/1969, é impróprio?

Rafael Borges — Esses conceitos são sedimentados em outros espaços, como na doutrina. A atividade de interpretação consiste em olhar para o conteúdo normativo, entender o conceito, ver de que forma o conceito está sedimentado e aplicá-lo ao caso concreto. O legislador não é dono dos conceitos. Ele não pode, além de definir a lei, definir os conceitos.

Nilo Batista — O problema é que a segurança nacional era compreendida pela ótica da doutrina de segurança nacional. E, na verdade, a segurança nacional não passa do regime primário das leis na condição de liberdade. Não é preciso perseguir os objetivos nacionais permanentes. Era uma visão autoritária de segurança nacional, de um país amordaçado.

ConJur — A Lei 7.710/1983, outorgada ainda durante a ditadura, foi usada até há pouco tempo no país. Como enxergam a aplicação dessa norma já sob a Constituição de 1988?

Nilo Batista — Era uma lei meio envergonhada, uma tentativa de colocar o chapéu, os óculos e o vestido da vovó no lobo mau. Era uma tentativa de atenuar as normas, mas sem mudar muito. Não havia sensibilidade política para mexer na lei quando chegou a redemocratização, e ela continuou em vigor.

Rafael Borges — Nós defendemos militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) acusados com base na Lei de Segurança Nacional. Mas, realmente, ficou algo meio anacrônico. A democratização aconteceu, veio a Constituição de 1988 e permaneceu esse entulho autoritário. Era uma lei muito caudatária da ditadura. Mas era uma lei bem escrita, bem diferente da atual. Era uma lei com conceitos claros, que tratava da questão do elemento subjetivo, da necessidade da motivação política dos atos, algo que não está presente na lei nova. Mas, de fato, era uma lei autoritária, merece todas as críticas por isso. Na verdade, ela foi recepcionada pela Constituição de 1988, embora isso nunca tenha sido declarado.

A lei teve um uso muito marginal, para a criminalização de movimentos sociais. E Bolsonaro fez aumentar bastante o número de inquéritos policiais instaurados para apurar crimes relacionados à lei, todos na linha de combater opositores políticos.

ConJur — A Lei 14.197/2021 é democrática ou ainda carrega aspectos autoritários das normas anteriores de segurança nacional?

Nilo Batista — Toda lei de defesa do Estado tem um traço de conservadorismo, porque a ideia é manter o que está presente. Só que, por exemplo, a nossa história dos últimos 200 anos é de muitas transformações. E isso não vai acabar, não chegamos ao paraíso cívico, jurídico, judiciário. Então, é uma lei de transição. Era o suficiente para o momento. Mas, em algum momento, vamos ter de revê-la.

Rafael Borges — Sem dúvidas, é a melhor lei de segurança nacional que a gente já teve. Porém, ela poderia ter menos tipos penais abertos. Ela tem muitos conceitos que dependem de complementação. Por exemplo, os crimes relacionados à informação dependem da LGPD.

ConJur — A Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito está sendo aplicada nos julgamentos de bolsonaristas que promoveram os ataques em Brasília em 8 de janeiro de 2023. Como avaliam a aplicação da norma pelo STF nesse caso?

Rafael Borges — Essa lei foi a ferramenta que viabilizou, na prática, a contenção ao golpe de 8 de janeiro. Isso é um fato prático. Dito isso, não houve concurso material nas condutas dos bolsonaristas, como o Supremo vem entendendo, e, sim, concurso formal.

Nilo Batista — A única conduta dos bolsonaristas foi a de invadir as sedes dos Três Poderes com o fim de transformar o regime. O concurso material pressupõe duas ou mais condutas.

ConJur — Sendo assim, os senhores consideram exageradas as penas que vêm sendo aplicadas pelo Supremo no caso?

Rafael Borges — Sim. As tipificações estão corretas, mas aplicar pena de 17 anos, com base em concurso material, é exagero. 

Nilo Batista — As pessoas que estão sendo condenadas são do baixo clero, uma militância desinformada. Se elas estão recebendo penas de 17 anos, quais serão as penas dos mandantes?

ConJur — Por que os crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado, previstos nos artigos 359-L e M da nova lei, só abrangem a tentativa de praticar tais condutas?

Nilo Batista — Os tipos penais só abrangem a tentativa porque, se houver um golpe e o Estado democrático de Direito for abolido, a lei não valerá mais nada.

Rafael Borges — Salvo engano, são os únicos tipos da legislação penal brasileira construídos com o verbo tentar no seu núcleo principal. Todo crime doloso pode ser praticado de forma tentada, mas não existem tipos específicos. Por isso, discutimos no livro se seria possível a tentativa da tentativa e a desistência voluntária. Mas chegamos à conclusão de que isso não é possível, pois o mero início da execução basta para consumar os crimes.

ConJur — Bolsonaro pode responder pelos crimes de tentativa de abolição do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado?

Nilo Batista — Vai depender da existência de prova que o filie àquele acontecimento (os ataques de 8 de janeiro).

Rafael Borges — Em tese, é evidente que ele pode responder por esses crimes. Porém, por mais que a lei tenha tipos abertos, ela não autoriza a responsabilidade penal objetiva. A responsabilidade de Bolsonaro não pode ser presumida a partir dos discursos grosseiros que ele fazia. É preciso encontrar, em uma ação ou omissão dele, esses resultados naturalísticos todos.

ConJur — Como os senhores avaliam a reunião golpista de Bolsonaro e seus ministros, recentemente revelada? Ela e os atos para preparar um golpe de Estado configuram crime contra o Estado democrático de Direito?

Nilo Batista e Rafael Borges — Não atuamos no caso e essa circunstância nos impede de abordá-lo em sua concretude e especificidade. Mas, em tese e simplificadamente, uma conspiração pode ter se desenvolvido ao longo do tempo através de diversas condutas conspiratórias claríssimas — que passam pelo descrédito do sistema eleitoral, pela promoção de manifestações e pela manutenção de estruturas golpistas, como acampamentos —, culminando em um grande evento de ruptura. Um grande evento de ruptura, com agentes de segurança e práticas de violência e grave ameaça, pode ser a resultante do processo instigado por um conjunto de discursos e atos conspiratórios.

Não se pode isolar uma única reunião supostamente conspiratória. Se o grande evento de ruptura (os ataques de 8 de janeiro) não foi exitoso apenas porque houve a resistência de oficiais leais aos votos que fazem quando recebem as armas da nação, isso não afeta a consumação delitiva. A ocupação violenta de sedes de poderes da República pode atender ao requisito típico, se isso está em linha de continuidade com a conspiração. Não há mesmo como procurar violência e grave ameaça na reunião dos conspiradores. Estamos diante de crimes complexos, em regra praticados por várias pessoas e mediante diversas condutas, concomitantes e sucessivas. Os fatos devem ser analisados dentro do contexto, sem pinçamentos indevidos. O empreendimento golpista pode se revelar na relação causal entre práticas conspiratórias e os atos de violência e grave ameaça.

ConJur — Nilo Batista, em 1979, o senhor entendeu que a Lei da Anistia não atingia os crimes praticados por torturadores. No entanto, quando o STF julgou a sua constitucionalidade, em 2010, o senhor foi contra a sua anulação e a punição de militares. Agora há um movimento para anistiar os que praticaram os atentados de 8 de janeiro. Como enxerga uma eventual anistia a essas pessoas?

Nilo Batista — Eu não tenho nada contra a anistia em geral. Em 1979, eu entendi que a Lei da Anistia não se aplicava aos crimes praticados por torturadores, mas mexer nisso 30 anos depois seria quase uma violação oblíqua do princípio da legalidade. E iria na contramão das mudanças políticas, dos acordos que permitiram a redemocratização.

Se eu fosse conselheiro de Lula, eu teria dito a ele para incluir esse pessoal (do 8 de janeiro) no induto de Natal. Eu faria um gesto na direção deles, desse pessoal do baixo clero. Seria um gesto de união, de generosidade. Aliás, avisaria a todos os parlamentares que, se eles extinguirem a “saidinha” (como foi recentemente aprovado pelo Senado), irão transformar as penas dessas pessoas em regime fechado para o resto da vida. Eles não vão ter regime aberto, não vão visitar a mãe, a mulher, os filhos.

ConJur — Os senhores mencionam uma dificuldade dos ordenamentos jurídicos, especialmente os de países periféricos, de lidar com o “colonialismo tardio”, segundo conceito de Zaffaroni. Quais os impactos do colonialismo tardio na criminalidade e na segurança do Brasil?

Rafael Borges — O colonialismo demanda a ampliação das ferramentas de controle social, das ferramentas que estabelecem o controle sobre os corpos vulneráveis, os corpos matáveis, os corpos que não integram as dinâmicas de mercado, de consumo. Países do capitalismo periférico, que sofreram o colonialismo tardio, estão sempre usando o sistema de Justiça Criminal como instrumento de ampliação do controle. O capitalismo não deu certo em lugar nenhum, mas aqui deu um pouco menos certo do que nos países do norte, de primeiro mundo. E aqui o sistema penal é usado, de maneira muito clara, para manter esses corpos de alguma forma controlados, de alguma forma censurados, para trazer um pouco a falsa sensação de segurança, de ordem, de tranquilidade. E a segurança nacional está nesse debate.

Nilo Batista —Além do nível político, tem o colonialismo no nível teórico. Quando eu era jovem, tudo de teoria que vinha da Alemanha era glorificado por aqui. Lá eles têm uma sociedade de classe média. Aqui não, o sangue está escorrendo no meio da rua. O pensamento deles está condicionado por uma sociedade de classe média, com as coisas muito arrumadas, um Estado eficiente. Aqui temos outras questões, as nossas urgências, o nosso sangue, a nossa miséria. Então, esse colonialismo é também achar que tudo o que é pensado no Hemisfério Norte é bom para nós. Não é. Às vezes, precisamos exatamente do contrário.

Rafael Borges — E a doutrina de segurança nacional foi importada acriticamente, sem se observar as diferenças grosseiras de contexto, de realidade, que nos separam dos países onde ela foi gestada — notadamente, dos Estados Unidos e da França. Foi isso o que quisemos dizer ao mencionar a dificuldade dos ordenamentos jurídicos de países periféricos de lidar com o colonialismo tardio.

Entrevista concedida a Sérgio Rodas, correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro. Publicada originalmente em 26.02.24.