domingo, 17 de março de 2024

Golpista até o fim

Depoimentos dos ex-chefes do Exército e da Aeronáutica à PF não dão margem a dúvidas: Brasil esteve à beira da ruptura nas mãos de um liberticida incorrigível. Que isso não saia barato

                                                                                                                                Douglas Magno / AFP

O Brasil esteve à beira de um golpe de Estado nos estertores do governo de Jair Bolsonaro. Já não se trata mais de uma conjectura ou de um mero exagero retórico. Um golpe para impedir a posse de Lula da Silva como presidente da República legitimamente eleito foi uma possibilidade real, como ficou claro a partir dos depoimentos dos ex-comandantes do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, prestados à Polícia Federal (PF) no início de março.

A julgar pelo que disseram os ex-comandantes, a ruptura do regime democrático foi tramada por Bolsonaro sem recurso a meias palavras. De forma direta, o ex-presidente considerou empregar meios violentos para fazer letra morta da Constituição e se aferrar ao poder. É assim, como uma trama concreta, que a tentativa de golpe deve ser tratada pelas autoridades incumbidas de investigar, processar e julgar Bolsonaro e todos os sediciosos que a ele se associaram – até as últimas consequências.

São estarrecedoras as revelações dos militares, trazidas a público agora que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes decidiu retirar o sigilo das investigações. Aos policiais, Freire Gomes afirmou que Bolsonaro convocou reuniões no Palácio da Alvorada com a cúpula das Forças Armadas após a derrota no segundo turno para apresentar aos comandantes “hipóteses de utilização de institutos jurídicos como GLO (Garantia da Lei e da Ordem) e estados de defesa e sítio em relação ao processo eleitoral”.

Baptista Júnior, por sua vez, relatou à PF que, diante da insistência de Bolsonaro em encontrar meios para subverter a ordem democrática, por pura irresignação com o resultado da eleição, o então comandante do Exército chegou a ameaçá-lo de prisão. “O general Freire Gomes afirmou que, caso (Bolsonaro) tentasse tal ato, teria de prender o presidente da República”, disse o brigadeiro, que, assim como Freire Gomes, foi ouvido pela PF na condição de testemunha.

Para além do fato de terem chegado ao topo da carreira em suas respectivas Forças, Freire Gomes e Baptista Júnior estiveram no centro nevrálgico da conspiração bolsonarista. Dessa posição de destaque, o general e o brigadeiro foram determinantes para o fracasso do golpe, independentemente das razões que os tenham motivado a agir como agiram. Agora, como testemunhas, têm servido ao País para elucidar a anatomia do golpe urdido. Por isso o peso de suas palavras.

Que Bolsonaro é um ressentido com a democracia e um golpista de marca maior, já era fato público e notório desde muito antes de ele cogitar concorrer à Presidência da República. Seus quatro anos de mandato como chefe de Estado e de governo só deixaram claro para um público mais amplo a sua índole liberticida. A natureza golpista de Bolsonaro, no entanto, não diminui a importância das revelações feitas por seus ex-comandantes militares – ao contrário.

Também em depoimento à PF, o presidente do PL, o notório Valdemar Costa Neto, revelou as pressões que teria sofrido de Bolsonaro para que o partido bancasse com dinheiro público um relatório fajuto lançando suspeitas contra o sistema eleitoral. Fica claro, assim, que Bolsonaro procurou se cercar de meios políticos e militares para levar a cabo a intentona.

Inconformado com a derrota eleitoral, Bolsonaro se moveu para pôr tropas armadas nas ruas a fim de sustentá-lo no cargo, sob a falsa justificativa de que a eleição não teria sido limpa. Tramou prender autoridades políticas e judiciárias. Por óbvio, teria lançado suas garras também sobre a imprensa profissional e independente. No limite, Bolsonaro assumiu o risco de derramar o sangue de concidadãos em nome de um projeto pessoal de poder. Um doidivanas, assim como os fardados que anuíram com essa loucura.

Eis a dimensão da sordidez. Ao tempo que fazia chegar ao País a informação de que estaria “deprimido” por não ter sido reeleito, Bolsonaro, na verdade, estava maquinando o fim da democracia, cuja reconquista tanto custou aos brasileiros. Que isso não saia barato.

Editorial  / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 17.03.24

Uma Rússia incontrolável ameaça o mundo inteiro, não apenas Kiev

País tem de mostrar que o inimigo é Vladimir Putin, não os 143 milhões de russos comuns

Vladimir Putin em entrevista coletiva às vésperas da invasão da Ucrânia. Foto: Sergey Guneyev/ Sputnik, Kremlin Pool via AP

Como o czar que ele toma de modelo, Vladimir Putin está prestes a ser ungido líder da Rússia por mais seis anos. A eleição que ele vencerá em 17 de março será uma fraude. Mas ainda assim deve servir como alerta para o Ocidente. Ao contrário de colapsar, o regime russo tem se provado resiliente. E as ambições de Putin representam uma ameaça a longo prazo que vai muito além da Ucrânia. Putin pode disseminar mais discórdia na África e no Oriente Médio, vilipendiar a ONU e levar armas nucleares ao espaço. O Ocidente precisa de uma estratégia a longo prazo para lidar com uma Rússia incontrolável muito mais ampla que meramente ajudar a Ucrânia. Neste momento, essa estratégia não existe. O Ocidente também precisa mostrar que seu inimigo é Putin, não os 143 milhões de russos.

Muitos no Ocidente esperaram que as sanções ocidentais e os equívocos de Putin na Ucrânia, incluindo o sacrifício sem sentido de legiões de jovens russos, poderiam desgraçar seu regime. Mas ele sobreviveu. Conforme mostra esta semana nosso estudo a respeito da vida em Vladivostok, essa resiliência tem várias fundações. A economia russa foi remodelada. Exportações de petróleo contornam sanções e são enviadas para o Sul Global. Marcas ocidentais, da BMW à H&M, foram substituídas por alternativas chinesas e locais. Nos livros escolares e nos meios de comunicação, uma sedutora narrativa de nacionalismo russo e vitimização vem sendo promulgada. A dissidência interna foi esganada. O rival político de Putin mais carismático, Alexei Navalni, foi assassinado no gulag em fevereiro. E até aqui o Kremlin não teve nenhuma dificuldade em controlar as corajosas multidões que choram sua morte.

Com o tempo o regime encarará novas vulnerabilidades. Os efeitos cumulativos de ser apartado das tecnologias ocidentais prejudicarão a produtividade: pensem no desgaste dos aviões Boeing ou em ter que depender de softwares pirateados. A militarização da economia prejudicará padrões de vida. A população vai encolher em cerca de um décimo nas próximas duas décadas. E conforme Putin, de 71 anos, envelhecer, uma luta por sucessão se aproximará. Sempre é difícil prever quando um tirano cairá. Mas uma previsão prudente é que Putin permanecerá anos no poder.

Durante a Guerra Fria, a União Soviética foi uma ameaça militar e ideológica para o mundo livre. O Ocidente a conteve com sucesso e, depois que o regime soviético colapsou, a Rússia democrática e suas reformas capitalistas foram bem recebidas pelos governos ocidentais. Putin, que assumiu o poder em 1999, fez a democracia russa recuar, lentamente no início mas com mais rapidez após russos jovens e urbanos protagonizarem manifestações massivas na década de 2010. Ele culpa o Ocidente pelos desafios ao seu governo e busca salvaguardar seu regime tentando extirpar a influência ocidental e unindo o povo russo numa luta contra uma caricatura dos Estados Unidos e da Otan. Hoje a Rússia tem uma economia apenas mediana e nenhuma ideologia coerente para exportar. Ainda assim, representa uma ameaça global. O perigo imediato é a Ucrânia ser derrotada e, depois disso, a Rússia atacar vizinhos como Moldávia e os países bálticos; mas não é aí que as ambições de Putin terminam.

Considerem armas novas ou não convencionais. Relata-se que a Rússia está fazendo experimentos para colocar ogivas nucleares no espaço. Seus drones e guerreiros cibernéticos a permitem projetar força para além de suas fronteiras. Sua indústria de desinformação dissemina mentiras e confusão. Essa combinação maligna desestabilizou países no Sahel e fortaleceu déspotas na Síria e na África Central. A Rússia poderia também influenciar algumas das tantas eleições que o mundo testemunhará este ano. Muitos no Sul Global acreditam na falsa narrativa de que Putin está salvando a Ucrânia de nazistas, a Otan é a verdadeira agressora e que o Ocidente busca impingir suas decadentes normas sociais sobre todos os demais.

A capacidade russa de estorvar as instituições globais estabelecidas após 1945, principalmente o Conselho de Segurança da ONU, não deve ser subestimada. A Rússia tornou-se um inimigo niilista e imprevisível da ordem mundial liberal, dedicada a perturbar e sabotar. É como uma Coreia do Norte ou um Irã sob efeito de esteroides e armada com milhares de ogivas nucleares.

O que o Ocidente deve fazer? Os EUA e a Europa apostaram em duas estratégias: defender a Ucrânia e aplicar sanções. Armar e financiar os defensores da Ucrânia continua a maneira de melhor custo-benefício para conter a agressão russa, mas a determinação do Ocidente em seguir nesse intento titubeia escandalosamente.

As sanções, enquanto isso, têm sido menos eficazes que o esperado. E podem ser contraproducentes, além de uma desculpa para evitar escolhas difíceis. Mais de 80% do mundo segundo a população e 40% segundo o PIB aplicam as sanções, o que permite à Rússia fazer negócios livremente e minar a percepção de legitimidade das restrições. O Ocidente tentar sanções secundárias para forçar o mundo a obedecer sairia pela culatra, levando alguns países a abandonar o sistema financeiro liderado pelos EUA. No longo prazo, o caminho mais plausível é o mais modesto: manter sanções direcionadas contra indivíduos ligados ao Kremlin e garantir que tecnologias avançadas, qu e ainda tendem a ser ocidentais, sejam caras ou impossíveis para a Rússia obter.

Isso significa que uma estratégia eficaz em relação à Rússia precisa colocar mais peso sobre outros dois pilares. O primeiro é um incremento militar para dissuadir outras agressões russas. Na Europa, a debilidade é gritante. Seu gasto anual em defesa é menor que 2% do PIB, e se Donald Trump reconquistar a Casa Branca o comprometimento dos EUA com a Otan deverá minguar. A Europa precisa gastar pelo menos 3% de seu PIB em defesa e se preparar para um Tio Sam mais isolacionista.

Luta de ideias

O Ocidente também precisa acionar uma de suas armas mais poderosas: os valores liberais universais. Foram esses valores, assim como a trilogia original de Guerra nas Estrelas e os dólares americanos, que ajudaram a derrubar o regime soviético expondo a desumanidade de seu sistema totalitário. A diplomacia do Ocidente deve buscar se contrapor à desinformação da Rússia no Sul Global. Também precisa cuidar dos cidadãos russos, em vez de tratá-los como párias. Isso significa expor abusos de direitos humanos, apoiar dissidentes e abrir as portas para russos que desejem fugir de seu país. Significa apoiar as forças da modernização, promovendo o fluxo de notícias e informações reais para a Rússia. E significa garantir que haja exceções humanitárias às sanções, de kits médicos a materiais educativos. No curto prazo, há pouca chance de a elite russa ou os russos comuns expulsarem o regime de Putin. Mas no longo prazo a Rússia só deixará de ser uma nação incontrolável quando seu povo o quiser. 

Publicado originalmente por The Economist - Reproduzido no Brasil pelo  O Estado de S. Paulo,  em17.03.24 / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

terça-feira, 12 de março de 2024

Defenda cada centímetro da democracia

Embora a UE resista melhor do que outras à deterioração democrática global, há muitos motivos de preocupação que apelam ao fim da polarização selvagem

Da esquerda, os primeiros-ministros da Eslováquia, Robert Fico; Polónia, Donald Tusk; República Tcheca, Petr Fiala, e Hungria, Viktor Orbán, no dia 27, em reunião do Grupo de Visegrad, em Praga. (Crédito: David W. Cerny /Reuters)

No seu discurso sobre o Estado da União, Joe Biden disse que, na sua opinião, a democracia e a liberdade nos Estados Unidos estão sob ataque como nunca antes “desde o Presidente Lincoln e a Guerra Civil”. É certo. A possibilidade de um regresso de Trump ao poder é um risco enorme. Biden também destacou as ameaças que a democracia enfrenta em outros lugares. Na verdade, as perspectivas globais não são promissoras. O estudo anual da The Economist Intelligence Unit (publicado em Fevereiro) registou, mais uma vez, uma deterioração da qualidade democrática global, agravando uma trajectória de declínio quase ininterrupto desde 2015.

No que diz respeito à UE, o veredicto do relatório para a Europa Ocidental – uma categoria que inclui grande parte do bloco – foi de estabilidade entre 2022 e 2023, mas a região permanece claramente abaixo do pico de qualidade alcançado em 2008. No geral, visões apocalípticas são injustificados. Mas não há espaço para complacência.

Os motivos de preocupação são múltiplos. Do lado da acção governamental, para além de extremos como a brutal deriva autoritária da Hungria, assistimos ao surgimento de episódios perturbadores, como as manobras do Primeiro-Ministro eslovaco, Robert Fico, que acaba de encerrar a procuradoria especial anti-corrupção, ou aqueles que conseguiram para a Grécia uma resolução do Parlamento Europeu expressando preocupações sobre a liberdade de imprensa, o tratamento dispensado pela polícia aos migrantes e as escutas telefónicas de opositores políticos.

Do lado dos eleitores, assistimos a taxas de abstenção muito fortes nas últimas eleições em França e Itália, um claro sintoma de descomprometimento. Um estudo publicado no final de Fevereiro pelo Pew Center (com cerca de 31 mil entrevistados em 24 países) fornece outros dados valiosos sobre o descontentamento democrático. Entre eles, dois muito interessantes sobre Espanha: é o país dos 24 em estudo onde é mais elevada a percentagem de inquiridos que consideram que os políticos não se importam com o que pessoas como eles pensam (85%, contra uma média de 74%). ); e é um dos países onde, comparativamente a uma radiografia equivalente feita em 2017, a percentagem dos que consideram favoravelmente um Governo de técnicos em vez de políticos mais aumentou (era de 49% a favor e o mesmo número contra então; agora 65% vêem bem e apenas 34% vêem mal).

Do lado dos eleitores, é claro, devemos também tomar nota do aumento do voto extremista. Hoje, na Alemanha, a AfD, um partido com componentes extremamente perturbadoras, é o segundo em intenção de voto. À esquerda, está a tomar forma uma formação céptica em relação às alterações climáticas e relutante em apoiar a Ucrânia. Em Itália, Meloni governa de forma mais pragmática do que alguns pensavam, mas é um facto que o panorama político é dominado por forças excêntricas e não particularmente tranquilizadoras em termos de perspectivas de reforço de uma democracia insatisfatória (de qualidade inferior, segundo a EIU, às França, Alemanha ou Espanha).

O diagnóstico não tem segredos. Muitos estão revoltados com a forma como as democracias europeias lidaram com fenómenos como a globalização ou a imigração. Episódios graves de indignação contra a corrupção. A polarização, alimentada pelas redes sociais, é galopante, dificultando uma ação política consensual e moderada. A lentidão e a ineficácia das respostas democráticas num mundo cada vez mais turbulento, em mudança e vertiginoso criam frustração.

Claro, há luzes no horizonte. As democracias da UE responderam de forma solidária à crise pandémica. A Polónia conseguiu libertar-se nas urnas dos promotores de uma terrível tendência autoritária. A França acaba de enviar uma mensagem maravilhosa ao elevar-se acima das muitas vezes patéticas trincheiras partidárias para consagrar, por uma esmagadora maioria na Constituição, o direito das mulheres ao aborto. Mas as ameaças são graves, não podemos deixar de constatar que incubamos vírus, que a defesa da democracia exige um esforço constante e uma disposição generosa e corajosa.

Em fórum publicado recentemente neste jornal, o presidente do Brasil. Luis Inácio Lula da Silva defendeu que “a resposta aos ataques à democracia é melhorar a vida das pessoas”. Claro que você esta certo. Os serviços públicos que garantam a coesão social, como ele promove no seu país, são essenciais. É também importante responder aos ataques à democracia, como o da Rússia na Ucrânia, com tanques. Se não for enviando tanques ou sancionando o agressor, pelo menos as equidistâncias entre o agressor e o atacado, que ele marcou publicamente, devem ser evitadas.

A democracia não pode ser tomada como garantida. Você tem que defendê-lo centímetro por centímetro. Todos somos chamados a fazer isso, cada um dentro das suas capacidades. Na UE há muito trabalho interno a fazer, especialmente para superar a doença de uma polarização inflamada, longe do interesse colectivo e de dados verificáveis, que alguns estimulam sem escrúpulos, e em que muitos outros acabam por alimentar a espiral. Mas também existe uma forma de defesa contra ameaças externas. Há um – a Rússia, com o apoio militar do Irão e da Coreia do Norte, e o apoio político-económico da China – que exige que não olhemos para o outro lado.

Andrea Rizzi, o autor deste artigo,  é Correspondente de assuntos globais do EL PAÍS e autor de uma coluna dedicada a questões europeias que é publicada aos sábados. Anteriormente foi editor-chefe do Internacional e vice-diretor de Opinião do jornal. É licenciado em Direito (La Sapienza, Roma), mestre em Jornalismo (UAM/EL PAÍS, Madrid) e em Direito da UE (IEE/ULB, Bruxelas). Publicado originalmente no EL PAÍS, em 09.03.24

"Na Ucrânia se decide o futuro do mundo democrático"

Em entrevista à DW, prefeito de Kiev afirma que apoiar a Ucrânia é defender a democracia. Apesar de questionar centralização de poder no presidente Zelenski, Vitali Klitschko é contra eleições enquanto durar a guerra.

Prefeito de Kiev, Vitali Klitschko: "Nós lutamos para que a Ucrânia se torne um Estado europeu"Foto: DW

O ex-pugilista Vitali Klitschko, com numerosos títulos mundiais, é um dos principais políticos da Ucrânia e há dez anos prefeito da capital, Kiev.

Em entrevista à DW, ele falou sobre seu choque com o governo nacional, em especial com o presidente Volodimir Zelenski, e afirmou que não se deve "adentrar pela via da centralização de todas as instituições do poder estatal, colocar todas elas nas mesmas mãos".

Ele também questionou a pertinência de se realizar eleições durante a guerra , iniciada por Vladimir Putin em 24 de fevereiro de 2022. "No momento, 9 milhões de ucranianos estão no exterior, o número dos deslocados internos é mais ou menos o mesmo. Mais de 1 milhão portam uniformes militares para defender o nosso país. Como é que se vai contar esses votos?", argumentou.

DW: Em dezembro de 2023, o senhor declarou à revista alemã Der Spiegel que estava vendo a Ucrânia tomar o caminho do autoritarismo e que um dia ela deixaria de se distinguir da Rússia, onde tudo depende da vontade de um único homem. Quem seria esse homem?

Vitali Klitschko: Nós lutamos para que a Ucrânia se torne um Estado europeu. É muito importante preservar as conquistas democráticas da Ucrânia mesmo sob condições de guerra. Não se deve, de forma alguma, adentrar pela via da centralização de todas as instituições do poder estatal, colocar todas elas nas mesmas mãos. Há questões em aberto em muitos setores. Eu gostaria que as minhas palavras não fossem entendidas como crítica, mas como um bom conselho.

Essa pessoa a quem o seu bom conselho se dirige é o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski?

Hoje em dia todo o poder estatal está centralizado e todas as decisões são tomadas por uma única pessoa.

O parlamento ucraniano instituiu uma comissão especial temporária para investigar a eficácia das autoridades da cidade de Kiev. O que isso significa de um modo geral e para o senhor, como prefeito?

Significa a continuação da luta política no país. Tem alguém que não gosta de Klitschko, que é o responsável por Kiev, então vai se encontrar todo tipo possível de coisas para... Em resumo, é um recurso de luta política.

"Alguém" se refere ao gabinete presidencial?

Sem o aval do gabinete presidencial, nada acontece no nosso país, infelizmente. Estou convencido disso. Existe bem claramente uma definição de funções.

Bucha em 03/04/2022: imagens da cidade devastada pelo exército russo mudaram a percepção da guerra na UcrâniaFoto: Rodrigo Abd/AP Photo/picture alliance

Ao mesmo tempo o senhor se pronuncia contra a realização de eleições na Ucrânia durante a guerra: as parlamentares estavam marcadas para outubro de 2023, a presidencial deverá ocorrer em março de 2024. Em sua opinião, quanto tempo o país poderá passar sem votar?

Estou convencido de que não é possível realizar eleições. No momento, 9 milhões de ucranianos estão no exterior, o número dos deslocados internos é mais ou menos o mesmo. Mais de 1 milhão portam uniformes militares para defender o nosso país. Como é que se vai contar esses votos? E agora que somos confrontados com um desafio externo, uma luta política interna pode levar ao colapso de todo o país.

Tem quem goste de Zelenski, outros não. Mas acho que ele exerce uma função muito importante como presidente, que deve seguir cumprindo até o fim da guerra. Só depois podemos realizar na Ucrânia eleições parlamentares, presidencial e outras.

O senhor pretende se candidatar para o cargo de presidente, se houver possibilidade para tal?

É um grande erro fazer agora qualquer plano para o futuro. Pensar agora sobre postos, sobre algum tipo de projeto político num país que está lutando pela sobrevivência, é um disparate enorme. Perdoe-me, mas vou responder a sua pergunta com grande prazer no momento em que a guerra tiver acabado.

Recentemente o senhor participou da Conferência de Segurança de Munique. Alguns países praticamente não alteraram sua postura em relação à Ucrânia nos últimos dois anos. Isso é algo que não se pode dizer da Alemanha: daquela oferta inicial de 5 mil capacetes chegou-se hoje ao maior apoio na Europa, com planos de construir fábricas de armamentos e assim por diante. Como se deu essa mudança?

Desde o começo da guerra eu tenho explicado o que ocorre a muitos dos nossos parceiros, pois não estava claro para eles. Mas as terríveis imagens de Bucha, Irpin, Hostomel e Mariupol, com os mortos, mostraram nitidamente que não se trata só de guerra, uma "operação especial", mas sim genocídio e terrorismo. É importante tudo fazer para deter os russos, através de sanções, de respaldo político, de auxílio econômico para a Ucrânia.

Quero enfatizar mais uma vez, e isso é importantíssimo: hoje não estamos defendendo só o nosso país, mas o mundo democrático. Precisamos de apoio, pois na Ucrânia vai se decidir sobre o futuro de todo o mundo. Hoje, o mundo é preto ou branco: quem é a favor, e quem é contra essa guerra; quem pela democracia ou pela ditadura? Cada um de nós precisa responder a essa pergunta.

Entrevista concedida a Roman Huba para a Deutsche Welle. Publicada originalmente em 11.03.24

'Mesmo sem golpe, Bolsonaro pode responder por crimes contra a democracia'

A Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/2021) é falha, especialmente por ter tipos penais muito abertos. Mas não deixa de ser um avanço em relação à Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983), editada ainda durante a ditadura militar. 

Professor Nilo Batista, muito respeitado entre os mais destacados criminalistas do Brasil

E essa norma de 2021, foi a ferramenta que viabilizou a contenção à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, na avaliação dos advogados criminalistas Nilo Batista e Rafael Borges, autores do livro Crimes contra o Estado Democrático de Direito (Revan).

A obra é dividida em duas partes. A primeira conta a história da legislação brasileira de segurança nacional. Muitas das análises sobre as normas, especialmente aquelas editadas durante a ditadura, foram escritas por Nilo Batista à época em que elas entraram em vigor. Já a segunda seção traz comentários sobre a Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito.

Para Batista e Borges, o ex-presidente Jair Bolsonaro pode responder pelos crimes de tentativa de abolição do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado (previstos nos artigos 359-L e M da lei), desde que fique provado que ele agiu ou deixou de agir no sentido de desacreditar o sistema eleitoral e incentivar os ataques às sedes dos Três Poderes, em Brasília.

O advogado Rafael Borges é co-autor de "Crimes Contra o Estado Democrático de Direito", em parceria com o  Professor Nilo Batista. (Crédito: Spacca, Conjur)

“Se o grande evento de ruptura (os ataques de 8 de janeiro) não foi exitoso apenas porque houve a resistência de oficiais leais aos votos que fazem quando recebem as armas da nação, isso não afeta a consumação delitiva. A ocupação violenta de sedes de poderes da República pode atender ao requisito típico, se isso está em linha de continuidade com a conspiração”, avaliam eles, referindo-se à reunião recentemente divulgada em que Bolsonaro e seus ministros discutiram estratégias golpistas.

De acordo com os criminalistas, o Supremo Tribunal Federal está acertando na tipificação das condutas dos bolsonaristas que participaram do 8 de janeiro. Porém, opinam eles, a corte está errando ao considerar que os atos configuram concurso material de delitos, quando na verdade deveriam configurar concurso formal. Isso porque os golpistas praticaram apenas uma conduta: a de invadir as sedes dos Três Poderes com o fim de transformar o regime. Devido a esse entendimento do STF, as penas impostas aos arruaceiros têm sido exageradamente elevadas, analisam os advogados.

Um dos maiores penalistas brasileiros, Nilo Batista advoga há quase 60 anos. Ele defendeu presos políticos durante a ditadura militar, foi governador e secretário de Justiça e Polícia Civil do Rio de Janeiro, presidente da seccional fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil e professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Rafael Borges é sócio do escritório Nilo Batista & Advogados Associados, coordenador do curso de pós-graduação lato sensu da OAB-RJ-Uerj e diretor-secretário do Instituto Carioca de Criminologia.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Por que a Lei Rao, de 1935, pode ser considerada a “verdadeira matriz da nossa tradição legislativa autoritária”?

Rafael Borges — A Lei Rao é apelidada de Lei Monstro. (O ex-ministro da Justiça) Vicente Rao foi quem a escreveu. Era uma lei que tinha inspiração no fascismo italiano. Foi a primeira vez que se estabeleceram, de forma clara, inequívoca, parâmetros de defesa daquilo que se convencionou denominar de segurança nacional. Na verdade, já existiam dispositivos referentes à segurança nacional em leis anteriores. A Lei Rao não foi a primeira norma brasileira a tratar do assunto. Isso já vinha sendo tratado desde as Ordenações Filipinas, passando pelo Código Criminal do Império e, depois, permanecendo no Código Penal da República, de outras formas. Mas a lei de 1935 é a lei que estabelece a segurança nacional como um bem jurídico e cria normas bastante duras para quem cometesse delitos contra ela. A partir da Lei Rao, desenham-se todas as leis de segurança nacional do Brasil, como as da ditadura militar.

Nilo Batista — A Lei Rao foi uma legislação muito imperfeita, um modelo de imperfeição. E os legisladores não se preocuparam com isso. Vicente Rao foi autor de uma lei completamente monstruosa. As ideias daquela lei torturaram e mataram muita gente.

ConJur — A Lei 136/1935 alterou a Lei Rao para, entre outras medidas, criar o crime de abuso de liberdade de imprensa. Hoje se discute o Projeto de Lei das Fake News (PL 2.630/2020), que cria regras para combater as notícias falsas nas redes sociais. Alguns afirmam que esse projeto restringe indevidamente a liberdade de expressão. Como combater a desinformação sem criar regras autoritárias?

Nilo Batista — É uma grande preocupação. Estamos em uma zona limítrofe de ofender a liberdade de imprensa. Nós devíamos recorrer à responsabilidade sucessiva, uma invenção brasileira, criada no Código Criminal do Império, que responsabilizava veículos jornalísticos ao mesmo tempo em que protegia a liberdade de imprensa. Pela regra geral da coautoria e da participação do Direito brasileiro, todo mundo que contribui para um crime responde por tal crime. Mas se fosse um crime de imprensa, seria absurdo pensar em responsabilizar o jornaleiro, o impressor do jornal, o motorista do caminhão, os colegas de redação do autor… A responsabilidade sucessiva abria uma exceção à regra geral e estabelecia que, em crimes de imprensa, só respondia o autor. Se o autor fosse inacessível, o redator-chefe do veículo passava a responder, porque deveria ter mantido o autor acessível. Havia essa sequência de só responsabilizar um agente, em nome da liberdade de imprensa.

Pois bem, o Supremo disse que isso era inconstitucional (ao declarar a inconstitucionalidade da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67)) por razões que consistiam, essencialmente, em puxar o saco da imprensa. Seria um mecanismo interessante de se restabelecer. Se uma plataforma resolve noticiar, passa a ter responsabilidade sucessiva, caso não se consiga chegar ao autor. Se a plataforma veicula um conteúdo, ela tem de saber minimamente quem é o autor. Não pode se eximir da responsabilidade sob o argumento de que não produziu o conteúdo.

Rafael Borges — O projeto de lei aprovado no Senado (da Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito) previa o tipo penal das fake news. E o ex-presidente Jair Bolsonaro, por razões muito distintas das nossas, vetou. Mas a verdade é que era um tipo penal muito mal feito. Era construído na perspectiva de transformar o juiz no responsável por emitir a verdade estatal sobre um determinado assunto. Isso sempre nos assustou muito.

Nilo Batista — No Estado democrático de Direito, não existe verdade oficial. Não pode existir. Onde houve verdade oficial, houve autoritarismo. Assim como sempre houve autoritarismo em locais com tribunais muito envolvidos na política. É só olhar o século XX.

ConJur — Como a doutrina de segurança nacional influenciou as leis repressivas da ditadura militar de 1964?

Nilo Batista — Influenciou muito. Era um corpo teórico que foi adotado pela legislação, não só pela Lei de Segurança Nacional. Era um método muito autoritário e completamente desvinculado de qualquer compromisso com o povo brasileiro. Era uma doutrina forjada em câmaras de tortura, em aventuras imperialistas, e que chegou ao Brasil e foi encampada pela ditadura.

Rafael Borges — (O jurista argentino Eugenio Raúl) Zaffaroni ironiza a expressão doutrina. Não dá para chamar isso de doutrina. Era muito mais um conjunto desorganizado de ideias do que exatamente um corpo teórico criado sob tal perspectiva. Foi algo muito funcional para o imperialismo, especialmente o francês.

ConJur — Qual foi o impacto de atribuir à Justiça Militar, em 1967, a competência para julgar militares e civis acusados de crimes contra a segurança nacional?

Nilo Batista — Primeiro quiseram alargar ainda mais a competência da Justiça Militar, atribuindo-lhe também crimes contra a economia popular. Aí viram que não dava muito certo. Mas essa experiência da ditadura revelou que, dentro das Forças Armadas, havia espíritos democráticos. Em primeiro lugar, existia cortesia. O advogado não era discriminado, como é hoje. Era muito melhor trabalhar no Tribunal de Segurança Nacional do que trabalhar na vara de Sergio Moro (13ª Vara Federal de Curitiba), na vara de Marcelo Bretas (7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro) ou em outras varas federais e estaduais. Havia pessoas interessadas em dar uma solução para o caso. E muitas vezes houve boas soluções. Claro que havia limites, que de vez em quando surgia um oficial fascistinha, mas não era a regra. E no Superior Tribunal Militar houve compreensão com a juventude que se insurgiu contra a ditadura — nem sempre, é claro.

Atribuir à Justiça Militar a competência para julgar militares e civis acusados de crimes contra a segurança nacional foi um movimento de endurecimento da ditadura, mas os advogados enfrentaram a situação. E viram que, ao contrário do que a ditadura pensou, a Justiça Militar não foi uma servil cumpridora de um programa condenatório que o Executivo lhe passava.

ConJur — Como o Decreto-Lei 898/1969 restringiu o direito de defesa?

Nilo Batista — O Decreto-Lei 898/1969 não foi o problema. O problema foi o Decreto-Lei 314/1967, que previa a pena de morte — embora ela não tenha chegado a ser executada.

Rafael Borges — O Decreto-Lei 314/1967 foi a norma que incorporou a doutrina de segurança nacional de forma definitiva à legislação brasileira. É o que toda a doutrina fala. Foi sob a égide desse decreto que as maiores atrocidades foram praticadas. O decreto tinha uma estrutura muito dura, muito pesada, tinha tipos penais muito abertos. Mas a ditadura cometeu as maiores atrocidades extrapolando os limites legais. Era o Direito Penal subterrâneo, aquilo que era feito nos porões.

ConJur — Por que definir o que é “segurança do Estado”, como fazia o Decreto-Lei 898/1969, é impróprio?

Rafael Borges — Esses conceitos são sedimentados em outros espaços, como na doutrina. A atividade de interpretação consiste em olhar para o conteúdo normativo, entender o conceito, ver de que forma o conceito está sedimentado e aplicá-lo ao caso concreto. O legislador não é dono dos conceitos. Ele não pode, além de definir a lei, definir os conceitos.

Nilo Batista — O problema é que a segurança nacional era compreendida pela ótica da doutrina de segurança nacional. E, na verdade, a segurança nacional não passa do regime primário das leis na condição de liberdade. Não é preciso perseguir os objetivos nacionais permanentes. Era uma visão autoritária de segurança nacional, de um país amordaçado.

ConJur — A Lei 7.710/1983, outorgada ainda durante a ditadura, foi usada até há pouco tempo no país. Como enxergam a aplicação dessa norma já sob a Constituição de 1988?

Nilo Batista — Era uma lei meio envergonhada, uma tentativa de colocar o chapéu, os óculos e o vestido da vovó no lobo mau. Era uma tentativa de atenuar as normas, mas sem mudar muito. Não havia sensibilidade política para mexer na lei quando chegou a redemocratização, e ela continuou em vigor.

Rafael Borges — Nós defendemos militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) acusados com base na Lei de Segurança Nacional. Mas, realmente, ficou algo meio anacrônico. A democratização aconteceu, veio a Constituição de 1988 e permaneceu esse entulho autoritário. Era uma lei muito caudatária da ditadura. Mas era uma lei bem escrita, bem diferente da atual. Era uma lei com conceitos claros, que tratava da questão do elemento subjetivo, da necessidade da motivação política dos atos, algo que não está presente na lei nova. Mas, de fato, era uma lei autoritária, merece todas as críticas por isso. Na verdade, ela foi recepcionada pela Constituição de 1988, embora isso nunca tenha sido declarado.

A lei teve um uso muito marginal, para a criminalização de movimentos sociais. E Bolsonaro fez aumentar bastante o número de inquéritos policiais instaurados para apurar crimes relacionados à lei, todos na linha de combater opositores políticos.

ConJur — A Lei 14.197/2021 é democrática ou ainda carrega aspectos autoritários das normas anteriores de segurança nacional?

Nilo Batista — Toda lei de defesa do Estado tem um traço de conservadorismo, porque a ideia é manter o que está presente. Só que, por exemplo, a nossa história dos últimos 200 anos é de muitas transformações. E isso não vai acabar, não chegamos ao paraíso cívico, jurídico, judiciário. Então, é uma lei de transição. Era o suficiente para o momento. Mas, em algum momento, vamos ter de revê-la.

Rafael Borges — Sem dúvidas, é a melhor lei de segurança nacional que a gente já teve. Porém, ela poderia ter menos tipos penais abertos. Ela tem muitos conceitos que dependem de complementação. Por exemplo, os crimes relacionados à informação dependem da LGPD.

ConJur — A Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito está sendo aplicada nos julgamentos de bolsonaristas que promoveram os ataques em Brasília em 8 de janeiro de 2023. Como avaliam a aplicação da norma pelo STF nesse caso?

Rafael Borges — Essa lei foi a ferramenta que viabilizou, na prática, a contenção ao golpe de 8 de janeiro. Isso é um fato prático. Dito isso, não houve concurso material nas condutas dos bolsonaristas, como o Supremo vem entendendo, e, sim, concurso formal.

Nilo Batista — A única conduta dos bolsonaristas foi a de invadir as sedes dos Três Poderes com o fim de transformar o regime. O concurso material pressupõe duas ou mais condutas.

ConJur — Sendo assim, os senhores consideram exageradas as penas que vêm sendo aplicadas pelo Supremo no caso?

Rafael Borges — Sim. As tipificações estão corretas, mas aplicar pena de 17 anos, com base em concurso material, é exagero. 

Nilo Batista — As pessoas que estão sendo condenadas são do baixo clero, uma militância desinformada. Se elas estão recebendo penas de 17 anos, quais serão as penas dos mandantes?

ConJur — Por que os crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado, previstos nos artigos 359-L e M da nova lei, só abrangem a tentativa de praticar tais condutas?

Nilo Batista — Os tipos penais só abrangem a tentativa porque, se houver um golpe e o Estado democrático de Direito for abolido, a lei não valerá mais nada.

Rafael Borges — Salvo engano, são os únicos tipos da legislação penal brasileira construídos com o verbo tentar no seu núcleo principal. Todo crime doloso pode ser praticado de forma tentada, mas não existem tipos específicos. Por isso, discutimos no livro se seria possível a tentativa da tentativa e a desistência voluntária. Mas chegamos à conclusão de que isso não é possível, pois o mero início da execução basta para consumar os crimes.

ConJur — Bolsonaro pode responder pelos crimes de tentativa de abolição do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado?

Nilo Batista — Vai depender da existência de prova que o filie àquele acontecimento (os ataques de 8 de janeiro).

Rafael Borges — Em tese, é evidente que ele pode responder por esses crimes. Porém, por mais que a lei tenha tipos abertos, ela não autoriza a responsabilidade penal objetiva. A responsabilidade de Bolsonaro não pode ser presumida a partir dos discursos grosseiros que ele fazia. É preciso encontrar, em uma ação ou omissão dele, esses resultados naturalísticos todos.

ConJur — Como os senhores avaliam a reunião golpista de Bolsonaro e seus ministros, recentemente revelada? Ela e os atos para preparar um golpe de Estado configuram crime contra o Estado democrático de Direito?

Nilo Batista e Rafael Borges — Não atuamos no caso e essa circunstância nos impede de abordá-lo em sua concretude e especificidade. Mas, em tese e simplificadamente, uma conspiração pode ter se desenvolvido ao longo do tempo através de diversas condutas conspiratórias claríssimas — que passam pelo descrédito do sistema eleitoral, pela promoção de manifestações e pela manutenção de estruturas golpistas, como acampamentos —, culminando em um grande evento de ruptura. Um grande evento de ruptura, com agentes de segurança e práticas de violência e grave ameaça, pode ser a resultante do processo instigado por um conjunto de discursos e atos conspiratórios.

Não se pode isolar uma única reunião supostamente conspiratória. Se o grande evento de ruptura (os ataques de 8 de janeiro) não foi exitoso apenas porque houve a resistência de oficiais leais aos votos que fazem quando recebem as armas da nação, isso não afeta a consumação delitiva. A ocupação violenta de sedes de poderes da República pode atender ao requisito típico, se isso está em linha de continuidade com a conspiração. Não há mesmo como procurar violência e grave ameaça na reunião dos conspiradores. Estamos diante de crimes complexos, em regra praticados por várias pessoas e mediante diversas condutas, concomitantes e sucessivas. Os fatos devem ser analisados dentro do contexto, sem pinçamentos indevidos. O empreendimento golpista pode se revelar na relação causal entre práticas conspiratórias e os atos de violência e grave ameaça.

ConJur — Nilo Batista, em 1979, o senhor entendeu que a Lei da Anistia não atingia os crimes praticados por torturadores. No entanto, quando o STF julgou a sua constitucionalidade, em 2010, o senhor foi contra a sua anulação e a punição de militares. Agora há um movimento para anistiar os que praticaram os atentados de 8 de janeiro. Como enxerga uma eventual anistia a essas pessoas?

Nilo Batista — Eu não tenho nada contra a anistia em geral. Em 1979, eu entendi que a Lei da Anistia não se aplicava aos crimes praticados por torturadores, mas mexer nisso 30 anos depois seria quase uma violação oblíqua do princípio da legalidade. E iria na contramão das mudanças políticas, dos acordos que permitiram a redemocratização.

Se eu fosse conselheiro de Lula, eu teria dito a ele para incluir esse pessoal (do 8 de janeiro) no induto de Natal. Eu faria um gesto na direção deles, desse pessoal do baixo clero. Seria um gesto de união, de generosidade. Aliás, avisaria a todos os parlamentares que, se eles extinguirem a “saidinha” (como foi recentemente aprovado pelo Senado), irão transformar as penas dessas pessoas em regime fechado para o resto da vida. Eles não vão ter regime aberto, não vão visitar a mãe, a mulher, os filhos.

ConJur — Os senhores mencionam uma dificuldade dos ordenamentos jurídicos, especialmente os de países periféricos, de lidar com o “colonialismo tardio”, segundo conceito de Zaffaroni. Quais os impactos do colonialismo tardio na criminalidade e na segurança do Brasil?

Rafael Borges — O colonialismo demanda a ampliação das ferramentas de controle social, das ferramentas que estabelecem o controle sobre os corpos vulneráveis, os corpos matáveis, os corpos que não integram as dinâmicas de mercado, de consumo. Países do capitalismo periférico, que sofreram o colonialismo tardio, estão sempre usando o sistema de Justiça Criminal como instrumento de ampliação do controle. O capitalismo não deu certo em lugar nenhum, mas aqui deu um pouco menos certo do que nos países do norte, de primeiro mundo. E aqui o sistema penal é usado, de maneira muito clara, para manter esses corpos de alguma forma controlados, de alguma forma censurados, para trazer um pouco a falsa sensação de segurança, de ordem, de tranquilidade. E a segurança nacional está nesse debate.

Nilo Batista —Além do nível político, tem o colonialismo no nível teórico. Quando eu era jovem, tudo de teoria que vinha da Alemanha era glorificado por aqui. Lá eles têm uma sociedade de classe média. Aqui não, o sangue está escorrendo no meio da rua. O pensamento deles está condicionado por uma sociedade de classe média, com as coisas muito arrumadas, um Estado eficiente. Aqui temos outras questões, as nossas urgências, o nosso sangue, a nossa miséria. Então, esse colonialismo é também achar que tudo o que é pensado no Hemisfério Norte é bom para nós. Não é. Às vezes, precisamos exatamente do contrário.

Rafael Borges — E a doutrina de segurança nacional foi importada acriticamente, sem se observar as diferenças grosseiras de contexto, de realidade, que nos separam dos países onde ela foi gestada — notadamente, dos Estados Unidos e da França. Foi isso o que quisemos dizer ao mencionar a dificuldade dos ordenamentos jurídicos de países periféricos de lidar com o colonialismo tardio.

Entrevista concedida a Sérgio Rodas, correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro. Publicada originalmente em 26.02.24.

sexta-feira, 8 de março de 2024

A imoralidade de Lula

Ao agredir a oposição venezuelana e defender o companheiro Maduro, Lula reafirma o padrão de sua diplomacia imoral, em que ditadores são festejados e dissidentes políticos, ridicularizados

O presidente Lula da Silva está mesmo empenhado em se credenciar como o guia genial do tal “Sul Global” contra os “imperialistas” americanos. Para antagonizar os Estados Unidos, fustigar o Ocidente e proclamar sua vocação de salvador dos pobres e oprimidos na geopolítica internacional, Lula manda às favas o histórico da diplomacia brasileira de prudência, neutralidade e respeito à democracia, e arrasta consigo o Brasil e sua política externa. Combina a habitual fala sem filtros em temas espinhosos dos quais nada entende com a defesa obscena de ditaduras e ditadores. A Lula pouco importa o que autocratas fazem contra a democracia e os direitos humanos – basta que se insurjam contra os Estados Unidos.

A recente declaração de Lula sobre a Venezuela é só mais um exemplo desse pensamento deletério. Lula se disse “feliz” com a definição da data para a eleição presidencial venezuelana – a eleição que Nicolás Maduro controla com mão de ferro, pelo domínio que tem sobre a Justiça e sobre as regras do sistema eleitoral do país, o que tem lhe garantido sufocar a oposição, atentar contra a imprensa independente e perpetuar a ditadura chavista.

Questionado se acreditava que a eleição seria justa, Lula alegou ter recebido informações do próprio companheiro Maduro, ora vejam, de que observadores internacionais serão convidados a monitorar o pleito. E, num misto de grosseria e misoginia, sugeriu à oposição da Venezuela “não ficar chorando”, referência clara ao fato de que a mais forte candidata oposicionista, María Corina Machado, foi impedida pela Suprema Corte chavista de disputar as eleições. Para Lula, bastaria à oposição escolher outro candidato – como se María Corina não tivesse sido vítima de flagrante perseguição e como se qualquer outro candidato pudesse concorrer livremente num ambiente totalmente controlado por Maduro.

Não foi uma gafe ou um escorregão retórico movido pelo improviso. Trata-se de um padrão e, como tal, um atestado de suas convicções. É longa a sua coleção de declarações em favor de ditaduras, a começar pela própria Venezuela, um país “democrático” até demais, segundo Lula, por realizar “mais eleições que o Brasil”. Relativizando as barbaridades promovidas por Maduro, o presidente brasileiro afirmou que o “conceito de democracia é relativo”. Para Lula, democracia não é a soberania popular, a garantia das liberdades de expressão e de imprensa, a intransigência com qualquer forma de arbítrio de tiranos. Em seu relativismo, os ditadores companheiros são “democratas” porque se julgam intérpretes das aspirações do “povo”.

Lula é cruel com aqueles que ousam enfrentar os ditadores companheiros. Em 2010, por exemplo, ele defendeu a “Justiça” cubana e criticou presos políticos que ali faziam greve de fome contra o regime dos irmãos Castro. Na sua diplomacia da imoralidade, equiparou os valentes dissidentes cubanos aos presos comuns no Brasil.

Há muitos outros casos em que a indecência lulopetista se manifestou dessa maneira. Recorde-se que Lula defendeu o ditador Daniel Ortega inúmeras vezes, a despeito das escancaradas violações de direitos humanos cometidas pelo nicaraguense – e, numa reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU em março do ano passado, o Brasil se recusou a acompanhar os mais de 50 países que denunciaram a prática de crimes contra a humanidade pela tirania de Ortega.

Lula saltou do abismo moral para se alinhar ao que há de mais retrógrado e autoritário. Ao fazê-lo, descredencia-se como líder global digno de respeito internacional e debilita a política externa brasileira, obliterando suas oportunidades de integração econômica e de cooperação para a paz, a democracia e as liberdades fundamentais. Sua política externa está ancorada num princípio absoluto e maniqueísta: a hostilidade ao Ocidente e o alinhamento automático a tudo o que é antagônico aos valores ocidentais. Quando esse sectarismo ideológico substitui a visão de Estado, o voluntarismo ignora a decência e a diplomacia é feita com cacoetes de esquerdismo infantil, não há jeito. Não há mais o que esperar de Lula senão essa imoralidade sem limites.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo,em 08.03.24

Desaprovação a Lula e a economia

Os bons resultados na economia não tem apresentado grande impacto sobre a popularidade do presidente

A desaprovação à atuação de Lula aumentou de 43% para 46%. Brasília, 06/03/2024  Foto: Wilton Junior/Estadão

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vem perdendo apoio em segmentos importantes do eleitorado e isso pode ter impacto na condução da política econômica. Não se trata de desgaste natural, como acontece com qualquer chefe de governo, mas de aumento de rejeição permanente em faixas relevantes.

A mais notória é a dos evangélicos, que corresponde a aproximadamente 30% do eleitorado. Nada menos que 62% dessa faixa desaprova a atuação do atual governo, como acaba de mostrar a pesquisa recente da Genial/Quaest.

O movimento evangélico está ajudando a produzir uma importante guinada na mentalidade popular urbana. Orientada por pastores, bispos e apóstolos de quase todas as grandes igrejas, essa parcela da população já não aceita a subordinação a empregos à maneira antiga e à filiação aos sindicatos. Quer ser empreendedora e vê nessa postura novas oportunidades de ascensão, especialmente no setor de serviços, naturalmente com as bênçãos do Senhor. Essa nova ética protestante até agora não foi entendida pelas esquerdas brasileiras.

Uma segunda faixa arraigadamente contrária ao presidente Lula e ao Partido dos Trabalhadores é a dos que circundam o setor do agronegócio: pequenos, médios e grandes agricultores, pecuaristas e toda a imensa área de serviços de apoio que opera no interior. Até recentemente, o PT não dava importância a essa área porque entendia, equivocadamente, que o agro gera pouco emprego. Agora se vê que essa gente pensa, trabalha e vota contra a linha convencional do PT, não só porque segue traumatizada pelo jogo invasor do MST e dos “exércitos do Stedile”, mas, também, porque rejeita a cartilha das esquerdas tradicionais.

Estas não conseguem digerir estas transformações em curso. Sentem que perdem capacidade de mobilização e pressionam o quanto podem o governo Lula para que abandone “pruridos neoliberais” voltados à responsabilidade fiscal e se atire a políticas de cunho populista, para que consigam evitar derrotas contundentes nas próximas eleições, as que lançarão as bases para a próxima campanha presidencial.

Até agora, o presidente Lula parecia convencido de que bastaria apresentar bons resultados na economia para virar marés adversas. Mas isso não está acontecendo. O PIB avançou 2,9% em 2023, a inflação e os juros vão mergulhando, o desemprego caiu aos níveis mais baixos desde 2014. Mas esses gols não vêm colando politicamente.

Falta saber se o governo Lula passará a atender alguns dos principais próceres petistas, como a presidente do partido, Gleisi Hoffmann; o deputado federal e vice-líder do governo no Congresso, Lindbergh Farias; e a primeira-dama Janja da Silva, e adotará políticas de gastança ou se ficará do lado dos moderados, especialmente do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e se continuará a conduzir um política econômica mais conservadora, com base na preservação dos seus fundamentos.

Celso Ming, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicadooriginalmente n'O Estado de S. Paulo,em  08.03.24

Lula está com um foco, e o povo, com outro

Presidente resolveu falar a seu público mais convertido, enquanto pesquisas apontam corrupção e segurança como maiores preocupações dos brasileiros

Lula durante reunião do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia — Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

Uma das piores coisas que podem acontecer a um governo é um presidente experimentado, que passou a vida sendo louvado pelo tino político e pela forma intuitiva como governa, se ver defendendo pautas e prioridades completamente desconectadas daquelas que a população considera mais importantes.

É o que parece estar acontecendo com Lula, sobretudo neste início de ano. Outro fator que agrava a situação e atrapalha a possibilidade de o governo corrigir a rota é haver poucos expoentes do entorno próximo do presidente com senioridade e coragem para dizer a ele que está errando e deveria rever o rumo.

No primeiro mandato, o círculo próximo ao petista era composto de pessoas que tinham intimidade com ele e autoridade política para confrontar algumas de suas decisões. Independentemente do que aconteceu com eles em investigações posteriores, Luiz Gushiken, José Dirceu e Antonio Palocci, entre outros, tinham cacife para confrontar as certezas sempre veementes que fizeram Lula chegar aonde chegou na política, mas nem sempre são o melhor caminho no exercício da Presidência.

O mesmo não se pode dizer do atual grupo de ministros. O único que teria peso suficiente para dizer a Lula que as coisas não vão bem seria Fernando Haddad, mas nem sempre os planos do ministro da Fazenda parecem convergir com os do presidente.

Tanto é verdade que bastou a arrecadação de janeiro e fevereiro crescer — fruto de fatores que podem ser sazonais, em razão de medidas adotadas pela Fazenda no ano passado, como a taxação de offshores e fundos exclusivos — para o presidente esfregar as mãos e sair defendendo mais gastos, como se o problema da percepção não tão positiva da população em relação a seu governo decorresse da falta de obras, entregas de casas ou outros projetos tradicionalmente defendidos por ele.

As pesquisas divulgadas nesta semana pelos institutos Quaest e Atlas, se forem analisadas detalhadamente e sem negacionismo pelo governo, mostram que a população não percebe o bom momento da economia e vê a corrupção e a segurança pública como os principais problemas do Brasil.

Além disso, as recentes incursões de Lula em temas de política externa se mostraram completamente dissociadas das prioridades internas e mesmo da percepção que a maioria da população tem a respeito dos temas que ele aborda de improviso segundo um viés ideológico próprio, não submetido a crivos técnicos do Itamaraty, que parece ter virado um apêndice da influência do assessor especial Celso Amorim.

O levantamento do Atlas aponta, com larga margem de diferença para os demais, corrupção e segurança pública como temas que mais preocupam os brasileiros. Eis uma pista que deveria ser seguida para entender o mau momento da avaliação de Lula. São dois assuntos a que o petista não tem se dedicado em discursos e agendas e sobre os quais sua administração não tem nada a apresentar.

Pelo contrário: os dois debates são travados do ponto de vista ideológico e, no que concerne à corrupção, o desmonte do arcabouço de transparência, como os acordos de leniência, e a reversão de decisões judiciais a granel pela Justiça estão associados, no debate público, a uma ação coordenada com a esquerda e o governo.

Simplesmente ignorar essa percepção e achar que é disseminado no conjunto da sociedade o entendimento de que todas as condenações da última década eram perseguição e uma tentativa de “criminalizar” a política é querer provar a quadratura do círculo e moldar a realidade às próprias crenças.

O mesmo que Lula faz, aliás, ao propagar aos quatro ventos a veia democrática de Nicolás Maduro e declarar uma crença, que soa infantil para alguém tão experimentado, na realização de eleições limpas no país vizinho. Neste ano, o presidente resolveu falar a seus convertidos mais à esquerda e, aparentemente, a mais ninguém.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, Jornalista, é Apresentadora do Roda Viva, na TV Cultura. Publicado originalmente n'O Globo, em 08.03.24

quinta-feira, 7 de março de 2024

O erro insistente de Lula de defender o governo claramente autoritário da Venezuela

O regime chavista desmontou toda a estrutura de regras justas, fundamentais para uma eleição democrática

Presidente Lula e Nicolás Maduro Presidente da Venezuela — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

O presidente Lula errou de novo em suas declarações sobre a eleição venezuelana, ao dizer que quem foi impedido de competir não deve ficar chorando. Ela se referia, claro, a Maria Corina, e ainda disse que só se saberá se a eleição foi justa depois do pleito. Para ser democrática uma eleição tem que ter regras justas, e o regime chavista está desmontando toda a estrutura de disputas justas. Portanto, uma eleição precisa ser livre, antes, durante e depois. E Lula que retornou sendo visto como quem protegeria a nossa democracia ameaçada deveria tomar mais cuidado com tudo isso.

No caso de Maria Corina Machado, o Conselho Eleitoral, controlado por Nicolás Maduro, alegaram problema administrativo que ela teria em outro momento da vida política, mas nada que justifique a inelegibilidade. E isto só aconteceu quando ela foi escolhida por vários partidos da oposição para ser a candidata de oposição a Nicolás Maduro e se tornar uma candidata viável.

O governo chavista está há 26 anos no poder. Foi eleito em 1998, e depois manobrou no poder para afastar qualquer competição eleitoral, começando exatamente pelo ataque em 2003 ao Conselho Nacional Eleitoral. Eu estive na Venezuela naquela época para reportar esse começo do sufocamento da democracia. Depois disso, com Hugo Chávez ou com Maduro, o regime da Venezuela implementou um projeto autoritário, bem semelhante aos projetos de autocratas em várias partes do mundo e que era o projeto de Jair Bolsonaro aqui. Não por acaso o primeiro alvo foi o TSE, como na Venezuela foi o CNE.

O que intriga nesse caso é porque o presidente Lula usa o seu prestígio para fortalecer uma estrutura claramente autoritária.

Lula já defendeu a tese de que a democracia é relativa. Não. A democracia é um valor absoluto. E o Brasil acaba de passar por um grande estresse na nossa democracia para saber o quanto ela é valiosa. E foi em nome dela que Lula voltou ao poder.

Míriam Leitão, a autora deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n' O Globo, em 07.03.24

María Corina Machado acompanha o chavismo e faz campanha para as eleições presidenciais na Venezuela

A principal líder da oposição não desiste apesar de o partido no poder ter vetado a possibilidade de ela enfrentar Nicolás Maduro em julho

María Corina Machado, líder da oposição venezuelana, em evento em Caracas, em 29 de janeiro. (Crédito: Miguel Gutierrez - EFE)

Na Venezuela, duas realidades vão colidir neste ano eleitoral. O chavismo, que controla o governo e o aparelho de justiça, enfrenta as eleições presidenciais de 28 de julho com a certeza de que voltará a vencer e continuará no poder, como tem acontecido desde 1999. O partido no poder abriu caminho para que o presidente Nicolás Maduro o faça. não encontra obstáculos e é reeleito para outro período, com o qual superará os anos que governou um mito como Hugo Chávez. A oposição entende que há alguma ficção na ideia de que se trata de eleições livres e justas, mas mesmo assim não quer facilitar e nos próximos meses irá lançar uma campanha com o apoio da comunidade internacional para exigir que O chavismo respeita um processo altamente questionado do qual você se sente vencedor antes mesmo de começar.

Maduro, que tem popularidade muito baixa, está em campanha há meses. O presidente liderou um referendo para exigir parte do território da vizinha Guiana como seu . Foi uma forma de incutir um espírito nacionalista que melhoraria a sua imagem como líder. Ele não entendeu. Os venezuelanos dificilmente saíam para votar numa questão que também não os mantinha acordados à noite. Fizeram, no entanto, a escolha da candidata da oposição, María Corina Machado , em outubro do ano passado. Machado prevaleceu sobre o resto dos antichavistas em primárias que superaram todas as expectativas, inclusive as dos líderes chavistas. Houve filas nos centros de votação e Machado venceu com mais de 90% dos votos. Era evidente que representava o nascimento de uma alternativa real ao chavismo.

Mas o Governo não vai permitir em circunstância alguma que ela desafie Maduro pelo poder, a quem lidera na maioria das sondagens. Machado foi desqualificada por 15 anos por seu suposto apoio às sanções internacionais impostas pelos Estados Unidos à Venezuela e por seu apoio a Juan Guaidó como presidente interino depois que Maduro iniciou um segundo mandato após eleições consideradas fraudulentas por Washington e pela União Europeia. Machado, em janeiro, disse que não tinha conhecimento de nenhuma inabilitação pendente contra ela, mas o Supremo respondeu que ela está inabilitada para exercer qualquer cargo público.

A opositora está convencida de que, sem a sua participação, as eleições são inválidas. “Recebi um mandato. O mandato para liderar este país a eleições limpas e livres. “Estou empenhada em ir até o fim com isso”, disse ela após conhecer a data eleitoral, que foi anunciada no mesmo dia da morte de Chávez e coincide com o dia de seu nascimento, caso haja alguma dúvida sobre quem escolheu eles. “Assim como saíram da negociação”, continuou, “agora querem sair da rota eleitoral porque têm medo. O meu compromisso é conseguir eleições limpas e com a força do povo tornaremos isso possível.”

Crise institucional e económica

Pelo menos publicamente, Machado ainda confia no caminho democrático que a comunidade internacional tem trabalhado nos últimos anos. Washington, Bruxelas, França e Colômbia tentaram convencer o chavismo de que a melhor forma de resolver a grave crise institucional e económica em que o país está imerso é chegar a um grande acordo nacional que inclua o chavismo e a oposição. O primeiro passo desse plano foi a realização de eleições competitivas, onde os partidos não oficiais tivessem chances reais de vitória. Maduro pareceu aceitar esses cenários como bons ao assinar os acordos de Barbados, em outubro de 2023, onde se comprometeu a não dar desculpas e a realizar eleições no segundo semestre do ano, além de permitir que adversários expressamente proibidos de participar, como o próprio Machado ou Henrique Capriles, que em sua época esteve perto de derrotar Chávez.

Parecia que o diálogo havia entrado numa fase feliz de compreensão. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, quis tomar novas medidas e suspendeu provisoriamente as sanções ao petróleo e ao ouro, uma forma de permitir ao governo venezuelano participar nos mercados oficiais até então proibidos. Caracas libertou então cinco presos políticos. Em 24 horas, a política venezuelana movimentou-se mais do que em todo o ano e meio anterior. Dois meses depois, Washington libertou Alex Saab , que havia detido e preso por supostamente ser o testa-de-ferro de Maduro. No entanto, todos estes movimentos revelaram-se inúteis no final.

O Governo não permitiu e não permitirá que Machado confronte Maduro em nenhuma circunstância. Neste sentido, os líderes chavistas têm sido inflexíveis. Como se não bastasse, iniciaram uma campanha de detenções de opositores, activistas e até de cidadãos comuns. A acusação? Uma suposta tentativa de assassinar Maduro que leva a um golpe de Estado. A Casa Branca já anunciou que as sanções voltarão depois de não ter visto que Caracas deu passos em direção à democracia, que consistiu basicamente na realização de eleições justas e competitivas.

Juan Diego Quesada, Jornalista, de Bogotá - Colômbia, originalmente para o EL PAÍS, em 07.03.24

O artigo 142 da Constituição: seu efetivo conteúdo

O tema a ser ora tratado já foi objeto de apreciação de nossa parte, em nosso Tratado de Direito Administrativo Brasileiro.


Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Por Sérgio Ferraz

Dá-se, porém que, sobretudo a partir dos últimos meses da gestão do cidadão que antes ocupava a Presidência da República (posteriormente declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral, por oito anos, contados do primeiro turno das eleições gerais de 2022), o artigo 142 da Constituição tem vindo à ribalta, como tema praticamente diário de debates em todos os veículos midiáticos e de comunicação em geral

Em sua grande maioria, alguns néscios, outros amantes da prepotência, mas poucos juristas e uma multidão de pessoas que não têm qualquer relacionamento com o estudo do Direito, do alto de suas cátedras e “catedras”, resolveram divulgar seu entendimento do preceito constitucional em questão.

A pletora de extravagâncias e impropriedades, assim veiculadas, poderia até compor um anedotário, não fosse o gravíssimo fato de que tais equívocos rotundos venham todos confluir para uma só conclusão: o autocrata antes no exercício da Presidência pode sim (e até deveria!) ditar as pautas do sistema eleitoral brasileiro, de sorte a assegurar sua reeleição.

Para tanto valeria tudo: delegar às Forças Armadas os condicionamentos técnicos do emprego das urnas eletrônicas; fiscalizar o Executivo (provavelmente com prepostos fardados) toda a atuação da Justiça Eleitoral, desde as campanhas e as votações até a proclamação dos resultados; abrir áreas militares para a ocupação e acampamento de desorientados (alimentados e financiados por todos, cegos, malfeitores e vários outros tipos desse jaez, alguns combinando duas, três ou mais de tais características), personagens sinistros, que pregavam a implantação de uma “ditadura com Bolsonaro” e a interferência dos militares nas eleições.

Enfim, um caldo de “cultura” que exigia um golpe de Estado e o fim da democracia, carinhosamente hospedado e sustentado por agentes que DESCUMPRIAM DEVERES CONSTITUCIONAIS, particularmente o de “defesa da Pátria” e o da “garantia dos poderes constitucionais” (CF, artigo 142).

Deixemos de lado as teorias, explicações e propostas dos néscios, dos mal-intencionados e dos valentões. Por analogia: de minimis non curat praetor.

Mas se deu que também alguns juristas deram rédeas soltas à sua imaginação, chegando mesmo a divisar, no citado artigo 142 constitucional (estamos sempre a referir o caput), a existência, reencarnada nas Forças Armadas, de um superpoder, algo como o Poder Moderador que a Constituição do reinado colocava nas mãos de Pedro 1º e Pedro 2º.

No primeiro volume do nosso referido “Tratado” analisamos o citado Poder Moderador, suas origens, seu exercício e sua superveniente falência no Brasil (que inclusive desmantelou o parlamentarismo que a Constituição de 1822 pretendia instituir). E olhe que se tratava de um Poder constitucionalmente previsto. Mas pensar assim, nos anos 2000, sob a vigência da Constituição de 1988, é uma esdruxularia espantosa!

Os Poderes da República brasileira são apenas três, todos independentes e harmônicos entre si. Leia-se o artigo 2º da Lei Magna:

“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

Agora, releia-se a primeira parte do caput do artigo 1º:

“Art. 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, CONSTITUI-SE EM ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ……….. (nossos os grifos) — Constituição de 1967/69, artigos 90 e 91

“Art. 90 – As forças armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.

“Art. 91 – As forças armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem.

A instituição, manutenção, proteção e guarda da Democracia são marcos indissolúveis da própria sobrevivência da Constituição de 1988, assim como do País e do Estado que ela erigiu e edificou.

O caput do artigo 142 constitucional não sofreu alterações em sua redação, desde a promulgação em 1988 até nossos dias. Mas não só: o preceito em tela limita-se, em verdade, a repetir, com pequenas modificações meramente formais, análogas regras, de textos constitucionais anteriores. Aqui vão alguns deles, para os devidos confrontos. Assim:

— Constituição de 1946, artigos 176 e 177

“Art. 176 – As forças armadas, constituídas essencialmente pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.”

“Art. 177 – Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem.”

— Constituição vigente (1988), artigo 142

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Se ainda houvesse o instrumento de escrita tão tradicional outrora, poder-se-ia dizer que o digitador do texto de 1988 usou “papel carbono”, para editar o preceito em vigor.

O inolvidável Pontes de Miranda, em seus festejados comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969 [1], em momento algum hesita: a função das Forças Armadas é a “garantia dos Poderes constitucionais”, jamais sua extinção ou cerceamento. Cumpre-lhes, adita, SUSTENTAR AS INSTITUIÇÕES CONSTITUCIONAIS (nossos os grifos).

Outro imortal de nosso jurismo e dos estudos constitucionais, Carlos Maximiliano, após enfatizar que, para a manutenção do regime, “Não se compreende um exército deliberante” [2], adiciona que “os direitos políticos dos militares não divergem dos assegurados aos paisanos, sob nenhum aspecto”, concluindo que “… as leis e regulamentos a que devem render obediência lhes não facultam a franquia, assegurada ao civil, de fazer a crítica de atos dos Poderes constituídos”.

Por último, com direta incidência no artigo 142 da Constituição de 1988, destaco outro excelente “Comentários à Constituição do Brasil” [3], na seguinte anotação expressiva:

“A Constituição Federal de 1988 proscreve que, sob o pretexto de proteger o Estado, sejam perpetradas ofensas aos direitos fundamentais e à estrutura político-governamental do estado de direito, do sufrágio universal, do pluripartidarismo, da separação de poderes e do federalismo.” (meus os grifos)

Mas o que se viu no curso do mandato presidencial, terminado em 2022?

Não há necessidade de acurada memória, para responder. Viu-se o então (e hoje inelegível) Presidente atacar virulentamente o Poder Judiciário (particularmente o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral), ameaçando não cumprir suas decisões, pregando a adoção de um processo eleitoral que ao mandatário autocrata garantisse a reeleição, ofendendo as instituições judiciais e seus magistrados, sobretudo alguns que eram de sua especial desestima, especialmente por não se curvarem às diatribes pregadas até em frente a quartéis.

E não faltaram autores para afirmar: se o Executivo se atrita com o Judiciário, poderá aquele invocar o artigo 142 da Constituição, para intervir (no caso, no STF e no TSE), afastando definitivamente o magistrado “perturbador”, domesticando o Poder “insubmisso”. Ou seja, quem estava realmente subvertendo a ordem determinaria o silêncio de quem a defendia! Outra vez: entregava-se a chave do curral, do rebanho ao lobo faminto de autoridade.

A culminância de toda essa inacreditável desordem foi a baderna criminosa de 8 de janeiro de 2023, quando turbas ensandecidas, insufladas pela derrota eleitoral de seu destrambelhado ídolo, financiadas por oportunistas apoiadores, invadiram e vandalizaram as sedes do Judiciário, do Executivo e do Legislativo.

Também culminância de toda essa loucura foi a redação (certamente por um ágrafo em Direito) de um ato normativo decretando um alucinado (técnica e argumentativamente) “estado de defesa” no Tribunal Superior Eleitoral.

A verdade é que estivemos à beira da destruição da democracia no Brasil. E ela não se deu não só pela vigilância e manifestações de irresignação da mídia e da maioria do povo brasileiro; mas sobretudo pela coragem vertical e pela tonitruante série de proclamações e atos concretos dos Tribunais atingidos pela demagogia autoritária e destruidora — com destaque para o enérgico ministro Alexandre de Moraes, com o apoio de seus pares.

Não milito entre aqueles que aplaudem sem limites o chamado construtivismo judicial. Mas, para mim, a expressão em tela (e as demais que o mesmo fenômeno denomina) somente se aplica ao exercício jurisdicional que, refletindo a opinião exclusiva do decisor, fundamenta seu pronunciamento fora das linhas do princípio da juridicidade (conceito bem mais amplo que o da mera legalidade).

Fora daí, seja por provocação de alguém, seja em defesa das instituições, e em havendo silêncio ou omissão da legalidade estrita, o Judiciário (particularmente o STF) TEM DE DECIDIR, a ele não sendo aplicável simplesmente alegar o non liquet.

Reiterando: tentou-se usar espuriamente o artigo 142 no debate eleitoral brasileiro, e o pior só não ocorreu pela união das manifestações em sentido contrário em apoio às aspirações democráticas, aliadas ao superior exercício, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Superior Eleitoral, do arsenal jurídico que a Constituição nos propicia, em defesa do Estado Democrático de Direito.

Poderão então indagar: quando e como utilizar o artigo 142 e invocar a atuação, em sua conformidade, das Forças Armadas?

A resposta é fácil, conquanto, para ser útil, não deva ser sucinta. Vamos a ela.

Em primeiro lugar, curial sublinhar: as Forças Armadas portam armas. E, por isso, só devem ser, em princípio, convocadas por um Poder contra outro (se possível ocorrer tão retórico evento), se o desafiante também dispõe de armamento bélico.

Se assim não é, como pretender movimentar todo um aparato, quando o hipotético Poder refratário à Lei e à ordem é um Poder desarmado?

Não há dúvidas de que acontecem, vez por outras, crises entre Poderes.

Mas elas se resolvem pelo uso dos instrumentos e da arte da política! E se eles forem insuficientes para a dirimência do litígio?

A Constituição aponta a solução: na forma do artigo 5º, XXXV: não se exclui lesão ou ameaça a direito à apreciação do Poder Judiciário! Gostem ou não os ditadores, ou candidatos a tal infame posto e seus apoiadores: no Brasil a última palavra sobre o conteúdo da Constituição incumbe somente, e inapelavelmente, ao Judiciário.

Incursionemos entretanto pela imaginação delirante: e se, por exemplo, o STF, unânime ou majoritariamente, decidir sempre e sempre contra as pretensões pessoais (revestidas do disfarce de pretensões constitucionais/institucionais) do presidente da República? Novamente resposta simples, constitucional e institucional: pelos caminhos que o nosso ordenamento jurídico prevê, intentar o impedimento dos Ministros desviados de suas magnas atribuições!

Mas para nada disso justifica invocar o artigo 142 e colocar armas para dobrar argumentos e seus fundamentos. Acima de tudo, na LETRA da Constituição e no ESPÍRITO do Estado de Direito Democrático que ela instituiu, o papel fundamental das Forças Armadas, em relação aos Poderes da República, é o de “garantir” seu funcionamento, e não, limitá-lo ou eliminá-lo. E cumprirá tal garantia constitucional sem armas, que devem ser reservadas à “defesa da Pátria” e da “ordem” interna, quando, aí sim, a força será combatida com a força.

_________________________________

[1] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969, Forense, Rio de Janeiro, Tomo III, edição de 1987, particularmente nas páginas 392/393.

[2] MAXIMILIANO, Carlos. Comentários à Constituição Brasileira [de 1946], Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 5ª edição, 1954, volume III, página 222.

[3] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Comentários à Constituição do Brasil (obra coletiva), Saraiva/Almedina, São Paulo, 2013, página 1582.

Sérgio Ferraz, o autor deste artigo, é advogado, parecerista, procurador aposentado do estado do Rio de Janeiro, professor titular aposentado da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da PUC-Rio e doutor em Direito pela UFRJ. Publicado originalmente na revista eletrónica Consultor Jurídico, em 07.03.24.

quarta-feira, 6 de março de 2024

Governo Lula atinge pior avaliação após presidente comparar Israel com Holocausto, aponta pesquisa

Outro fator que explica a queda na aprovação do petista é a percepção da população sobre a economia do País: levantamento mostra que 38% dos entrevistados consideram que a situação econômica piorou nos últimos 12 meses

Lula viu seus índices de avaliação piorarem após fala sobre Israel Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) viu seus índices de aprovação piorarem, de acordo com pesquisa Genial/Quaest divulgada nesta quarta-feira, 6. Segundo o levantamento realizado entre os dias 25 e 27 de fevereiro, o trabalho do mandatário é aprovado por 51% dos entrevistados, o que representa redução de 3 pontos percentuais em relação à pesquisa anterior de outubro do ano passado. Já a desaprovação à atuação de Lula aumentou de 43% para 46% no mesmo período.

A queda na avaliação positiva de Lula ocorre após declaração em que o presidente comparou as operações militares de Israel na Faixa de Gaza ao extermínio de judeus promovido por Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. Segundo a pesquisa, 60% dos brasileiros consideram que a comparação foi exagerada. A percepção de que Lula exagerou é ainda maior entre os evangélicos (69%), porém é menor entre aqueles que votaram no petista nas eleições de 2022 (43%).

Outro fator que explica a queda na aprovação do petista é a percepção da população sobre a economia do País. A pesquisa Genial/Quaest mostra que 38% dos entrevistados consideram que a situação econômica piorou nos últimos 12 meses. A expectativa sobre o futuro da economia brasileira também piorou, com 46% dos brasileiros achando que a economia vai melhorar no próximo ano, uma queda de 9 pontos percentuais com o levantamento de outubro de 2023.

O cenário retratado pelo levantamento mostra o pior desempenho do governo desde abril de 2023. Naquele mês, o trabalho de Lula era aprovado por 51% e desaprovado por 42%. À época, o anúncio do Ministério da Fazenda sobre o fim da isenção de imposto sobre compras de até US$ 50 feitas em sites estrangeiros, como a Shein e a AliExpress, foi o pivô para a quebra na avaliação do governo, apontou pesquisa Genial/Quaest divulgada no período.

Avaliação geral do governo

Questionados sobre o desempenho geral do governo Lula, 35% dos entrevistados avaliaram como positivo e 34%, negativo. O resultado representa um empate técnico, uma vez que a margem de erro estimada da pesquisa é de 2,2 pontos percentuais. Além disso, 28% dos entrevistados avaliam a gestão petista como regular. Outros 3% não souberam responder a pergunta.

O aumento na avaliação negativa do governo Lula foi puxado pelos evangélicos. 48% desse grupo avalia como negativa a gestão petista, um aumento de 12 pontos percentuais em relação a pesquisa anterior. Esse é o pior resultado do governo Lula entre os evangélicos desde a primeira pesquisa Genial/Quaest de fevereiro de 2023.

Por outro lado, 47% dos ouvidos responderam que o governo Lula está melhor do que o governo de Jair Bolsonaro, ante 38% que preferem a gestão do ex-presidente. Para 11% dos entrevistados, os dois governos são iguais.

Zeca Ferreira, Jornalista, originalmente para O Estado de S.Paulo, online, em 06.03.24,  às 17h30

O golpista e o assassino

Como uma pequena cidade amazônica explica a força da extrema direita no Brasil

O ambientalista brasileiro Chico Mendes em fotografia sem data

No domingo, 25 de fevereiro, uma multidão de apoiadores convocados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro lotou a principal avenida de São Paulo . Investigado como mentor de um golpe de Estado , o extremista de direita precisava demonstrar que ainda detém uma parte significativa dos corações e mentes dos brasileiros. Como esperado, ele conseguiu. Porém, para compreender mais profundamente o que Bolsonaro representa, é preciso ir muito além das grandes cidades do sudeste do país. É preciso desviar o olhar alguns milhares de quilômetros ao norte de São Paulo e olhar para uma cidade de 27 mil habitantes na rodovia Transamazônica chamada Medicilândia. Ali se instalou Darci Alves Pereira, assassino do ambientalista Chico Mendes . E começou uma nova vida como apoiador de Jair Bolsonaro.

Agora como “Pastor Daniel”, identidade associada às igrejas evangélicas, o autor confesso do crime que chocou o mundo foi empossado como presidente local do Partido Liberal em janeiro. O que permite que o homem que em 1988 executou com um tiro de espingarda no peito o mais renomado defensor da Amazônia assuma a presidência do partido de Bolsonaro - foi demitido após revelações na imprensa - e seja pré-candidato a vereador é exatamente o que mantém vivo o bolsonarismo.

O que hoje chamamos de bolsonarismo já existia muito antes, mas sem nome e sem rosto que lhe desse coesão e organização. Esta foi a contribuição decisiva de Bolsonaro para o fortalecimento da extrema direita fascista. Na Amazônia Legal, região que abrange nove Estados e mais da metade do território brasileiro, essa mentalidade – aqui entendida como forma de existir, pensar e se movimentar – domina as eleições e o cotidiano.

Se para o mundo Chico Mendes foi um “herói”, para uma parte significativa da população da Amazônia, formada por pessoas que vieram de outros Estados para ganhar a vida com a exploração da selva, o líder ambiental nada mais foi do que um obstáculo que precisava ser eliminado. Seu assassino, portanto, teria prestado um “serviço” que consideram “legítimo”. Estas pessoas não se consideram criminosas, mas sim como “pioneiros”, “defensores do progresso”, “bons cidadãos”. E é assim que são reconhecidos nas cidades amazônicas, onde ladrões de terras, madeireiros e patrões da mineração ilegal ocupam os principais cargos políticos e possuem grande parte dos negócios.

Com a redemocratização do Brasil e a Constituição de 1988, que reconheceu os direitos dos povos indígenas, esses “pioneiros” começaram a ser vistos e tratados como feios, sujos e maus, e seu poder foi parcialmente limitado. Tal como o seu espelho, ao alcançar o poder com os seus votos, Bolsonaro redimiu-os e “libertou-os”, expandindo os limites para além da lei. O sabor desta redenção – e daquilo a que chamam “liberdade” – não será apagado cedo ou facilmente, talvez nunca.

Faltava ainda a redenção religiosa, uma vez que a Igreja Católica na Amazônia estava ligada à Teologia da Libertação e muitos dos atuais líderes da esquerda foram formados nas comunidades eclesiais de base. Com a ascensão e expansão das igrejas evangélicas, que hoje formam a base de apoio mais resiliente de Bolsonaro , elas alcançaram essa outra camada. Tanto é que, como diz o “Pastor Daniel”, o assassino de Chico Mendes costuma pregar sem nenhum pudor: “Em tudo que fazemos, devemos colocar Deus no meio”.

O fato de o assassino ter escolhido esta cidade da região transamazônica para sua redenção oferece um grau adicional de espanto. Medicilancia leva o nome de Emílio Garrastazu Médici, general e presidente do período em que ocorreram mais sequestros, torturas e assassinatos durante a ditadura brasileira, e que também transformou a destruição da Amazônia em um projeto de Estado. Essa é a filiação de Bolsonaro, do bolsonarismo e do “Pastor Daniel”. E sobreviverá até a Bolsonaro.

Eliane Brum, a autora deste artigo,é jornalista. Publicado originalmente em espanhol por EL PAÍS, em  06.03.24. Com tradução para português de Meritxell Almarza.

terça-feira, 5 de março de 2024

Bom senso da população

Apesar de todos os ataques dos últimos anos, Sergio Moro continua com forte apoio popular

O senador Sergio Moro — Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

A pesquisa Genial/Quaest sobre a Operação Lava-Jato, completada uma década de seu início, mostra que em bom senso a população brasileira supera em muito seus representantes parlamentares, e também um Judiciário que vem se comportando nos últimos anos como ativo participante do debate político.

A versão de que acabar com a Lava-Jato seria a solução para a crise institucional que ela desencadeou não foi comprada pela população, que vê nela ainda bons resultados no combate à corrupção, problema que não foi varrido para debaixo do tapete, apesar dos esforços dos membros do establishment, como queriam os políticos à época em que as investigações começaram a atingir todos os segmentos partidários, e não apenas o PT de Lula.

Ao mesmo tempo que 42% concordam que a força-tarefa que apurou o megaesquema de desvio de dinheiro na Petrobras foi extinta, em 2021, “por causa da ação dos políticos para barrar a operação”, percentual semelhante (44%) considera que o trabalho do ex-juiz Sergio Moro foi reprovável, depois das revelações da Vaza-Jato. Mas a atuação de Moro continua tendo o apoio de 40% da população. Isso significa que, apesar de todos os ataques dos últimos anos, ele continua com forte apoio popular.

O que leva a crer que a campanha para que seu mandato de senador da República pelo Paraná seja cassado continua sendo mais tentativa de vingança de seus inimigos políticos. O caso nada tem a ver com a Operação Lava-Jato, e é possível que, no Tribunal Regional Eleitoral (TRE), ele seja preservado dessa violência. O caso contra Moro, se terminar no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ficará marcado ainda mais como decisão da Justiça vingadora, que tem caracterizado as decisões envolvendo juízes e procuradores de Curitiba, como o deputado cassado Deltan Dalagnol. Reflexo da posição política de parte dos ministros do STF.

A reação dos brasileiros à Lava-Jato parece indicar que os entrevistados, apesar de 25% considerarem que seu fim deveu-se a “exageros e erros por parte dos investigadores e juízes envolvidos na operação”, não fariam terra arrasada das investigações e condenações feitas, dando margem a que os erros das investigações tivessem sido corrigidos e punidos, mas os culpados pelos desvios de corrupção não ficassem livres, leves e soltos por aí, como se nada tivesse acontecido.

Fica claramente identificada na pesquisa a posição majoritária da população a favor do combate à corrupção. Metade (50%) diz acreditar que a Lava-Jato “fez mais bem” ao Brasil, ante 28% que consideram que ela “fez mais mal”. Quase metade dos brasileiros (49%) afirma também que a operação “ajudou a combater a corrupção”, ao passo que 37% dizem que “não”, e 4% que “mais ou menos”.

A polarização política fica patente quando se nota que 43% da população acha que Lula “sempre foi inocente”, exatamente o mesmo percentual que diz que o atual presidente “é culpado e deveria estar preso”. Mesmo o ex-presidente Bolsonaro tendo contribuído para o desmanche do combate à corrupção, quando investigações chegaram próximas a seus filhos e apaniguados, a maioria de seus apoiadores é a favor da Lava-Jato, não fazendo a ligação necessária entre suas atitudes e o arrefecimento do combate à corrupção.

A polarização está refletida na distribuição econômica das pessoas que consideram Lula inocente ou culpado. Mais da metade dos entrevistados de baixa renda, com ganho familiar de até dois salários mínimos por mês, considera que Lula é inocente (52%), enquanto, entre os mais ricos (que ganham acima de cinco salários), 52% acham o contrário.

Um detalhe da pesquisa é importante para projetar atitudes futuras em relação a uma provável disputa para a eleição de 2026: no grupo dos que votaram em branco, nulo ou não foram votar no segundo turno de 2022, há uma parcela maior que considera o petista culpado (47%), ante 30% que acreditam na inocência do atual chefe do Executivo. Indicação de que a pecha de “ladrão” continua perseguindo o presidente da República — e pode ter consequências eleitorais.

Merval Pereira, o autor deste artigo é jornalista e escritor (Presidente da Academia Brasileira de Letras). Publicado originamente n'O Globo, edição impressa, em05.03.24

05/03/2024 04h30  Atualizado há 3 horas