sexta-feira, 8 de março de 2024

A imoralidade de Lula

Ao agredir a oposição venezuelana e defender o companheiro Maduro, Lula reafirma o padrão de sua diplomacia imoral, em que ditadores são festejados e dissidentes políticos, ridicularizados

O presidente Lula da Silva está mesmo empenhado em se credenciar como o guia genial do tal “Sul Global” contra os “imperialistas” americanos. Para antagonizar os Estados Unidos, fustigar o Ocidente e proclamar sua vocação de salvador dos pobres e oprimidos na geopolítica internacional, Lula manda às favas o histórico da diplomacia brasileira de prudência, neutralidade e respeito à democracia, e arrasta consigo o Brasil e sua política externa. Combina a habitual fala sem filtros em temas espinhosos dos quais nada entende com a defesa obscena de ditaduras e ditadores. A Lula pouco importa o que autocratas fazem contra a democracia e os direitos humanos – basta que se insurjam contra os Estados Unidos.

A recente declaração de Lula sobre a Venezuela é só mais um exemplo desse pensamento deletério. Lula se disse “feliz” com a definição da data para a eleição presidencial venezuelana – a eleição que Nicolás Maduro controla com mão de ferro, pelo domínio que tem sobre a Justiça e sobre as regras do sistema eleitoral do país, o que tem lhe garantido sufocar a oposição, atentar contra a imprensa independente e perpetuar a ditadura chavista.

Questionado se acreditava que a eleição seria justa, Lula alegou ter recebido informações do próprio companheiro Maduro, ora vejam, de que observadores internacionais serão convidados a monitorar o pleito. E, num misto de grosseria e misoginia, sugeriu à oposição da Venezuela “não ficar chorando”, referência clara ao fato de que a mais forte candidata oposicionista, María Corina Machado, foi impedida pela Suprema Corte chavista de disputar as eleições. Para Lula, bastaria à oposição escolher outro candidato – como se María Corina não tivesse sido vítima de flagrante perseguição e como se qualquer outro candidato pudesse concorrer livremente num ambiente totalmente controlado por Maduro.

Não foi uma gafe ou um escorregão retórico movido pelo improviso. Trata-se de um padrão e, como tal, um atestado de suas convicções. É longa a sua coleção de declarações em favor de ditaduras, a começar pela própria Venezuela, um país “democrático” até demais, segundo Lula, por realizar “mais eleições que o Brasil”. Relativizando as barbaridades promovidas por Maduro, o presidente brasileiro afirmou que o “conceito de democracia é relativo”. Para Lula, democracia não é a soberania popular, a garantia das liberdades de expressão e de imprensa, a intransigência com qualquer forma de arbítrio de tiranos. Em seu relativismo, os ditadores companheiros são “democratas” porque se julgam intérpretes das aspirações do “povo”.

Lula é cruel com aqueles que ousam enfrentar os ditadores companheiros. Em 2010, por exemplo, ele defendeu a “Justiça” cubana e criticou presos políticos que ali faziam greve de fome contra o regime dos irmãos Castro. Na sua diplomacia da imoralidade, equiparou os valentes dissidentes cubanos aos presos comuns no Brasil.

Há muitos outros casos em que a indecência lulopetista se manifestou dessa maneira. Recorde-se que Lula defendeu o ditador Daniel Ortega inúmeras vezes, a despeito das escancaradas violações de direitos humanos cometidas pelo nicaraguense – e, numa reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU em março do ano passado, o Brasil se recusou a acompanhar os mais de 50 países que denunciaram a prática de crimes contra a humanidade pela tirania de Ortega.

Lula saltou do abismo moral para se alinhar ao que há de mais retrógrado e autoritário. Ao fazê-lo, descredencia-se como líder global digno de respeito internacional e debilita a política externa brasileira, obliterando suas oportunidades de integração econômica e de cooperação para a paz, a democracia e as liberdades fundamentais. Sua política externa está ancorada num princípio absoluto e maniqueísta: a hostilidade ao Ocidente e o alinhamento automático a tudo o que é antagônico aos valores ocidentais. Quando esse sectarismo ideológico substitui a visão de Estado, o voluntarismo ignora a decência e a diplomacia é feita com cacoetes de esquerdismo infantil, não há jeito. Não há mais o que esperar de Lula senão essa imoralidade sem limites.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo,em 08.03.24

Desaprovação a Lula e a economia

Os bons resultados na economia não tem apresentado grande impacto sobre a popularidade do presidente

A desaprovação à atuação de Lula aumentou de 43% para 46%. Brasília, 06/03/2024  Foto: Wilton Junior/Estadão

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vem perdendo apoio em segmentos importantes do eleitorado e isso pode ter impacto na condução da política econômica. Não se trata de desgaste natural, como acontece com qualquer chefe de governo, mas de aumento de rejeição permanente em faixas relevantes.

A mais notória é a dos evangélicos, que corresponde a aproximadamente 30% do eleitorado. Nada menos que 62% dessa faixa desaprova a atuação do atual governo, como acaba de mostrar a pesquisa recente da Genial/Quaest.

O movimento evangélico está ajudando a produzir uma importante guinada na mentalidade popular urbana. Orientada por pastores, bispos e apóstolos de quase todas as grandes igrejas, essa parcela da população já não aceita a subordinação a empregos à maneira antiga e à filiação aos sindicatos. Quer ser empreendedora e vê nessa postura novas oportunidades de ascensão, especialmente no setor de serviços, naturalmente com as bênçãos do Senhor. Essa nova ética protestante até agora não foi entendida pelas esquerdas brasileiras.

Uma segunda faixa arraigadamente contrária ao presidente Lula e ao Partido dos Trabalhadores é a dos que circundam o setor do agronegócio: pequenos, médios e grandes agricultores, pecuaristas e toda a imensa área de serviços de apoio que opera no interior. Até recentemente, o PT não dava importância a essa área porque entendia, equivocadamente, que o agro gera pouco emprego. Agora se vê que essa gente pensa, trabalha e vota contra a linha convencional do PT, não só porque segue traumatizada pelo jogo invasor do MST e dos “exércitos do Stedile”, mas, também, porque rejeita a cartilha das esquerdas tradicionais.

Estas não conseguem digerir estas transformações em curso. Sentem que perdem capacidade de mobilização e pressionam o quanto podem o governo Lula para que abandone “pruridos neoliberais” voltados à responsabilidade fiscal e se atire a políticas de cunho populista, para que consigam evitar derrotas contundentes nas próximas eleições, as que lançarão as bases para a próxima campanha presidencial.

Até agora, o presidente Lula parecia convencido de que bastaria apresentar bons resultados na economia para virar marés adversas. Mas isso não está acontecendo. O PIB avançou 2,9% em 2023, a inflação e os juros vão mergulhando, o desemprego caiu aos níveis mais baixos desde 2014. Mas esses gols não vêm colando politicamente.

Falta saber se o governo Lula passará a atender alguns dos principais próceres petistas, como a presidente do partido, Gleisi Hoffmann; o deputado federal e vice-líder do governo no Congresso, Lindbergh Farias; e a primeira-dama Janja da Silva, e adotará políticas de gastança ou se ficará do lado dos moderados, especialmente do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e se continuará a conduzir um política econômica mais conservadora, com base na preservação dos seus fundamentos.

Celso Ming, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicadooriginalmente n'O Estado de S. Paulo,em  08.03.24

Lula está com um foco, e o povo, com outro

Presidente resolveu falar a seu público mais convertido, enquanto pesquisas apontam corrupção e segurança como maiores preocupações dos brasileiros

Lula durante reunião do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia — Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

Uma das piores coisas que podem acontecer a um governo é um presidente experimentado, que passou a vida sendo louvado pelo tino político e pela forma intuitiva como governa, se ver defendendo pautas e prioridades completamente desconectadas daquelas que a população considera mais importantes.

É o que parece estar acontecendo com Lula, sobretudo neste início de ano. Outro fator que agrava a situação e atrapalha a possibilidade de o governo corrigir a rota é haver poucos expoentes do entorno próximo do presidente com senioridade e coragem para dizer a ele que está errando e deveria rever o rumo.

No primeiro mandato, o círculo próximo ao petista era composto de pessoas que tinham intimidade com ele e autoridade política para confrontar algumas de suas decisões. Independentemente do que aconteceu com eles em investigações posteriores, Luiz Gushiken, José Dirceu e Antonio Palocci, entre outros, tinham cacife para confrontar as certezas sempre veementes que fizeram Lula chegar aonde chegou na política, mas nem sempre são o melhor caminho no exercício da Presidência.

O mesmo não se pode dizer do atual grupo de ministros. O único que teria peso suficiente para dizer a Lula que as coisas não vão bem seria Fernando Haddad, mas nem sempre os planos do ministro da Fazenda parecem convergir com os do presidente.

Tanto é verdade que bastou a arrecadação de janeiro e fevereiro crescer — fruto de fatores que podem ser sazonais, em razão de medidas adotadas pela Fazenda no ano passado, como a taxação de offshores e fundos exclusivos — para o presidente esfregar as mãos e sair defendendo mais gastos, como se o problema da percepção não tão positiva da população em relação a seu governo decorresse da falta de obras, entregas de casas ou outros projetos tradicionalmente defendidos por ele.

As pesquisas divulgadas nesta semana pelos institutos Quaest e Atlas, se forem analisadas detalhadamente e sem negacionismo pelo governo, mostram que a população não percebe o bom momento da economia e vê a corrupção e a segurança pública como os principais problemas do Brasil.

Além disso, as recentes incursões de Lula em temas de política externa se mostraram completamente dissociadas das prioridades internas e mesmo da percepção que a maioria da população tem a respeito dos temas que ele aborda de improviso segundo um viés ideológico próprio, não submetido a crivos técnicos do Itamaraty, que parece ter virado um apêndice da influência do assessor especial Celso Amorim.

O levantamento do Atlas aponta, com larga margem de diferença para os demais, corrupção e segurança pública como temas que mais preocupam os brasileiros. Eis uma pista que deveria ser seguida para entender o mau momento da avaliação de Lula. São dois assuntos a que o petista não tem se dedicado em discursos e agendas e sobre os quais sua administração não tem nada a apresentar.

Pelo contrário: os dois debates são travados do ponto de vista ideológico e, no que concerne à corrupção, o desmonte do arcabouço de transparência, como os acordos de leniência, e a reversão de decisões judiciais a granel pela Justiça estão associados, no debate público, a uma ação coordenada com a esquerda e o governo.

Simplesmente ignorar essa percepção e achar que é disseminado no conjunto da sociedade o entendimento de que todas as condenações da última década eram perseguição e uma tentativa de “criminalizar” a política é querer provar a quadratura do círculo e moldar a realidade às próprias crenças.

O mesmo que Lula faz, aliás, ao propagar aos quatro ventos a veia democrática de Nicolás Maduro e declarar uma crença, que soa infantil para alguém tão experimentado, na realização de eleições limpas no país vizinho. Neste ano, o presidente resolveu falar a seus convertidos mais à esquerda e, aparentemente, a mais ninguém.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, Jornalista, é Apresentadora do Roda Viva, na TV Cultura. Publicado originalmente n'O Globo, em 08.03.24

quinta-feira, 7 de março de 2024

O erro insistente de Lula de defender o governo claramente autoritário da Venezuela

O regime chavista desmontou toda a estrutura de regras justas, fundamentais para uma eleição democrática

Presidente Lula e Nicolás Maduro Presidente da Venezuela — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

O presidente Lula errou de novo em suas declarações sobre a eleição venezuelana, ao dizer que quem foi impedido de competir não deve ficar chorando. Ela se referia, claro, a Maria Corina, e ainda disse que só se saberá se a eleição foi justa depois do pleito. Para ser democrática uma eleição tem que ter regras justas, e o regime chavista está desmontando toda a estrutura de disputas justas. Portanto, uma eleição precisa ser livre, antes, durante e depois. E Lula que retornou sendo visto como quem protegeria a nossa democracia ameaçada deveria tomar mais cuidado com tudo isso.

No caso de Maria Corina Machado, o Conselho Eleitoral, controlado por Nicolás Maduro, alegaram problema administrativo que ela teria em outro momento da vida política, mas nada que justifique a inelegibilidade. E isto só aconteceu quando ela foi escolhida por vários partidos da oposição para ser a candidata de oposição a Nicolás Maduro e se tornar uma candidata viável.

O governo chavista está há 26 anos no poder. Foi eleito em 1998, e depois manobrou no poder para afastar qualquer competição eleitoral, começando exatamente pelo ataque em 2003 ao Conselho Nacional Eleitoral. Eu estive na Venezuela naquela época para reportar esse começo do sufocamento da democracia. Depois disso, com Hugo Chávez ou com Maduro, o regime da Venezuela implementou um projeto autoritário, bem semelhante aos projetos de autocratas em várias partes do mundo e que era o projeto de Jair Bolsonaro aqui. Não por acaso o primeiro alvo foi o TSE, como na Venezuela foi o CNE.

O que intriga nesse caso é porque o presidente Lula usa o seu prestígio para fortalecer uma estrutura claramente autoritária.

Lula já defendeu a tese de que a democracia é relativa. Não. A democracia é um valor absoluto. E o Brasil acaba de passar por um grande estresse na nossa democracia para saber o quanto ela é valiosa. E foi em nome dela que Lula voltou ao poder.

Míriam Leitão, a autora deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n' O Globo, em 07.03.24

María Corina Machado acompanha o chavismo e faz campanha para as eleições presidenciais na Venezuela

A principal líder da oposição não desiste apesar de o partido no poder ter vetado a possibilidade de ela enfrentar Nicolás Maduro em julho

María Corina Machado, líder da oposição venezuelana, em evento em Caracas, em 29 de janeiro. (Crédito: Miguel Gutierrez - EFE)

Na Venezuela, duas realidades vão colidir neste ano eleitoral. O chavismo, que controla o governo e o aparelho de justiça, enfrenta as eleições presidenciais de 28 de julho com a certeza de que voltará a vencer e continuará no poder, como tem acontecido desde 1999. O partido no poder abriu caminho para que o presidente Nicolás Maduro o faça. não encontra obstáculos e é reeleito para outro período, com o qual superará os anos que governou um mito como Hugo Chávez. A oposição entende que há alguma ficção na ideia de que se trata de eleições livres e justas, mas mesmo assim não quer facilitar e nos próximos meses irá lançar uma campanha com o apoio da comunidade internacional para exigir que O chavismo respeita um processo altamente questionado do qual você se sente vencedor antes mesmo de começar.

Maduro, que tem popularidade muito baixa, está em campanha há meses. O presidente liderou um referendo para exigir parte do território da vizinha Guiana como seu . Foi uma forma de incutir um espírito nacionalista que melhoraria a sua imagem como líder. Ele não entendeu. Os venezuelanos dificilmente saíam para votar numa questão que também não os mantinha acordados à noite. Fizeram, no entanto, a escolha da candidata da oposição, María Corina Machado , em outubro do ano passado. Machado prevaleceu sobre o resto dos antichavistas em primárias que superaram todas as expectativas, inclusive as dos líderes chavistas. Houve filas nos centros de votação e Machado venceu com mais de 90% dos votos. Era evidente que representava o nascimento de uma alternativa real ao chavismo.

Mas o Governo não vai permitir em circunstância alguma que ela desafie Maduro pelo poder, a quem lidera na maioria das sondagens. Machado foi desqualificada por 15 anos por seu suposto apoio às sanções internacionais impostas pelos Estados Unidos à Venezuela e por seu apoio a Juan Guaidó como presidente interino depois que Maduro iniciou um segundo mandato após eleições consideradas fraudulentas por Washington e pela União Europeia. Machado, em janeiro, disse que não tinha conhecimento de nenhuma inabilitação pendente contra ela, mas o Supremo respondeu que ela está inabilitada para exercer qualquer cargo público.

A opositora está convencida de que, sem a sua participação, as eleições são inválidas. “Recebi um mandato. O mandato para liderar este país a eleições limpas e livres. “Estou empenhada em ir até o fim com isso”, disse ela após conhecer a data eleitoral, que foi anunciada no mesmo dia da morte de Chávez e coincide com o dia de seu nascimento, caso haja alguma dúvida sobre quem escolheu eles. “Assim como saíram da negociação”, continuou, “agora querem sair da rota eleitoral porque têm medo. O meu compromisso é conseguir eleições limpas e com a força do povo tornaremos isso possível.”

Crise institucional e económica

Pelo menos publicamente, Machado ainda confia no caminho democrático que a comunidade internacional tem trabalhado nos últimos anos. Washington, Bruxelas, França e Colômbia tentaram convencer o chavismo de que a melhor forma de resolver a grave crise institucional e económica em que o país está imerso é chegar a um grande acordo nacional que inclua o chavismo e a oposição. O primeiro passo desse plano foi a realização de eleições competitivas, onde os partidos não oficiais tivessem chances reais de vitória. Maduro pareceu aceitar esses cenários como bons ao assinar os acordos de Barbados, em outubro de 2023, onde se comprometeu a não dar desculpas e a realizar eleições no segundo semestre do ano, além de permitir que adversários expressamente proibidos de participar, como o próprio Machado ou Henrique Capriles, que em sua época esteve perto de derrotar Chávez.

Parecia que o diálogo havia entrado numa fase feliz de compreensão. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, quis tomar novas medidas e suspendeu provisoriamente as sanções ao petróleo e ao ouro, uma forma de permitir ao governo venezuelano participar nos mercados oficiais até então proibidos. Caracas libertou então cinco presos políticos. Em 24 horas, a política venezuelana movimentou-se mais do que em todo o ano e meio anterior. Dois meses depois, Washington libertou Alex Saab , que havia detido e preso por supostamente ser o testa-de-ferro de Maduro. No entanto, todos estes movimentos revelaram-se inúteis no final.

O Governo não permitiu e não permitirá que Machado confronte Maduro em nenhuma circunstância. Neste sentido, os líderes chavistas têm sido inflexíveis. Como se não bastasse, iniciaram uma campanha de detenções de opositores, activistas e até de cidadãos comuns. A acusação? Uma suposta tentativa de assassinar Maduro que leva a um golpe de Estado. A Casa Branca já anunciou que as sanções voltarão depois de não ter visto que Caracas deu passos em direção à democracia, que consistiu basicamente na realização de eleições justas e competitivas.

Juan Diego Quesada, Jornalista, de Bogotá - Colômbia, originalmente para o EL PAÍS, em 07.03.24

O artigo 142 da Constituição: seu efetivo conteúdo

O tema a ser ora tratado já foi objeto de apreciação de nossa parte, em nosso Tratado de Direito Administrativo Brasileiro.


Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Por Sérgio Ferraz

Dá-se, porém que, sobretudo a partir dos últimos meses da gestão do cidadão que antes ocupava a Presidência da República (posteriormente declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral, por oito anos, contados do primeiro turno das eleições gerais de 2022), o artigo 142 da Constituição tem vindo à ribalta, como tema praticamente diário de debates em todos os veículos midiáticos e de comunicação em geral

Em sua grande maioria, alguns néscios, outros amantes da prepotência, mas poucos juristas e uma multidão de pessoas que não têm qualquer relacionamento com o estudo do Direito, do alto de suas cátedras e “catedras”, resolveram divulgar seu entendimento do preceito constitucional em questão.

A pletora de extravagâncias e impropriedades, assim veiculadas, poderia até compor um anedotário, não fosse o gravíssimo fato de que tais equívocos rotundos venham todos confluir para uma só conclusão: o autocrata antes no exercício da Presidência pode sim (e até deveria!) ditar as pautas do sistema eleitoral brasileiro, de sorte a assegurar sua reeleição.

Para tanto valeria tudo: delegar às Forças Armadas os condicionamentos técnicos do emprego das urnas eletrônicas; fiscalizar o Executivo (provavelmente com prepostos fardados) toda a atuação da Justiça Eleitoral, desde as campanhas e as votações até a proclamação dos resultados; abrir áreas militares para a ocupação e acampamento de desorientados (alimentados e financiados por todos, cegos, malfeitores e vários outros tipos desse jaez, alguns combinando duas, três ou mais de tais características), personagens sinistros, que pregavam a implantação de uma “ditadura com Bolsonaro” e a interferência dos militares nas eleições.

Enfim, um caldo de “cultura” que exigia um golpe de Estado e o fim da democracia, carinhosamente hospedado e sustentado por agentes que DESCUMPRIAM DEVERES CONSTITUCIONAIS, particularmente o de “defesa da Pátria” e o da “garantia dos poderes constitucionais” (CF, artigo 142).

Deixemos de lado as teorias, explicações e propostas dos néscios, dos mal-intencionados e dos valentões. Por analogia: de minimis non curat praetor.

Mas se deu que também alguns juristas deram rédeas soltas à sua imaginação, chegando mesmo a divisar, no citado artigo 142 constitucional (estamos sempre a referir o caput), a existência, reencarnada nas Forças Armadas, de um superpoder, algo como o Poder Moderador que a Constituição do reinado colocava nas mãos de Pedro 1º e Pedro 2º.

No primeiro volume do nosso referido “Tratado” analisamos o citado Poder Moderador, suas origens, seu exercício e sua superveniente falência no Brasil (que inclusive desmantelou o parlamentarismo que a Constituição de 1822 pretendia instituir). E olhe que se tratava de um Poder constitucionalmente previsto. Mas pensar assim, nos anos 2000, sob a vigência da Constituição de 1988, é uma esdruxularia espantosa!

Os Poderes da República brasileira são apenas três, todos independentes e harmônicos entre si. Leia-se o artigo 2º da Lei Magna:

“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

Agora, releia-se a primeira parte do caput do artigo 1º:

“Art. 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, CONSTITUI-SE EM ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ……….. (nossos os grifos) — Constituição de 1967/69, artigos 90 e 91

“Art. 90 – As forças armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.

“Art. 91 – As forças armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem.

A instituição, manutenção, proteção e guarda da Democracia são marcos indissolúveis da própria sobrevivência da Constituição de 1988, assim como do País e do Estado que ela erigiu e edificou.

O caput do artigo 142 constitucional não sofreu alterações em sua redação, desde a promulgação em 1988 até nossos dias. Mas não só: o preceito em tela limita-se, em verdade, a repetir, com pequenas modificações meramente formais, análogas regras, de textos constitucionais anteriores. Aqui vão alguns deles, para os devidos confrontos. Assim:

— Constituição de 1946, artigos 176 e 177

“Art. 176 – As forças armadas, constituídas essencialmente pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.”

“Art. 177 – Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem.”

— Constituição vigente (1988), artigo 142

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Se ainda houvesse o instrumento de escrita tão tradicional outrora, poder-se-ia dizer que o digitador do texto de 1988 usou “papel carbono”, para editar o preceito em vigor.

O inolvidável Pontes de Miranda, em seus festejados comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969 [1], em momento algum hesita: a função das Forças Armadas é a “garantia dos Poderes constitucionais”, jamais sua extinção ou cerceamento. Cumpre-lhes, adita, SUSTENTAR AS INSTITUIÇÕES CONSTITUCIONAIS (nossos os grifos).

Outro imortal de nosso jurismo e dos estudos constitucionais, Carlos Maximiliano, após enfatizar que, para a manutenção do regime, “Não se compreende um exército deliberante” [2], adiciona que “os direitos políticos dos militares não divergem dos assegurados aos paisanos, sob nenhum aspecto”, concluindo que “… as leis e regulamentos a que devem render obediência lhes não facultam a franquia, assegurada ao civil, de fazer a crítica de atos dos Poderes constituídos”.

Por último, com direta incidência no artigo 142 da Constituição de 1988, destaco outro excelente “Comentários à Constituição do Brasil” [3], na seguinte anotação expressiva:

“A Constituição Federal de 1988 proscreve que, sob o pretexto de proteger o Estado, sejam perpetradas ofensas aos direitos fundamentais e à estrutura político-governamental do estado de direito, do sufrágio universal, do pluripartidarismo, da separação de poderes e do federalismo.” (meus os grifos)

Mas o que se viu no curso do mandato presidencial, terminado em 2022?

Não há necessidade de acurada memória, para responder. Viu-se o então (e hoje inelegível) Presidente atacar virulentamente o Poder Judiciário (particularmente o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral), ameaçando não cumprir suas decisões, pregando a adoção de um processo eleitoral que ao mandatário autocrata garantisse a reeleição, ofendendo as instituições judiciais e seus magistrados, sobretudo alguns que eram de sua especial desestima, especialmente por não se curvarem às diatribes pregadas até em frente a quartéis.

E não faltaram autores para afirmar: se o Executivo se atrita com o Judiciário, poderá aquele invocar o artigo 142 da Constituição, para intervir (no caso, no STF e no TSE), afastando definitivamente o magistrado “perturbador”, domesticando o Poder “insubmisso”. Ou seja, quem estava realmente subvertendo a ordem determinaria o silêncio de quem a defendia! Outra vez: entregava-se a chave do curral, do rebanho ao lobo faminto de autoridade.

A culminância de toda essa inacreditável desordem foi a baderna criminosa de 8 de janeiro de 2023, quando turbas ensandecidas, insufladas pela derrota eleitoral de seu destrambelhado ídolo, financiadas por oportunistas apoiadores, invadiram e vandalizaram as sedes do Judiciário, do Executivo e do Legislativo.

Também culminância de toda essa loucura foi a redação (certamente por um ágrafo em Direito) de um ato normativo decretando um alucinado (técnica e argumentativamente) “estado de defesa” no Tribunal Superior Eleitoral.

A verdade é que estivemos à beira da destruição da democracia no Brasil. E ela não se deu não só pela vigilância e manifestações de irresignação da mídia e da maioria do povo brasileiro; mas sobretudo pela coragem vertical e pela tonitruante série de proclamações e atos concretos dos Tribunais atingidos pela demagogia autoritária e destruidora — com destaque para o enérgico ministro Alexandre de Moraes, com o apoio de seus pares.

Não milito entre aqueles que aplaudem sem limites o chamado construtivismo judicial. Mas, para mim, a expressão em tela (e as demais que o mesmo fenômeno denomina) somente se aplica ao exercício jurisdicional que, refletindo a opinião exclusiva do decisor, fundamenta seu pronunciamento fora das linhas do princípio da juridicidade (conceito bem mais amplo que o da mera legalidade).

Fora daí, seja por provocação de alguém, seja em defesa das instituições, e em havendo silêncio ou omissão da legalidade estrita, o Judiciário (particularmente o STF) TEM DE DECIDIR, a ele não sendo aplicável simplesmente alegar o non liquet.

Reiterando: tentou-se usar espuriamente o artigo 142 no debate eleitoral brasileiro, e o pior só não ocorreu pela união das manifestações em sentido contrário em apoio às aspirações democráticas, aliadas ao superior exercício, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Superior Eleitoral, do arsenal jurídico que a Constituição nos propicia, em defesa do Estado Democrático de Direito.

Poderão então indagar: quando e como utilizar o artigo 142 e invocar a atuação, em sua conformidade, das Forças Armadas?

A resposta é fácil, conquanto, para ser útil, não deva ser sucinta. Vamos a ela.

Em primeiro lugar, curial sublinhar: as Forças Armadas portam armas. E, por isso, só devem ser, em princípio, convocadas por um Poder contra outro (se possível ocorrer tão retórico evento), se o desafiante também dispõe de armamento bélico.

Se assim não é, como pretender movimentar todo um aparato, quando o hipotético Poder refratário à Lei e à ordem é um Poder desarmado?

Não há dúvidas de que acontecem, vez por outras, crises entre Poderes.

Mas elas se resolvem pelo uso dos instrumentos e da arte da política! E se eles forem insuficientes para a dirimência do litígio?

A Constituição aponta a solução: na forma do artigo 5º, XXXV: não se exclui lesão ou ameaça a direito à apreciação do Poder Judiciário! Gostem ou não os ditadores, ou candidatos a tal infame posto e seus apoiadores: no Brasil a última palavra sobre o conteúdo da Constituição incumbe somente, e inapelavelmente, ao Judiciário.

Incursionemos entretanto pela imaginação delirante: e se, por exemplo, o STF, unânime ou majoritariamente, decidir sempre e sempre contra as pretensões pessoais (revestidas do disfarce de pretensões constitucionais/institucionais) do presidente da República? Novamente resposta simples, constitucional e institucional: pelos caminhos que o nosso ordenamento jurídico prevê, intentar o impedimento dos Ministros desviados de suas magnas atribuições!

Mas para nada disso justifica invocar o artigo 142 e colocar armas para dobrar argumentos e seus fundamentos. Acima de tudo, na LETRA da Constituição e no ESPÍRITO do Estado de Direito Democrático que ela instituiu, o papel fundamental das Forças Armadas, em relação aos Poderes da República, é o de “garantir” seu funcionamento, e não, limitá-lo ou eliminá-lo. E cumprirá tal garantia constitucional sem armas, que devem ser reservadas à “defesa da Pátria” e da “ordem” interna, quando, aí sim, a força será combatida com a força.

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[1] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969, Forense, Rio de Janeiro, Tomo III, edição de 1987, particularmente nas páginas 392/393.

[2] MAXIMILIANO, Carlos. Comentários à Constituição Brasileira [de 1946], Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 5ª edição, 1954, volume III, página 222.

[3] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Comentários à Constituição do Brasil (obra coletiva), Saraiva/Almedina, São Paulo, 2013, página 1582.

Sérgio Ferraz, o autor deste artigo, é advogado, parecerista, procurador aposentado do estado do Rio de Janeiro, professor titular aposentado da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da PUC-Rio e doutor em Direito pela UFRJ. Publicado originalmente na revista eletrónica Consultor Jurídico, em 07.03.24.

quarta-feira, 6 de março de 2024

Governo Lula atinge pior avaliação após presidente comparar Israel com Holocausto, aponta pesquisa

Outro fator que explica a queda na aprovação do petista é a percepção da população sobre a economia do País: levantamento mostra que 38% dos entrevistados consideram que a situação econômica piorou nos últimos 12 meses

Lula viu seus índices de avaliação piorarem após fala sobre Israel Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) viu seus índices de aprovação piorarem, de acordo com pesquisa Genial/Quaest divulgada nesta quarta-feira, 6. Segundo o levantamento realizado entre os dias 25 e 27 de fevereiro, o trabalho do mandatário é aprovado por 51% dos entrevistados, o que representa redução de 3 pontos percentuais em relação à pesquisa anterior de outubro do ano passado. Já a desaprovação à atuação de Lula aumentou de 43% para 46% no mesmo período.

A queda na avaliação positiva de Lula ocorre após declaração em que o presidente comparou as operações militares de Israel na Faixa de Gaza ao extermínio de judeus promovido por Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. Segundo a pesquisa, 60% dos brasileiros consideram que a comparação foi exagerada. A percepção de que Lula exagerou é ainda maior entre os evangélicos (69%), porém é menor entre aqueles que votaram no petista nas eleições de 2022 (43%).

Outro fator que explica a queda na aprovação do petista é a percepção da população sobre a economia do País. A pesquisa Genial/Quaest mostra que 38% dos entrevistados consideram que a situação econômica piorou nos últimos 12 meses. A expectativa sobre o futuro da economia brasileira também piorou, com 46% dos brasileiros achando que a economia vai melhorar no próximo ano, uma queda de 9 pontos percentuais com o levantamento de outubro de 2023.

O cenário retratado pelo levantamento mostra o pior desempenho do governo desde abril de 2023. Naquele mês, o trabalho de Lula era aprovado por 51% e desaprovado por 42%. À época, o anúncio do Ministério da Fazenda sobre o fim da isenção de imposto sobre compras de até US$ 50 feitas em sites estrangeiros, como a Shein e a AliExpress, foi o pivô para a quebra na avaliação do governo, apontou pesquisa Genial/Quaest divulgada no período.

Avaliação geral do governo

Questionados sobre o desempenho geral do governo Lula, 35% dos entrevistados avaliaram como positivo e 34%, negativo. O resultado representa um empate técnico, uma vez que a margem de erro estimada da pesquisa é de 2,2 pontos percentuais. Além disso, 28% dos entrevistados avaliam a gestão petista como regular. Outros 3% não souberam responder a pergunta.

O aumento na avaliação negativa do governo Lula foi puxado pelos evangélicos. 48% desse grupo avalia como negativa a gestão petista, um aumento de 12 pontos percentuais em relação a pesquisa anterior. Esse é o pior resultado do governo Lula entre os evangélicos desde a primeira pesquisa Genial/Quaest de fevereiro de 2023.

Por outro lado, 47% dos ouvidos responderam que o governo Lula está melhor do que o governo de Jair Bolsonaro, ante 38% que preferem a gestão do ex-presidente. Para 11% dos entrevistados, os dois governos são iguais.

Zeca Ferreira, Jornalista, originalmente para O Estado de S.Paulo, online, em 06.03.24,  às 17h30

O golpista e o assassino

Como uma pequena cidade amazônica explica a força da extrema direita no Brasil

O ambientalista brasileiro Chico Mendes em fotografia sem data

No domingo, 25 de fevereiro, uma multidão de apoiadores convocados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro lotou a principal avenida de São Paulo . Investigado como mentor de um golpe de Estado , o extremista de direita precisava demonstrar que ainda detém uma parte significativa dos corações e mentes dos brasileiros. Como esperado, ele conseguiu. Porém, para compreender mais profundamente o que Bolsonaro representa, é preciso ir muito além das grandes cidades do sudeste do país. É preciso desviar o olhar alguns milhares de quilômetros ao norte de São Paulo e olhar para uma cidade de 27 mil habitantes na rodovia Transamazônica chamada Medicilândia. Ali se instalou Darci Alves Pereira, assassino do ambientalista Chico Mendes . E começou uma nova vida como apoiador de Jair Bolsonaro.

Agora como “Pastor Daniel”, identidade associada às igrejas evangélicas, o autor confesso do crime que chocou o mundo foi empossado como presidente local do Partido Liberal em janeiro. O que permite que o homem que em 1988 executou com um tiro de espingarda no peito o mais renomado defensor da Amazônia assuma a presidência do partido de Bolsonaro - foi demitido após revelações na imprensa - e seja pré-candidato a vereador é exatamente o que mantém vivo o bolsonarismo.

O que hoje chamamos de bolsonarismo já existia muito antes, mas sem nome e sem rosto que lhe desse coesão e organização. Esta foi a contribuição decisiva de Bolsonaro para o fortalecimento da extrema direita fascista. Na Amazônia Legal, região que abrange nove Estados e mais da metade do território brasileiro, essa mentalidade – aqui entendida como forma de existir, pensar e se movimentar – domina as eleições e o cotidiano.

Se para o mundo Chico Mendes foi um “herói”, para uma parte significativa da população da Amazônia, formada por pessoas que vieram de outros Estados para ganhar a vida com a exploração da selva, o líder ambiental nada mais foi do que um obstáculo que precisava ser eliminado. Seu assassino, portanto, teria prestado um “serviço” que consideram “legítimo”. Estas pessoas não se consideram criminosas, mas sim como “pioneiros”, “defensores do progresso”, “bons cidadãos”. E é assim que são reconhecidos nas cidades amazônicas, onde ladrões de terras, madeireiros e patrões da mineração ilegal ocupam os principais cargos políticos e possuem grande parte dos negócios.

Com a redemocratização do Brasil e a Constituição de 1988, que reconheceu os direitos dos povos indígenas, esses “pioneiros” começaram a ser vistos e tratados como feios, sujos e maus, e seu poder foi parcialmente limitado. Tal como o seu espelho, ao alcançar o poder com os seus votos, Bolsonaro redimiu-os e “libertou-os”, expandindo os limites para além da lei. O sabor desta redenção – e daquilo a que chamam “liberdade” – não será apagado cedo ou facilmente, talvez nunca.

Faltava ainda a redenção religiosa, uma vez que a Igreja Católica na Amazônia estava ligada à Teologia da Libertação e muitos dos atuais líderes da esquerda foram formados nas comunidades eclesiais de base. Com a ascensão e expansão das igrejas evangélicas, que hoje formam a base de apoio mais resiliente de Bolsonaro , elas alcançaram essa outra camada. Tanto é que, como diz o “Pastor Daniel”, o assassino de Chico Mendes costuma pregar sem nenhum pudor: “Em tudo que fazemos, devemos colocar Deus no meio”.

O fato de o assassino ter escolhido esta cidade da região transamazônica para sua redenção oferece um grau adicional de espanto. Medicilancia leva o nome de Emílio Garrastazu Médici, general e presidente do período em que ocorreram mais sequestros, torturas e assassinatos durante a ditadura brasileira, e que também transformou a destruição da Amazônia em um projeto de Estado. Essa é a filiação de Bolsonaro, do bolsonarismo e do “Pastor Daniel”. E sobreviverá até a Bolsonaro.

Eliane Brum, a autora deste artigo,é jornalista. Publicado originalmente em espanhol por EL PAÍS, em  06.03.24. Com tradução para português de Meritxell Almarza.

terça-feira, 5 de março de 2024

Bom senso da população

Apesar de todos os ataques dos últimos anos, Sergio Moro continua com forte apoio popular

O senador Sergio Moro — Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

A pesquisa Genial/Quaest sobre a Operação Lava-Jato, completada uma década de seu início, mostra que em bom senso a população brasileira supera em muito seus representantes parlamentares, e também um Judiciário que vem se comportando nos últimos anos como ativo participante do debate político.

A versão de que acabar com a Lava-Jato seria a solução para a crise institucional que ela desencadeou não foi comprada pela população, que vê nela ainda bons resultados no combate à corrupção, problema que não foi varrido para debaixo do tapete, apesar dos esforços dos membros do establishment, como queriam os políticos à época em que as investigações começaram a atingir todos os segmentos partidários, e não apenas o PT de Lula.

Ao mesmo tempo que 42% concordam que a força-tarefa que apurou o megaesquema de desvio de dinheiro na Petrobras foi extinta, em 2021, “por causa da ação dos políticos para barrar a operação”, percentual semelhante (44%) considera que o trabalho do ex-juiz Sergio Moro foi reprovável, depois das revelações da Vaza-Jato. Mas a atuação de Moro continua tendo o apoio de 40% da população. Isso significa que, apesar de todos os ataques dos últimos anos, ele continua com forte apoio popular.

O que leva a crer que a campanha para que seu mandato de senador da República pelo Paraná seja cassado continua sendo mais tentativa de vingança de seus inimigos políticos. O caso nada tem a ver com a Operação Lava-Jato, e é possível que, no Tribunal Regional Eleitoral (TRE), ele seja preservado dessa violência. O caso contra Moro, se terminar no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ficará marcado ainda mais como decisão da Justiça vingadora, que tem caracterizado as decisões envolvendo juízes e procuradores de Curitiba, como o deputado cassado Deltan Dalagnol. Reflexo da posição política de parte dos ministros do STF.

A reação dos brasileiros à Lava-Jato parece indicar que os entrevistados, apesar de 25% considerarem que seu fim deveu-se a “exageros e erros por parte dos investigadores e juízes envolvidos na operação”, não fariam terra arrasada das investigações e condenações feitas, dando margem a que os erros das investigações tivessem sido corrigidos e punidos, mas os culpados pelos desvios de corrupção não ficassem livres, leves e soltos por aí, como se nada tivesse acontecido.

Fica claramente identificada na pesquisa a posição majoritária da população a favor do combate à corrupção. Metade (50%) diz acreditar que a Lava-Jato “fez mais bem” ao Brasil, ante 28% que consideram que ela “fez mais mal”. Quase metade dos brasileiros (49%) afirma também que a operação “ajudou a combater a corrupção”, ao passo que 37% dizem que “não”, e 4% que “mais ou menos”.

A polarização política fica patente quando se nota que 43% da população acha que Lula “sempre foi inocente”, exatamente o mesmo percentual que diz que o atual presidente “é culpado e deveria estar preso”. Mesmo o ex-presidente Bolsonaro tendo contribuído para o desmanche do combate à corrupção, quando investigações chegaram próximas a seus filhos e apaniguados, a maioria de seus apoiadores é a favor da Lava-Jato, não fazendo a ligação necessária entre suas atitudes e o arrefecimento do combate à corrupção.

A polarização está refletida na distribuição econômica das pessoas que consideram Lula inocente ou culpado. Mais da metade dos entrevistados de baixa renda, com ganho familiar de até dois salários mínimos por mês, considera que Lula é inocente (52%), enquanto, entre os mais ricos (que ganham acima de cinco salários), 52% acham o contrário.

Um detalhe da pesquisa é importante para projetar atitudes futuras em relação a uma provável disputa para a eleição de 2026: no grupo dos que votaram em branco, nulo ou não foram votar no segundo turno de 2022, há uma parcela maior que considera o petista culpado (47%), ante 30% que acreditam na inocência do atual chefe do Executivo. Indicação de que a pecha de “ladrão” continua perseguindo o presidente da República — e pode ter consequências eleitorais.

Merval Pereira, o autor deste artigo é jornalista e escritor (Presidente da Academia Brasileira de Letras). Publicado originamente n'O Globo, edição impressa, em05.03.24

05/03/2024 04h30  Atualizado há 3 horas

Ex-comandante do Exército complica Bolsonaro e confirma discussão sobre minuta golpista

General Freire Gomes respondeu a cerca de 250 perguntas durante depoimento de 7 horas à PF

General Freire Gomes e ex-presidente Jair Bolsonaro durante evento do Dia do Soldado, em Brasília - Gabriela Biló - 25.ago.22/Folhapress

Ex-comandante do Exército, o general Marco Antônio Freire Gomes confirmou à Polícia Federal que foi convocado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para reunião em que se discutiram propostas golpistas, incluindo uma minuta com medida para reverter a eleição de Lula (PT), em dezembro de 2022.

Pessoas próximas ao general afirmam que Freire Gomes respondeu a cerca de 250 perguntas sobre os dias finais de sua chefia no Exército, em depoimento que durou mais de sete horas na última sexta-feira (1º).

Ele implicou Bolsonaro como responsável pela manutenção dos acampamentos golpistas e se eximiu da responsabilidade pela participação das Forças Armadas como fiscalizadoras das eleições, ação que colocou em dúvida a confiança das urnas eletrônicas.

Generais ouvidos pela Folha afirmam que, apesar do desgaste institucional de um ex-comandante do Exército depor à Polícia Federal, foi a primeira vez que Freire Gomes teve a oportunidade de contar sua versão dos fatos após uma série de especulações serem levantadas.

Eles ainda dizem que o depoimento era relevante para o general demonstrar que não foi omisso diante de apelos golpistas feitos por Bolsonaro, aliados do ex-presidente e militares.

Como a Folha mostrou, Freire Gomes já vinha atribuindo a Bolsonaro a responsabilidade pela manutenção de acampamentos golpistas em frente aos quarteis.

O relato do general ignorou, porém, que ele próprio disse a todos os generais da ativa em 10 de novembro de 2022 que os acampamentos não deveriam ser reprimidos —também não levou em consideração a nota dos comandantes das Forças Armadas, no dia seguinte, que continha tom considerado elogioso aos manifestantes em frente ao QG do Exército.

O general Freire Gomes é citado no relatório da Polícia Federal sobre o planejamento de um golpe de Estado como um dos militares que teriam sido contrários às investidas contra o resultado eleitoral.

A resistência do militar foi criticada pelo general Walter Braga Netto, que era candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro.

"A culpa pelo que está acontecendo e acontecerá e [sic] do Gen Freire Gomes. Omissão e indecisão não cabem a um combatente", escreveu Braga Netto em mensagem encontrada pela Polícia Federal. O ex-ministro ainda chamou o chefe militar de "cagão".

A Polícia Federal também identificou mensagens de áudio enviadas por Mauro Cid a Freire Gomes que indicavam que o general sabia das minutas de decreto golpistas —o que gerou suspeitas de que o ex-comandante poderia ter sido omisso diante dos planos antidemocráticos.

"O presidente tem recebido várias pressões para tomar uma medida mais, mais pesada, onde ele vai, obviamente, utilizando as Forças, né? Mas ele sabe, ele ainda continua com aquela ideia que ele saiu da última reunião, mas a pressão que ele recebe é de todo mundo. Ele está… É cara do agro. São alguns deputados, né? É né… Então é a pressão que ele tem recebido é muito grande. E hoje o que que ele fez hoje de manhã? Ele enxugou o decreto né? Aqueles 'considerandos' que o senhor viu e enxugou o decreto, fez um decreto muito mais é resumido, né?", disse Cid.

Para prestar o depoimento na sexta, Freire Gomes voltou de uma viagem à Espanha, onde visitava familiares. Ele conversou com militares mais próximos, que mantêm cargos relevantes na estrutura do Exército, e se mostrou disposto a colaborar com as investigações.

O ex-comandante da Aeronáutica Carlos Baptista Júnior está em situação semelhante. Ele prestou depoimento por quase dez horas à Polícia Federal em meados de fevereiro e também confirmou a participação em reuniões de tom golpista no Palácio da Alvorada.

Baptista Júnior e Freire Gomes afirmaram a interlocutores terem apresentado oposição às intenções antidemocráticas; o único que teria manifestado apoio às investidas, segundo a delação do tenente-coronel Mauro Cid, foi o ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos.

O almirante foi chamado a depor à PF no último dia 22. Ele, porém, optou pelo silêncio.

Investigadores querem concluir rapidamente as apurações que miram Bolsonaro. A meta é finalizar os três inquéritos que têm o ex-presidente na mira até junho.

O último que deve ser encerrado é justamente o das milícias digitais, que trata da investigação sobre uma trama para dar um golpe de Estado.

Os outros dois envolvem o recebimento de um pacote de joias da Arábia Saudita e a fraude no cartão de vacinação do ex-mandatário. Esses inquéritos devem ser concluídos antes, pelo cronograma estabelecido pela PF.

Além desses militares, a polícia colheu depoimento de outros generais, ex-ministros, ex-assessores, e aliados de Bolsonaro. Ao menos 24 pessoas prestaram depoimento no mês passado. A maioria optou pelo silêncio, como fez o ex-presidente, mas ao menos quatro pessoas falaram.

Segundo investigadores, houve entre os depoentes quem demonstrasse interesse em colaborar com a PF por meio de delação premiada. Quem acompanha o caso, porém, pondera que foram demonstradas apenas intenções iniciais e que essas colaborações podem não avançar.

Embora tenha ficado calado no depoimento, Bolsonaro aproveitou um ato que organizou na avenida Paulista, no dia 25 de fevereiro, para se defender das acusações de que tramou um golpe.

Mas, na avaliação de investigadores, ele acabou produzindo prova contra si mesmo. Isso porque, para a PF, ele admitiu ter conhecimento sobre a existência de uma minuta golpista.

"Agora o golpe é porque tem uma minuta do decreto de estado de defesa. Golpe usando a Constituição? Tenha paciência", afirmou Bolsonaro durante o protesto.

A PF pretende inserir a fala no contexto da investigação. A defesa de Bolsonaro, por sua vez, afirma que ele tomou conhecimento da minuta apenas em 2023, por meio de investigações da polícia.

Dos militares intimados a depor, o general Braga Netto, que foi candidato a vice-presidente em 2022, decidiu ficar calado. Sua defesa disse que solicitou o "acesso absoluto e integral a toda investigação para que possa prestar os devidos esclarecimentos".

Os generais Augusto Heleno, Mario Fernandes e Paulo Sérgio Nogueira, o ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos e outros militares alvos da investigação também ficaram em silêncio.

Já o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, disse que ele "respondeu todas as perguntas que lhe foram feitas". A mesma coisa fez o ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do DF, Anderson Torres, que "respondeu serenamente a todas as perguntas que lhe foram formuladas", segundo sua defesa.

Cézar Feitoza e Julia Chaib, de Brasília - DF, originalmente, para a Folha de S. Paulo. Publicado na edição impressa, em 05.03.24

Verba de emendas deve seguir critérios técnicos

É democrático que o Congresso decida sobre o Orçamento, mas prioridade para currais eleitorais prejudica a populaçã0

Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados - Pedro Ladeira/Folhapress

O governo federal estima que vá desembolsar R$ 2,18 trilhões neste ano, excluídos os gastos com juros. Mais de 90% desses recursos vão para despesas obrigatórias, como aposentadorias, salários e os pisos constitucionais da saúde e da educação. Resta algo em torno de R$ 200 bilhões para custear a máquina, prestar serviços e investir.

Por meio de emendas ao Orçamento, deputados e senadores podem definir o destino de cerca de 23% desse montante, mas reclamam da execução de tais dotações, da liberação e do gasto efetivo. Na verdade, pressionam o governo com agressividade.

Chegam a pedir a saída de ministros, como Nísia Trindade (Saúde), de quem cobram relatórios sobre o uso do dinheiro —o que seria correto, se o objetivo fosse meritório.

Demandar e obter as verbas aprovadas não resulta, necessariamente, em corrupção, embora haja casos investigados pela Polícia Federal. O fato de que parcela do Orçamento seja destinada a municípios tampouco é motivo, por si só, de condenação. O conjunto da obra é que está em questão.

O investimento federal não passou de R$ 60 bilhões em 2023. Parte relevante é pulverizada em despesas paroquiais, de compra de caixas d’água a capacetes para a polícia, que bem podem ser necessidades, mas não são consideradas do ponto de vista do uso mais eficiente dos recursos federais.

Não há plano geral de avaliação do mérito das emendas e de uso alternativo do dinheiro a elas destinado. Ademais, a pulverização dificulta a reunião de recursos para investimentos maiores, que resolvam problemas de infraestrutura, sejam eles sanitários, de transporte, de pesquisa científica ou de comunicações, por exemplo.

A distribuição política de verbas também prejudica a conclusão de obras, já que é preciso agradar a mais currais eleitorais, em vez de seguir a ordem de prioridade da execução de trabalhos.

O problema é histórico. Nos últimos cinco anos, contudo, se agravou, dado o fortalecimento do Parlamento, que empareda o Executivo por meio de pressão política e barganhas para aprovação de medidas. Atualmente, o Congresso controla ao menos 30% da verba de sete ministérios de Lula.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), um dos grandes artífices dessa ofensiva, alega com ligeireza que, pela Constituição, o Congresso tem o poder da emenda.

Por óbvio não se pretende cassar o direito do Legislativo de manejar parte do Orçamento e monitorar sua execução. Trata-se tão somente de fazer com que os recursos sejam distribuídos e fiscalizados de modo republicano e eficaz.

Editorial da Folha de S. Paulo, edição impressa, em 05.03.24. (editoriais@grupofolha.com.br)

sábado, 2 de março de 2024

Cúpula militar na mira da PF: o impacto da inédita investigação de envolvimento em plano de golpe

Quase 60 anos depois do golpe militar de 1964, oficiais generais das Forças Armadas brasileiras estão sendo investigados e podem vir a ser julgados e condenados por uma tentativa de golpe de Estado. 

Generais Nogueira e Braga Netto (esq.), ex-presidente Bolsonaro e o almirante Garnier são investigados pela PF (Crédito:Marcos Correa / Presidencia da República).

O levante investigado não é o de seis décadas atrás, cujos responsáveis nunca foram punidos, mas aquele que, segundo a Polícia Federal, era planejado dentro do Palácio do Planalto e tinha como objetivo impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e manter o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no poder.

Bolsonaro e sua defesa vêm alegando que ele não teve nenhum envolvimento em nenhum plano de golpe de Estado ou outras irregularidades investigadas pela Polícia Federal. "Não foi chegado à minha frente nenhum documento para eu assinar e decretar (estado de) Sítio ou (estado de) Defesa", disse o presidente no dia seguinte à operação.

Nesta quinta-feira (22/2), Bolsonaro compareceu à PF em Brasília para prestar depoimento sobre o caso, mas permaneceu em silêncio diante dos investigadores, informou o advogado Fabio Wajngarten. O ex-presidente ficou menos de meia hora no local.

Wajngarten, segundo o G1, argumentou que o silêncio de Bolsonaro foi uma "uma estratégia baseada no fato de que a defesa não teve acesso a todos os elementos" relacionados às apurações do caso.

Bolsonaro chegou a alegar anteriormente que ficaria em silêncio durante a oitiva e pediu dispensa do compromisso. Mas o pedido foi negado pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), relator do inquérito que investiga a ação de milícias digitais durante o governo bolsonarista.

Além do ex-presidente, outros aliados dele também compareceram à PF, como o general Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e ex-candidato a vice-presidente; o general Augusto Heleno, ex-ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional); o presidente do PL, Valdemar Costa Neto; o ex-ministro substituto da Secretaria-Geral da Presidência Mário Fernandes e o oficial do Exército Ronald Ferreira de Araújo Junior.

Também prestaram depoimento o ex-comandante da Marinha Almir Garnier; o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira e o ex-ministro da Justiça Anderson Torres.

Documentos divulgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) relativos a diferentes operações da PF como a Tempus Veriatis, deflagrada em 8 de fevereiro, agora apontam que pelo cinco oficiais generais (aqueles que ocupam as mais altas patentes das Forças Armadas) teriam participado de um plano que incluía, entre outras medidas, a suspensão do resultado das eleições presidenciais de 2022 e até a prisão de ministros do Supremo.

Os cinco oficiais generais na mira da PF são: o ex-ministro do gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno; o ex-ministro da Casa Civil, general Walter Braga Netto; o ex-ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira; o general Estevam Teophilo; e o ex-comandante da Marinha, almirante Almir Garnier.

Os cinco são investigados pela PF por crimes como tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado democrático de direito. As penas por esses crimes podem chegar a 12 anos de reclusão.

'É um absurdo que festejemos que a maioria dos generais preferiu não dar o golpe', diz historiador

Segundo relatórios da PF reproduzidos em decisões do ministro do STF, Alexandre de Moraes, os oficiais fizeram parte de diferentes núcleos da organização que teria planejado um golpe de Estado e participaram de reuniões em que foram discutidas medidas a serem adotadas em caso de derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.

Augusto Heleno, segundo a PF, seria integrante do núcleo de inteligência paralela do grupo, responsável pela coleta de informações que "pudessem auxiliar a tomada de decisões do então Presidente da República, Jair Bolsonaro, na consumação do golpe de estado".

Braga Netto, Almir Garnier, Estevam Teophilo e Paulo Sérgio Nogueira fariam parte do núcleo de "Oficiais de Alta Patente" responsáveis, de acordo com a PF, por "influenciar e incitar apoio aos demais núcleos de atuação" da organização.

Procurada pela BBC News Brasil, a defesa de Augusto Heleno disse que havia recebido acesso aos autos das investigações recentemente e não poderia se manifestar. A assessoria do general Braga Netto confirmou o recebimento das perguntas feitas pela reportagem, mas nenhuma resposta foi enviada.

Em setembro de 2023, durante audiência da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito para apurar os atos de 8 de janeiro, Heleno negou ter participado de qualquer reunião para discutir golpe de Estado.

Em entrevista a jornalistas na quinta-feira (8/02), Braga Netto classificou as suspeitas levantadas pela PF como "perseguição" e "sonho".

"Continua uma perseguição em cima do pessoal do Bolsonaro. É tudo uma invenção, um sonho", disse.

A reportagem não conseguiu localizar as assessorias de Almir Garnier, Estevam Teophilo e Paulo Sérgio Nogueira.

A investigação têm chamado a atenção de especialistas nas relações entre militares e o mundo político no país ouvidos pela BBC News Brasil.

Eles apontam que o fato de haver tantos oficiais generais investigados e passíveis de punição por atos contra a democracia no Brasil é algo inédito em um país que, segundo eles, seria acostumado a anistiar militares em outras situações similares.

Apesar disso, eles avaliam que os impactos dessa investigação para a relação dos militares com o governo deverão ser reduzidos porque tanto as Forças Armadas quanto o atual governo Lula não desejariam aumentar a tensão e tentam adotar uma estratégia que consiste em isolar os supostos responsáveis pela tentativa de golpe em vez de responsabilizar a instituição como um todo.

Eles ponderam ainda que a mera investigação não seria capaz de mudar o pensamento "intervencionista" que seria corrente entre parte das Forças Armadas. Essa mentalidade, dizem os especialistas, colocariam os militares na condição de "tutores" da sociedade brasileira, o que abriria brechas para recorrentes tentativas de intervenções e rupturas democráticas.

General e ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) Augusto Heleno também é investigado pela PF. Ele faria, de acordo com a polícia, parte de um núcleo de inteligência paralela (Presidência da República)

"País sem tradição de investigar generais"

A pesquisadora Adriana Marques, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) , é uma das principais referências brasileiras no estudo da atuação dos militares na sociedade brasileira. Segundo ela, a existência de tantos oficiais generais na mira da PF é um fato inédito.

"Isso é inédito na história do Brasil. Precisamos lembrar que o Brasil não tem tradição de investigar e punir militares que tentaram desestabilizar a democracia", afirmou a professora à BBC News Brasil.

Um dos exemplos mais recentes de como o Brasil lidou com atentados à democracia foi a Lei de Anistia, de 1979, que anistiou militares e civis que cometeram crimes ligados à ditadura militar entre 1964 e 1985.

O Brasil foi na contramão de países como a Argentina, que prenderam militares responsáveis pela ditadura que comandou o país entre os anos 1976 e 1983.

O historiador e professor titular da UFRJ Carlos Fico, outro estudioso da atuação dos militares no Brasil, faz uma avaliação semelhante à de Adriana Marques. Ele pontuou que a investigação tem fatores inéditos, mas pondera que ainda é cedo para dizer se ela tem o potencial de resultar em um fato histórico.

"Essa ação no STF é uma investigação com características inéditas, sobretudo porque envolve alguns oficiais generais. No Brasil, a regra geral era de que oficiais generais nunca eram investigados ou punidos por crimes contra a democracia. Mas como historiador, temos cautela para dizer se isso será ou não algo histórico. Não podemos dizer isso agora", disse o professor à BBC News Brasil.

Para o professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutor em Ciência Política Augusto Teixeira, a investigação da PF teria um caráter revelador sobre a atuação dos militares na sociedade brasileira.

"Infelizmente, o caso que operação da PF descortinou traz à tona um histórico problema da nossa República: a atuação política de militares. Se considerarmos que a própria proclamação da República foi, em sua essência, um golpe militar contra um governo civil constituído, veremos que a participação de militares na intentona golpista bolsonarista encontra ecos na história", disse o professor à BBC News Brasil.

Segundo Teixeira, havia a sensação de que a redemocratização de 1985 e a criação do Ministério da Defesa em 1999 haviam sido capazes de estabelecer o controle civil sobre as Forças Armadas e que os militares tinham se recolhido aos quarteis.

Ele pontuou, no entanto, que desde o início dos anos 2010, teria havido um processo que ele classificou como "politização dos quarteis" marcado pela atuação política de comandantes das Forças, especialmente do Exército. Esse fenômeno teria fragilizado o controle civil sobre militares e criado o terreno para a suposta participação de oficiais em um plano de golpe.

"Diante desse quadro, não espanta a existência de tantos militares de alta patente investigados, afinal, mais do que militares, eles foram governo", afirmou o professor.

Adriana Marques avaliou que incluir tantos oficiais generais nessa investigação só foi possível por conta da suposta solidez das instituições democráticas do país.

"O regime democrático brasileiro resistiu, na medida do possível, à investida autoritária. A democracia brasileira sofreu vários percalços nas últimas décadas, mas se manteve. O fato de termos instituições democráticas como um Poder Judiciário independente permitiu termos o respaldo necessário para que essa investigação prosseguisse", afirmou.

Investigação da PF aponta que militares teriam incentivado manifestações contrárias ao resultado das eleições de 2022. Em 8 de janeiro, milhares de manifestantes invadiram as sedes dos Três Poderes, em Brasília (Getty Images)

"Investigação, sozinha, não mudará mentalidade de militares"

A professora Adriana Marques pontuou que existe uma vasta literatura acadêmica que se debruça sobre a chamada "mentalidade de tutela" dos militares brasileiros sobre a sociedade. Ela avalia que somente a investigação conduzida pela PF não teria o poder de mudá-la.

"A investigação, sozinha, não mudará a mentalidade dos militares. Agora, se houver responsabilização dos militares, a gente pode vislumbrar, num futuro, uma mudança nessa mentalidade de tutela. Até agora, conspirar contra a democracia e participar de planos de golpe nunca gerou consequências políticas e jurídicas para os militares", disse a professora.

O historiador Carlos Fico disse que a chamada "mentalidade de tutela" está arraigada nas Forças Armadas brasileiras há vários séculos.

"É algo estrutural. Ao longo da nossa história, houve dezenas de episódios de intervencionismo militar no Brasil. Essa mentalidade confere aos militares a condição de tutores da sociedade brasileira capazes e responsáveis por arbitrar conflitos", disse Fico.

Mais recentemente, completou o professor, essa mentalidade estaria materializada no artigo nº 142 da Constituição Federal.

O texto diz que as Forças Armadas, sob a autoridade do Presidente da República, se destinam à "defesa da Pátria" e "à garantia dos poderes constitucionais". Esse artigo é frequentemente evocado por manifestantes favoráveis a uma intervenção militar como um texto que daria legitimidade à uma ruptura democrática no país.

Segundo ele, essa condição estrutural ganhou ainda mais ênfase na gestão Bolsonaro.

"Durante o governo Bolsonaro, houve uma revitalização dessa mentalidade por uma série de motivos. Essa é a razão de haver tantos oficiais generais envolvidos (nessa investigação). Isso é lamentável", pontuou o professor.

Fico concordou com Adriana Marques e disse que não acredita que a investigação possa, isoladamente, mudar a mentalidade de parte dos militares brasileiros.

"Seria preciso promover uma mudança no artigo nº 142 para redirecionar as atribuições da Forças Armadas. Mas esse é um movimento sensível e o governo Lula não tem força política para encampar isso agora", disse o professor.

O professor Augusto Teixeira concordou com Adriana Marques e Carlos Fico. Para ele, a investigação não mudará a mentalidade de parte dos militares.

"Não creio que investigações podem mudar esse ímpeto ou mentalidade de tutela. Existe um entendimento de que as Forças Armadas são uma burocracia especial, de Estado e de longa duração."

Teixeira também avalia que uma das medidas que poderia ter impacto seria a revisão do artigo nº 142 da Constituição Federal. Mas assim como Fico, ele pontuou que parece não haver interesse nisso neste momento.

"A importante revisão do artigo 142 da Constituição parece não ter nem o apoio do governo federal [...] Na prática, o que se percebe é a manutenção da omissão civil sobre esta matéria, tanto no governo quanto no Congresso, somada a uma estratégia de acomodação de interesses", disse.

Especialistas apontam que, neste governo, Lula e militares tentarão estratégia para isolar suspeitos de envolvimento com suposto plano golpista (Ricardo Stucker / Presidencia da República)

Pouco impacto na relação com governo Lula

Carlos Fico e o professor Augusto Teixeira avaliaram que tanto o governo Lula quanto a cúpula das Forças Armadas vêm adotando estratégias para minimizar o impacto das investigações nas relações entre militares e o Palácio do Planalto.

Para Teixeira, o impacto nessa relação será "mínimo".

"​​Tanto o Ministro da Defesa como os Comandantes das Forças buscarão sustentar o argumento de que a possível participação de militares em possíveis ilícitos seria uma conduta individual [...] O governo e sua bancada buscarão blindar a instituição militar e, possivelmente, o atual comando das Forças, atrelando qualquer desvio a militares em particular e ao ex-presidente e o seu grupo", disse o professor.

Carlos Fico concordou com Teixeira.

"Essa é apenas uma impressão, mas existe, claramente, uma estratégia de individualizar a culpa e não condenar toda a instituição. Alguns oficiais poderão ser condenados e as coisas continuam. Isso já está precificado", avalia o professor.

Para Augusto Teixeira, ainda que alguns oficiais possam ser punidos, o tom entre militares e governo deverá ser o de acomodação.

"Em suma, deverá preponderar o modelo de acomodação com uma retirada momentânea das Forças para os quarteis, ou seja, afastados da política", disse o professor.

Adriana Marques adotou um tom mais cauteloso. Segundo ela, será preciso aguardar como o Ministério da Defesa lidará com o avanço das investigações da PF.

"Até agora, a postura do ministro da Defesa (José Múcio Monteiro) era de conciliar e pacificar as Forças Armadas, mas acho que diante dos fatos graves que vêm sendo revelados, a pasta terá que tomar medidas contra algumas das pessoas investigadas", afirmou a professora.

Leandro Prazeres, Jornalista, de Brasília - DF, originalmente, para a BBC News Brasil, em 19.02.24

sexta-feira, 1 de março de 2024

Por que Brasil foi obrigado a se desculpar publicamente com quilombolas do Maranhão

O Estado brasileiro reconheceu que violou direitos de comunidades quilombolas e emitiu um pedido de desculpas às populações deslocadas forçadamente após a construção do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão.

Alcântara é o município brasileiro com maior número de comunidades quilombolas, segundo lideranças locaisCrédito: CONAQ)

A admissão ocorreu durante audiência pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), na qual o Brasil foi julgado por violações contra os quilombolas.

O caso está relacionado à instalação da base de lançamentos de foguetes da Força Aérea Brasileira (FAB) e à remoção de mais de 300 famílias da região onde o projeto foi construído na década de 1980, durante o regime militar.

O julgamento, que aconteceu de forma presencial na sede do Tribunal Constitucional do Chile, em Santiago, foi encerrado nesta quinta-feira (27/4).

A audiência foi convocada após uma denúncia apresentada por representantes das comunidades afetadas e entidades da sociedade civil em 2001.

A Corte é uma instituição autônoma ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), que tem como objetivo aplicar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992.

É um dos tribunais regionais de proteção dos direitos humanos, ao lado do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e da Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

Diante das declarações feitas pelo Estado brasileiro no julgamento, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou ao Brasil que apresente suas propostas por escrito, para que possam ser avaliadas pelos representantes das comunidades quilombolas e pelo próprio tribunal, antes de que qualquer decisão oficial seja tomada.

Entenda a seguir quais foram as acusações contra o Brasil e qual a posição tomada pelo governo durante a audiência.

O que aconteceu?

O conflito na região remonta à década de 1980, quando a base começou a ser construída durante o governo do general João Figueiredo.

Município com 22 mil habitantes a cerca de 100 km de São Luís, Alcântara fica numa península com localização privilegiada para o lançamento de foguetes e satélites.

Próximo à linha do Equador, o centro - inaugurado pela FAB em 1983 - possibilita uma economia de até 30% no combustível usado nos lançamentos.

A construção, porém, levou um território de 52 mil hectares a ser declarado como de "utilidade pública", segundo a CIDH.

Centro de Lançamento de Alcântara foi inaugurado em 1983, mas muitos afirmam que seu potencial não é plenamente aproveitado (Crédito: FAB)

Parte dessa área era habitada por 32 comunidades quilombolas que foram realojadas em sete "agrovilas" concebidas pelos militares.

E as disputas territoriais seguem até hoje. Alcântara é o município que tem o maior número de comunidades quilombolas do país, com mais de 17 mil pessoas, distribuídas em quase 200 comunidades.

O quilombola Nonato Masson, advogado do Centro de Cultura Negra do Maranhão, afirmou à BBC News Brasil que os quilombos de Alcântara viveram sem interferências externas de 1700 até o início da construção do centro de lançamentos.

O que foi julgado?

A principal violação denunciada pelas organizações sociais e representantes locais é a remoção de 312 famílias quilombolas para a construção da base, à qual a CIDH se referiu como "usurpação do patrimônio coletivo" das comunidades.

A Corte também analisou a questão da titularidade do território - concessão do direito de posse de uma área - e da reparação às comunidades.

Audiência foi realizada em Santiago, no Chile Crédito: AGU)

A Constituição Federal de 1988 assegura o direito aos remanescentes das comunidades quilombolas, que estejam ocupando suas terras, à propriedade definitiva de seus territórios.

Além disso, a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) também garante o direito fundiário dos povos originários a suas terras.

O caso chegou ao tribunal internacional após organizações peticionarem a denúncia na CIDH.

O órgão recomendou em duas ocasiões ao Estado brasileiro que fosse feita a titulação do território, a reparação financeira dos removidos e um pedido público de desculpas.

Em 2008, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), chegou a publicar um relatório apontando que mais de 78 mil hectares deveriam ser titulados em favor dos quilombolas, mas o processo não foi encaminhado.

Como as recomendações não foram cumpridas, a Comissão levou o caso à Corte em janeiro de 2022.

Localização de Alcântara, próxima à linha do Equador, permite economia de 30% no combustível usado para lançar foguetes (Crédito:Ministério da Defesa)

Outro ponto também foi discutido na audiência: a realização de consultas públicas para efetuar novos deslocamentos de comunidades na região ou fazer obras de ampliação da base aérea.

Esse tópico tem relação principalmente com um projeto de expansão base, incentivado por um acordo entre Brasil e Estados Unidos assinado em 2019.

Apoiadores da proposta afirmam que ela seria de grande importância para ampliar o aproveitamento da base, que no passado foi pouco utilizada, e desenvolver o setor no país - mais recentemente o centro passou a negociar a operação de lançamentos comerciais.

Mas segundo Servulo Borges, militante do movimento quilombola de Alcântara afirmou à BBC, a ampliação estudada desde os anos 2000 poderia levar ao despejo de mais de 40 comunidades da região.

Na audiência pública foram ouvidos representantes quilombolas e moradores da região, além de especialistas na área, indicados tanto pelos denunciantes como pelo Estado brasileiro.

Qual a posição tomada pelo Brasil?

Durante a audiência, o Estado brasileiro reconheceu, de forma oficial, que violou os direitos de propriedade e de proteção jurídica das comunidades quilombolas de Alcântara.

A violação ao direito de propriedade teria acontecido na medida em que o governo não levou a cabo a titulação de seu território.

Já o descumprimento do direito à proteção judicial ocorreu por não ter sido oferecido remédio judicial rápido e eficaz para a situação.

Na mesma audiência, o país fez um pedido de desculpas formal aos quilombolas do município maranhense e informou ao Tribunal que sua declaração será divulgada por escrito e ficará disponível durante um ano em página oficial do governo federal.

O posicionamento do Brasil foi manifestado pelo advogado-geral da União, Jorge Messias, durante o julgamento.

"Como consequência dessa violação, e ciente da natureza própria de que se revestem as medidas de reparação por violações ao direito internacional, em nome do Estado brasileiro manifesto nosso mais sincero e formal pedido de desculpas à senhora Maria Luzia, ao senhor Inaldo Faustino e aos demais membros das comunidades quilombolas de Alcântara", afirmou Messias, se referindo a alguns dos envolvidos no caso que participaram da audiência.

O advogado também confirmou a criação de um grupo de trabalho interministerial que terá o objetivo de buscar soluções para a titulação territorial das comunidades remanescentes de quilombos.

Segundo o governo, o grupo terá participação de quilombolas e deverá concluir os trabalhos em até um ano.

Após esse período, a titulação progressiva das terras deverá ocorrer em até dois anos após a publicação da portaria de reconhecimento territorial.

Messias afirmou ainda que o governo federal está comprometido em viabilizar recursos financeiros para compensação das violações.

Segundo ele, esses fundos serão entregues na forma de implementação de políticas públicas que beneficiem diretamente as comunidades.

As propostas agora deverão ser entregues por escrito à Corte e aos quilombolas antes da tomada de uma decisão final.

O que dizem os quilombolas?

Após o término da audiência, os representantes das organizações e comunidades quilombolas que entraram com a denúncia na Corte classificaram o pedido de desculpas do Brasil como "incompleto".

Em nota, afirmaram que os anúnicos "foram cercados de zonas fundamentais de incerteza quanto ao seu efetivo conteúdo, com expressões pouco precisas, palavras vagas, que mantém o futuro de Alcântara em um campo de grande insegurança institucional".

Os representantes se queixaram que o Estado não precisou qual a extensão ou localização dos territórios a serem titulados, assim como a forma jurídica de tais títulos.

Também criticaram a criação de um grupo de trabalho sem antes fazer qualquer consulta às comunidades quilombolas envolvidas.

Segundo as organizações que apresentaram a denúncia, a instalação da base alterou o modo de vida e as práticas culturais das comunidades (Getty Images)

Segundo as organizações, a instalação da base alterou intensamente o modo de vida e as práticas culturais das comunidades.

"Nas sete agrovilas nas quais as comunidades foram reassentadas, elas sofreram uma alteração dos costumes e práticas atuais e são até os dias atuais privadas de condições adequadas de vida, com a falta de saneamento básico e de políticas públicas de educação, transporte e saúde, de liberdade perante o território e de organização social", afirmaram as instituições quilombolas e de outros setores da sociedade civil em outro comunicado divulgado à imprensa.

Os denunciantes também se queixam da falta de iniciativas de reparação ou reconhecimento da propriedade do território antes da audiência pública.

"O governo brasileiro teve diversas oportunidades de reconhecer e reparar as violações, mas não o fez. Os Quilombos de Alcântara ainda não contam com títulos de propriedade coletiva sobre os seus territórios tradicionais", dizem.

Danilo Serejo, quilombola e representante do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE), uma das organizações envolvidas no processo, afirma também que mesmo as famílias que não foram deslocadas em um primeiro momento tiveram suas vidas afetadas.

Por isso, a compensação buscada é para todas as comunidades locais.

"A área desapropriada alcança mais de 150 comunidades. Mas além das pessoas deslocadas na década de 1980, outras muitas perderam os direitos sobre suas terras e vivem há mais de 40 anos em uma situação de incerteza, sempre com o temor de serem despejadas", afirmou à BBC News Brasil antes do julgamento.

Serejo explica ainda que o objetivo das instituições denunciantes não é encerrar as operações da base ou obrigar o centro a se retirar da região, mas garantir o direito de propriedade e que as comunidades quilombolas tenham voz em projetos futuros envolvendo suas terras.

"Ninguém está pedindo que a base seja retirada do município, mas é preciso que se discuta formas de compensação. Nosso entendimento é de que a base está no nosso território e não o contrário", diz.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 28.02.24

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

A 'oab' tem de voltar a ser a OAB

Não pode ser a Ordem dos Aduladores de Brasília, que aplaude magistrados

Sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Brasília - Valter Campanato/Agência Brasil - Agência Brasil

A Ordem dos Advogados do Brasil sempre foi sinônimo da mais alta institucionalidade, tribuna da cidadania, porta-voz dos mais intangíveis valores humanitários e democráticos. Friso o "foi" que usei na sentença.

A "oab" se apequenou, manteve as mesmas letras de sua sigla, mas em minúsculas. É passada a hora de recuperar sua dimensão natural para o bem da sociedade brasileira, da democracia, das instituições. A "oab" precisa voltar a ser OAB.

Não há como discutir a nobre função da maior representante da sociedade civil do país sem colocar em perspectiva os rumos da advocacia e da defesa das prerrogativas em termos nacionais.

E se nacionalmente vemos o apequenamento do sagrado papel da Ordem na defesa dos direitos básicos do advogado —participar de uma mera audiência e fazer uma sustentação oral em defesa de seu representado!—, se garantias mínimas são usurpadas com leniência cortesã de grupos que se parecem mais com partidos políticos do que com advogados unidos em torno da advocacia, essa reação precisa começar por São Paulo. Para o bem da advocacia de São Paulo, para o bem da advocacia de todo o Brasil.

A Ordem dos Advogados do Brasil não pode ser a Ordem dos Aduladores de Brasília. Não pode ser a Ordem que cochicha nos ouvidos. Tem de ser a Ordem que se inflama nas tribunas em favor dos direitos fundamentais. Não pode ser a Ordem que aplaude magistrados, mas a Ordem que alerta, a Ordem que ajuda não com a subserviência dos elogios que iludem, mas com a altivez que pode evitar erros.

Recentemente, a imprensa noticiou algo constrangedor. Até uma lista, uma espécie de "cola", foi distribuída para a escolha de representantes do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), indicados pelo quinto constitucional. Recuso-me a acreditar em algo assim. Mas isso mostra, como diria Caetano, que "alguma coisa está fora da ordem".

A questão é que todo o processo de grandes transformações, rupturas, avanços e saltos da história do país necessariamente teve o estado de São Paulo como mola propulsora. O que temos hoje é uma "oab" nacional que se tornou o monopólio de alguns poucos que produz um efeito nefasto para toda a advocacia: apequena a grandeza da Ordem à escala dos comezinhos interesses de um ou de poucos, quando a instituição deveria refletir a grandeza exatamente ao espelhar a multiplicidade de muitos e muitos, de todos.

O quinto constitucional é uma das mais belas construções da Carta Cidadã, a via de acesso ao Judiciário da sociedade —não das sociedades anônimas, dos interesses privados.

É por isso que temos de criar e semear em São Paulo uma mensagem de resistência e de luta pelos princípios e valores mais sagrados da advocacia: porque advocacia maiúscula é melhor para todas e todos os advogados, mas é também para todo o país, para a democracia, para as instituições, para o próprio Judiciário, para o amplo direito de defesa, para as garantias, para o devido processo legal.

Quando a advocacia se rende, se entrega, se domestica e passa a se imaginar engrenagem do poder para retroalimentar projetos de poder dentro da instituição, de fora para dentro, o custo disso é a servidão, a renúncia, o silêncio obediente, é ser o rabo do cachorro e não a mandíbula, o uivo que emana do âmago em defesa de valores e princípios apesar de tudo e de todos —é, enfim, ser minúscula e não maiúscula como a OAB tem de ser.

A recente decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, proibindo advogados de conversarem é uma afronta à advocacia que nem mesmo a ditadura militar ousou fazer.

Chegou a hora do Conselho Federal da OAB parar de lançar notas vagas e efetivamente fortalecer a advocacia e suas prerrogativas. E a partir desse ponto vamos recolocar a OAB no papel maiúsculo que ela nunca deveria ter perdido. Pelo bem da advocacia. Pelo bem da democracia. Pelo bem da Justiça. Pelo bem dos direitos fundamentais.

José Luis Oliveira Lima, o autor deste artigo, é advogado criminalista e membro do Conselho Consultivo do Innocence Project Brasil. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 21.02.24,  às 22h00