terça-feira, 5 de março de 2024

Ex-comandante do Exército complica Bolsonaro e confirma discussão sobre minuta golpista

General Freire Gomes respondeu a cerca de 250 perguntas durante depoimento de 7 horas à PF

General Freire Gomes e ex-presidente Jair Bolsonaro durante evento do Dia do Soldado, em Brasília - Gabriela Biló - 25.ago.22/Folhapress

Ex-comandante do Exército, o general Marco Antônio Freire Gomes confirmou à Polícia Federal que foi convocado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para reunião em que se discutiram propostas golpistas, incluindo uma minuta com medida para reverter a eleição de Lula (PT), em dezembro de 2022.

Pessoas próximas ao general afirmam que Freire Gomes respondeu a cerca de 250 perguntas sobre os dias finais de sua chefia no Exército, em depoimento que durou mais de sete horas na última sexta-feira (1º).

Ele implicou Bolsonaro como responsável pela manutenção dos acampamentos golpistas e se eximiu da responsabilidade pela participação das Forças Armadas como fiscalizadoras das eleições, ação que colocou em dúvida a confiança das urnas eletrônicas.

Generais ouvidos pela Folha afirmam que, apesar do desgaste institucional de um ex-comandante do Exército depor à Polícia Federal, foi a primeira vez que Freire Gomes teve a oportunidade de contar sua versão dos fatos após uma série de especulações serem levantadas.

Eles ainda dizem que o depoimento era relevante para o general demonstrar que não foi omisso diante de apelos golpistas feitos por Bolsonaro, aliados do ex-presidente e militares.

Como a Folha mostrou, Freire Gomes já vinha atribuindo a Bolsonaro a responsabilidade pela manutenção de acampamentos golpistas em frente aos quarteis.

O relato do general ignorou, porém, que ele próprio disse a todos os generais da ativa em 10 de novembro de 2022 que os acampamentos não deveriam ser reprimidos —também não levou em consideração a nota dos comandantes das Forças Armadas, no dia seguinte, que continha tom considerado elogioso aos manifestantes em frente ao QG do Exército.

O general Freire Gomes é citado no relatório da Polícia Federal sobre o planejamento de um golpe de Estado como um dos militares que teriam sido contrários às investidas contra o resultado eleitoral.

A resistência do militar foi criticada pelo general Walter Braga Netto, que era candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro.

"A culpa pelo que está acontecendo e acontecerá e [sic] do Gen Freire Gomes. Omissão e indecisão não cabem a um combatente", escreveu Braga Netto em mensagem encontrada pela Polícia Federal. O ex-ministro ainda chamou o chefe militar de "cagão".

A Polícia Federal também identificou mensagens de áudio enviadas por Mauro Cid a Freire Gomes que indicavam que o general sabia das minutas de decreto golpistas —o que gerou suspeitas de que o ex-comandante poderia ter sido omisso diante dos planos antidemocráticos.

"O presidente tem recebido várias pressões para tomar uma medida mais, mais pesada, onde ele vai, obviamente, utilizando as Forças, né? Mas ele sabe, ele ainda continua com aquela ideia que ele saiu da última reunião, mas a pressão que ele recebe é de todo mundo. Ele está… É cara do agro. São alguns deputados, né? É né… Então é a pressão que ele tem recebido é muito grande. E hoje o que que ele fez hoje de manhã? Ele enxugou o decreto né? Aqueles 'considerandos' que o senhor viu e enxugou o decreto, fez um decreto muito mais é resumido, né?", disse Cid.

Para prestar o depoimento na sexta, Freire Gomes voltou de uma viagem à Espanha, onde visitava familiares. Ele conversou com militares mais próximos, que mantêm cargos relevantes na estrutura do Exército, e se mostrou disposto a colaborar com as investigações.

O ex-comandante da Aeronáutica Carlos Baptista Júnior está em situação semelhante. Ele prestou depoimento por quase dez horas à Polícia Federal em meados de fevereiro e também confirmou a participação em reuniões de tom golpista no Palácio da Alvorada.

Baptista Júnior e Freire Gomes afirmaram a interlocutores terem apresentado oposição às intenções antidemocráticas; o único que teria manifestado apoio às investidas, segundo a delação do tenente-coronel Mauro Cid, foi o ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos.

O almirante foi chamado a depor à PF no último dia 22. Ele, porém, optou pelo silêncio.

Investigadores querem concluir rapidamente as apurações que miram Bolsonaro. A meta é finalizar os três inquéritos que têm o ex-presidente na mira até junho.

O último que deve ser encerrado é justamente o das milícias digitais, que trata da investigação sobre uma trama para dar um golpe de Estado.

Os outros dois envolvem o recebimento de um pacote de joias da Arábia Saudita e a fraude no cartão de vacinação do ex-mandatário. Esses inquéritos devem ser concluídos antes, pelo cronograma estabelecido pela PF.

Além desses militares, a polícia colheu depoimento de outros generais, ex-ministros, ex-assessores, e aliados de Bolsonaro. Ao menos 24 pessoas prestaram depoimento no mês passado. A maioria optou pelo silêncio, como fez o ex-presidente, mas ao menos quatro pessoas falaram.

Segundo investigadores, houve entre os depoentes quem demonstrasse interesse em colaborar com a PF por meio de delação premiada. Quem acompanha o caso, porém, pondera que foram demonstradas apenas intenções iniciais e que essas colaborações podem não avançar.

Embora tenha ficado calado no depoimento, Bolsonaro aproveitou um ato que organizou na avenida Paulista, no dia 25 de fevereiro, para se defender das acusações de que tramou um golpe.

Mas, na avaliação de investigadores, ele acabou produzindo prova contra si mesmo. Isso porque, para a PF, ele admitiu ter conhecimento sobre a existência de uma minuta golpista.

"Agora o golpe é porque tem uma minuta do decreto de estado de defesa. Golpe usando a Constituição? Tenha paciência", afirmou Bolsonaro durante o protesto.

A PF pretende inserir a fala no contexto da investigação. A defesa de Bolsonaro, por sua vez, afirma que ele tomou conhecimento da minuta apenas em 2023, por meio de investigações da polícia.

Dos militares intimados a depor, o general Braga Netto, que foi candidato a vice-presidente em 2022, decidiu ficar calado. Sua defesa disse que solicitou o "acesso absoluto e integral a toda investigação para que possa prestar os devidos esclarecimentos".

Os generais Augusto Heleno, Mario Fernandes e Paulo Sérgio Nogueira, o ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos e outros militares alvos da investigação também ficaram em silêncio.

Já o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, disse que ele "respondeu todas as perguntas que lhe foram feitas". A mesma coisa fez o ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do DF, Anderson Torres, que "respondeu serenamente a todas as perguntas que lhe foram formuladas", segundo sua defesa.

Cézar Feitoza e Julia Chaib, de Brasília - DF, originalmente, para a Folha de S. Paulo. Publicado na edição impressa, em 05.03.24

Verba de emendas deve seguir critérios técnicos

É democrático que o Congresso decida sobre o Orçamento, mas prioridade para currais eleitorais prejudica a populaçã0

Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados - Pedro Ladeira/Folhapress

O governo federal estima que vá desembolsar R$ 2,18 trilhões neste ano, excluídos os gastos com juros. Mais de 90% desses recursos vão para despesas obrigatórias, como aposentadorias, salários e os pisos constitucionais da saúde e da educação. Resta algo em torno de R$ 200 bilhões para custear a máquina, prestar serviços e investir.

Por meio de emendas ao Orçamento, deputados e senadores podem definir o destino de cerca de 23% desse montante, mas reclamam da execução de tais dotações, da liberação e do gasto efetivo. Na verdade, pressionam o governo com agressividade.

Chegam a pedir a saída de ministros, como Nísia Trindade (Saúde), de quem cobram relatórios sobre o uso do dinheiro —o que seria correto, se o objetivo fosse meritório.

Demandar e obter as verbas aprovadas não resulta, necessariamente, em corrupção, embora haja casos investigados pela Polícia Federal. O fato de que parcela do Orçamento seja destinada a municípios tampouco é motivo, por si só, de condenação. O conjunto da obra é que está em questão.

O investimento federal não passou de R$ 60 bilhões em 2023. Parte relevante é pulverizada em despesas paroquiais, de compra de caixas d’água a capacetes para a polícia, que bem podem ser necessidades, mas não são consideradas do ponto de vista do uso mais eficiente dos recursos federais.

Não há plano geral de avaliação do mérito das emendas e de uso alternativo do dinheiro a elas destinado. Ademais, a pulverização dificulta a reunião de recursos para investimentos maiores, que resolvam problemas de infraestrutura, sejam eles sanitários, de transporte, de pesquisa científica ou de comunicações, por exemplo.

A distribuição política de verbas também prejudica a conclusão de obras, já que é preciso agradar a mais currais eleitorais, em vez de seguir a ordem de prioridade da execução de trabalhos.

O problema é histórico. Nos últimos cinco anos, contudo, se agravou, dado o fortalecimento do Parlamento, que empareda o Executivo por meio de pressão política e barganhas para aprovação de medidas. Atualmente, o Congresso controla ao menos 30% da verba de sete ministérios de Lula.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), um dos grandes artífices dessa ofensiva, alega com ligeireza que, pela Constituição, o Congresso tem o poder da emenda.

Por óbvio não se pretende cassar o direito do Legislativo de manejar parte do Orçamento e monitorar sua execução. Trata-se tão somente de fazer com que os recursos sejam distribuídos e fiscalizados de modo republicano e eficaz.

Editorial da Folha de S. Paulo, edição impressa, em 05.03.24. (editoriais@grupofolha.com.br)

sábado, 2 de março de 2024

Cúpula militar na mira da PF: o impacto da inédita investigação de envolvimento em plano de golpe

Quase 60 anos depois do golpe militar de 1964, oficiais generais das Forças Armadas brasileiras estão sendo investigados e podem vir a ser julgados e condenados por uma tentativa de golpe de Estado. 

Generais Nogueira e Braga Netto (esq.), ex-presidente Bolsonaro e o almirante Garnier são investigados pela PF (Crédito:Marcos Correa / Presidencia da República).

O levante investigado não é o de seis décadas atrás, cujos responsáveis nunca foram punidos, mas aquele que, segundo a Polícia Federal, era planejado dentro do Palácio do Planalto e tinha como objetivo impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e manter o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no poder.

Bolsonaro e sua defesa vêm alegando que ele não teve nenhum envolvimento em nenhum plano de golpe de Estado ou outras irregularidades investigadas pela Polícia Federal. "Não foi chegado à minha frente nenhum documento para eu assinar e decretar (estado de) Sítio ou (estado de) Defesa", disse o presidente no dia seguinte à operação.

Nesta quinta-feira (22/2), Bolsonaro compareceu à PF em Brasília para prestar depoimento sobre o caso, mas permaneceu em silêncio diante dos investigadores, informou o advogado Fabio Wajngarten. O ex-presidente ficou menos de meia hora no local.

Wajngarten, segundo o G1, argumentou que o silêncio de Bolsonaro foi uma "uma estratégia baseada no fato de que a defesa não teve acesso a todos os elementos" relacionados às apurações do caso.

Bolsonaro chegou a alegar anteriormente que ficaria em silêncio durante a oitiva e pediu dispensa do compromisso. Mas o pedido foi negado pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), relator do inquérito que investiga a ação de milícias digitais durante o governo bolsonarista.

Além do ex-presidente, outros aliados dele também compareceram à PF, como o general Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e ex-candidato a vice-presidente; o general Augusto Heleno, ex-ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional); o presidente do PL, Valdemar Costa Neto; o ex-ministro substituto da Secretaria-Geral da Presidência Mário Fernandes e o oficial do Exército Ronald Ferreira de Araújo Junior.

Também prestaram depoimento o ex-comandante da Marinha Almir Garnier; o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira e o ex-ministro da Justiça Anderson Torres.

Documentos divulgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) relativos a diferentes operações da PF como a Tempus Veriatis, deflagrada em 8 de fevereiro, agora apontam que pelo cinco oficiais generais (aqueles que ocupam as mais altas patentes das Forças Armadas) teriam participado de um plano que incluía, entre outras medidas, a suspensão do resultado das eleições presidenciais de 2022 e até a prisão de ministros do Supremo.

Os cinco oficiais generais na mira da PF são: o ex-ministro do gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno; o ex-ministro da Casa Civil, general Walter Braga Netto; o ex-ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira; o general Estevam Teophilo; e o ex-comandante da Marinha, almirante Almir Garnier.

Os cinco são investigados pela PF por crimes como tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado democrático de direito. As penas por esses crimes podem chegar a 12 anos de reclusão.

'É um absurdo que festejemos que a maioria dos generais preferiu não dar o golpe', diz historiador

Segundo relatórios da PF reproduzidos em decisões do ministro do STF, Alexandre de Moraes, os oficiais fizeram parte de diferentes núcleos da organização que teria planejado um golpe de Estado e participaram de reuniões em que foram discutidas medidas a serem adotadas em caso de derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.

Augusto Heleno, segundo a PF, seria integrante do núcleo de inteligência paralela do grupo, responsável pela coleta de informações que "pudessem auxiliar a tomada de decisões do então Presidente da República, Jair Bolsonaro, na consumação do golpe de estado".

Braga Netto, Almir Garnier, Estevam Teophilo e Paulo Sérgio Nogueira fariam parte do núcleo de "Oficiais de Alta Patente" responsáveis, de acordo com a PF, por "influenciar e incitar apoio aos demais núcleos de atuação" da organização.

Procurada pela BBC News Brasil, a defesa de Augusto Heleno disse que havia recebido acesso aos autos das investigações recentemente e não poderia se manifestar. A assessoria do general Braga Netto confirmou o recebimento das perguntas feitas pela reportagem, mas nenhuma resposta foi enviada.

Em setembro de 2023, durante audiência da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito para apurar os atos de 8 de janeiro, Heleno negou ter participado de qualquer reunião para discutir golpe de Estado.

Em entrevista a jornalistas na quinta-feira (8/02), Braga Netto classificou as suspeitas levantadas pela PF como "perseguição" e "sonho".

"Continua uma perseguição em cima do pessoal do Bolsonaro. É tudo uma invenção, um sonho", disse.

A reportagem não conseguiu localizar as assessorias de Almir Garnier, Estevam Teophilo e Paulo Sérgio Nogueira.

A investigação têm chamado a atenção de especialistas nas relações entre militares e o mundo político no país ouvidos pela BBC News Brasil.

Eles apontam que o fato de haver tantos oficiais generais investigados e passíveis de punição por atos contra a democracia no Brasil é algo inédito em um país que, segundo eles, seria acostumado a anistiar militares em outras situações similares.

Apesar disso, eles avaliam que os impactos dessa investigação para a relação dos militares com o governo deverão ser reduzidos porque tanto as Forças Armadas quanto o atual governo Lula não desejariam aumentar a tensão e tentam adotar uma estratégia que consiste em isolar os supostos responsáveis pela tentativa de golpe em vez de responsabilizar a instituição como um todo.

Eles ponderam ainda que a mera investigação não seria capaz de mudar o pensamento "intervencionista" que seria corrente entre parte das Forças Armadas. Essa mentalidade, dizem os especialistas, colocariam os militares na condição de "tutores" da sociedade brasileira, o que abriria brechas para recorrentes tentativas de intervenções e rupturas democráticas.

General e ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) Augusto Heleno também é investigado pela PF. Ele faria, de acordo com a polícia, parte de um núcleo de inteligência paralela (Presidência da República)

"País sem tradição de investigar generais"

A pesquisadora Adriana Marques, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) , é uma das principais referências brasileiras no estudo da atuação dos militares na sociedade brasileira. Segundo ela, a existência de tantos oficiais generais na mira da PF é um fato inédito.

"Isso é inédito na história do Brasil. Precisamos lembrar que o Brasil não tem tradição de investigar e punir militares que tentaram desestabilizar a democracia", afirmou a professora à BBC News Brasil.

Um dos exemplos mais recentes de como o Brasil lidou com atentados à democracia foi a Lei de Anistia, de 1979, que anistiou militares e civis que cometeram crimes ligados à ditadura militar entre 1964 e 1985.

O Brasil foi na contramão de países como a Argentina, que prenderam militares responsáveis pela ditadura que comandou o país entre os anos 1976 e 1983.

O historiador e professor titular da UFRJ Carlos Fico, outro estudioso da atuação dos militares no Brasil, faz uma avaliação semelhante à de Adriana Marques. Ele pontuou que a investigação tem fatores inéditos, mas pondera que ainda é cedo para dizer se ela tem o potencial de resultar em um fato histórico.

"Essa ação no STF é uma investigação com características inéditas, sobretudo porque envolve alguns oficiais generais. No Brasil, a regra geral era de que oficiais generais nunca eram investigados ou punidos por crimes contra a democracia. Mas como historiador, temos cautela para dizer se isso será ou não algo histórico. Não podemos dizer isso agora", disse o professor à BBC News Brasil.

Para o professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutor em Ciência Política Augusto Teixeira, a investigação da PF teria um caráter revelador sobre a atuação dos militares na sociedade brasileira.

"Infelizmente, o caso que operação da PF descortinou traz à tona um histórico problema da nossa República: a atuação política de militares. Se considerarmos que a própria proclamação da República foi, em sua essência, um golpe militar contra um governo civil constituído, veremos que a participação de militares na intentona golpista bolsonarista encontra ecos na história", disse o professor à BBC News Brasil.

Segundo Teixeira, havia a sensação de que a redemocratização de 1985 e a criação do Ministério da Defesa em 1999 haviam sido capazes de estabelecer o controle civil sobre as Forças Armadas e que os militares tinham se recolhido aos quarteis.

Ele pontuou, no entanto, que desde o início dos anos 2010, teria havido um processo que ele classificou como "politização dos quarteis" marcado pela atuação política de comandantes das Forças, especialmente do Exército. Esse fenômeno teria fragilizado o controle civil sobre militares e criado o terreno para a suposta participação de oficiais em um plano de golpe.

"Diante desse quadro, não espanta a existência de tantos militares de alta patente investigados, afinal, mais do que militares, eles foram governo", afirmou o professor.

Adriana Marques avaliou que incluir tantos oficiais generais nessa investigação só foi possível por conta da suposta solidez das instituições democráticas do país.

"O regime democrático brasileiro resistiu, na medida do possível, à investida autoritária. A democracia brasileira sofreu vários percalços nas últimas décadas, mas se manteve. O fato de termos instituições democráticas como um Poder Judiciário independente permitiu termos o respaldo necessário para que essa investigação prosseguisse", afirmou.

Investigação da PF aponta que militares teriam incentivado manifestações contrárias ao resultado das eleições de 2022. Em 8 de janeiro, milhares de manifestantes invadiram as sedes dos Três Poderes, em Brasília (Getty Images)

"Investigação, sozinha, não mudará mentalidade de militares"

A professora Adriana Marques pontuou que existe uma vasta literatura acadêmica que se debruça sobre a chamada "mentalidade de tutela" dos militares brasileiros sobre a sociedade. Ela avalia que somente a investigação conduzida pela PF não teria o poder de mudá-la.

"A investigação, sozinha, não mudará a mentalidade dos militares. Agora, se houver responsabilização dos militares, a gente pode vislumbrar, num futuro, uma mudança nessa mentalidade de tutela. Até agora, conspirar contra a democracia e participar de planos de golpe nunca gerou consequências políticas e jurídicas para os militares", disse a professora.

O historiador Carlos Fico disse que a chamada "mentalidade de tutela" está arraigada nas Forças Armadas brasileiras há vários séculos.

"É algo estrutural. Ao longo da nossa história, houve dezenas de episódios de intervencionismo militar no Brasil. Essa mentalidade confere aos militares a condição de tutores da sociedade brasileira capazes e responsáveis por arbitrar conflitos", disse Fico.

Mais recentemente, completou o professor, essa mentalidade estaria materializada no artigo nº 142 da Constituição Federal.

O texto diz que as Forças Armadas, sob a autoridade do Presidente da República, se destinam à "defesa da Pátria" e "à garantia dos poderes constitucionais". Esse artigo é frequentemente evocado por manifestantes favoráveis a uma intervenção militar como um texto que daria legitimidade à uma ruptura democrática no país.

Segundo ele, essa condição estrutural ganhou ainda mais ênfase na gestão Bolsonaro.

"Durante o governo Bolsonaro, houve uma revitalização dessa mentalidade por uma série de motivos. Essa é a razão de haver tantos oficiais generais envolvidos (nessa investigação). Isso é lamentável", pontuou o professor.

Fico concordou com Adriana Marques e disse que não acredita que a investigação possa, isoladamente, mudar a mentalidade de parte dos militares brasileiros.

"Seria preciso promover uma mudança no artigo nº 142 para redirecionar as atribuições da Forças Armadas. Mas esse é um movimento sensível e o governo Lula não tem força política para encampar isso agora", disse o professor.

O professor Augusto Teixeira concordou com Adriana Marques e Carlos Fico. Para ele, a investigação não mudará a mentalidade de parte dos militares.

"Não creio que investigações podem mudar esse ímpeto ou mentalidade de tutela. Existe um entendimento de que as Forças Armadas são uma burocracia especial, de Estado e de longa duração."

Teixeira também avalia que uma das medidas que poderia ter impacto seria a revisão do artigo nº 142 da Constituição Federal. Mas assim como Fico, ele pontuou que parece não haver interesse nisso neste momento.

"A importante revisão do artigo 142 da Constituição parece não ter nem o apoio do governo federal [...] Na prática, o que se percebe é a manutenção da omissão civil sobre esta matéria, tanto no governo quanto no Congresso, somada a uma estratégia de acomodação de interesses", disse.

Especialistas apontam que, neste governo, Lula e militares tentarão estratégia para isolar suspeitos de envolvimento com suposto plano golpista (Ricardo Stucker / Presidencia da República)

Pouco impacto na relação com governo Lula

Carlos Fico e o professor Augusto Teixeira avaliaram que tanto o governo Lula quanto a cúpula das Forças Armadas vêm adotando estratégias para minimizar o impacto das investigações nas relações entre militares e o Palácio do Planalto.

Para Teixeira, o impacto nessa relação será "mínimo".

"​​Tanto o Ministro da Defesa como os Comandantes das Forças buscarão sustentar o argumento de que a possível participação de militares em possíveis ilícitos seria uma conduta individual [...] O governo e sua bancada buscarão blindar a instituição militar e, possivelmente, o atual comando das Forças, atrelando qualquer desvio a militares em particular e ao ex-presidente e o seu grupo", disse o professor.

Carlos Fico concordou com Teixeira.

"Essa é apenas uma impressão, mas existe, claramente, uma estratégia de individualizar a culpa e não condenar toda a instituição. Alguns oficiais poderão ser condenados e as coisas continuam. Isso já está precificado", avalia o professor.

Para Augusto Teixeira, ainda que alguns oficiais possam ser punidos, o tom entre militares e governo deverá ser o de acomodação.

"Em suma, deverá preponderar o modelo de acomodação com uma retirada momentânea das Forças para os quarteis, ou seja, afastados da política", disse o professor.

Adriana Marques adotou um tom mais cauteloso. Segundo ela, será preciso aguardar como o Ministério da Defesa lidará com o avanço das investigações da PF.

"Até agora, a postura do ministro da Defesa (José Múcio Monteiro) era de conciliar e pacificar as Forças Armadas, mas acho que diante dos fatos graves que vêm sendo revelados, a pasta terá que tomar medidas contra algumas das pessoas investigadas", afirmou a professora.

Leandro Prazeres, Jornalista, de Brasília - DF, originalmente, para a BBC News Brasil, em 19.02.24

sexta-feira, 1 de março de 2024

Por que Brasil foi obrigado a se desculpar publicamente com quilombolas do Maranhão

O Estado brasileiro reconheceu que violou direitos de comunidades quilombolas e emitiu um pedido de desculpas às populações deslocadas forçadamente após a construção do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão.

Alcântara é o município brasileiro com maior número de comunidades quilombolas, segundo lideranças locaisCrédito: CONAQ)

A admissão ocorreu durante audiência pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), na qual o Brasil foi julgado por violações contra os quilombolas.

O caso está relacionado à instalação da base de lançamentos de foguetes da Força Aérea Brasileira (FAB) e à remoção de mais de 300 famílias da região onde o projeto foi construído na década de 1980, durante o regime militar.

O julgamento, que aconteceu de forma presencial na sede do Tribunal Constitucional do Chile, em Santiago, foi encerrado nesta quinta-feira (27/4).

A audiência foi convocada após uma denúncia apresentada por representantes das comunidades afetadas e entidades da sociedade civil em 2001.

A Corte é uma instituição autônoma ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), que tem como objetivo aplicar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992.

É um dos tribunais regionais de proteção dos direitos humanos, ao lado do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e da Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

Diante das declarações feitas pelo Estado brasileiro no julgamento, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou ao Brasil que apresente suas propostas por escrito, para que possam ser avaliadas pelos representantes das comunidades quilombolas e pelo próprio tribunal, antes de que qualquer decisão oficial seja tomada.

Entenda a seguir quais foram as acusações contra o Brasil e qual a posição tomada pelo governo durante a audiência.

O que aconteceu?

O conflito na região remonta à década de 1980, quando a base começou a ser construída durante o governo do general João Figueiredo.

Município com 22 mil habitantes a cerca de 100 km de São Luís, Alcântara fica numa península com localização privilegiada para o lançamento de foguetes e satélites.

Próximo à linha do Equador, o centro - inaugurado pela FAB em 1983 - possibilita uma economia de até 30% no combustível usado nos lançamentos.

A construção, porém, levou um território de 52 mil hectares a ser declarado como de "utilidade pública", segundo a CIDH.

Centro de Lançamento de Alcântara foi inaugurado em 1983, mas muitos afirmam que seu potencial não é plenamente aproveitado (Crédito: FAB)

Parte dessa área era habitada por 32 comunidades quilombolas que foram realojadas em sete "agrovilas" concebidas pelos militares.

E as disputas territoriais seguem até hoje. Alcântara é o município que tem o maior número de comunidades quilombolas do país, com mais de 17 mil pessoas, distribuídas em quase 200 comunidades.

O quilombola Nonato Masson, advogado do Centro de Cultura Negra do Maranhão, afirmou à BBC News Brasil que os quilombos de Alcântara viveram sem interferências externas de 1700 até o início da construção do centro de lançamentos.

O que foi julgado?

A principal violação denunciada pelas organizações sociais e representantes locais é a remoção de 312 famílias quilombolas para a construção da base, à qual a CIDH se referiu como "usurpação do patrimônio coletivo" das comunidades.

A Corte também analisou a questão da titularidade do território - concessão do direito de posse de uma área - e da reparação às comunidades.

Audiência foi realizada em Santiago, no Chile Crédito: AGU)

A Constituição Federal de 1988 assegura o direito aos remanescentes das comunidades quilombolas, que estejam ocupando suas terras, à propriedade definitiva de seus territórios.

Além disso, a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) também garante o direito fundiário dos povos originários a suas terras.

O caso chegou ao tribunal internacional após organizações peticionarem a denúncia na CIDH.

O órgão recomendou em duas ocasiões ao Estado brasileiro que fosse feita a titulação do território, a reparação financeira dos removidos e um pedido público de desculpas.

Em 2008, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), chegou a publicar um relatório apontando que mais de 78 mil hectares deveriam ser titulados em favor dos quilombolas, mas o processo não foi encaminhado.

Como as recomendações não foram cumpridas, a Comissão levou o caso à Corte em janeiro de 2022.

Localização de Alcântara, próxima à linha do Equador, permite economia de 30% no combustível usado para lançar foguetes (Crédito:Ministério da Defesa)

Outro ponto também foi discutido na audiência: a realização de consultas públicas para efetuar novos deslocamentos de comunidades na região ou fazer obras de ampliação da base aérea.

Esse tópico tem relação principalmente com um projeto de expansão base, incentivado por um acordo entre Brasil e Estados Unidos assinado em 2019.

Apoiadores da proposta afirmam que ela seria de grande importância para ampliar o aproveitamento da base, que no passado foi pouco utilizada, e desenvolver o setor no país - mais recentemente o centro passou a negociar a operação de lançamentos comerciais.

Mas segundo Servulo Borges, militante do movimento quilombola de Alcântara afirmou à BBC, a ampliação estudada desde os anos 2000 poderia levar ao despejo de mais de 40 comunidades da região.

Na audiência pública foram ouvidos representantes quilombolas e moradores da região, além de especialistas na área, indicados tanto pelos denunciantes como pelo Estado brasileiro.

Qual a posição tomada pelo Brasil?

Durante a audiência, o Estado brasileiro reconheceu, de forma oficial, que violou os direitos de propriedade e de proteção jurídica das comunidades quilombolas de Alcântara.

A violação ao direito de propriedade teria acontecido na medida em que o governo não levou a cabo a titulação de seu território.

Já o descumprimento do direito à proteção judicial ocorreu por não ter sido oferecido remédio judicial rápido e eficaz para a situação.

Na mesma audiência, o país fez um pedido de desculpas formal aos quilombolas do município maranhense e informou ao Tribunal que sua declaração será divulgada por escrito e ficará disponível durante um ano em página oficial do governo federal.

O posicionamento do Brasil foi manifestado pelo advogado-geral da União, Jorge Messias, durante o julgamento.

"Como consequência dessa violação, e ciente da natureza própria de que se revestem as medidas de reparação por violações ao direito internacional, em nome do Estado brasileiro manifesto nosso mais sincero e formal pedido de desculpas à senhora Maria Luzia, ao senhor Inaldo Faustino e aos demais membros das comunidades quilombolas de Alcântara", afirmou Messias, se referindo a alguns dos envolvidos no caso que participaram da audiência.

O advogado também confirmou a criação de um grupo de trabalho interministerial que terá o objetivo de buscar soluções para a titulação territorial das comunidades remanescentes de quilombos.

Segundo o governo, o grupo terá participação de quilombolas e deverá concluir os trabalhos em até um ano.

Após esse período, a titulação progressiva das terras deverá ocorrer em até dois anos após a publicação da portaria de reconhecimento territorial.

Messias afirmou ainda que o governo federal está comprometido em viabilizar recursos financeiros para compensação das violações.

Segundo ele, esses fundos serão entregues na forma de implementação de políticas públicas que beneficiem diretamente as comunidades.

As propostas agora deverão ser entregues por escrito à Corte e aos quilombolas antes da tomada de uma decisão final.

O que dizem os quilombolas?

Após o término da audiência, os representantes das organizações e comunidades quilombolas que entraram com a denúncia na Corte classificaram o pedido de desculpas do Brasil como "incompleto".

Em nota, afirmaram que os anúnicos "foram cercados de zonas fundamentais de incerteza quanto ao seu efetivo conteúdo, com expressões pouco precisas, palavras vagas, que mantém o futuro de Alcântara em um campo de grande insegurança institucional".

Os representantes se queixaram que o Estado não precisou qual a extensão ou localização dos territórios a serem titulados, assim como a forma jurídica de tais títulos.

Também criticaram a criação de um grupo de trabalho sem antes fazer qualquer consulta às comunidades quilombolas envolvidas.

Segundo as organizações que apresentaram a denúncia, a instalação da base alterou o modo de vida e as práticas culturais das comunidades (Getty Images)

Segundo as organizações, a instalação da base alterou intensamente o modo de vida e as práticas culturais das comunidades.

"Nas sete agrovilas nas quais as comunidades foram reassentadas, elas sofreram uma alteração dos costumes e práticas atuais e são até os dias atuais privadas de condições adequadas de vida, com a falta de saneamento básico e de políticas públicas de educação, transporte e saúde, de liberdade perante o território e de organização social", afirmaram as instituições quilombolas e de outros setores da sociedade civil em outro comunicado divulgado à imprensa.

Os denunciantes também se queixam da falta de iniciativas de reparação ou reconhecimento da propriedade do território antes da audiência pública.

"O governo brasileiro teve diversas oportunidades de reconhecer e reparar as violações, mas não o fez. Os Quilombos de Alcântara ainda não contam com títulos de propriedade coletiva sobre os seus territórios tradicionais", dizem.

Danilo Serejo, quilombola e representante do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE), uma das organizações envolvidas no processo, afirma também que mesmo as famílias que não foram deslocadas em um primeiro momento tiveram suas vidas afetadas.

Por isso, a compensação buscada é para todas as comunidades locais.

"A área desapropriada alcança mais de 150 comunidades. Mas além das pessoas deslocadas na década de 1980, outras muitas perderam os direitos sobre suas terras e vivem há mais de 40 anos em uma situação de incerteza, sempre com o temor de serem despejadas", afirmou à BBC News Brasil antes do julgamento.

Serejo explica ainda que o objetivo das instituições denunciantes não é encerrar as operações da base ou obrigar o centro a se retirar da região, mas garantir o direito de propriedade e que as comunidades quilombolas tenham voz em projetos futuros envolvendo suas terras.

"Ninguém está pedindo que a base seja retirada do município, mas é preciso que se discuta formas de compensação. Nosso entendimento é de que a base está no nosso território e não o contrário", diz.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 28.02.24

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

A 'oab' tem de voltar a ser a OAB

Não pode ser a Ordem dos Aduladores de Brasília, que aplaude magistrados

Sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Brasília - Valter Campanato/Agência Brasil - Agência Brasil

A Ordem dos Advogados do Brasil sempre foi sinônimo da mais alta institucionalidade, tribuna da cidadania, porta-voz dos mais intangíveis valores humanitários e democráticos. Friso o "foi" que usei na sentença.

A "oab" se apequenou, manteve as mesmas letras de sua sigla, mas em minúsculas. É passada a hora de recuperar sua dimensão natural para o bem da sociedade brasileira, da democracia, das instituições. A "oab" precisa voltar a ser OAB.

Não há como discutir a nobre função da maior representante da sociedade civil do país sem colocar em perspectiva os rumos da advocacia e da defesa das prerrogativas em termos nacionais.

E se nacionalmente vemos o apequenamento do sagrado papel da Ordem na defesa dos direitos básicos do advogado —participar de uma mera audiência e fazer uma sustentação oral em defesa de seu representado!—, se garantias mínimas são usurpadas com leniência cortesã de grupos que se parecem mais com partidos políticos do que com advogados unidos em torno da advocacia, essa reação precisa começar por São Paulo. Para o bem da advocacia de São Paulo, para o bem da advocacia de todo o Brasil.

A Ordem dos Advogados do Brasil não pode ser a Ordem dos Aduladores de Brasília. Não pode ser a Ordem que cochicha nos ouvidos. Tem de ser a Ordem que se inflama nas tribunas em favor dos direitos fundamentais. Não pode ser a Ordem que aplaude magistrados, mas a Ordem que alerta, a Ordem que ajuda não com a subserviência dos elogios que iludem, mas com a altivez que pode evitar erros.

Recentemente, a imprensa noticiou algo constrangedor. Até uma lista, uma espécie de "cola", foi distribuída para a escolha de representantes do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), indicados pelo quinto constitucional. Recuso-me a acreditar em algo assim. Mas isso mostra, como diria Caetano, que "alguma coisa está fora da ordem".

A questão é que todo o processo de grandes transformações, rupturas, avanços e saltos da história do país necessariamente teve o estado de São Paulo como mola propulsora. O que temos hoje é uma "oab" nacional que se tornou o monopólio de alguns poucos que produz um efeito nefasto para toda a advocacia: apequena a grandeza da Ordem à escala dos comezinhos interesses de um ou de poucos, quando a instituição deveria refletir a grandeza exatamente ao espelhar a multiplicidade de muitos e muitos, de todos.

O quinto constitucional é uma das mais belas construções da Carta Cidadã, a via de acesso ao Judiciário da sociedade —não das sociedades anônimas, dos interesses privados.

É por isso que temos de criar e semear em São Paulo uma mensagem de resistência e de luta pelos princípios e valores mais sagrados da advocacia: porque advocacia maiúscula é melhor para todas e todos os advogados, mas é também para todo o país, para a democracia, para as instituições, para o próprio Judiciário, para o amplo direito de defesa, para as garantias, para o devido processo legal.

Quando a advocacia se rende, se entrega, se domestica e passa a se imaginar engrenagem do poder para retroalimentar projetos de poder dentro da instituição, de fora para dentro, o custo disso é a servidão, a renúncia, o silêncio obediente, é ser o rabo do cachorro e não a mandíbula, o uivo que emana do âmago em defesa de valores e princípios apesar de tudo e de todos —é, enfim, ser minúscula e não maiúscula como a OAB tem de ser.

A recente decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, proibindo advogados de conversarem é uma afronta à advocacia que nem mesmo a ditadura militar ousou fazer.

Chegou a hora do Conselho Federal da OAB parar de lançar notas vagas e efetivamente fortalecer a advocacia e suas prerrogativas. E a partir desse ponto vamos recolocar a OAB no papel maiúsculo que ela nunca deveria ter perdido. Pelo bem da advocacia. Pelo bem da democracia. Pelo bem da Justiça. Pelo bem dos direitos fundamentais.

José Luis Oliveira Lima, o autor deste artigo, é advogado criminalista e membro do Conselho Consultivo do Innocence Project Brasil. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 21.02.24,  às 22h00

“Uma derrota para a Ucrânia teria efeitos devastadores para a Europa e o mundo”

Charles Michel, o presidente do Conselho Europeu alerta que não há outra opção senão continuar a apoiar Kiev: “Não podemos permitir-nos cair no cansaço ou no tédio”

O Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, durante uma conferência de imprensa em Bruxelas, no dia 1 de fevereiro. (Johanna Geron / Reuters)

O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, é direto: “Uma derrota para a Ucrânia não pode ser uma opção. Todos compreendemos muito bem quais serão as consequências devastadoras para a Europa e para os valores que representamos. E para o mundo. É por isso que é crucial agir”, destaca o político liberal belga. Passados ​​dois anos desde a invasão em grande escala lançada por Vladimir Putin, a UE, diz ele, deve continuar a dar passos em frente no seu apoio a Kiev. E ainda mais agora que a situação nos Estados Unidos é “difícil”, reconhece ele, e o apoio de Washington está a vacilar. “Não há alternativa senão continuar apoiando. Temos apenas um plano, e esse plano é apoio, apoio, apoio”, observou Michel numa conversa na quarta-feira com cinco meios de comunicação europeus, incluindo o EL PAÍS, em Bruxelas.

“O apoio à Ucrânia é um investimento na paz e na estabilidade. Devemos lutar pela Ucrânia, pela Europa, pelos Estados Unidos e pelo resto do mundo. Caso contrário, enviamos uma mensagem de que está tudo bem para o resto do mundo que um país que é mesmo membro do Conselho de Segurança da ONU e que tem armas nucleares invada outro", afirma o presidente do Conselho Europeu, órgão que representa os líderes dos estados membros. “Vamos explicar e agir quantas vezes forem necessárias. Não podemos permitir-nos cair na fadiga ou no tédio”, alerta Michel, que alerta que a Rússia pode explorar e alimentar esta semente de fadiga e também usá-la para minar o espírito europeu e o projeto da UE face às eleições para o Parlamento. Junho.

No sábado, a guerra que abalou o continente europeu e o resto do mundo entrará no seu terceiro ano. É um dos momentos mais difíceis para a Ucrânia: a contra-ofensiva falhou, a situação nas frentes de batalha é extremamente complicada por falta de munições, material e falta de rotação. A isto soma-se a preocupação com o eventual regresso do republicano Donald Trump à Casa Branca e o atraso do quadro para a futura adesão à UE, que deveria ser apresentado em março. Na quarta-feira, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, referiu que só estará pronto no verão, depois das eleições europeias de junho. A insinuação, abandonada pelo chefe do Executivo comunitário na ratificação da sua família política, o Partido Popular Europeu (PPE), da sua candidatura, chocou Kiev e alguns Estados-Membros.

“A morte de Navalny é um lembrete da natureza do regime russo”

Na Rússia, o chefe do Kremlin, que aproveitou a oportunidade para aumentar a sua produção de armas, está a preparar uma nova ofensiva em vários pontos da linha da frente para o final da primavera, segundo fontes de inteligência ocidentais. Putin sente-se fortalecido por ter feito alguns progressos (ainda que tímidos) no campo de batalha e também por ter enterrado outro dos seus inimigos, o opositor Alexei Navalni, que morreu numa sombria prisão de segurança máxima no Ártico, onde cumpria 19 anos. na prisão por um caso que a UE considera perseguição política. Michel culpa o Kremlin por essa morte e diz que é um “lembrete” da “natureza do regime russo”.

Entretanto, os europeus parecem pessimistas quanto às hipóteses de a Ucrânia vencer a guerra e a maioria acredita que o conflito terminará com algum tipo de acordo, de acordo com um inquérito realizado em 12 países (incluindo Espanha) pelo think tank ECFR . O inquérito também destaca que os cidadãos europeus estão cépticos quanto à capacidade de apoiar a Ucrânia sem os Estados Unidos – uma variável clara se Trump regressar à Casa Branca – e a maioria acredita que as políticas de Washington devem ser imitadas.

“As decisões que tomámos, a abertura de negociações de adesão com a Ucrânia, o pacote de apoio financeiro de 50 mil milhões de euros , são um apelo aos nossos aliados, especialmente aos Estados Unidos, para fazerem o que for necessário para apoiar a Ucrânia com assistência militar e económica. É a principal prioridade. E espero sinceramente que os Estados Unidos compreendam que apoiar a Ucrânia é também uma fórmula contra regimes autoritários em todo o mundo que desafiam e desprezam o mundo baseado em regras.”

Uma União Europeia de defesa é urgente. Custe o que custar"

Embora a UE tenha cada vez menos espaço para tomar medidas históricas, Michel salienta que há espaço para apoio político, militar e financeiro. “Estamos trabalhando para tentar usar ativos russos congelados, no todo ou em parte, para ajudar a reconstrução da Ucrânia. É uma questão de justiça, de Estado de direito, de responsabilidade e de prestação de contas e estou certo de que nas próximas semanas poderemos avançar”, afirma o presidente do Conselho Europeu, que reconhece que existem “leis desafios" para alcançá-lo e ressalta que devemos construir uma estrutura com o G-7. Juntamente com o Grupo dos Sete, a UE concordou em congelar cerca de 300 mil milhões de euros de activos russos, mas está a debater como utilizá-los. Na semana passada, o clube comunitário deu o primeiro passo no seu plano de acção e ordenou que todas as receitas provenientes dos juros gerados por esses activos fossem congeladas numa conta a partir desse momento.

Esta quarta-feira, à medida que aumenta a pressão para que a UE chegue a acordo sobre sanções contra os responsáveis ​​pela morte de Navalny, os Vinte e Sete aprovaram o 13.º pacote de punições contra cidadãos e empresas russas para tentar sufocar o esforço de guerra do Kremlin. Estas medidas para congelar bens e proibir a entrada em solo comunitário incluem, pela primeira vez, várias empresas chinesas, como noticiou o EL PAÍS, e uma indiana. O objectivo da UE agora é que a Rússia deixe de receber materiais para uso civil através de outros países que utiliza para construir armas. Mas está se tornando cada vez mais difícil executar as medidas. “Imediatamente após a aprovação de um pacote de sanções, o próximo começa a ser preparado”, diz Michel, porém.

Para a UE, a guerra da Rússia contra a Ucrânia, que também expôs enormes vulnerabilidades devido à dependência do gás russo barato, tem sido um poderoso alerta para a construção de uma verdadeira autonomia estratégica. Em todos os campos. Também em segurança e defesa. “Uma União Europeia de defesa é urgente. Custe o que custar. Precisamos de agir e ser credíveis, precisamos de agir para proteger os nossos valores, os nossos interesses, respeitar os outros e ser respeitados”, afirma Michel sobre um dos grandes debates da Europa do futuro, que tenta avançar para proteger proteger-se da ameaça militar e isso pode ser visto sozinho, sem a proteção dos Estados Unidos.

“Em torno do Conselho Europeu houve um certo entendimento de que a NATO era o guarda-chuva de segurança e protecção dos membros da Aliança, enquanto a UE estava focada no desenvolvimento económico alinhado com os nossos valores. Agora enfrentamos um novo paradigma e temos consciência da mudança”, destaca. “O objetivo dos Estados-Membros deve ser investir mais na defesa, melhor e menos fragmentada”, afirma o político belga.

Maria R. Sahuquillo, jornalista, originalmente, de Bruxelas - Bélgica para o EL PAÍS, em 22.02.24

10 erros que pessoas emocionalmente inteligentes não cometem

Reprimir emoções, culpar os outros pela nossa própria infelicidade e outras falhas que nos distanciam da inteligência emocional

Lorenzo Montator

Desde que Daniel Goleman publicou o já clássico Inteligência Emocional (Kairós) em 1995, a capacidade de reconhecer as próprias emoções e as dos outros foi incorporada ao mundo da educação e dos negócios. Porém, o que significa ter inteligência emocional em nosso dia a dia? A escritora Brianna Wiest responde a essa pergunta em sua antologia 101 Reflexões que mudarão sua maneira de pensar (Gaia). Este jovem autor americano, que publicou recentemente duas vezes em Espanha, aborda a questão do extremo oposto: quais são as 10 coisas que as pessoas com elevado nível de inteligência emocional não fazem?

Suponha que o que pensam e sentem corresponde à realidade. Cada visão da situação vivida é parcial e subjetiva. Considerar que “você está certo” e que os outros estão errados é um plano de seguro para o sofrimento. Como recomenda Joseph Nguyen em seu livro de mesmo título: Não acredite em tudo que você pensa .

Faça com que o bem-estar emocional dependa de causas externas. Culpar a nossa infelicidade nos outros ou em circunstâncias fora do nosso controlo leva a uma indignação enfraquecedora, à medida que deixamos de cuidar do que depende de nós e subscrevemos a passividade e o ressentimento.

Saber o que nos faria felizes. Pessoas com baixa inteligência emocional tendem a presumir que o que não têm é o que poderia lhes proporcionar bem-estar pessoal. Porém, todo desejo leva a outro, como uma cenoura que nunca é alcançada.

Afaste-se daquilo que tememos. Nas palavras de Brianna Wiest, “medo significa que você está tentando avançar em direção a algo que ama”. Portanto, uma pessoa com inteligência emocional assumirá o medo como uma porta que a convida a atravessá-la para chegar a outra realidade.

Entenda que a felicidade deve ser permanente. Essa aspiração é ilusória, pois a vida é feita de experiências diversas e devemos aprender a passar por todas elas com naturalidade, relativizando o que estamos vivenciando.

Deixe-se levar pelos pensamentos. O que no budismo é chamado de “mente de macaco” descreve os saltos de nossas próprias ideias e das ideias de outras pessoas que fervilham em nossas mentes. Para nos libertarmos desta escravidão, o primeiro passo é, em vez de seguir o macaco, tomar consciência das nossas crenças para nos desidentificarmos delas.

Reprimir emoções. Inteligência emocional não consiste em conter o que sentimos, mas em administrá-lo adequadamente para tomar melhores decisões e expressá-lo da maneira certa e no momento certo.

Pensar que o sofrimento vai acabar com você. Segundo o autor da referida antologia, pessoas com elevada inteligência emocional “desenvolveram consciência e resiliência suficientes para saber que todas as coisas, mesmo as piores, são transitórias”.

Tente fazer amizade com todos. Uma pessoa emocionalmente inteligente é empática e procura promover a confiança e a intimidade, mas não indiscriminadamente. Ele escolhe conscientemente quem permite entrar em sua vida pessoal, mesmo que seja legal com todos.

Confundir um sentimento triste com uma vida triste. A primeira se deve a uma experiência específica e, portanto, temporária. Não há necessidade de extrapolar a situação atual com um futuro a ser planejado. De acordo com Wiest, as pessoas com verdadeira inteligência emocional “permitem-se ter ‘dias ruins’ porque são totalmente humanas”. Não resistir ao que o presente nos traz, na verdade, é a chave para a paz pessoal.

Este último ponto foi fundamento de filósofos estóicos como Sêneca , que chegou ao ponto de afirmar que "não há ninguém menos afortunado do que aquela pessoa que a adversidade esquece, já que não tem oportunidade de se testar".

Reflexões desse tipo podem incomodar quem passa por um momento difícil, mas o pensador romano nascido em Córdoba destaca que muitas vezes ficamos “mais assustados do que magoados”, no sentido de que sofremos com cenários catastróficos que nunca chegarão a acontecer. passar. 

Sofrer antes do necessário é sofrer mais do que o necessário, comenta Sêneca, e esse seria o exemplo máximo de inteligência emocional, lidando com o bom e o mau no devido tempo, sem antecipar a vida. Entregar tudo ao hoje, simplesmente fazer o que devemos fazer com atenção e naturalidade, é a forma mais sábia de caminhar pelo mundo.

A parábola dos cegos e do elefante

— Uma das fábulas mais famosas da tradição indiana conta que quatro cegos tentavam examinar um elefante que havia chegado à aldeia.

—O primeiro, ao tocar no tronco, exclamou com medo de que fosse uma cobra enorme. O segundo, que estava apalpando uma das patas do animal, afirmou que era uma árvore. A terceira estava com as mãos em uma das orelhas, que identificou como leque. A quarta pessoa, que agarrou uma presa, disse que estava tocando uma lança.

— A discussão continuou até que um visionário local se aproximou para explicar que todos estavam certos, mas o erro veio de tomar a parte pelo todo; Isso os impediu de compreender o todo.

— Aplicada à inteligência emocional, a chave é compreender que cada pessoa vê a realidade a partir da sua perspectiva, condicionada pelas suas próprias experiências e, portanto, a verdade absoluta não existe.

Francisco Miralles, o autor deste texto, é jornalista especializado em temas de psicologia. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 22.02.24.

“No documentário o espectador tem menos tolerância à dor do que na ficção”

Maite Alberdi, a cineasta chilena, diretora de ‘Memória Infinita’, indicado ao Oscar, aborda seu processo criativo e como a dor de seus personagens passa a ser sua.

Maite Alberdi, em Nova York.(Paola Chapdelaine)

A gravação de A Memória Infinita , recentemente premiado como Melhor Filme Ibero-Americano no Goya, durou quatro anos e meio. Nas três primeiras, Maite Alberdi (Santiago, 40 anos) não bateu em nenhuma porta. 

Você não gosta de vender algo sem ter certeza de que entregará o que foi prometido. Para descobrir, você não tem escolha a não ser pegar sua câmera e esperar muitas horas até que o que você procura aconteça. Seu olfato e sensibilidade particulares fazem com que esses momentos finalmente aconteçam. E fique animado. 

“No início está sempre em risco financeiro e muitas vezes em risco criativo”, aponta esta terça-feira numa videochamada a partir de um hotel em Nova Iorque, em plena campanha dos Óscares, onde aspira o filme sobre cuidados e Alzheimer. ganhar o prêmio de Melhor Documentário.

Enquanto Maitê Alberdi registrava a história de amor entre a atriz Paulina Urrutia e o jornalista Augusto Góngora, protagonistas de La Memoria Infinita , trabalhava em El agente topo , um retrato profundo da solidão em uma casa de repouso, também aclamado pela crítica e presente no principal. prêmios da indústria. Nos documentários, as gravações são pacientes, calmas, mas a chilena não para . Numa janela que teve em 2023, gravou seu primeiro longa-metragem de ficção, filme para a Netflix que ainda não pode comentar.

Pergunta. Seu trabalho aborda os dramas pelo prisma do humor e do afeto. Quer dar-lhes uma folga?

Resposta. É uma decisão que tomo quando escolho as pessoas que vou filmar. Se não me fazem rir ou ter leveza, não consigo. Se algo é muito, muito, muito terrível, muito trágico, sem nuances, não vou entrar nisso, até porque acho que no documentário o espectador tem menos tolerância à dor do que na ficção, porque é real. A vida já é terrível o suficiente sem você fazer um documentário onde não há luzes. Além disso, na vida existem luzes. Como procuro encarar dessa forma, escolho lugares e pessoas que, no meio de um possível drama, me façam rir ou que se divirtam no dia a dia. Trata-se de as tragédias serem contextos e não a forma de abordar essa realidade. A partir daí fiquei fisgado porque tenho que conseguir dormir à noite. É como a dor na medida certa.

P. Eles também são temas universais. Você não precisa ser chileno ou conhecer os personagens para ter empatia. Quanto isso pesa em seus projetos?

R. Trabalho para o mundo, não para um país ou uma idiossincrasia. Mais do que o tema, o que os personagens geram deve ser universal, que você realmente consiga se conectar com a pessoa que está à sua frente e que os temas possam ser discutidos em todos os lugares. Tem a ver principalmente com o nível de conexão que gera em mim e que vejo que pode impactar outras pessoas. Eu sou o primeiro parâmetro na hora de dizer ‘ok, quero estar com essa pessoa, isso gera interesse, entusiasmo, me conecta emocionalmente’ e entender que esse radar vai funcionar para o público.

P. Já se passaram anos trabalhando com os personagens. Até que ponto isso está ligado a esses relacionamentos?

R. Convivo muitos anos com as pessoas que filmei. Então são personagens de filmes, mas para mim são relações pessoais que tenho na minha vida e que construo. O que acontece com eles acontece comigo, o que eles sentem, eu sinto, e as perdas deles são as minhas perdas. No final, isso se torna minhas experiências de vida. Vivo assim porque é muito tempo compartilhado. Eles são meus duelos e meus amores também.

P. Quando você recebeu o Goya, você disse que a Memória Infinita lhe ensinou outras formas de luto. Quais foram?

R. É uma grande perda, mas fico com a sensação de uma celebração da boa vida e do bom amor. A mesma sensação que tive no funeral do Augusto [Góngora]: uma tristeza nostálgica, mas sem o sentimento de tragédia com que normalmente se aborda a morte. Acho que também já vi a Paulina assim, compartilhando a dor, o luto, falando sobre isso, muito exposta no bom sentido. As dificuldades são faladas e não escondidas, como aconteceu com o Alzheimer.

P. Foi um ano de reconhecimento. O momento, tema do documentário, é uma recompensa pelo esforço de muitos anos?

R. Acho que é um pouco, mas não existe um filme sem o outro. Prêmios como o DOC NYC, o Sundance, que são para o filme, também decorrem da visibilidade que os anteriores tiveram. O sucesso de La Memoria... atribuo ao facto de ter uma emoção muito excepcional. Além da questão do Alzheimer, que não creio que seja o problema, sinto que é o que acontece com as pessoas que assistem ao filme em todos os países. É o mesmo nível de intensidade e isso nem sempre acontece.

P. Agente Toupeira também chegou ao Oscar, mas foi uma campanha virtual devido à pandemia. Agora ele promove La Memoria Infinita no local há 13 meses. Como a diferença afeta?

R. Prefiro mil vezes a campanha pandêmica pela minha qualidade de vida. Também me pareceu uma campanha mais democrática para os filmes, onde não era necessário aplicar todos os orçamentos que os distribuidores utilizam. Chegamos com El Topo porque todos os filmes estavam nas mesmas condições e não havia eventos para organizar. Foi um filme independente em distribuição, não como La Memoria Infinita . Neste contexto não sei se o teríamos conseguido. Um ano de campanha é muito longo, mas o Sundance [onde o documentário estreou em janeiro de 2023] é o melhor festival para entrar nos Estados Unidos. Você simplesmente não sabe o que vai acontecer. Se a imprensa vai te pegar [levar em conta], se você vai vender. É uma aposta, mas aqui deu tudo certo: ganhamos [o prêmio do júri], eles compraram, a imprensa foi incrível. O número de países em que foi lançado e o impacto que teve é ​​bastante impressionante.

P. Como tem sido sua experiência na indústria de Hollywood ?

R. As campanhas de premiação são muito cansativas para um diretor. Tenho vivido isso como uma oportunidade de divulgar o meu cinema, tenho procurado aceitá-lo dessa forma, agradecer por ter um espaço. É uma oportunidade que não sei se acontecerá novamente. Foi muito particular: ter uma distribuidora disposta a investir num diretor chileno e num filme chileno nos Estados Unidos e no mundo. Isso nem sempre acontece. Agradeço o presente, mas é isso. Já fizemos tudo, estamos aqui, era impossível: 167 filmes, a maioria gringos [americanos] e conseguimos. Só vou comemorar, estar lá sem expectativas.

Antônia Laborde, Jornalista, de Santiago do Chile, originariamente, para o EL PAÍS, em 22.02.24

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

“Os nossos impostos servem para reforçar ditadores, senhores da guerra e sistemas que exploram outros seres humanos”

A jornalista irlandêsa Sally Hayden, especializada em migração, publica na Espanha o seu livro 'Quando tentei pela quarta vez, afogámo-nos', galardoado com o Prémio Orwell 2022 de literatura política

Sally Haydenposa na esplanada do Instituto Europeu do Mediterrâneo (IEMED), em Barcelona. (Albert Garcia)

Nem sempre uma pessoa decide a que causa vai dedicar sua vida. Às vezes é a causa que a escolhe. Ele gradualmente entra em sua existência até colonizá-lo. Foi o que aconteceu com a jornalista Sally Hayden (Dublin, 1989), especializada no continente africano. Há mais de cinco anos, ela começou a receber mensagens de migrantes em centros de detenção solicitando a sua ajuda. Hayden envolveu-se profundamente, construiu uma ampla rede de contactos e a cobertura da chamada “crise da imigração” tornou-se o centro do seu trabalho. O resultado é o livro When I Tried It the Fourth Time, We Drowned (Capitão Swing), vencedor de diversos prêmios, incluindo o Prêmio Orwell de Literatura Política em 2022.

Pergunta. Fala-se muito sobre migração, mas acha que a opinião pública europeia está bem consciente do inferno que os migrantes passam em lugares como a Líbia ?

Responder. Não, o debate público europeu está muito separado das experiências humanas daqueles que querem vir para a Europa. Até o conceito de migrantes é desumanizante. São pessoas como nós, com esperanças, sonhos, famílias. Muitas vezes perdemos de vista o facto de que a verdadeira crise que vivemos é uma crise de desigualdade global. Grande parte da humanidade não tem capacidade legal para viajar e ter acesso a vistos. O resultado é que muitas viagens são desesperadas e perigosas.

A verdadeira crise que vivemos é uma crise de desigualdade global

P. Existe um certo estereótipo de migrantes na sociedade. Eles se parecem com as pessoas que você conheceu?

R. O problema é que muitas vezes são tratados como se fossem um grupo homogéneo, quando não o são. Eles vêm de lugares muito diferentes e as causas que os levaram a abandonar as suas casas, as suas circunstâncias pessoais, são muito diferentes. Conheci pessoas muito diferentes nos centros de detenção da Líbia: artistas, estudantes de direito ou de medicina, dentistas... Alguns são da África Ocidental, outros da África Oriental, e nunca tinham tido contacto com alguém do outro extremo antes. o continente.

O público não conhece as ramificações da política europeia, o que significa encerrar famílias inteiras em locais onde são cometidos abusos graves

P. No livro você insiste na responsabilidade da União Europeia e da ONU nas graves violações dos direitos humanos em lugares como a Líbia . Atinge os níveis mais altos?

R. Sim, claro. Algo que descobri quando comecei a investigação é que a UE tem um papel muito mais activo na situação, e os seus líderes sabem disso, e fazem-no em nosso nome. A sua justificação é que os cidadãos querem estas políticas. Mas acredito que a opinião pública não conhece as ramificações da política europeia, o que significa encerrar famílias inteiras em locais onde são cometidos abusos graves. Muitos até morrem ali, mas não sabemos quantos. A UE tem uma responsabilidade direta pelo retorno das pessoas interceptadas no mar para a Líbia, para centros que o Papa Francisco chama de “campos de concentração” . Os nossos impostos servem para reforçar ditadores, senhores da guerra e sistemas que exploram outros seres humanos. E isso não é um problema apenas na Líbia, uma vez que a política anti-imigração da UE tem efeitos nocivos em todas as suas fronteiras.

P. Para muitos, mesmo que sejam reconhecidos como refugiados, o pesadelo não termina com a sua regularização na Europa.

R. Sim, porque muitas vezes, passado o perigo, surge o trauma; quando a mente tenta digerir tudo o que aconteceu. Muitos sofrem de stress pós-traumático, insónia e outros distúrbios, e ter de recontar estes horrores repetidamente nos processos para regularizar a sua situação não ajuda.

Falamos das vítimas no Mediterrâneo como simples números. As vozes daqueles que sofrem com esta situação são ignoradas.

P. Até que ponto os meios de comunicação social também são responsáveis?

R. É difícil falar sobre a mídia em geral. É verdade que a questão da migração é abordada, mas muitas vezes é para reflectir e reproduzir a retórica desumanizante dos políticos. Outras vezes falamos das vítimas no Mediterrâneo como simples números. As vozes daqueles que sofrem com esta situação são ignoradas. Temos que ouvi-los com mais atenção, e foi isso que tentei com este livro. Um dos problemas da cobertura do tema é que muitos jornalistas não dispõem de recursos suficientes, incluindo tempo, porque os seus meios de comunicação não cobrem as despesas que isso exige.

Sally Hayden, em Barcelona (Albert Garcia)

P. Por que você acha que a opinião pública europeia é insensível?

R. Vivemos numa época estranha. Por um lado, é muito fácil descobrir o que se passa do outro lado do mundo, mas também é fácil para muitas pessoas ignorarem este problema, não assumirem responsabilidades. Mas se olharmos para as causas da migração, muitas vezes elas têm a ver com as nossas ações. No Senegal, grandes barcos estrangeiros estão a esvaziar os recursos haliêuticos de que vivem os pescadores locais. Na Somália, a seca ligada às alterações climáticas condena à fome uma sociedade que quase não emitiu gases poluentes. Milhares de pessoas já morreram por esta causa.

P. Se não fosse devido à pressão da opinião pública, a mudança nas políticas poderia ocorrer através de resoluções judiciais?

R. O Tribunal Penal Internacional está a investigar perpetradores europeus de crimes contra a humanidade e os meus artigos foram utilizados como prova. Talvez estas batalhas tenham sucesso e consigam mudar a realidade mais do que algumas reportagens jornalísticas conseguiram. É uma situação complicada porque, além disso, toda esta situação ocorre enquanto os países europeus precisam da migração para preencher muitas vagas nos seus mercados de trabalho.

Muitos migrantes sofrem de stress pós-traumático, e ter de contar repetidamente estes horrores nos processos para regularizar a sua situação não ajuda.

P. Até que ponto estar tão próximo destes casos difíceis também o afecta a nível psicológico?

R. Muitas vezes você se sente culpado porque perdeu uma mensagem ou porque não respondeu a tempo. Como é proibido ter telefone nos centros de detenção, o horário em que eles podem escrever para você – e o fazem com risco de vida – é à noite, às vezes até as três da manhã. O mérito deste livro é seu, muitos arriscaram suas vidas para transmitir esta informação. Foram eles que realmente sofreram e que devem estar no centro da história, não eu.

P. Você continuará cobrindo questões de imigração no futuro?

R. Sim, não vou abandonar.

Ricardo Gonzalez, Jornalista, de Barcelona - Espanha, originalmente, para o EL PAÍS, em 07.02.24

A irresponsabilidade de Lula

Ele reciclou a usina de besteiras de Bolsonaro

O presidente Lula, durante assembleia em Adis Abeba - Michele Sapatari - 17.fev.24/AFP

Ao mandar Jair Bolsonaro para casa, o Brasil parecia ter se livrado de um encosto. Durante a pandemia, esse espírito duvidava da vacina, sugeria que o vírus da Covid havia sido fabricado na China e exaltava a cloroquina. Lula recolocou o Brasil nos eixos na questão ambiental e atravessou o mundo para resgatar o encosto, escorregando na casca de banana de Gaza.

No domingo passado, em Adis Abeba, ele disse que "o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino, não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus". Com isso, abriu uma crise e foi declarado persona non grata pelo governo de Israel.

Lula já havia costeado o alambrado dias antes, no Cairo, com duas frases: "O Brasil foi um país que condenou de forma veemente a posição do Hamas no ataque a Israel e o sequestro de centenas de pessoas. Nós condenamos e chamamos o ato de ato terrorista".

Falso. O ataque do Hamas aconteceu no dia 7 de outubro. Cinco dias depois, o Itamaraty informou que a classificação do Hamas como organização terrorista competia à ONU. Posteriormente é que falou em terrorismo.

Lula acrescentou: "Não tem nenhuma explicação o comportamento de Israel, a pretexto de derrotar o Hamas, está matando mulheres e crianças —coisa jamais vista em qualquer guerra que eu tenha conhecimento".

Ressalvada a falta de conhecimento, essa afirmação foi um exercício de retórica amparada na ignorância.

A fala de Adis Abeba teve a ver com a classificação do comportamento de Israel em Gaza como "genocídio". Que as tropas de Binyamin Netanyahu cometem crimes de guerra, é certo. Genocídio é outra coisa, é um ato deliberado de exterminar um povo, esteja ele onde estiver.

Em junho de 1944, com a guerra perdida, os alemães capturaram os 400 judeus que viviam na ilha de Creta. Naquele mês, o brasileiro Benjamin Levy, a mulher e a filha foram presos em Milão e deportados para o campo de Bergen-Belsen.

Lula já disse que Napoleão foi à China e que os americanos derrubaram Dilma Rousseff de olho no petróleo do pré-sal: "É preciso que [o petróleo] esteja na mão dos americanos porque eles têm que ter o estoque para guerra. A Alemanha perdeu a guerra porque não chegou em Baku, na Rússia, para ter acesso à gasolina".

A batalha de Stalingrado terminou em fevereiro de 1943, quando os alemães já haviam sido contidos em Moscou, os Estados Unidos estavam na guerra e haviam quebrado a perna da Marinha japonesa. Se os alemães chegassem a Baku, pouca diferença faria. Eles não perderam a guerra por falta de gasolina.

Vale lembrar que a Segunda Guerra também não acabou porque os americanos tinham mais gasolina. Ela acabou depois das explosões de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, que ficaram prontas em 1945.

De onde Lula tira essa ideias, não se sabe, mas no seu terceiro mandato ele se move na cena internacional com uma onipotência aplaudida por áulicos e venenosa para a diplomacia brasileira.

Durante seu primeiro ano deste mandato, firmou-se como um chefe de Estado excêntrico. A fala de Adis Abeba temperou a ignorância com irresponsabilidade.

Elio Gaspari, jornalista, o autor deste artigo, é  ainda o autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada". Publicado originalente na Folha de S. Paulo,em 21.02.24

Mais que Assange

Extraditar o editor do Wikileaks para os Estados Unidos seria uma forma de intimidar a mídia e suas fonte

Apoiadores de Julian Assange, esta terça-feira em frente ao Tribunal de Recurso de Londres. (Toby Melville (Reuters)

Nas próximas horas um tribunal do Reino Unido poderá decidir se Julian Assange, editor do Wikileaks acusado de revelar informações secretas do Governo dos Estados Unidos em 2010 e 2011, tem o direito de recorrer da sua extradição para os Estados Unidos, autorizada em 2022 pelos britânicos. Supremo Tribunal Federal e confirmado pelo Executivo. Negar esse direito ao famoso hacker australiano —cujas revelações mostraram fatos e estratégias da opinião pública mundial que Washington tentou esconder durante anos—pode não significar apenas uma sentença de 175 anos de prisão para uma pessoa cujo suposto crime foi publicar documentação que um governo estava ocultar-se deliberadamente à sua sociedade, mas também um duro golpe para o jornalismo de investigação e, em suma, para a liberdade de imprensa em todo o mundo.

As acções de Assange foram vitais na divulgação de informação protegida por uma utilização falaciosa do conceito de segredo de Estado. Entre eles, provas documentais de ações ilegais do exército dos EUA contra civis nas guerras no Afeganistão e no Iraque ou pressão sobre os governos de países soberanos ao longo de várias décadas.

O Wikileaks foi um esforço de divulgação no qual colaboraram meios de comunicação de todo o mundo, contribuindo com centenas de profissionais que verificaram a autenticidade da documentação e, em linha com os códigos jornalísticos de deontologia, colocaram em prática os protocolos necessários para garantir que a publicação desta informação seria não colocar em risco a vida de qualquer pessoa. Isso aconteceu, por exemplo, com a publicação, a partir de 2010, de mais de 250 mil documentos do Departamento de Estado dos quais participaram EL PAÍS, The New York Times, The Guardian, Le Monde e Der Spiegel.

O assédio sofrido por Julian Assange desde praticamente essa mesma data - o que o obrigou a pedir asilo durante sete anos ao Governo do Equador em sua embaixada em Londres, onde além disso, como revelou o EL PAÍS, era espionado 24 horas por dia por uma empresa espanhola - vai além da perseguição de Washington a um alegado crime de revelação de segredos, mas constitui uma forma inequívoca de intimidar os meios de comunicação social e as suas fontes.

Certamente, a figura de Assange é controversa. Seus problemas judiciais começaram com uma fuga da justiça sueca após ser acusado de estupro e abuso sexual, acusações das quais sempre se declarou inocente e vítima de uma armação para extraditá-lo para os Estados Unidos. Ele também foi acusado de fazer parte da estratégia de Vladimir. … Putin para desestabilizar o Ocidente. Finalmente, a relação com os meios de comunicação que divulgaram as informações do Wikileaks tem sido por vezes turbulenta. Mas nada disto pode esconder o seu papel decisivo como actor necessário para que os direitos dos cidadãos, especialmente dos americanos, fossem respeitados quando o seu Governo agiu no sentido oposto.

Muito mais se decide hoje em Londres do que a extradição de um cidadão acusado de um crime. O que está em causa é, numa época de montagens, boatos e realidades alternativas como a que vivemos, uma forma rigorosa e independente de fazer jornalismo. E com ela, dois pilares da democracia: a liberdade de imprensa e o direito à informação.

Editorial do EL PAÍS,em 21.02.24

A democracia brasileira poderá recuperar sua alma?

Se Bolsonaro e os líderes golpistas militares forem finalmente julgados e condenados, será o início de uma mudança de paradigma.


O ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro deixa a sede da Polícia Federal após testemunhar sobre os tumultos de 8 de janeiro em Brasília, Brasil, em 18 de fevereiro.  (Ueslei Marcelino / Reuters)

Uma operação da Polícia Federal brasileira batizada de Tempus Veritatis (Tempo da Verdade) revelou o que já era claramente visível, mas ainda não havia evidências suficientes para afirmar: o extremista de direita Jair Bolsonaro planejou um golpe para se perpetuar no poder e para para isso, contou com o apoio de militares de alta patente. Outros oficiais militares de alta patente não apoiaram a violação constitucional, mas não a denunciaram nem prenderam os seus colegas golpistas. A investigação ainda não terminou e, por enquanto, apenas o passaporte de Bolsonaro foi apreendido. O que acontecer a partir de agora poderá definir o futuro da democracia no Brasil.

Em grande medida, o Brasil de hoje é resultado da anistia concedida aos militares que sequestraram, torturaram e executaram durante a última ditadura, que durou 21 anos , de 1964 a 1985. Ao contrário de países vizinhos como a Argentina, que está recuperando a democracia , julgaram criminosos do Estado e prenderam torturadores e ditadores, o Brasil optou pela anistia. Esse tipo de impunidade, que permitiu que pessoas torturadas encontrassem seus torturadores na padaria, deformou a democracia brasileira.

Há um limite para o que pode ser aceite sem que a democracia perca a sua alma. O Brasil então o atravessou e, a partir daquele momento, o cruzaria diversas vezes, a começar pelo fato de negros e indígenas ainda viverem sob um regime de exceção de direitos. Jair Bolsonaro, capitão do Exército que iniciou sua carreira na política após ser julgado – e vergonhosamente absolvido – pela justiça militar por planejar atos terroristas como forma de pressão para obter aumento salarial, é filho desta democracia corrompida de nascença. Ao longo de sua carreira política, cometeu diversos atos classificados como crimes no Código Penal, incluindo incitação à tortura, e nunca foi preso. Tanto que se tornou presidente do Brasil.

Se Bolsonaro for finalmente responsabilizado pelas suas ações e oficiais militares de alta patente forem condenados por planear um golpe, será uma mudança de paradigma para o Brasil. Ainda muito longe de algo que se assemelhe à “normalidade democrática”, mas ainda assim decisivo. Tanto que Bolsonaro apelou aos seus seguidores para que façam uma demonstração de força no próximo domingo, juntando-se a ele numa manifestação em São Paulo, a maior cidade do país. Pediu que alguns deles viessem com “a medalha dos três I's ”, uma obscenidade com sua foto acompanhada dos três adjetivos que acredita representá-lo: “ Indespalmável , imorcível e inculpável ”. Mas para quem aprecia a justiça e a vida, Bolsonaro só é caracterizado por três g's : grotesco, golpista e genocida. Espera-se que a sentença do prisioneiro finalmente o alcance em breve.

Eliane Brum, Jornalista, originalmente para o EL PAÍS, em 21.02.24. Tradução de Meritxell Almarza

O Uruguai é a democracia mais forte da América Latina?

O índice de qualidade democrática da The Economist destaca a estabilidade do país sul-americano graças a um forte sistema partidário que “impede o surgimento de líderes populistas e desvios autoritários”

Apoiadores do Partido Nacional comemoram a vitória de Luis Lacalle Pou em Montevidéu, Uruguai, em novembro de 2019. (Matilde de Campodonico / AP)

A democracia uruguaia se destaca na região e se consolida como a mais estável da América Latina e do Caribe, segundo o índice de qualidade democrática da revista The Economist . O Uruguai, com 3,4 milhões de habitantes, ocupa o 14º lugar numa lista que abrange 165 países encabeçados pela Noruega e no mesmo nível da Austrália e abaixo do Canadá, o mais democrático das Américas. De acordo com esta classificação, pouco mais de 1% da população da América Latina e do Caribe goza de “democracia plena”, no Uruguai e na Costa Rica, o outro país com melhor classificação e localizado no 17º lugar. Na América do Sul, o Chile é seguido ( 25º lugar), Suriname (49), Brasil (51), Argentina (54) e Colômbia (55), consideradas “democracias imperfeitas”.

“A força da democracia uruguaia baseia-se em grande parte num sistema de partidos fortes que evita o surgimento de líderes populistas e de desvios autoritários, como os que vemos em outros países da região”, disse ao EL PAIS Nicolás Saldías, médico. Science e membro da Unidade de Inteligência do The Economist, responsável por este índice divulgado há dias. O cientista político destaca que a cultura democrática, profundamente enraizada no Uruguai, se fortaleceu após a ditadura que governou o país entre 1973 e 1985 . “Pesquisas mostram que os uruguaios são, de longe, os mais comprometidos com o sistema democrático da região”, explica Saldías por e-mail de Washington, onde reside.

O Uruguai obtém a nota máxima, 10 em 10, em “sistema eleitoral e pluralismo”, uma das categorias avaliadas desde 2006. Também aparece como um dos melhores do mundo em “liberdades civis”, com 9,71 pontos, enquanto que em “funcionamento do governo” obtém 8,93. Em “cultura política” este ano a pontuação caiu para 6,88, principalmente pelo fato de alguns uruguaios terem sido a favor de especialistas (sem filiação partidária) terem mais poder político. Em “participação política” tem 7,78 pontos, porque o voto obrigatório que rege o Uruguai (como em outros dez países latino-americanos) é considerado um indicador negativo pela revista britânica. Votar ou não, defendem os seus autores, deveria ser uma escolha livre.

O veterano analista político uruguaio Oscar Bottinelli, diretor da consultoria Factum , discorda desse critério . Para Bottinelli, essa é justamente uma característica que sustenta o sistema democrático uruguaio: “O voto obrigatório faz com que todos participem”. Nesse sentido, entende que a valorização negativa do sufrágio obrigatório “provém de um liberalismo individualista” que tem componentes “altamente elitistas”. A tradição mostra que no país sul-americano há uma “sacralização do voto”, afirma. Nas eleições gerais de 2019, a participação atingiu 90% e os votos em branco ou anulados não ultrapassaram 4%. “Isso reflete que as pessoas escolhem, dando força ao sistema”, afirma.

Bottinelli concorda que a solidez do sistema político-partidário é um pilar que apoia em grande parte a democracia local. O país passou de um sistema bipartidário com os históricos Colorado e Blanco, para um sistema tripartido com a incorporação da esquerdista Frente Ampla, que governou entre 2005 e 2020, até chegar ao atual sistema multipartidário. “Mas sempre dentro do sistema partidário, no Uruguai não há movimentos antissistema”, ressalta. O seu “elenco estável” de líderes políticos também teve influência, continua Bottinelli, cuja renovação geracional começou abruptamente na última década. “Esse tem sido outro ponto forte”, ressalta.

Uma região em crise

O índice mostra que 2023 foi o oitavo ano consecutivo de declínio democrático na América Latina e no Caribe, cuja pontuação média caiu de 5,79 em 2022 para 5,68 em 2023. Pouco mais de 1% da população da região vive em plena democracia, 54% em democracias defeituosas, 35% em regime híbrido (entre imperfeito e autoritário) e 9% em regimes autoritários. O maior declínio foi registado em El Salvador , afirma o relatório, cuja pontuação se deteriorou a mando do governo “cada vez mais autoritário” do Presidente Nayib Bukele e da sua candidatura inconstitucional à reeleição.

“A polarização política, as tentativas de golpe de Estado , os actos de violência política, o aumento da insegurança e o fraco crescimento económico estão a gerar um sentimento cada vez mais profundo de que a democracia não está a dar resultados positivos”, diz Saldías sobre o contexto na América Latina e nas Caraíbas. Por isso, explica o cientista político, a região tem a pontuação mais baixa do mundo na categoria “cultura política”, que avalia o grau de consenso social em apoio à democracia e aos seus representantes políticos. “Pior ainda, o caso de Nayib Bukele como modelo para alguns pode alimentar desvios antidemocráticos em toda a região”, alerta.

O risco da insegurança

Apesar da sua boa saúde, a democracia uruguaia não está imune a esta realidade. Como em quase todos os países da região, diz Saldías, a principal fraqueza do Uruguai reside na sua cultura política. Este ano, a pontuação do país nesta categoria diminuiu em relação aos anos anteriores. Por que razão? Saldías atribui isto principalmente ao facto de mais de 50% dos uruguaios terem afirmado preferir que os especialistas ou tecnocratas “tenham mais poder político”, demonstrando falta de confiança na política tradicional. Além disso, o seu apoio à democracia caiu abaixo do limite de 75% estabelecido pelo The Economist. “Outro risco para a democracia uruguaia é a insegurança, que poderia alimentar o surgimento de populistas com políticas autoritárias”, acrescenta.

Para manter a sua qualidade democrática, acredita Bottinelli, o Uruguai teria que focar e modificar o seu financiamento político , o que implicaria na redução de custos nas campanhas eleitorais. Segundo este cientista político, outra fragilidade que merece ser abordada é o “desequilíbrio” que existe no campo da informação. “Há claramente uma predominância de meios de comunicação que não veneram a imparcialidade e a equidistância na informação, tanto nos meios de comunicação privados como nos públicos”, afirma. Observa também que no Uruguai o nível do debate político diminuiu, o que levou à desqualificação pessoal em detrimento da discussão proativa. Por isso, alerta: “Isso pode afastar as pessoas que sentem que os seus verdadeiros problemas não estão na mesa”.

Gabriel Díaz Campanella, Jornalista, de Montivideo / Uruguai, originalmente, para o EL PAÍS,em 21.02.24.