quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

“Uma derrota para a Ucrânia teria efeitos devastadores para a Europa e o mundo”

Charles Michel, o presidente do Conselho Europeu alerta que não há outra opção senão continuar a apoiar Kiev: “Não podemos permitir-nos cair no cansaço ou no tédio”

O Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, durante uma conferência de imprensa em Bruxelas, no dia 1 de fevereiro. (Johanna Geron / Reuters)

O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, é direto: “Uma derrota para a Ucrânia não pode ser uma opção. Todos compreendemos muito bem quais serão as consequências devastadoras para a Europa e para os valores que representamos. E para o mundo. É por isso que é crucial agir”, destaca o político liberal belga. Passados ​​dois anos desde a invasão em grande escala lançada por Vladimir Putin, a UE, diz ele, deve continuar a dar passos em frente no seu apoio a Kiev. E ainda mais agora que a situação nos Estados Unidos é “difícil”, reconhece ele, e o apoio de Washington está a vacilar. “Não há alternativa senão continuar apoiando. Temos apenas um plano, e esse plano é apoio, apoio, apoio”, observou Michel numa conversa na quarta-feira com cinco meios de comunicação europeus, incluindo o EL PAÍS, em Bruxelas.

“O apoio à Ucrânia é um investimento na paz e na estabilidade. Devemos lutar pela Ucrânia, pela Europa, pelos Estados Unidos e pelo resto do mundo. Caso contrário, enviamos uma mensagem de que está tudo bem para o resto do mundo que um país que é mesmo membro do Conselho de Segurança da ONU e que tem armas nucleares invada outro", afirma o presidente do Conselho Europeu, órgão que representa os líderes dos estados membros. “Vamos explicar e agir quantas vezes forem necessárias. Não podemos permitir-nos cair na fadiga ou no tédio”, alerta Michel, que alerta que a Rússia pode explorar e alimentar esta semente de fadiga e também usá-la para minar o espírito europeu e o projeto da UE face às eleições para o Parlamento. Junho.

No sábado, a guerra que abalou o continente europeu e o resto do mundo entrará no seu terceiro ano. É um dos momentos mais difíceis para a Ucrânia: a contra-ofensiva falhou, a situação nas frentes de batalha é extremamente complicada por falta de munições, material e falta de rotação. A isto soma-se a preocupação com o eventual regresso do republicano Donald Trump à Casa Branca e o atraso do quadro para a futura adesão à UE, que deveria ser apresentado em março. Na quarta-feira, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, referiu que só estará pronto no verão, depois das eleições europeias de junho. A insinuação, abandonada pelo chefe do Executivo comunitário na ratificação da sua família política, o Partido Popular Europeu (PPE), da sua candidatura, chocou Kiev e alguns Estados-Membros.

“A morte de Navalny é um lembrete da natureza do regime russo”

Na Rússia, o chefe do Kremlin, que aproveitou a oportunidade para aumentar a sua produção de armas, está a preparar uma nova ofensiva em vários pontos da linha da frente para o final da primavera, segundo fontes de inteligência ocidentais. Putin sente-se fortalecido por ter feito alguns progressos (ainda que tímidos) no campo de batalha e também por ter enterrado outro dos seus inimigos, o opositor Alexei Navalni, que morreu numa sombria prisão de segurança máxima no Ártico, onde cumpria 19 anos. na prisão por um caso que a UE considera perseguição política. Michel culpa o Kremlin por essa morte e diz que é um “lembrete” da “natureza do regime russo”.

Entretanto, os europeus parecem pessimistas quanto às hipóteses de a Ucrânia vencer a guerra e a maioria acredita que o conflito terminará com algum tipo de acordo, de acordo com um inquérito realizado em 12 países (incluindo Espanha) pelo think tank ECFR . O inquérito também destaca que os cidadãos europeus estão cépticos quanto à capacidade de apoiar a Ucrânia sem os Estados Unidos – uma variável clara se Trump regressar à Casa Branca – e a maioria acredita que as políticas de Washington devem ser imitadas.

“As decisões que tomámos, a abertura de negociações de adesão com a Ucrânia, o pacote de apoio financeiro de 50 mil milhões de euros , são um apelo aos nossos aliados, especialmente aos Estados Unidos, para fazerem o que for necessário para apoiar a Ucrânia com assistência militar e económica. É a principal prioridade. E espero sinceramente que os Estados Unidos compreendam que apoiar a Ucrânia é também uma fórmula contra regimes autoritários em todo o mundo que desafiam e desprezam o mundo baseado em regras.”

Uma União Europeia de defesa é urgente. Custe o que custar"

Embora a UE tenha cada vez menos espaço para tomar medidas históricas, Michel salienta que há espaço para apoio político, militar e financeiro. “Estamos trabalhando para tentar usar ativos russos congelados, no todo ou em parte, para ajudar a reconstrução da Ucrânia. É uma questão de justiça, de Estado de direito, de responsabilidade e de prestação de contas e estou certo de que nas próximas semanas poderemos avançar”, afirma o presidente do Conselho Europeu, que reconhece que existem “leis desafios" para alcançá-lo e ressalta que devemos construir uma estrutura com o G-7. Juntamente com o Grupo dos Sete, a UE concordou em congelar cerca de 300 mil milhões de euros de activos russos, mas está a debater como utilizá-los. Na semana passada, o clube comunitário deu o primeiro passo no seu plano de acção e ordenou que todas as receitas provenientes dos juros gerados por esses activos fossem congeladas numa conta a partir desse momento.

Esta quarta-feira, à medida que aumenta a pressão para que a UE chegue a acordo sobre sanções contra os responsáveis ​​pela morte de Navalny, os Vinte e Sete aprovaram o 13.º pacote de punições contra cidadãos e empresas russas para tentar sufocar o esforço de guerra do Kremlin. Estas medidas para congelar bens e proibir a entrada em solo comunitário incluem, pela primeira vez, várias empresas chinesas, como noticiou o EL PAÍS, e uma indiana. O objectivo da UE agora é que a Rússia deixe de receber materiais para uso civil através de outros países que utiliza para construir armas. Mas está se tornando cada vez mais difícil executar as medidas. “Imediatamente após a aprovação de um pacote de sanções, o próximo começa a ser preparado”, diz Michel, porém.

Para a UE, a guerra da Rússia contra a Ucrânia, que também expôs enormes vulnerabilidades devido à dependência do gás russo barato, tem sido um poderoso alerta para a construção de uma verdadeira autonomia estratégica. Em todos os campos. Também em segurança e defesa. “Uma União Europeia de defesa é urgente. Custe o que custar. Precisamos de agir e ser credíveis, precisamos de agir para proteger os nossos valores, os nossos interesses, respeitar os outros e ser respeitados”, afirma Michel sobre um dos grandes debates da Europa do futuro, que tenta avançar para proteger proteger-se da ameaça militar e isso pode ser visto sozinho, sem a proteção dos Estados Unidos.

“Em torno do Conselho Europeu houve um certo entendimento de que a NATO era o guarda-chuva de segurança e protecção dos membros da Aliança, enquanto a UE estava focada no desenvolvimento económico alinhado com os nossos valores. Agora enfrentamos um novo paradigma e temos consciência da mudança”, destaca. “O objetivo dos Estados-Membros deve ser investir mais na defesa, melhor e menos fragmentada”, afirma o político belga.

Maria R. Sahuquillo, jornalista, originalmente, de Bruxelas - Bélgica para o EL PAÍS, em 22.02.24

10 erros que pessoas emocionalmente inteligentes não cometem

Reprimir emoções, culpar os outros pela nossa própria infelicidade e outras falhas que nos distanciam da inteligência emocional

Lorenzo Montator

Desde que Daniel Goleman publicou o já clássico Inteligência Emocional (Kairós) em 1995, a capacidade de reconhecer as próprias emoções e as dos outros foi incorporada ao mundo da educação e dos negócios. Porém, o que significa ter inteligência emocional em nosso dia a dia? A escritora Brianna Wiest responde a essa pergunta em sua antologia 101 Reflexões que mudarão sua maneira de pensar (Gaia). Este jovem autor americano, que publicou recentemente duas vezes em Espanha, aborda a questão do extremo oposto: quais são as 10 coisas que as pessoas com elevado nível de inteligência emocional não fazem?

Suponha que o que pensam e sentem corresponde à realidade. Cada visão da situação vivida é parcial e subjetiva. Considerar que “você está certo” e que os outros estão errados é um plano de seguro para o sofrimento. Como recomenda Joseph Nguyen em seu livro de mesmo título: Não acredite em tudo que você pensa .

Faça com que o bem-estar emocional dependa de causas externas. Culpar a nossa infelicidade nos outros ou em circunstâncias fora do nosso controlo leva a uma indignação enfraquecedora, à medida que deixamos de cuidar do que depende de nós e subscrevemos a passividade e o ressentimento.

Saber o que nos faria felizes. Pessoas com baixa inteligência emocional tendem a presumir que o que não têm é o que poderia lhes proporcionar bem-estar pessoal. Porém, todo desejo leva a outro, como uma cenoura que nunca é alcançada.

Afaste-se daquilo que tememos. Nas palavras de Brianna Wiest, “medo significa que você está tentando avançar em direção a algo que ama”. Portanto, uma pessoa com inteligência emocional assumirá o medo como uma porta que a convida a atravessá-la para chegar a outra realidade.

Entenda que a felicidade deve ser permanente. Essa aspiração é ilusória, pois a vida é feita de experiências diversas e devemos aprender a passar por todas elas com naturalidade, relativizando o que estamos vivenciando.

Deixe-se levar pelos pensamentos. O que no budismo é chamado de “mente de macaco” descreve os saltos de nossas próprias ideias e das ideias de outras pessoas que fervilham em nossas mentes. Para nos libertarmos desta escravidão, o primeiro passo é, em vez de seguir o macaco, tomar consciência das nossas crenças para nos desidentificarmos delas.

Reprimir emoções. Inteligência emocional não consiste em conter o que sentimos, mas em administrá-lo adequadamente para tomar melhores decisões e expressá-lo da maneira certa e no momento certo.

Pensar que o sofrimento vai acabar com você. Segundo o autor da referida antologia, pessoas com elevada inteligência emocional “desenvolveram consciência e resiliência suficientes para saber que todas as coisas, mesmo as piores, são transitórias”.

Tente fazer amizade com todos. Uma pessoa emocionalmente inteligente é empática e procura promover a confiança e a intimidade, mas não indiscriminadamente. Ele escolhe conscientemente quem permite entrar em sua vida pessoal, mesmo que seja legal com todos.

Confundir um sentimento triste com uma vida triste. A primeira se deve a uma experiência específica e, portanto, temporária. Não há necessidade de extrapolar a situação atual com um futuro a ser planejado. De acordo com Wiest, as pessoas com verdadeira inteligência emocional “permitem-se ter ‘dias ruins’ porque são totalmente humanas”. Não resistir ao que o presente nos traz, na verdade, é a chave para a paz pessoal.

Este último ponto foi fundamento de filósofos estóicos como Sêneca , que chegou ao ponto de afirmar que "não há ninguém menos afortunado do que aquela pessoa que a adversidade esquece, já que não tem oportunidade de se testar".

Reflexões desse tipo podem incomodar quem passa por um momento difícil, mas o pensador romano nascido em Córdoba destaca que muitas vezes ficamos “mais assustados do que magoados”, no sentido de que sofremos com cenários catastróficos que nunca chegarão a acontecer. passar. 

Sofrer antes do necessário é sofrer mais do que o necessário, comenta Sêneca, e esse seria o exemplo máximo de inteligência emocional, lidando com o bom e o mau no devido tempo, sem antecipar a vida. Entregar tudo ao hoje, simplesmente fazer o que devemos fazer com atenção e naturalidade, é a forma mais sábia de caminhar pelo mundo.

A parábola dos cegos e do elefante

— Uma das fábulas mais famosas da tradição indiana conta que quatro cegos tentavam examinar um elefante que havia chegado à aldeia.

—O primeiro, ao tocar no tronco, exclamou com medo de que fosse uma cobra enorme. O segundo, que estava apalpando uma das patas do animal, afirmou que era uma árvore. A terceira estava com as mãos em uma das orelhas, que identificou como leque. A quarta pessoa, que agarrou uma presa, disse que estava tocando uma lança.

— A discussão continuou até que um visionário local se aproximou para explicar que todos estavam certos, mas o erro veio de tomar a parte pelo todo; Isso os impediu de compreender o todo.

— Aplicada à inteligência emocional, a chave é compreender que cada pessoa vê a realidade a partir da sua perspectiva, condicionada pelas suas próprias experiências e, portanto, a verdade absoluta não existe.

Francisco Miralles, o autor deste texto, é jornalista especializado em temas de psicologia. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 22.02.24.

“No documentário o espectador tem menos tolerância à dor do que na ficção”

Maite Alberdi, a cineasta chilena, diretora de ‘Memória Infinita’, indicado ao Oscar, aborda seu processo criativo e como a dor de seus personagens passa a ser sua.

Maite Alberdi, em Nova York.(Paola Chapdelaine)

A gravação de A Memória Infinita , recentemente premiado como Melhor Filme Ibero-Americano no Goya, durou quatro anos e meio. Nas três primeiras, Maite Alberdi (Santiago, 40 anos) não bateu em nenhuma porta. 

Você não gosta de vender algo sem ter certeza de que entregará o que foi prometido. Para descobrir, você não tem escolha a não ser pegar sua câmera e esperar muitas horas até que o que você procura aconteça. Seu olfato e sensibilidade particulares fazem com que esses momentos finalmente aconteçam. E fique animado. 

“No início está sempre em risco financeiro e muitas vezes em risco criativo”, aponta esta terça-feira numa videochamada a partir de um hotel em Nova Iorque, em plena campanha dos Óscares, onde aspira o filme sobre cuidados e Alzheimer. ganhar o prêmio de Melhor Documentário.

Enquanto Maitê Alberdi registrava a história de amor entre a atriz Paulina Urrutia e o jornalista Augusto Góngora, protagonistas de La Memoria Infinita , trabalhava em El agente topo , um retrato profundo da solidão em uma casa de repouso, também aclamado pela crítica e presente no principal. prêmios da indústria. Nos documentários, as gravações são pacientes, calmas, mas a chilena não para . Numa janela que teve em 2023, gravou seu primeiro longa-metragem de ficção, filme para a Netflix que ainda não pode comentar.

Pergunta. Seu trabalho aborda os dramas pelo prisma do humor e do afeto. Quer dar-lhes uma folga?

Resposta. É uma decisão que tomo quando escolho as pessoas que vou filmar. Se não me fazem rir ou ter leveza, não consigo. Se algo é muito, muito, muito terrível, muito trágico, sem nuances, não vou entrar nisso, até porque acho que no documentário o espectador tem menos tolerância à dor do que na ficção, porque é real. A vida já é terrível o suficiente sem você fazer um documentário onde não há luzes. Além disso, na vida existem luzes. Como procuro encarar dessa forma, escolho lugares e pessoas que, no meio de um possível drama, me façam rir ou que se divirtam no dia a dia. Trata-se de as tragédias serem contextos e não a forma de abordar essa realidade. A partir daí fiquei fisgado porque tenho que conseguir dormir à noite. É como a dor na medida certa.

P. Eles também são temas universais. Você não precisa ser chileno ou conhecer os personagens para ter empatia. Quanto isso pesa em seus projetos?

R. Trabalho para o mundo, não para um país ou uma idiossincrasia. Mais do que o tema, o que os personagens geram deve ser universal, que você realmente consiga se conectar com a pessoa que está à sua frente e que os temas possam ser discutidos em todos os lugares. Tem a ver principalmente com o nível de conexão que gera em mim e que vejo que pode impactar outras pessoas. Eu sou o primeiro parâmetro na hora de dizer ‘ok, quero estar com essa pessoa, isso gera interesse, entusiasmo, me conecta emocionalmente’ e entender que esse radar vai funcionar para o público.

P. Já se passaram anos trabalhando com os personagens. Até que ponto isso está ligado a esses relacionamentos?

R. Convivo muitos anos com as pessoas que filmei. Então são personagens de filmes, mas para mim são relações pessoais que tenho na minha vida e que construo. O que acontece com eles acontece comigo, o que eles sentem, eu sinto, e as perdas deles são as minhas perdas. No final, isso se torna minhas experiências de vida. Vivo assim porque é muito tempo compartilhado. Eles são meus duelos e meus amores também.

P. Quando você recebeu o Goya, você disse que a Memória Infinita lhe ensinou outras formas de luto. Quais foram?

R. É uma grande perda, mas fico com a sensação de uma celebração da boa vida e do bom amor. A mesma sensação que tive no funeral do Augusto [Góngora]: uma tristeza nostálgica, mas sem o sentimento de tragédia com que normalmente se aborda a morte. Acho que também já vi a Paulina assim, compartilhando a dor, o luto, falando sobre isso, muito exposta no bom sentido. As dificuldades são faladas e não escondidas, como aconteceu com o Alzheimer.

P. Foi um ano de reconhecimento. O momento, tema do documentário, é uma recompensa pelo esforço de muitos anos?

R. Acho que é um pouco, mas não existe um filme sem o outro. Prêmios como o DOC NYC, o Sundance, que são para o filme, também decorrem da visibilidade que os anteriores tiveram. O sucesso de La Memoria... atribuo ao facto de ter uma emoção muito excepcional. Além da questão do Alzheimer, que não creio que seja o problema, sinto que é o que acontece com as pessoas que assistem ao filme em todos os países. É o mesmo nível de intensidade e isso nem sempre acontece.

P. Agente Toupeira também chegou ao Oscar, mas foi uma campanha virtual devido à pandemia. Agora ele promove La Memoria Infinita no local há 13 meses. Como a diferença afeta?

R. Prefiro mil vezes a campanha pandêmica pela minha qualidade de vida. Também me pareceu uma campanha mais democrática para os filmes, onde não era necessário aplicar todos os orçamentos que os distribuidores utilizam. Chegamos com El Topo porque todos os filmes estavam nas mesmas condições e não havia eventos para organizar. Foi um filme independente em distribuição, não como La Memoria Infinita . Neste contexto não sei se o teríamos conseguido. Um ano de campanha é muito longo, mas o Sundance [onde o documentário estreou em janeiro de 2023] é o melhor festival para entrar nos Estados Unidos. Você simplesmente não sabe o que vai acontecer. Se a imprensa vai te pegar [levar em conta], se você vai vender. É uma aposta, mas aqui deu tudo certo: ganhamos [o prêmio do júri], eles compraram, a imprensa foi incrível. O número de países em que foi lançado e o impacto que teve é ​​bastante impressionante.

P. Como tem sido sua experiência na indústria de Hollywood ?

R. As campanhas de premiação são muito cansativas para um diretor. Tenho vivido isso como uma oportunidade de divulgar o meu cinema, tenho procurado aceitá-lo dessa forma, agradecer por ter um espaço. É uma oportunidade que não sei se acontecerá novamente. Foi muito particular: ter uma distribuidora disposta a investir num diretor chileno e num filme chileno nos Estados Unidos e no mundo. Isso nem sempre acontece. Agradeço o presente, mas é isso. Já fizemos tudo, estamos aqui, era impossível: 167 filmes, a maioria gringos [americanos] e conseguimos. Só vou comemorar, estar lá sem expectativas.

Antônia Laborde, Jornalista, de Santiago do Chile, originariamente, para o EL PAÍS, em 22.02.24

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

“Os nossos impostos servem para reforçar ditadores, senhores da guerra e sistemas que exploram outros seres humanos”

A jornalista irlandêsa Sally Hayden, especializada em migração, publica na Espanha o seu livro 'Quando tentei pela quarta vez, afogámo-nos', galardoado com o Prémio Orwell 2022 de literatura política

Sally Haydenposa na esplanada do Instituto Europeu do Mediterrâneo (IEMED), em Barcelona. (Albert Garcia)

Nem sempre uma pessoa decide a que causa vai dedicar sua vida. Às vezes é a causa que a escolhe. Ele gradualmente entra em sua existência até colonizá-lo. Foi o que aconteceu com a jornalista Sally Hayden (Dublin, 1989), especializada no continente africano. Há mais de cinco anos, ela começou a receber mensagens de migrantes em centros de detenção solicitando a sua ajuda. Hayden envolveu-se profundamente, construiu uma ampla rede de contactos e a cobertura da chamada “crise da imigração” tornou-se o centro do seu trabalho. O resultado é o livro When I Tried It the Fourth Time, We Drowned (Capitão Swing), vencedor de diversos prêmios, incluindo o Prêmio Orwell de Literatura Política em 2022.

Pergunta. Fala-se muito sobre migração, mas acha que a opinião pública europeia está bem consciente do inferno que os migrantes passam em lugares como a Líbia ?

Responder. Não, o debate público europeu está muito separado das experiências humanas daqueles que querem vir para a Europa. Até o conceito de migrantes é desumanizante. São pessoas como nós, com esperanças, sonhos, famílias. Muitas vezes perdemos de vista o facto de que a verdadeira crise que vivemos é uma crise de desigualdade global. Grande parte da humanidade não tem capacidade legal para viajar e ter acesso a vistos. O resultado é que muitas viagens são desesperadas e perigosas.

A verdadeira crise que vivemos é uma crise de desigualdade global

P. Existe um certo estereótipo de migrantes na sociedade. Eles se parecem com as pessoas que você conheceu?

R. O problema é que muitas vezes são tratados como se fossem um grupo homogéneo, quando não o são. Eles vêm de lugares muito diferentes e as causas que os levaram a abandonar as suas casas, as suas circunstâncias pessoais, são muito diferentes. Conheci pessoas muito diferentes nos centros de detenção da Líbia: artistas, estudantes de direito ou de medicina, dentistas... Alguns são da África Ocidental, outros da África Oriental, e nunca tinham tido contacto com alguém do outro extremo antes. o continente.

O público não conhece as ramificações da política europeia, o que significa encerrar famílias inteiras em locais onde são cometidos abusos graves

P. No livro você insiste na responsabilidade da União Europeia e da ONU nas graves violações dos direitos humanos em lugares como a Líbia . Atinge os níveis mais altos?

R. Sim, claro. Algo que descobri quando comecei a investigação é que a UE tem um papel muito mais activo na situação, e os seus líderes sabem disso, e fazem-no em nosso nome. A sua justificação é que os cidadãos querem estas políticas. Mas acredito que a opinião pública não conhece as ramificações da política europeia, o que significa encerrar famílias inteiras em locais onde são cometidos abusos graves. Muitos até morrem ali, mas não sabemos quantos. A UE tem uma responsabilidade direta pelo retorno das pessoas interceptadas no mar para a Líbia, para centros que o Papa Francisco chama de “campos de concentração” . Os nossos impostos servem para reforçar ditadores, senhores da guerra e sistemas que exploram outros seres humanos. E isso não é um problema apenas na Líbia, uma vez que a política anti-imigração da UE tem efeitos nocivos em todas as suas fronteiras.

P. Para muitos, mesmo que sejam reconhecidos como refugiados, o pesadelo não termina com a sua regularização na Europa.

R. Sim, porque muitas vezes, passado o perigo, surge o trauma; quando a mente tenta digerir tudo o que aconteceu. Muitos sofrem de stress pós-traumático, insónia e outros distúrbios, e ter de recontar estes horrores repetidamente nos processos para regularizar a sua situação não ajuda.

Falamos das vítimas no Mediterrâneo como simples números. As vozes daqueles que sofrem com esta situação são ignoradas.

P. Até que ponto os meios de comunicação social também são responsáveis?

R. É difícil falar sobre a mídia em geral. É verdade que a questão da migração é abordada, mas muitas vezes é para reflectir e reproduzir a retórica desumanizante dos políticos. Outras vezes falamos das vítimas no Mediterrâneo como simples números. As vozes daqueles que sofrem com esta situação são ignoradas. Temos que ouvi-los com mais atenção, e foi isso que tentei com este livro. Um dos problemas da cobertura do tema é que muitos jornalistas não dispõem de recursos suficientes, incluindo tempo, porque os seus meios de comunicação não cobrem as despesas que isso exige.

Sally Hayden, em Barcelona (Albert Garcia)

P. Por que você acha que a opinião pública europeia é insensível?

R. Vivemos numa época estranha. Por um lado, é muito fácil descobrir o que se passa do outro lado do mundo, mas também é fácil para muitas pessoas ignorarem este problema, não assumirem responsabilidades. Mas se olharmos para as causas da migração, muitas vezes elas têm a ver com as nossas ações. No Senegal, grandes barcos estrangeiros estão a esvaziar os recursos haliêuticos de que vivem os pescadores locais. Na Somália, a seca ligada às alterações climáticas condena à fome uma sociedade que quase não emitiu gases poluentes. Milhares de pessoas já morreram por esta causa.

P. Se não fosse devido à pressão da opinião pública, a mudança nas políticas poderia ocorrer através de resoluções judiciais?

R. O Tribunal Penal Internacional está a investigar perpetradores europeus de crimes contra a humanidade e os meus artigos foram utilizados como prova. Talvez estas batalhas tenham sucesso e consigam mudar a realidade mais do que algumas reportagens jornalísticas conseguiram. É uma situação complicada porque, além disso, toda esta situação ocorre enquanto os países europeus precisam da migração para preencher muitas vagas nos seus mercados de trabalho.

Muitos migrantes sofrem de stress pós-traumático, e ter de contar repetidamente estes horrores nos processos para regularizar a sua situação não ajuda.

P. Até que ponto estar tão próximo destes casos difíceis também o afecta a nível psicológico?

R. Muitas vezes você se sente culpado porque perdeu uma mensagem ou porque não respondeu a tempo. Como é proibido ter telefone nos centros de detenção, o horário em que eles podem escrever para você – e o fazem com risco de vida – é à noite, às vezes até as três da manhã. O mérito deste livro é seu, muitos arriscaram suas vidas para transmitir esta informação. Foram eles que realmente sofreram e que devem estar no centro da história, não eu.

P. Você continuará cobrindo questões de imigração no futuro?

R. Sim, não vou abandonar.

Ricardo Gonzalez, Jornalista, de Barcelona - Espanha, originalmente, para o EL PAÍS, em 07.02.24

A irresponsabilidade de Lula

Ele reciclou a usina de besteiras de Bolsonaro

O presidente Lula, durante assembleia em Adis Abeba - Michele Sapatari - 17.fev.24/AFP

Ao mandar Jair Bolsonaro para casa, o Brasil parecia ter se livrado de um encosto. Durante a pandemia, esse espírito duvidava da vacina, sugeria que o vírus da Covid havia sido fabricado na China e exaltava a cloroquina. Lula recolocou o Brasil nos eixos na questão ambiental e atravessou o mundo para resgatar o encosto, escorregando na casca de banana de Gaza.

No domingo passado, em Adis Abeba, ele disse que "o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino, não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus". Com isso, abriu uma crise e foi declarado persona non grata pelo governo de Israel.

Lula já havia costeado o alambrado dias antes, no Cairo, com duas frases: "O Brasil foi um país que condenou de forma veemente a posição do Hamas no ataque a Israel e o sequestro de centenas de pessoas. Nós condenamos e chamamos o ato de ato terrorista".

Falso. O ataque do Hamas aconteceu no dia 7 de outubro. Cinco dias depois, o Itamaraty informou que a classificação do Hamas como organização terrorista competia à ONU. Posteriormente é que falou em terrorismo.

Lula acrescentou: "Não tem nenhuma explicação o comportamento de Israel, a pretexto de derrotar o Hamas, está matando mulheres e crianças —coisa jamais vista em qualquer guerra que eu tenha conhecimento".

Ressalvada a falta de conhecimento, essa afirmação foi um exercício de retórica amparada na ignorância.

A fala de Adis Abeba teve a ver com a classificação do comportamento de Israel em Gaza como "genocídio". Que as tropas de Binyamin Netanyahu cometem crimes de guerra, é certo. Genocídio é outra coisa, é um ato deliberado de exterminar um povo, esteja ele onde estiver.

Em junho de 1944, com a guerra perdida, os alemães capturaram os 400 judeus que viviam na ilha de Creta. Naquele mês, o brasileiro Benjamin Levy, a mulher e a filha foram presos em Milão e deportados para o campo de Bergen-Belsen.

Lula já disse que Napoleão foi à China e que os americanos derrubaram Dilma Rousseff de olho no petróleo do pré-sal: "É preciso que [o petróleo] esteja na mão dos americanos porque eles têm que ter o estoque para guerra. A Alemanha perdeu a guerra porque não chegou em Baku, na Rússia, para ter acesso à gasolina".

A batalha de Stalingrado terminou em fevereiro de 1943, quando os alemães já haviam sido contidos em Moscou, os Estados Unidos estavam na guerra e haviam quebrado a perna da Marinha japonesa. Se os alemães chegassem a Baku, pouca diferença faria. Eles não perderam a guerra por falta de gasolina.

Vale lembrar que a Segunda Guerra também não acabou porque os americanos tinham mais gasolina. Ela acabou depois das explosões de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, que ficaram prontas em 1945.

De onde Lula tira essa ideias, não se sabe, mas no seu terceiro mandato ele se move na cena internacional com uma onipotência aplaudida por áulicos e venenosa para a diplomacia brasileira.

Durante seu primeiro ano deste mandato, firmou-se como um chefe de Estado excêntrico. A fala de Adis Abeba temperou a ignorância com irresponsabilidade.

Elio Gaspari, jornalista, o autor deste artigo, é  ainda o autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada". Publicado originalente na Folha de S. Paulo,em 21.02.24

Mais que Assange

Extraditar o editor do Wikileaks para os Estados Unidos seria uma forma de intimidar a mídia e suas fonte

Apoiadores de Julian Assange, esta terça-feira em frente ao Tribunal de Recurso de Londres. (Toby Melville (Reuters)

Nas próximas horas um tribunal do Reino Unido poderá decidir se Julian Assange, editor do Wikileaks acusado de revelar informações secretas do Governo dos Estados Unidos em 2010 e 2011, tem o direito de recorrer da sua extradição para os Estados Unidos, autorizada em 2022 pelos britânicos. Supremo Tribunal Federal e confirmado pelo Executivo. Negar esse direito ao famoso hacker australiano —cujas revelações mostraram fatos e estratégias da opinião pública mundial que Washington tentou esconder durante anos—pode não significar apenas uma sentença de 175 anos de prisão para uma pessoa cujo suposto crime foi publicar documentação que um governo estava ocultar-se deliberadamente à sua sociedade, mas também um duro golpe para o jornalismo de investigação e, em suma, para a liberdade de imprensa em todo o mundo.

As acções de Assange foram vitais na divulgação de informação protegida por uma utilização falaciosa do conceito de segredo de Estado. Entre eles, provas documentais de ações ilegais do exército dos EUA contra civis nas guerras no Afeganistão e no Iraque ou pressão sobre os governos de países soberanos ao longo de várias décadas.

O Wikileaks foi um esforço de divulgação no qual colaboraram meios de comunicação de todo o mundo, contribuindo com centenas de profissionais que verificaram a autenticidade da documentação e, em linha com os códigos jornalísticos de deontologia, colocaram em prática os protocolos necessários para garantir que a publicação desta informação seria não colocar em risco a vida de qualquer pessoa. Isso aconteceu, por exemplo, com a publicação, a partir de 2010, de mais de 250 mil documentos do Departamento de Estado dos quais participaram EL PAÍS, The New York Times, The Guardian, Le Monde e Der Spiegel.

O assédio sofrido por Julian Assange desde praticamente essa mesma data - o que o obrigou a pedir asilo durante sete anos ao Governo do Equador em sua embaixada em Londres, onde além disso, como revelou o EL PAÍS, era espionado 24 horas por dia por uma empresa espanhola - vai além da perseguição de Washington a um alegado crime de revelação de segredos, mas constitui uma forma inequívoca de intimidar os meios de comunicação social e as suas fontes.

Certamente, a figura de Assange é controversa. Seus problemas judiciais começaram com uma fuga da justiça sueca após ser acusado de estupro e abuso sexual, acusações das quais sempre se declarou inocente e vítima de uma armação para extraditá-lo para os Estados Unidos. Ele também foi acusado de fazer parte da estratégia de Vladimir. … Putin para desestabilizar o Ocidente. Finalmente, a relação com os meios de comunicação que divulgaram as informações do Wikileaks tem sido por vezes turbulenta. Mas nada disto pode esconder o seu papel decisivo como actor necessário para que os direitos dos cidadãos, especialmente dos americanos, fossem respeitados quando o seu Governo agiu no sentido oposto.

Muito mais se decide hoje em Londres do que a extradição de um cidadão acusado de um crime. O que está em causa é, numa época de montagens, boatos e realidades alternativas como a que vivemos, uma forma rigorosa e independente de fazer jornalismo. E com ela, dois pilares da democracia: a liberdade de imprensa e o direito à informação.

Editorial do EL PAÍS,em 21.02.24

A democracia brasileira poderá recuperar sua alma?

Se Bolsonaro e os líderes golpistas militares forem finalmente julgados e condenados, será o início de uma mudança de paradigma.


O ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro deixa a sede da Polícia Federal após testemunhar sobre os tumultos de 8 de janeiro em Brasília, Brasil, em 18 de fevereiro.  (Ueslei Marcelino / Reuters)

Uma operação da Polícia Federal brasileira batizada de Tempus Veritatis (Tempo da Verdade) revelou o que já era claramente visível, mas ainda não havia evidências suficientes para afirmar: o extremista de direita Jair Bolsonaro planejou um golpe para se perpetuar no poder e para para isso, contou com o apoio de militares de alta patente. Outros oficiais militares de alta patente não apoiaram a violação constitucional, mas não a denunciaram nem prenderam os seus colegas golpistas. A investigação ainda não terminou e, por enquanto, apenas o passaporte de Bolsonaro foi apreendido. O que acontecer a partir de agora poderá definir o futuro da democracia no Brasil.

Em grande medida, o Brasil de hoje é resultado da anistia concedida aos militares que sequestraram, torturaram e executaram durante a última ditadura, que durou 21 anos , de 1964 a 1985. Ao contrário de países vizinhos como a Argentina, que está recuperando a democracia , julgaram criminosos do Estado e prenderam torturadores e ditadores, o Brasil optou pela anistia. Esse tipo de impunidade, que permitiu que pessoas torturadas encontrassem seus torturadores na padaria, deformou a democracia brasileira.

Há um limite para o que pode ser aceite sem que a democracia perca a sua alma. O Brasil então o atravessou e, a partir daquele momento, o cruzaria diversas vezes, a começar pelo fato de negros e indígenas ainda viverem sob um regime de exceção de direitos. Jair Bolsonaro, capitão do Exército que iniciou sua carreira na política após ser julgado – e vergonhosamente absolvido – pela justiça militar por planejar atos terroristas como forma de pressão para obter aumento salarial, é filho desta democracia corrompida de nascença. Ao longo de sua carreira política, cometeu diversos atos classificados como crimes no Código Penal, incluindo incitação à tortura, e nunca foi preso. Tanto que se tornou presidente do Brasil.

Se Bolsonaro for finalmente responsabilizado pelas suas ações e oficiais militares de alta patente forem condenados por planear um golpe, será uma mudança de paradigma para o Brasil. Ainda muito longe de algo que se assemelhe à “normalidade democrática”, mas ainda assim decisivo. Tanto que Bolsonaro apelou aos seus seguidores para que façam uma demonstração de força no próximo domingo, juntando-se a ele numa manifestação em São Paulo, a maior cidade do país. Pediu que alguns deles viessem com “a medalha dos três I's ”, uma obscenidade com sua foto acompanhada dos três adjetivos que acredita representá-lo: “ Indespalmável , imorcível e inculpável ”. Mas para quem aprecia a justiça e a vida, Bolsonaro só é caracterizado por três g's : grotesco, golpista e genocida. Espera-se que a sentença do prisioneiro finalmente o alcance em breve.

Eliane Brum, Jornalista, originalmente para o EL PAÍS, em 21.02.24. Tradução de Meritxell Almarza

O Uruguai é a democracia mais forte da América Latina?

O índice de qualidade democrática da The Economist destaca a estabilidade do país sul-americano graças a um forte sistema partidário que “impede o surgimento de líderes populistas e desvios autoritários”

Apoiadores do Partido Nacional comemoram a vitória de Luis Lacalle Pou em Montevidéu, Uruguai, em novembro de 2019. (Matilde de Campodonico / AP)

A democracia uruguaia se destaca na região e se consolida como a mais estável da América Latina e do Caribe, segundo o índice de qualidade democrática da revista The Economist . O Uruguai, com 3,4 milhões de habitantes, ocupa o 14º lugar numa lista que abrange 165 países encabeçados pela Noruega e no mesmo nível da Austrália e abaixo do Canadá, o mais democrático das Américas. De acordo com esta classificação, pouco mais de 1% da população da América Latina e do Caribe goza de “democracia plena”, no Uruguai e na Costa Rica, o outro país com melhor classificação e localizado no 17º lugar. Na América do Sul, o Chile é seguido ( 25º lugar), Suriname (49), Brasil (51), Argentina (54) e Colômbia (55), consideradas “democracias imperfeitas”.

“A força da democracia uruguaia baseia-se em grande parte num sistema de partidos fortes que evita o surgimento de líderes populistas e de desvios autoritários, como os que vemos em outros países da região”, disse ao EL PAIS Nicolás Saldías, médico. Science e membro da Unidade de Inteligência do The Economist, responsável por este índice divulgado há dias. O cientista político destaca que a cultura democrática, profundamente enraizada no Uruguai, se fortaleceu após a ditadura que governou o país entre 1973 e 1985 . “Pesquisas mostram que os uruguaios são, de longe, os mais comprometidos com o sistema democrático da região”, explica Saldías por e-mail de Washington, onde reside.

O Uruguai obtém a nota máxima, 10 em 10, em “sistema eleitoral e pluralismo”, uma das categorias avaliadas desde 2006. Também aparece como um dos melhores do mundo em “liberdades civis”, com 9,71 pontos, enquanto que em “funcionamento do governo” obtém 8,93. Em “cultura política” este ano a pontuação caiu para 6,88, principalmente pelo fato de alguns uruguaios terem sido a favor de especialistas (sem filiação partidária) terem mais poder político. Em “participação política” tem 7,78 pontos, porque o voto obrigatório que rege o Uruguai (como em outros dez países latino-americanos) é considerado um indicador negativo pela revista britânica. Votar ou não, defendem os seus autores, deveria ser uma escolha livre.

O veterano analista político uruguaio Oscar Bottinelli, diretor da consultoria Factum , discorda desse critério . Para Bottinelli, essa é justamente uma característica que sustenta o sistema democrático uruguaio: “O voto obrigatório faz com que todos participem”. Nesse sentido, entende que a valorização negativa do sufrágio obrigatório “provém de um liberalismo individualista” que tem componentes “altamente elitistas”. A tradição mostra que no país sul-americano há uma “sacralização do voto”, afirma. Nas eleições gerais de 2019, a participação atingiu 90% e os votos em branco ou anulados não ultrapassaram 4%. “Isso reflete que as pessoas escolhem, dando força ao sistema”, afirma.

Bottinelli concorda que a solidez do sistema político-partidário é um pilar que apoia em grande parte a democracia local. O país passou de um sistema bipartidário com os históricos Colorado e Blanco, para um sistema tripartido com a incorporação da esquerdista Frente Ampla, que governou entre 2005 e 2020, até chegar ao atual sistema multipartidário. “Mas sempre dentro do sistema partidário, no Uruguai não há movimentos antissistema”, ressalta. O seu “elenco estável” de líderes políticos também teve influência, continua Bottinelli, cuja renovação geracional começou abruptamente na última década. “Esse tem sido outro ponto forte”, ressalta.

Uma região em crise

O índice mostra que 2023 foi o oitavo ano consecutivo de declínio democrático na América Latina e no Caribe, cuja pontuação média caiu de 5,79 em 2022 para 5,68 em 2023. Pouco mais de 1% da população da região vive em plena democracia, 54% em democracias defeituosas, 35% em regime híbrido (entre imperfeito e autoritário) e 9% em regimes autoritários. O maior declínio foi registado em El Salvador , afirma o relatório, cuja pontuação se deteriorou a mando do governo “cada vez mais autoritário” do Presidente Nayib Bukele e da sua candidatura inconstitucional à reeleição.

“A polarização política, as tentativas de golpe de Estado , os actos de violência política, o aumento da insegurança e o fraco crescimento económico estão a gerar um sentimento cada vez mais profundo de que a democracia não está a dar resultados positivos”, diz Saldías sobre o contexto na América Latina e nas Caraíbas. Por isso, explica o cientista político, a região tem a pontuação mais baixa do mundo na categoria “cultura política”, que avalia o grau de consenso social em apoio à democracia e aos seus representantes políticos. “Pior ainda, o caso de Nayib Bukele como modelo para alguns pode alimentar desvios antidemocráticos em toda a região”, alerta.

O risco da insegurança

Apesar da sua boa saúde, a democracia uruguaia não está imune a esta realidade. Como em quase todos os países da região, diz Saldías, a principal fraqueza do Uruguai reside na sua cultura política. Este ano, a pontuação do país nesta categoria diminuiu em relação aos anos anteriores. Por que razão? Saldías atribui isto principalmente ao facto de mais de 50% dos uruguaios terem afirmado preferir que os especialistas ou tecnocratas “tenham mais poder político”, demonstrando falta de confiança na política tradicional. Além disso, o seu apoio à democracia caiu abaixo do limite de 75% estabelecido pelo The Economist. “Outro risco para a democracia uruguaia é a insegurança, que poderia alimentar o surgimento de populistas com políticas autoritárias”, acrescenta.

Para manter a sua qualidade democrática, acredita Bottinelli, o Uruguai teria que focar e modificar o seu financiamento político , o que implicaria na redução de custos nas campanhas eleitorais. Segundo este cientista político, outra fragilidade que merece ser abordada é o “desequilíbrio” que existe no campo da informação. “Há claramente uma predominância de meios de comunicação que não veneram a imparcialidade e a equidistância na informação, tanto nos meios de comunicação privados como nos públicos”, afirma. Observa também que no Uruguai o nível do debate político diminuiu, o que levou à desqualificação pessoal em detrimento da discussão proativa. Por isso, alerta: “Isso pode afastar as pessoas que sentem que os seus verdadeiros problemas não estão na mesa”.

Gabriel Díaz Campanella, Jornalista, de Montivideo / Uruguai, originalmente, para o EL PAÍS,em 21.02.24.

A viúva de Navalni, a nova voz que aspira unir a maltratada oposição russa

O anúncio de Yulia Navalnaya de que continuará a luta do marido cria uma certa ilusão em parte dos dissidentes, apesar de as ameaças do Kremlin a impedirem de fazer política no seu país

Yulia Navalnaya, no vídeo distribuído pela equipe de seu falecido marido, Alexei Navalny, no dia 19 de fevereiro.

A nova voz da oposição russa recebeu o apoio expresso de outros dissidentes, mesmo daqueles que nos últimos anos estiveram envolvidos nos mais amargos confrontos com a organização de Alexei Navalny . Yulia Navalnaya (Moscou, 47 anos) anunciou esta segunda-feira que continuará o trabalho do marido, que morreu repentinamente numa prisão no Ártico, apenas um mês antes das eleições presidenciais russas. Setores da dissidente democrática russa aplaudiram a sua mensagem por ver na viúva de Navalny uma figura capaz de unir os diferentes movimentos contra o Kremlin. Outros, no entanto, permaneceram em silêncio.

“A sua declaração significa que a priori existe um líder na oposição russa, que o movimento de Navalny, tudo o que ele fez, não desapareceu no ar”, sublinhou Maxim Katz, o polémico blogueiro e antigo membro do partido liberal Yábloko. Navalni “enviado para o inferno” em setembro do ano passado numa declaração por ter proposto “uma grande coligação de oposição” antes das eleições presidenciais de março. “A Rússia Unida e Putin sempre roubaram votos. A questão era se iríamos pegá-los. Agora, graças ao voto eletrónico, é impossível capturá-lo”, explicou Navalny, considerando que as eleições do Kremlin são fraudadas.

Apesar do tenso confronto nas redes sociais entre Katz e outros membros da equipa de Navalni, o dissidente contactou Yulia Navalnaya num vídeo publicado no seu canal. “A oposição continuará a ser coordenada. As pessoas verão que há uma pessoa por trás da oposição . Milhões de russos que queriam ver uma alternativa a Putin continuarão a vê-la. “Yulia está segura, é acessível”, afirmou Katz, antes de destacar que a viúva de Navalni tem “24 anos de experiência ao seu lado” e “acesso aos políticos e meios de comunicação europeus”.

Alguns dissidentes que têm dezenas e centenas de milhares de seguidores nas suas redes sociais mostraram o seu apoio inequívoco a Navalnaya. “Yulia, força e paciência! Vocês podem contar com meu apoio!”, publicou o ex-deputado da Duma, Dmitri Gudkov, do exílio.

A intervenção de Navalnaya foi aplaudida pela liderança da organização fundada pelo seu marido. “Acho que já vi o vídeo cinco vezes. E cada vez continua a ser incrivelmente difícil, mas dá esperança”, disse Georgi Alburov, chefe de investigações da Fundação Anticorrupção de Navalny.

Raiva no Kremlin

Navalnaya, além de receber o bastão do marido, acusou Vladimir Putin de seu assassinato, e suas palavras perturbaram muito o Kremlin. "Sem comentários. Estas são acusações grosseiras e absolutamente infundadas contra o chefe do Estado russo, mas dado que Yulia Navalnaya ficou viúva literalmente dias antes, não comentarei”, declarou o porta-voz do presidente, Dmitri Peskov, na terça-feira. “Eles se sentiram muito ofendidos”, disse a ex-porta-voz de Navalni, Kira Yarmish.

Na Rússia, o partido liberal Yabloko, do qual Navalny foi expulso em 2007 pelas suas opiniões nacionalistas, não comentou o aparecimento de Navalnaya, que está sob ameaça velada de prisão se regressar à Rússia. A formação, sem presença no Parlamento russo , tenta fazer política a partir do sistema de Putin, que acusou da morte do activista “numa prisão em condições que eram essencialmente de tortura”.

No entanto, um membro proeminente do Yábloko, Lev Shlósberg, alertou que Navalnaya não pode ser equiparada a outro líder político com quem tem sido comparada nestes dias: Svetlana Tijanóvskaya , a candidata que a oposição bielorrussa apresentou nas eleições presidenciais de 2020. contra Alexandr Lukashenko depois do seu marido, Sergei Tijanosvki, ter sido preso antes das eleições. O regime reivindicaria 80% dos votos, desencadeando assim protestos massivos contra a fraude eleitoral.

“A liderança política não é herdada”, disse Shlósberg ao jornal Jólod . Yulia não pode vir para a Rússia e exercer atividades políticas aqui. Ela não pode criar nenhuma estrutura política no nosso país, seria presa ao entrar e privada da sua liberdade, e os seus filhos ficariam não só sem pai, mas também sem mãe”.

Outras figuras da oposição no exílio, como o enxadrista Gari Kasparov e o empresário Mikhail Khodorkovsky , considerados pelos russos demasiado distantes da realidade política interna, não falaram diretamente sobre a intervenção de Navalnaya, embora a divulguem e tenham defendido nos dias de hoje pela necessidade de estarmos unidos. “A nossa reação ao seu assassinato tem de ser unir forças, realizar o seu trabalho em conjunto e garantir que a esperança de uma Rússia democrática não morra com ele”, disse o antigo proprietário da petrolífera Yukos nas suas redes sociais.

Por sua vez, outros opositores que também foram presos pelo Kremlin, como Ilia Yashin e Vladimir Kara-Murza, não comentaram o passo dado pela sua viúva porque a notícia lhes chegou com dias de atraso, embora ambos lamentassem a morte do seu colega dissidente. “Devemos detê-lo [Putin]. Só a sociedade russa pode fazer isto”, escreveu Kara-Murza, envenenado duas vezes na última década.

Em qualquer caso, uma grande responsabilidade recai agora sobre Navalnaya. “Vai depender do que ele oferecer”, escreve a cientista política Tatiana Stanovaya em seu canal Telegram, detalhando: “Não como a viúva de um político proeminente que foi torturado até a morte, mas como uma figura independente. O tempo o dirá".

Pressão sobre a família

A mãe de Navalny chegou no passado sábado à cidade de Jarp, quase 2.000 quilómetros a nordeste de Moscovo, em busca dos restos mortais do opositor e de uma explicação. O Kremlin negou-os. “Deixe-me finalmente ver meu filho”, gritou Liudmila Navalnaya em uma gravação pública, protegida de condições climáticas extremas e lágrimas por óculos escuros, com a prisão IK-3, no Círculo Polar Ártico, ao fundo.

“Já é o quinto dia que não consigo vê-lo, não me entregaram o corpo, nem me disseram onde ele está. Estou escrevendo para você, Vladimir Putin. A solução para este problema depende apenas de você. Deixe-me finalmente ver meu filho”, exigiu a mãe de Navalny ao presidente russo. “Exijo que você nos entregue imediatamente o corpo de Alexei para que possamos enterrá-lo humanamente.”

Horas depois da transmissão do vídeo, o governo russo respondeu com outra ameaça à sua família. O Ministério do Interior incluiu o irmão do opositor falecido, Oleg Navalni, na sua lista de procurados por “acusações criminais” não especificadas. O seu paradeiro é desconhecido desde que deixou o país no outono de 2021, depois de ter sido condenado a um ano de prisão sob a acusação de violar as restrições ao coronavírus ao participar em protestos anti-Kremlin.

Javier G. Cuesta, Jornalista, originalmente, de Moscou - Rússia para o EL PAÍS, em 21.02.24

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Lula poupa Maduro e Putin, mas ataca Israel e põe em dúvida compromissos com democracia

Fica a dúvida de quais são as intenções do presidente brasileiro: se é uma questão de assessoramento, de ideologia, ou pragmatismo

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante entrevista em Adis Abeba, Etiópia Foto: Ricardo Stuckert / PR

Depois das revelações que deixaram patentes certas intenções golpistas do ex-presidente Bolsonaro e sua turma, Lula estava, mais uma vez, com o caminho aberto para se consolidar como líder democrata tanto com a opinião pública interna quanto no cenário internacional. Mas, no lugar de confirmar essa tese, ofereceu três declarações que provocaram dúvidas sinceras. Lula de fato teria compromissos com a democracia?

Em entrevista na Etiópia, o presidente brasileiro comparou a ação de Israel em Gaza ao regime nazista; poupou o presidente russo, Vladimir Putin, das suspeitas da morte do ativista Alexey Navalny e; também cinicamente, não condenou a expulsão dos funcionários da agência da ONU ligada aos direitos humanos na Venezuela, por condenar a prisão de uma integrante da oposição, Rocío San Miguel, que acusou o governo de praticar tortura contra presos políticos.

Nos três casos, em que se posicionou, na prática, a favor de governos ou movimento antidemocráticos, é possível uma linha mínima de defesa do presidente Lula que tem sido bastante utilizada por seus apoiadores nas redes. Israel, ao que tudo indica, tem cometido crimes de guerra na sua sanha vingativa contra o Hamas, deixa dezenas de milhares de mortos, inclusive crianças inocentes, e o exagero retórico teria uma base factual na violência desmedida. Mas, em uma situação tão antiga, complexa e nuançada como a da Palestina, estar assertivamente de um lado ou de outro é estar errado e cometer injustiças.

(‘Não é uma ruptura, mas a corda está frágil’, afirma embaixador de Israel após declaração de Lula)

No caso de Navalny, é acusado de xenofobia e do onipresente “fascismo”. De fato, o ativista russo participou de uma marcha contra o governo em que estavam neonazistas ao seu lado e deu declarações contra imigrantes de etnias não russas. Mas a morte do ativista não diminui o fato de que ele não é o primeiro, e talvez não seja o último, opositor russo envenenado em circunstâncias misteriosas. Nem o que aparece morto. Há uma lista de gente que morreu dessa maneira, inclusive uma repórter, Anna Politkovskaya, crítica de Vladimir Putin. O autocrata russo, inclusive, também é responsável por morte de crianças inocentes em bombardeios na Ucrânia, mas nesse caso recebe o beneplácito do colega sul-americano.

Já com relação à Venezuela, um líder tão boquirroto como nosso presidente, rápido em condenar inimigos políticos internos e externos, alegar desconhecimento tergiversa o cinismo. Lula segue na sua campanha de reabilitar o presidente venezuelano Nicolás Maduro. Pelo jeito, pode ser a pior pessoa do mundo, mas basta ser antiamericano ou mesmo antiocidental que contará com a boa-vontade lulista.

Fica a dúvida de quais são as intenções do presidente. Se é uma questão de assessoramento, de ideologia, ou pragmatismo. No último caso, entretanto, cada vez faz menos sentido. Porque além do apoio de seu rebanho mais fiel, que irá consentir e defender qualquer coisa que faça, Lula não agrega ninguém com suas declarações. No máximo perde apoios. De aplausos inesperados, até agora, só do grupo terrorista Hamas.

Por causa de suas posições internacionais, Lula agora está distante dos Estados Unidos do Partido Democrata e estará ainda mais longe dos Republicanos, em caso de vitória de Donald Trump. Está em rota de colisão com os países europeus que se posicionam contra a Rússia. E, mesmo no seu quintal, Lula não tem apoio da Argentina de Javier Milei, por óbvios motivos. Líderes esquerdistas do continente têm se distanciado da posição do petista, caso de Gabriel Boric, mandatário do Chile, e José Mujica, ex-presidente do Uruguai – ambos têm condenado ações autoritárias cometidas por Nicolas Maduro. Na verdade, hoje, que país ou grupos de países relevantes que o Brasil lidera? Neste momento, nenhum.

Lula então se distancia dos moderados e se isola no panorama internacional. O que ganha o Brasil em ser severo contra as posições das democracias ocidentais e estar no lado contrário de Joe Biden, dos EUA, Emmanuel Macron, da França, e Olaf Scholz, primeiro-ministro alemão? A necessidade da compra de fertilizantes da Rússia parece ser um argumento insuficiente no apoio velado a Putin (nesse caso, paradoxalmente, Lula tem a companhia algo desairosa tanto de Jair Bolsonaro como de Donald Trump).

Ao sair do governo em 2010, Lula tinha altíssimos índices de popularidade e certa relevância internacional. Agora enfrenta um país dividido, calcificado, e não conseguiu encontrar ainda seu papel na arena internacional. Há década e meia atrás ele era “o cara”, segundo o ex-presidente Barack Obama. Hoje não mais. Segundo Obama, em suas memórias, “Lula tinha os escrúpulos de um chefão do Tammany Hall e circulavam boatos de clientelismo governamental, negócios por debaixo do pano e propinas na casa dos milhões”. Está na Página 353 de Uma Terra Prometida, para quem quiser conferir. Tammany Hall, não por acaso, é uma quadrilha política que agiu por décadas no estado de Nova York.

Após a glória e o ocaso na prisão, e até mesmo com perda de prestígio internacional, Lula se reinventou politicamente como o salvador da democracia brasileira, líder de uma frente ampla que unia esquerda, centristas, moderados, empresários e muita gente que apertou o 13 para evitar os riscos e as bizarrices do governo Bolsonaro. Do ponto de vista internacional coloca tudo a perder ao apoiar, velada ou abertamente, ditadores e terroristas em diferentes locais do mundo.

Fabiano Lana, o autor deste artigo, é filósofo e consultor político. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 19.02.24

Morre Abilio Diniz, fundador do Grupo Pão de Açúcar, aos 87 anos

Empresário precisou ser internado às pressas no Hospital Albert Einstein, com quadro de pneumonia

Aos 87 anos, o empresário é conhecido também por compartilhar o estilo de vida saudável com os seguidores -  (crédito: Reprodução/Instagram)

Morreu na noite deste domingo (18/2), aos 87 anos, o empresário Abilio Diniz, fundador do Grupo Pão de Açúcar. Abilio estava internado no Hospital Albert Einstein com pneumonia. De acordo com fontes próximas, Diniz estava internado há três semanas e o quadro era considerado "difícil".

Autoridades lamentam morte de Abilio Diniz, fundador do Pão de Açúcar

“É com extremo pesar que a família Diniz informa o falecimento de Abilio Diniz aos 87 anos neste domingo, 18 de fevereiro de 2024, vítima de insuficiência respiratória em função de uma pneumonite. O empresário deixa cinco filhos, esposa, netos e bisnetos, e irá ao encontro do seu filho João Paulo, falecido em 2022. Desde já, a família agradece a todas as mensagens de apoio e carinho”, diz a família em nota divulgada pelo jornal Folha de S.Paulo.

Nas redes sociais, a irmã mais nova, Lucilia Diniz, prestou homenagens ao empresário. "Perco meu irmão mais velho, meu primeiro mentor, meu ex-sócio aguerrido e, sobretudo, um dos meus amigos mais queridos", diz a postagem. 

Aos quase 90 anos, o empresário era conhecido pelo estilo de vida saudável, que compartilhava com os seguidores nas redes. Na última publicação, feita em 17 de janeiro, Abilio falou sobre o amor pelos esportes de neve. Em viagem com a família pelos Estados Unidos, ele relatou estar impossibilitado de esquiar nas montanhas pois se recuperava de duas cirurgias no joelho.

História

Além da paixão pelos esportes, em especial, pelo atletismo, Diniz é conhecido por sua trajetória de grande sucesso no varejo, ao transformar o Grupo Pão de Açúcar, fundado por seu pai, Valentim Diniz, numa das maiores empresas do setor no país.

Abilio se iniciou no mundo dos negócios em 1958, a convite do pai, quando fundou o primeiro supermercado Pão de Açúcar. A rede se tornou um sucesso e 10 anos depois, em 1968, o Grupo Pão de Açúcar (GPA) já contava com 40 franquias.

Após 54 anos no GPA, o empresário saiu do grupo em 2013 para assumir a presidência do Conselho de Administração da companhia do ramo alimentício BRF.

Chegou a ser sequestrado, enfrentou uma dura sucessão familiar na empresa e precisou se afastar depois de ter vendido participação da varejista para o grupo francês Casino.

O magnata fazia parte dos Conselhos de Administração do Carrefour Global e do Carrefour Brasil.

Gabriella Braz, Jornalista, para o Correio Brazilense. Texto postado originalmente na edição online, em 18.02.24,às 22,41hs.

Como um deserto pode estar se formando no Nordeste do Brasil

Pesquisadores observaram região identificada como de clima árido no país pela primeira vez. Processo resulta das mudanças climáticas e acendeu alerta na comunidade científica brasileira.

Primeira região árida do Brasil abrange os municípios de Rodelas, Juazeiro, Abaré, Chorrochó e Macururé (Foto: Collection/IRPAA)

Ao longo de quase 25 anos vivendo e trabalhando na zona rural de Juazeiro (BA), a agricultora Ana Lucia da Silva, 41 anos, viu a paisagem e o clima do lugar mudarem. Ela conta que já não consegue mais plantar mandioca e mamona, por exemplo, assim como faziam seus pais e avós. "Está cada vez mais quente. As chuvas diminuíram, e, quando vem, é por um curto período. Depois, só no outro ano. A gente sai para trabalhar porque é obrigado. Vai na roça aguentando o calor, solzão na cabeça, não é fácil, não".

Ana Lucia é uma das moradoras da primeira região árida do Brasil, identificada por pesquisadores do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) em cinco municípios do nordeste da Bahia: Rodelas, Juazeiro, Abaré, Chorrochó e Macururé e que ocupam uma área de 5,7 mil km².

Em novembro do ano passado, o Cemaden publicou uma nota técnica com o achado inédito. A pesquisa avaliou dados climáticos de todo o país, registrados ao longo de 60 anos. As mudanças nas condições de clima foram comparadas entre si em blocos de tempo de 30 anos. A partir da análise das alterações na intensidade da radiação solar, precipitações, ventos e evaporação, os pesquisadores concluíram que o clima na região tinha mudado.

O imenso deserto que está nascendo no Brasil

A mudança do padrão de clima semiárido para árido tem consequências práticas, pois significa a diminuição do índice de chuvas de 800 mm para 500 mm por ano em média, com um clima mais seco. Nessa condição, as chuvas são insuficientes para repor a perda de água pela evapotranspiração – a combinação de evaporação da água no solo e transpiração das plantas e corpos d'água como açudes e lagos.

A pesquisadora do Cemaden Ana Paula Cunha, uma das autoras do estudo, diz que o resultado da pesquisa foi inesperado, pois os autores previam até então apenas um avanço do semiárido para outras regiões além do Nordeste e partes de Minas Gerais. "É uma região onde nós temos visto de forma mais acentuada o aumento de temperatura desde a década de 60, e certamente mais acelerado nos últimos anos."

Mais calor, menos chuva

A pesquisa do Cemaden demonstrou a relação entre o aquecimento global e a mudança no padrão climático no Brasil. O aumento das temperaturas acelera a evaporação para a atmosfera em um ritmo superior ao que é possível repor, o que leva ao déficit hídrico, e logo, a secas mais severas.

Em 2023, o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) indicou que a temperatura na superfície da Terra atingiu um valor 1,1º C mais alto entre 2011-2020 do que o observado entre 1850-1900, após a Revolução Industrial.

No Brasil, no entanto, esse aumento foi mais intenso. Um levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostrou que a alta nas temperaturas no país nesse período foi de, em média, 1,5ºC, e em algumas regiões chegou a 3ºC.

Com isso, a região do semiárido nordestino, que ocupa 12% do território nacional em nove estados e Minas Gerais, é mais vulnerável a essas alterações e atravessou longos períodos de seca. A última grande estiagem durou de 2012 a 2017.

Brasil terá cidades inabitáveis por causa do calor?

Déficit hídrico

Por isso, a Agência Nacional de Águas (ANA) destaca que essas mudanças no clima têm impacto direto sobre eventos extremos, como secas prolongadas. A queda na oferta total de água pode levar a disputas pelo uso do recurso em diferentes setores. Dados da ANA apontam que 49,8% da água disponível no Brasil é aplicada em atividades de irrigação. Outros 24,3% para o consumo humano nas cidades. Mais 9,7% são gastos pela indústria e 8,4% são empregados na agropecuária.

"O que precisa ser realmente melhorado é a questão da governança da água, e isso implica em políticas públicas, mas também no engajamento do setor privado, porque o principal setor usuário é a agricultura irrigada. Temos que criar mecanismos e a própria iniciativa privada tem que trabalhar no sentido de fazer um uso mais eficiente da irrigação ", diz Javier Tomasella, pesquisador do Inpe.

A água disponível no país para essas atividades já está em declínio por conta da aridização. Um relatório da ONG MapBiomas apresentou um balanço da disponibilidade de água nos últimos 30 anos. Entre 2013 e 2021, foram registrados os menores níveis hídricos da série histórica, que começou em 1985. O país ainda concentra 12% do volume de água doce do mundo, mas perdeu 1,5 milhão de hectares de superfície de água em três décadas.

A menor oferta de água impacta a produção agrícola, a pecuária e a geração de energia, tendo em vista que 61,9% da matriz elétrica brasileira é oriunda de fonte hidráulica. "Aumenta preço de alimento, aumenta preço de energia, e obviamente afeta os mais vulneráveis" frisa Cunha.

Desertificação

Para os especialistas, apesar das condições climáticas adversas da nova região árida, não é possível classificá-la como deserto, onde o clima é ainda mais seco, hiperárido. No entanto, de acordo com o Instituto Nacional do Semiárido (Insa), 85% do semiárido brasileiro atravessa um processo de desertificação, o qual "resulta na perda da fertilidade do solo e da biodiversidade, e no êxodo rural".

Essa degradação da região atinge os cerca de 27,8 milhões de habitantes que vivem nos 1.267 municípios do semiárido. Desses, 62% estão nas cidades, mas 38% estão no campo. A desertificação da região, impulsionada também pelo desmatamento, pode tornar a terra improdutiva e inviabilizar a agropecuária.

A área classificada como semiárida está em expansão em direção ao oeste do Nordeste, pelos estados do Piauí e da Bahia e também no norte de Minas Gerais, a uma velocidade de 75 mil km² por década. Mas o estudo do Cemaden não se restringiu apenas a descrever a situação na região árida.

O levantamento também se debruçou sobre as condições de aridez de outros estados e constatou que o Centro-Oeste e a Amazônia também atravessam uma mudança no clima para regimes mais secos. O clima semiárido avança sobre áreas do clima subúmido seco, que encolhem a uma velocidade de 12 mil km² a cada dez anos. Por isso, os autores do estudo afirmam que há uma aceleração do processo de secamento do clima.

Adaptação climática

Em Juazeiro, Ana Lucia tenta encontrar soluções para conviver com as altas temperaturas e a falta de chuvas. "Buscamos novas culturas que sejam resistentes a esse clima, como espécies de plantas forrageiras para alimentar os animais, hortaliças, usamos o canteiro econômico com lona para evitar infiltração, e usamos a matéria que a gente capina na cobertura dos canteiros e do roçado. Estamos replantando novas espécies, principalmente da Caatinga".

Tomasella frisa que as soluções para essa adaptação climática já existem. "Não precisa ser uma grande inovação. É simplesmente adaptar alguma tecnologia que já existe e dessa forma nós conseguimos um uso muito mais eficiente do recurso hídrico". No entanto, ele diz que é preciso adotar as medidas logo.

O estudo do Cemaden que descobriu a região de clima árido foi encomendado pelo próprio Ministério do Meio Ambiente. Por meio de nota, a pasta informou que vai lançar ainda neste ano um novo plano de combate à desertificação e mitigação dos efeitos da seca.

Jéssica Moura, Jornalista, para a Deutsche Welle Brasil. Publicado originalmente em 17.02.24

Cúpula militar na mira da PF: o impacto da inédita investigação de envolvimento em plano de golpe

Quase 60 anos depois do golpe militar de 1964, oficiais generais das Forças Armadas brasileiras estão sendo investigados e podem vir a ser julgados e condenados por uma tentativa de golpe de Estado. 

Generais Nogueira e Braga Netto (esq.), ex-presidente Bolsonaro e o almirante Garnier são investigados pela PF (Marcos Correa / Pres. da República)

O levante investigado não é o de seis décadas atrás, cujos responsáveis nunca foram punidos, mas aquele que, segundo a Polícia Federal, era planejado dentro do Palácio do Planalto e tinha como objetivo impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e manter o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no poder.

Bolsonaro e sua defesa vêm alegando que ele não teve nenhum envolvimento em nenhum plano de golpe de Estado ou outras irregularidades investigadas pela Polícia Federal. "Não foi chegado à minha frente nenhum documento para eu assinar e decretar (estado de) Sítio ou (estado de) Defesa", disse o presidente na sexta-feira (9/02).

Documentos divulgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) relativos a diferentes operações da PF como a Tempus Veriatis, deflagrada na quinta-feira (08/02), agora apontam que pelo cinco oficiais generais (aqueles que ocupam as mais altas patentes das Forças Armadas) teriam participado de um plano que incluía, entre outras medidas, a suspensão do resultado das eleições presidenciais de 2022 e até a prisão de ministros do Supremo.

Os cinco oficiais generais na mira da PF são: o ex-ministro do gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno; o ex-ministro da Casa Civil, general Walter Braga Netto; o ex-ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira; o general Estevam Teophilo; e o ex-comandante da Marinha, almirante Almir Garnier.

Os cinco são investigados pela PF por crimes como tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado democrático de direito. As penas por esses crimes podem chegar a 12 anos de reclusão.

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Segundo relatórios da PF reproduzidos em decisões do ministro do STF, Alexandre de Moraes, os oficiais fizeram parte de diferentes núcleos da organização que teria planejado um golpe de Estado e participaram de reuniões em que foram discutidas medidas a serem adotadas em caso de derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.

Augusto Heleno, segundo a PF, seria integrante do núcleo de inteligência paralela do grupo, responsável pela coleta de informações que "pudessem auxiliar a tomada de decisões do então Presidente da República, Jair Bolsonaro, na consumação do golpe de estado".

Braga Netto, Almir Garnier, Estevam Teophilo e Paulo Sérgio Nogueira fariam parte do núcleo de "Oficiais de Alta Patente" responsáveis, de acordo com a PF, por "influenciar e incitar apoio aos demais núcleos de atuação" da organização.

Procurada pela BBC News Brasil, a defesa de Augusto Heleno disse que havia recebido acesso aos autos das investigações recentemente e não poderia se manifestar. A assessoria do general Braga Netto confirmou o recebimento das perguntas feitas pela reportagem, mas nenhuma resposta foi enviada.

Em setembro de 2023, durante audiência da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito para apurar os atos de 8 de janeiro, Heleno negou ter participado de qualquer reunião para discutir golpe de Estado.

Em entrevista a jornalistas na quinta-feira (8/02), Braga Netto classificou as suspeitas levantadas pela PF como "perseguição" e "sonho".

"Continua uma perseguição em cima do pessoal do Bolsonaro. É tudo uma invenção, um sonho", disse.

A reportagem não conseguiu localizar as assessorias de Almir Garnier, Estevam Teophilo e Paulo Sérgio Nogueira.

A investigação têm chamado a atenção de especialistas nas relações entre militares e o mundo político no país ouvidos pela BBC News Brasil.

Eles apontam que o fato de haver tantos oficiais generais investigados e passíveis de punição por atos contra a democracia no Brasil é algo inédito em um país que, segundo eles, seria acostumado a anistiar militares em outras situações similares.

Apesar disso, eles avaliam que os impactos dessa investigação para a relação dos militares com o governo deverão ser reduzidos porque tanto as Forças Armadas quanto o atual governo Lula não desejariam aumentar a tensão e tentam adotar uma estratégia que consiste em isolar os supostos responsáveis pela tentativa de golpe em vez de responsabilizar a instituição como um todo.

Eles ponderam ainda que a mera investigação não seria capaz de mudar o pensamento "intervencionista" que seria corrente entre parte das Forças Armadas. Essa mentalidade, dizem os especialistas, colocariam os militares na condição de "tutores" da sociedade brasileira, o que abriria brechas para recorrentes tentativas de intervenções e rupturas democráticas.

General e ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) Augusto Heleno também é investigado pela PF. Ele faria, de acordo com a polícia, parte de um núcleo de inteligência paralela (Pres. da República)

"País sem tradição de investigar generais"

A pesquisadora Adriana Marques, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) , é uma das principais referências brasileiras no estudo da atuação dos militares na sociedade brasileira. Segundo ela, a existência de tantos oficiais generais na mira da PF é um fato inédito.

"Isso é inédito na história do Brasil. Precisamos lembrar que o Brasil não tem tradição de investigar e punir militares que tentaram desestabilizar a democracia", afirmou a professora à BBC News Brasil.

Um dos exemplos mais recentes de como o Brasil lidou com atentados à democracia foi a Lei de Anistia, de 1979, que anistiou militares e civis que cometeram crimes ligados à ditadura militar entre 1964 e 1985.

O Brasil foi na contramão de países como a Argentina, que prenderam militares responsáveis pela ditadura que comandou o país entre os anos 1976 e 1983.

O historiador e professor titular da UFRJ Carlos Fico, outro estudioso da atuação dos militares no Brasil, faz uma avaliação semelhante à de Adriana Marques. Ele pontuou que a investigação tem fatores inéditos, mas pondera que ainda é cedo para dizer se ela tem o potencial de resultar em um fato histórico.

"Essa ação no STF é uma investigação com características inéditas, sobretudo porque envolve alguns oficiais generais. No Brasil, a regra geral era de que oficiais generais nunca eram investigados ou punidos por crimes contra a democracia. Mas como historiador, temos cautela para dizer se isso será ou não algo histórico. Não podemos dizer isso agora", disse o professor à BBC News Brasil.

Para o professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutor em Ciência Política Augusto Teixeira, a investigação da PF teria um caráter revelador sobre a atuação dos militares na sociedade brasileira.

"Infelizmente, o caso que operação da PF descortinou traz à tona um histórico problema da nossa República: a atuação política de militares. Se considerarmos que a própria proclamação da República foi, em sua essência, um golpe militar contra um governo civil constituído, veremos que a participação de militares na intentona golpista bolsonarista encontra ecos na história", disse o professor à BBC News Brasil.

Segundo Teixeira, havia a sensação de que a redemocratização de 1985 e a criação do Ministério da Defesa em 1999 haviam sido capazes de estabelecer o controle civil sobre as Forças Armadas e que os militares tinham se recolhido aos quarteis.

Ele pontuou, no entanto, que desde o início dos anos 2010, teria havido um processo que ele classificou como "politização dos quarteis" marcado pela atuação política de comandantes das Forças, especialmente do Exército. Esse fenômeno teria fragilizado o controle civil sobre militares e criado o terreno para a suposta participação de oficiais em um plano de golpe.

"Diante desse quadro, não espanta a existência de tantos militares de alta patente investigados, afinal, mais do que militares, eles foram governo", afirmou o professor.

Adriana Marques avaliou que incluir tantos oficiais generais nessa investigação só foi possível por conta da suposta solidez das instituições democráticas do país.

"O regime democrático brasileiro resistiu, na medida do possível, à investida autoritária. A democracia brasileira sofreu vários percalços nas últimas décadas, mas se manteve. O fato de termos instituições democráticas como um Poder Judiciário independente permitiu termos o respaldo necessário para que essa investigação prosseguisse", afirmou.

Investigação da PF aponta que militares teriam incentivado manifestações contrárias ao resultado das eleições de 2022. Em 8 de janeiro, milhares de manifestantes invadiram as sedes dos Três Poderes, em Brasília (Getty)

"Investigação, sozinha, não mudará mentalidade de militares"

A professora Adriana Marques pontuou que existe uma vasta literatura acadêmica que se debruça sobre a chamada "mentalidade de tutela" dos militares brasileiros sobre a sociedade. Ela avalia que somente a investigação conduzida pela PF não teria o poder de mudá-la.

"A investigação, sozinha, não mudará a mentalidade dos militares. Agora, se houver responsabilização dos militares, a gente pode vislumbrar, num futuro, uma mudança nessa mentalidade de tutela. Até agora, conspirar contra a democracia e participar de planos de golpe nunca gerou consequências políticas e jurídicas para os militares", disse a professora.

O historiador Carlos Fico disse que a chamada "mentalidade de tutela" está arraigada nas Forças Armadas brasileiras há vários séculos.

"É algo estrutural. Ao longo da nossa história, houve dezenas de episódios de intervencionismo militar no Brasil. Essa mentalidade confere aos militares a condição de tutores da sociedade brasileira capazes e responsáveis por arbitrar conflitos", disse Fico.

Mais recentemente, completou o professor, essa mentalidade estaria materializada no artigo nº 142 da Constituição Federal.

O texto diz que as Forças Armadas, sob a autoridade do Presidente da República, se destinam à "defesa da Pátria" e "à garantia dos poderes constitucionais". Esse artigo é frequentemente evocado por manifestantes favoráveis a uma intervenção militar como um texto que daria legitimidade à uma ruptura democrática no país.

Segundo ele, essa condição estrutural ganhou ainda mais ênfase na gestão Bolsonaro.

"Durante o governo Bolsonaro, houve uma revitalização dessa mentalidade por uma série de motivos. Essa é a razão de haver tantos oficiais generais envolvidos (nessa investigação). Isso é lamentável", pontuou o professor.

Fico concordou com Adriana Marques e disse que não acredita que a investigação possa, isoladamente, mudar a mentalidade de parte dos militares brasileiros.

"Seria preciso promover uma mudança no artigo nº 142 para redirecionar as atribuições da Forças Armadas. Mas esse é um movimento sensível e o governo Lula não tem força política para encampar isso agora", disse o professor.

O professor Augusto Teixeira concordou com Adriana Marques e Carlos Fico. Para ele, a investigação não mudará a mentalidade de parte dos militares.

"Não creio que investigações podem mudar esse ímpeto ou mentalidade de tutela. Existe um entendimento de que as Forças Armadas são uma burocracia especial, de Estado e de longa duração."

Teixeira também avalia que uma das medidas que poderia ter impacto seria a revisão do artigo nº 142 da Constituição Federal. Mas assim como Fico, ele pontuou que parece não haver interesse nisso neste momento.

"A importante revisão do artigo 142 da Constituição parece não ter nem o apoio do governo federal [...] Na prática, o que se percebe é a manutenção da omissão civil sobre esta matéria, tanto no governo quanto no Congresso, somada a uma estratégia de acomodação de interesses", disse.

Especialistas apontam que, neste governo, Lula e militares tentarão estratégia para isolar suspeitos de envolvimento com suposto plano golpista (Ricardo Stuckert / Pres. da República)

Pouco impacto na relação com governo Lula

Carlos Fico e o professor Augusto Teixeira avaliaram que tanto o governo Lula quanto a cúpula das Forças Armadas vêm adotando estratégias para minimizar o impacto das investigações nas relações entre militares e o Palácio do Planalto.

Para Teixeira, o impacto nessa relação será "mínimo".

"​​Tanto o Ministro da Defesa como os Comandantes das Forças buscarão sustentar o argumento de que a possível participação de militares em possíveis ilícitos seria uma conduta individual [...] O governo e sua bancada buscarão blindar a instituição militar e, possivelmente, o atual comando das Forças, atrelando qualquer desvio a militares em particular e ao ex-presidente e o seu grupo", disse o professor.

Carlos Fico concordou com Teixeira.

"Essa é apenas uma impressão, mas existe, claramente, uma estratégia de individualizar a culpa e não condenar toda a instituição. Alguns oficiais poderão ser condenados e as coisas continuam. Isso já está precificado", avalia o professor.

Para Augusto Teixeira, ainda que alguns oficiais possam ser punidos, o tom entre militares e governo deverá ser o de acomodação.

"Em suma, deverá preponderar o modelo de acomodação com uma retirada momentânea das Forças para os quarteis, ou seja, afastados da política", disse o professor.

Adriana Marques adotou um tom mais cauteloso. Segundo ela, será preciso aguardar como o Ministério da Defesa lidará com o avanço das investigações da PF.

"Até agora, a postura do ministro da Defesa (José Múcio Monteiro) era de conciliar e pacificar as Forças Armadas, mas acho que diante dos fatos graves que vêm sendo revelados, a pasta terá que tomar medidas contra algumas das pessoas investigadas", afirmou a professora.

Leandro Prazeres, de Brasília-DF, originalmente, para a BBC News Brasil, em 19.02.24

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Netanyahu diz que fala de Lula comparando Israel ao Holocausto é vergonhosa e convoca embaixador

Em entrevista coletiva, Lula criticou a ofensiva israelense e comparou as ações de Israel com o extermínio de judeus feito por Hitler

O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, visita unidade do Exército israelense  Foto: Assessoria de imprensa do primeiro-ministro/EFE

O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, disse neste domingo, 18, que “comparar Israel ao Holocausto nazista e Hitler é cruzar uma linha vermelha”. Trata-se de uma reação à fala do presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva.

“As palavras do presidente do Brasil são vergonhosas e sérias. São sobre banalizar o Holocausto e tentar ferir o povo judeu e o direito Israelense de se defender”, afirmou Netanyahu em seu perfil no X, novo nome do Twitter.

“Decidi, com o ministro de Relações Exteriores Israel Katz, convocar o embaixador brasileiro em Israel para uma dura conversa de repreensão”, escreveu o primeiro-ministro israelense.

Mais cedo, em entrevista a jornalistas, Lula criticou as ações israelenses na Faixa de Gaza, às quais já havia classificado como desproporcionais no passado. O governo israelense afirma que as ofensivas são necessárias para derrotar o Hamas.

“O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existiu em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu. Quando Hitler resolveu matar os judeus”, declarou Lula. Ele também afirmou que a ofensiva israelense promove um genocídio.

A guerra no enclave palestino começou no dia 7 de outubro do ano passado, quando terroristas do Hamas invadiram o território israelense, mataram 1.200 pessoas e sequestraram 240. A ação é considerada o pior ataque contra judeus desde o Holocausto e o pior ataque terrorista da história de Israel. Depois dos atos terroristas do Hamas, Tel-Aviv iniciou uma operação na Faixa de Gaza, com bombardeios aéreos e invasão terrestre, que resultaram na morte de mais de 28 mil palestinos, segundo o ministério da Saúde de Gaza, que é controlado pelo grupo terrorista Hamas.

A comparação com a política de extermínio de judeus capitaneada por Hitler é forte porque Israel é um Estado que foi fundado por judeus com o apoio das potências que derrotaram a Alemanha nazista, a Itália fascista e o Japão imperialista na Segunda Guerra Mundial. O território, antes, era habitado por palestinos. Daí as tensões que duram até hoje.

Além disso, há um trecho do tuíte de Netanyahu que pode ser entendido como uma resposta a outra declaração de Lula. “Israel luta por sua defesa e para assegurar seu futuro até a vitória completa e faz isso enquanto defende o direito internacional”, afirmou o primeiro-ministro israelense.

Na quinta-feira, 15, no Egito, Lula havia dito que, aparentemente, Israel tem a “primazia” de não cumprir decisões da ONU. O petista falou isso em um contexto em que criticava a impotência de mecanismos multilaterais frente a conflitos ao redor do planeta.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de coletiva de imprensa em Adis Abeba, Etiópia  Foto: Ricardo Stuckert/PR

“A única coisa que se pode fazer é pedir paz pela imprensa. Mas me parece que Israel tem a primazia de descumprir, ou melhor, de não cumprir nenhuma decisão emanada da direção das Nações Unidas”, disse Lula na ocasião.

O petista concluiu neste domingo uma viagem à África que incluiu Egito e Etiópia. A situação humanitária na Faixa de Gaza foi um dos principais assuntos discutidos pelo presidente brasileiro. Ele teve reuniões com o primeiro-ministro da Autoridade Palestina, Mohammad Shtayyeh, e com outras autoridades sensíveis à causa palestina, como o presidente do Egito, Abdel Fattah Al-Sisi.

Lula e seu grupo político têm identificação histórica com a causa palestina. No Brasil, nos últimos anos, forças de direita passaram a dar apoio quase incondicional a Israel. Como mostrou o Broadcast mais cedo, líderes da oposição, como Rogério Marinho e Ciro Nogueira, criticaram o presidente brasileiro depois das falas comparando a ação israelense ao Holocausto.

Comunidade judaica repudia declarações de Lula

Em nota divulgada neste domingo, 18, a Confederação Israelita do Brasil (Conib), entidade que representa a comunidade judaica brasileira, repudiou as comparações de Lula entre a ofensiva israelense e o extermínio de judeus feito por Hitler.

“A Conib repudia as declarações infundadas do presidente Lula comparando o Holocausto à ação de defesa do Estado de Israel contra o grupo terrorista Hamas. Os nazistas exterminaram 6 milhões de judeus indefesos na Europa somente por serem judeus. Já Israel está se defendendo de um grupo terrorista que invadiu o país, matou mais de mil pessoas, promoveu estupros em massa, queimou pessoas vivas e defende em sua Carta de fundação a eliminação do Estado judeu. Essa distorção perversa da realidade ofende a memória das vítimas do Holocausto e de seus descendentes”, apontou a entidade.

O órgão também questionou a postura brasileira em relação a guerra. “O governo brasileiro vem adotando uma postura extrema e desequilibrada em relação ao trágico conflito no Oriente Médio, abandonando a tradição de equilíbrio e busca de diálogo da política externa brasileira. A Conib pede mais uma vez moderação aos nossos dirigentes, para que a trágica violência naquela região não seja importada ao nosso país.”

Já o Instituto Brasil Israel (IBI) afirma que as declarações de Lula banalizam o Holocausto e fomentam o antissemitismo.

“A comparação da tragédia em Gaza com o Holocausto nazista, feita por Lula neste domingo, é um erro grosseiro que inflama tensões, e mina a credibilidade do governo brasileiro como um interlocutor pela paz. O genocídio nazista foi um plano de exterminar, em escala industrial, toda a presença judaica na Europa, sob uma ideologia de superioridade racial e antissemitismo”, diz o IBI. “Não há paralelo histórico a ser feito com a guerra em reação aos ataques do Hamas, por mais revoltantes e dolorosas que sejam as mortes de dezenas de milhares de palestinos, entre eles mulheres e crianças, além dos cerca de 1.200 mortos israelenses e as centenas de civis que permanecem sequestrados em Gaza. A fala de Lula banaliza o Holocausto e ganha contornos ainda mais absurdos em um desrespeito flagrante à presença em Israel hoje de milhares de sobreviventes da barbárie nazista e seus descendentes”.

O instituto que visa criar laços entre Brasília e Tel-Aviv também relembra os compromissos internacionais firmados pelo Brasil pela preservação da memória do Holocausto.

Caio Spechoto, jornalista, para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 18.02.24.