terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Ameaças de Bolsonaro usando Forças Armadas começaram antes de reunião no Planalto; saiba como

Em diversas ocasiões, ex-presidente sugeriu que as eleições de 2022 não seriam realizadas se não houvesse voto impresso

Ex-presidente já ameaça não realizar eleições antes da reunião ministerial que serviu como prova para deflagrar operação da PF Foto: Gabriela Biló / Estadão

As ameaças golpistas do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) já eram feitas antes da reunião ministerial do dia 5 de julho de 2022, que se tornou uma das principais provas que levaram à deflagração da Operação Tempus Veritatis na última quinta, 8. 

Desde 2021, Bolsonaro e seus aliados começaram a ameaçar o processo eleitoral, ao mesmo que estimulavam a introdução do voto impresso com críticas às urnas eletrônicas.

A cúpula bolsonarista tentou emplacar a ideia de que os votos impressos eram a única forma de garantir “eleições limpas”. Segundo declarações do ex-presidente, as urnas eletrônicas seriam passíveis de fraude. Porém, tanto Bolsonaro quanto os seus aliados nunca apresentaram provas sobre as suas ilações.

Em julho de 2021, um ano antes do encontro ministerial, o Estadão revelou que o ex-ministro da Defesa Walter Braga Netto enviou um recado para o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) que não haveria eleições se os pleitos não contassem com os votos impressos e auditáveis.

Depois de receber a dura mensagem de Braga Netto, Lira foi se reunir com Bolsonaro no Palácio da Alvorada. No encontro, o presidente da Câmara afirmou que seguiria apoiando o governo, mas avisou que não iria apoiar uma ruptura democrática.

A ameaça vocalizada pelo então ministro da Defesa já havia sido dada pelo próprio Bolsonaro durante uma live para apoiadores no dia 6 de maio daquele ano. O ex-presidente disse que o voto impresso seria introduzido em 2022 — o que não se concretizou — e que os pleitos não seriam realizados se não houvesse o modelo. “Vai ter voto impresso em 2022 e ponto final. Não vou nem falar mais nada. (...) Se não tiver voto impresso, sinal de que não vai ter a eleição. Acho que o recado está dado”, afirmou.

Assim como o ex-presidente, Braga Netto também foi um dos alvos da operação da PF nesta quinta-feira, 8. O ex-ministro, que foi vice na chapa de Bolsonaro em 2022, teve a sua residência vasculhada pelos policiais e está proibido de sair do País, além de estar impossibilitado de manter contato com outros investigados.

Na reunião ministerial de 2022, Bolsonaro defendeu um “golpe sem armas” a partir da massificação de desinformações sobre as urnas eletrônicas e exigiu que os seus ministros pressionassem o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Segundo o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que determinou a deflagração da operação da PF, o encontro ministerial mostrou uma “dinâmica golpista” planejada pelos integrantes do governo anterior.

(Braga Netto criticou comandante do Exército por rejeitar golpe: ‘Oferece a cabeça dele. Cagão’)

Bolsonaro disse que eleições não seriam realizadas se elas não fossem ‘limpas’

Dias antes do recado dado por Braga Netto, Bolsonaro fez outras ameaças golpistas diante de apoiadores no Alvorada. O então chefe do Executivo afirmou: “Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”.

Também naquele período, o ex-presidente disse em outra live que iria entregar a faixa presidencial para qualquer um que o derrotasse “de forma limpa” que, na sua visão, era a introdução do voto auditável. Bolsonaro disse que caso isso não se concretizasse, o Brasil iria ter um “problema seríssimo”, sem explicitar qual seria a consequência.

“Eu entrego a faixa presidencial para qualquer um que ganhar de mim na urna de forma limpa. Na fraude, não. Vamos para o voto auditável. Esse voto ‘mandrake’ aí não vai dar certo. Nós vamos ter um problema seríssimo no Brasil”, disse o ex-presidente.

Tanques marcharam em Brasília quando a Câmara rejeitou voto impresso

No dia em que a Câmara iria votar uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que iria formalizar a adoção do voto impresso, 150 blindados marcharam pela Praça dos Três Poderes. A tendência era que a PEC seria rejeitada, o que fez aumentar, entre parlamentares, a leitura de que houve uma tentativa de intimidar o Congresso Nacional a aprovar a medida.

Tanques desfilaram na frente do Congresso no dia em que Câmara rejeitou PEC do voto impresso Foto: GABRIELA BILÓ/ESTADÃO

Apesar do gesto, a Câmara rejeitou a PEC por um placar de 229 votos a favor e 218 contra. Para que fosse aprovada e seguisse para o Senado, a proposta tinha que ter o apoio de 308 parlamentares.

Bolsonaro usou 7 de setembro para atacar Moraes e sistema eleitoral

Durante a gestão de Bolsonaro na Presidência, o feriado da Independência foi instrumentalizado como palanque político. No dia 7 de setembro de 2021, Bolsonaro fez um discurso inflamado para apoiadores na Avenida Paulista. O ex-presidente disse que os brasileiros não poderiam admitir um sistema eleitoral “que não oferece qualquer segurança” e atacou diretamente Alexandre de Moraes declarando que “ou esse ministro se enquadra ou ele pede pra sair”.

Em um momento do discurso, Bolsonaro disse que o magistrado ainda tinha a chance de “se redimir”, o que gerou vaias entre os bolsonaristas. O ex-presidente então mudou novamente o tom: “Sai, Alexandre de Moraes, deixe de ser canalha, deixe de oprimir o povo brasileiro, deixe de censurar o seu povo.” A resposta dos apoiadores foi o grito em coro de: “Eu autorizo”.

Gabriel de Sousa, Jornalista, produziu esta reportagem para O Estado de S. Paulo. Publicada originalmente em 13.02.24

A chance de Bolsonaro ser preso após o vídeo da “dinâmica golpista” vir à tona

Apesar da série de investigações que miram o ex-presidente, a que apura um plano de golpe de Estado é hoje a que tem maior chance culminar na prisão de Bolsonaro.

Jair Bolsonaro. — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo.

A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) avalia que há provas consistentes para levar Jair Bolsonaro para trás das grades, especialmente após a divulgação do vídeo de uma reunião ministerial de julho de 2022. A PF descreveu momentos do encontro e destacou a “dinâmica golpista” da cúpula do então governo.

Hoje, no entanto, os magistrados também levam em conta o fator político em uma eventual decretação de prisão. Há quem avalie, inclusive, a possibilidade de que o ex-presidente se transforme numa espécie de mártir.

A leitura de quatro magistrados ouvidos pela coluna é que ainda há consenso entre a maioria dos ministros de que uma eventual prisão de Bolsonaro só deve ser decretada após sua condenação na Justiça. Isso, no entanto, pode mudar, a depender de outros dados que surjam no decorrer do processo, como uma tentativa de obstrução de Justiça.

Bela Megale, a autora deste informe, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo,em 13.02.23

Os elos do golpe e o risco restante

O país correu riscos porque foram mantidos em posições estratégicas oficiais que conspiraram contra a democracia

Reunião ministerial realizada por Jair Bolsonaro que foi uma das bases da operação da PF — Foto: Reprodução

O risco de um golpe militar não acabou no fim do governo Bolsonaro e nem está afastado ainda. É preciso saber melhor as circunstâncias que abortaram a trama e os elementos que permanecem em sedição contra a democracia dentro das Forças Armadas. O coronel Bernardo Romão Correa Neto, que foi preso no domingo ao voltar para o Brasil, é da ativa e foi protegido ao ser enviado para um curso no Colégio Interamericano de Defesa, no qual ficaria até 2025. O general quatro estrelas Estevam Cals Theóphilo Gaspar de Oliveira permaneceu nas Forças Armadas por mais um ano em posição estratégica de comando de tropas.

O coronel Correa Neto está preso entre os seus. Foi detido pela Polícia Federal no aeroporto e entregue à polícia do Exército. Dos três passaportes que possuía, um era diplomático. Ele ganhou um curso de aperfeiçoamento no exterior, pago com os nossos impostos, depois de ter feito o que fez. O coronel, como mostrou a operação Tempos Veritatis, combinou diretamente com Mauro Cid a reunião com os kids pretos, os militares formados nas Forças Especiais. Ele quebrou a hierarquia, passou por cima dos seus comandantes imediatos, falou diretamente com o ajudante de ordens do presidente, intermediou reunião de militares da ativa, selecionando apenas os da linha dura, nos preparativos de um golpe de estado. E, mesmo assim, foi enviado para um curso nos Estados Unidos.

Há muitos sinais de que o contágio das Forças Armadas pelo golpismo atravessou o dia da posse. As transições de comando mostraram isso. Houve apenas uma mudança normal, a da Aeronáutica. O general Freire Gomes saiu antes, passando ao general Arruda, que hoje é um dos investigados. Entre outros sinais da permanência do golpismo está a insistência do primeiro comandante do Exército do governo Lula, general Júlio César Arruda, de manter a decisão de entregar o estratégico Batalhão de Operações Especiais, sediado em Goiânia, para o coronel Mauro Cid. Sediado em Goiânia, o batalhão é o que logisticamente está mais próximo a Brasília. O almirante Almir Garnier foi o comandante mais explícito em sua insubordinação, ao sequer ir à transmissão do posto para o almirante Marcos Olsen, apesar de ter se deixado ver em outros eventos no mesmo dia.

Em conversas que tive recentemente com oficiais generais nas três Forças, e que relatei aqui na coluna de 24 de dezembro, o que eu ouvi é que sim houve contaminação de parte das Forças Armadas pelas ideias do bolsonarismo. Mas eles também disseram que houve contenção desse fenômeno no governo Lula, principalmente depois do 8 de janeiro, quando ficou explícita a ilegalidade embutida no projeto do governante derrotado nas urnas. Sobre a apuração do que houve dentro das Forças, a posição defendida pelos militares é que seria necessário aguardar as apurações do processo comandado pelo ministro Alexandre de Moraes.

O país correu riscos porque foram mantidos em posições estratégicas oficiais que conspiraram contra a democracia. O caso mais evidente é o do general Estevam Cals Theóphilo, que assumiu o comando das Operações Terrestres em 30 de março de 2022. Não foi colocado lá por acaso, evidentemente. E só saiu do cargo em 30 de novembro de 2023 quando foi para a reserva. Essa permanência é perigosa e dela não sabemos todas as ramificações. Que outros oficiais estiveram dispostos a entrar numa trama para derrubar o regime democrático e que ainda estão em postos importantes com seus ideais? E que perigo o acobertamento ainda representa para a democracia?

O golpe fracassou porque havia militares legalistas. Alguns por convicção, como o general Tomás, outros por talvez avaliarem que o balanço de risco era negativo. O general Freire Gomes acompanhou a redação da minuta do golpe até recuar. E foi chamado de “cagão” pelo conspirador general Braga Netto. O brigadeiro Batista Jr, alvo também de Braga Netto — “senta o pau no Batista”— foi o mesmo que defendeu a nota que ameaçou a CPI da Covid quando a investigação se aproximava dos militares. Na época, em entrevista a Tânia Monteiro para O Globo, deixou uma frase pendendo sobre nossas cabeças. Perguntado se a nota era ameaça, ele respondeu, “homem armado não ameaça”.

Esse é o ponto em que estamos. Muito ainda a entender sobre circunstâncias e permanências dos riscos.

Míriam Leitão, a autora deste artigo (com Ana Carolina Diniz), é jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 13.02.24


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

|‘Virada de mesa’, minuta de golpe, militares e assessores nazistas: tudo leva a Bolsonaro

Prisão de ex-presidente já tem até cronograma e só deve ocorrer após sua condenação

A prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro tarda, mas não falha e tem até um cronograma: o Supremo Tribunal Federal (STF) e a Polícia Federal (PF) não pretendem correr nenhum risco jurídico, policial ou político e só pretendem chegar a esse ponto depois das investigações, das instâncias de julgamento e da eventual condenação pela mais alta corte de justiça do País. Não estão previstas prisão preventiva ou temporária, só depois da tramitação em julgado.

A estratégia é rigorosa e detalhada, com uma sequência de operações da Polícia Federal, uma lista crescente de alvos e a apresentação robusta de provas até que não haja mais nenhum fiapo de dúvidas sobre a responsabilidade direta de Bolsonaro pela armação de um golpe de Estado em que ele seria o principal beneficiado.

STF e PF têm obsessão com o rigor na investigação, na produção das provas e na avaliação jurídica, lei por lei, artigo por artigo, para não dar margens nem alimentar o discurso bolsonarista de que estaria agindo em conluio com o governo Lula para perseguir Bolsonaro e evitar seu retorno à política e às eleições.

Uma parte importante da estratégia é preparar os ânimos da população, mostrando as provas e montando a história do golpe detalhe por detalhe, participante por participante, até criar a consciência da culpa e de que a prisão é justa. Afinal, Bolsonaro foi eleito presidente em 2018, perdeu por pouco em 2022 e tem uma base popular forte e disposta a tudo – parte dela foi capaz, inclusive, de invadir e depredar as sedes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

O STF já autorizou e a PF já cumpriu várias etapas dessa estratégia. Começou com prisão e condenação dos executores, evoluiu para operações contra atiçadores e financiadores e tem como principais marcas as prisões do ex-ministro da Justiça Anderson Torres e do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente coronel da ativa Mauro Cid, com os quais foram encontradas duas minutas complementares de golpe de Estado. A partir daí as peças do quebra-cabeças foram fechando, até a delação premiada de Cid e as revelações estrondosas dos seus celulares.

Entre as provas assustadores que foram descobertas pela PF e anunciadas nesta quinta-feira, destacam-se duas. Um vídeo em que Bolsonaro e generais discutiam abertamente o golpe e o general Heleno defendeu que a “virada de mesa” deveria ser antes da eleição. E um texto apócrifo, mas encontrado no próprio gabinete de Bolsonaro no PL, justificando a decretação de Estado de Sítio.

As etapas das investigações incluíram as operações contra o equipamento espião da Abin, o ex-diretor geral da agência Alexandre Ramagem, o filho 02, Carlos Bolsonaro – que, não por acaso, estava na casa de praia da família com o pai e dois irmãos. E, agora, a PF apreende o passaporte de Bolsonaro, numa óbvia medida preventiva para evitar que ele fuja do País, inclusive porque dois dos filhos já têm cidadania italiana. Desta vez, todos os caminhos não levam a Roma, mas à prisão de Bolsonaro.

A estrada, que é longa, acaba de chegar aos generais que cercavam Bolsonaro: Braga Neto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira. O ex-comandante do Exército, Freire Gomes, disse não a um golpe, sai bem na foto. E, da equipe do Planalto, só ficou fora o também general Luiz Eduardo Ramos, que vinha sendo escanteado desde julho de 2021, quando foi rebaixado da Casa Civil para uma função burocrática no Planalto e me disse: “Fui atropelado por um trem”.

Além de generais, há também um almirante, coronéis e majores na linha de fogo do STF e da PF, além de assessores e do presidente do PL, Waldemar Costa Neto, que não é mais réu primário e foi preso de novo por posse ilegal de armas e de uma pepina bruta de ouro.

De todos, porém, um merece atenção especial: Filipe Martins, que também foi preso, mas diretamente pela articulação do golpe. Discípulo do indescritível Olavo de Carvalho, que cultivava extremistas, ele virou assessor internacional da Presidência, aos 31 anos, sem nenhuma das credenciais para o cargo. E foi processado por postar-se atrás do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, num evento oficial e se deixar filmar fazendo um gesto de supremacistas brancos – ou seja, um gesto nazista.

Isso, claro, remete ao ex-secretário da Cultura Roberto Alvim, que foi capaz de fazer não um gesto, mas um vídeo inteiro de inspiração nazista, com trechos de Goebbels e a música preferida de Hitler ao fundo. Martins e Alvim tinham tudo a ver com um governo que pretendia fechar o TSE, prender o ministro do STF Alexandre de Moraes, decretar Estado de Sítio e transformar o Brasil numa ditadura, com militares divididos, policiais cooptados e civis armados até os dentes. E ainda diziam que a esquerda é que iria transformar o Brasil  numa Venezuela...

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado, Rádio Jornal (PE) e do telejornal GloboNews "em Pauta". Publicadooriginariamente n'O Estado de S. Paulo, em 09.02.27

Acusação de golpe é a mais grave numa democracia

Investigação da conspiração para manter Bolsonaro no poder deve prosseguir com o máximo rigor — e com serenidade

Polícia Federal recolhe malotes com documentos da Sede do PL, em Brasília — Foto: Brenno Carvalho/Agência O Globo

Uma investigação da Polícia Federal (PF), conduzida com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF), apresentou evidências convincentes de que Jair Bolsonaro, quando presidente, alguns de seus ministros, assessores próximos, funcionários do governo e militares tramaram contra a soberania do voto popular, preparando um golpe de Estado. São áudios, vídeos, mensagens de texto e documentos que dão muita consistência às acusações. Não existe acusação mais grave numa democracia. Por isso a investigação deve prosseguir com o maior rigor — mas também com a máxima serenidade.

A Operação Tempus Veritatis, deflagrada ontem pela PF com autorização do ministro Alexandre de Moraes, do STF, investiga um grupo acusado de tramar um golpe de Estado para manter Bolsonaro no poder desde quando era antevista a possível derrota para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2022. Segundo a PF, caso a derrota se concretizasse, um plano previa a prisão de Moraes, do decano do STF, Gilmar Mendes, e de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado.

(Investigação da PF: Gravação de reunião entre Bolsonaro e ministros mostra suposto uso da Abin com finalidade golpista)

A PF diz que mensagens apreendidas na investigação mostram que Bolsonaro recebeu a minuta do decreto da prisão e a editou para retirar da lista de presos Gilmar e Pacheco — é a primeira vez que se menciona uma ação direta do então presidente nas tramas golpistas. Também sustenta que Bolsonaro convocou os comandantes das Forças Armadas ao Palácio da Alvorada para “pressioná-los a aderir ao golpe de Estado”. Suspeito de ter desempenhado papel central na trama em novembro de 2022, Filipe Martins, ex-assessor para Assuntos Internacionais da Presidência, foi um dos alvos da operação, e sua prisão preventiva foi decretada.

Outro suspeito cuja prisão foi decretada é o coronel da reserva do Exército Marcelo Câmara, ex-assessor especial da Presidência apontado como responsável pelo “núcleo de inteligência paralela” dos golpistas. Entre as atividades atribuídas ao grupo estava o monitoramento dos passos do próprio Moraes. Em determinado momento, diz a PF, o planejamento para a prisão de Moraes tinha local e data marcados: São Paulo, 18 de dezembro de 2022.

(Investigações: PF aponta que Moraes era monitorado por aliados de Bolsonaro)

A PF diz ter evidências que comprovam o que chama de “dinâmica golpista” antes mesmo do primeiro turno das eleições. A ideia dos conspiradores era contestar qualquer resultado desfavorável a Bolsonaro por meio das acusações sem fundamento contra o sistema eleitoral que circulavam havia meses. A conspiração envolveu até o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, que chegou a usar verbas do partido para financiar os ataques à urna eletrônica e pediu a anulação do resultado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ontem a polícia encontrou na sede do PL documentos para decretação de estado de sítio. Costa Neto, alvo de mandado de busca e apreensão, acabou preso por portar arma sem permissão legal.

Um vídeo apreendido no computador do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro que firmou acordo de delação premiada depois de preso em maio passado, é uma das provas mais robustas apresentadas no inquérito. Ele registra uma reunião em julho de 2022 com a presença de Anderson Torres (então ministro da Justiça), Augusto Heleno (chefe do Gabinete de Segurança Institucional) e Walter Braga Netto (ministro da Casa Civil).

(Operação da PF: Mourão conclama Forças Armadas a reagirem a 'arbítrios' do STF)

De acordo com a descrição do vídeo feita pela PF, Bolsonaro, nervoso com a possibilidade de derrota nas urnas, exige que os ministros tomem providências contra o TSE. Na gravação, Torres promete reforçar os ataques ao sistema eleitoral, e Heleno opina que se “tiver que virar a mesa, é antes das eleições”. Torres, Heleno, Braga Netto e o general Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa, estão entre os alvos de mandados de busca e apreensão. Pelo envolvimento na trama golpista, Bolsonaro foi proibido de deixar o país e de se comunicar com os demais investigados.

Os indícios revelam que Braga Netto, vice na chapa derrotada de Bolsonaro, concentrou esforços para pressionar e atacar militares em posição de comando contrários à ideia de golpe. Segundo a PF, as investidas partiram de múltiplos canais. Em conversas por mensagem rastreadas pelos investigadores, Braga Netto dá orientação para que o então comandante da Força Aérea, o tenente-brigadeiro Baptista Júnior, contrário ao golpe, seja atacado. E para que o almirante de esquadra Almir Garnier Santos, favorável ao golpe, seja elogiado. Braga Netto manda “oferecer a cabeça” do general Freire Gomes, então comandante do Exército, e se refere a ele com um palavrão quando confrontado com a informação de que ele não aderira ao golpe. Apesar dos esforços golpistas, é sempre fundamental lembrar que, ao fim, prevaleceram o bom senso e a postura legalista no Alto-Comando do Exército. O país se livrou da intentona e houve transferência de poder ao vencedor das eleições.

(Investigações: General alvo prometeu a Bolsonaro que botaria tropa na rua para sustentar golpe, diz PF)

Os desafios do inquérito não têm paralelo na História recente do Brasil. Ele confirma o que muitos denunciaram ao longo do mandato de Bolsonaro — a imprensa sempre vigilante. Diante de acusações tão graves, os eventuais indiciados deverão ter amplo direito de defesa, de modo a dirimir quaisquer dúvidas sobre o caráter republicano das investigações. Muitos tentarão posar de vítimas de arbítrio, usando o processo em benefício político próprio. Para evitar essa postura e desmenti-los, PF, Procuradoria-Geral da República e STF precisam manter atuação serena e responsável. Antes de qualquer julgamento, todos merecem a presunção de inocência, da mesma forma que os acusados de crimes no 8 de Janeiro.

A democracia é conquista inegociável, e tramar contra o resultado das urnas é atentado inadmissível. Por isso as investigações devem seguir com afinco e, comprovada a culpa nos tribunais, a punição aos condenados deve ser severa. É o mínimo a que o Brasil tem direito para preservar a democracia que tanto nos custou.

Editorial de O Globo, em 09.02.24

O que pesa contra Bolsonaro nas operações da PF

A operação especial investiga uma organização acusada de "tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito" nos períodos que antecederam e se seguiram às eleições presidenciais de 2022, em uma tentativa de garantir a "manutenção do então presidente da República (Jair Bolsonaro) no poder".

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) é um dos alvos da operação Tempus Veritatis, deflagrada pela Polícia Federal nesta quinta-feira (8/2).

O passaporte do ex-presidente foi apreendido, conforme ordem da Justiça, que também determinou que ele não mantenha contato com outros investigados.

Em nota obtida pelo jornal Valor, a defesa de Bolsonaro afirmou que a apreensão do passaporte é uma medida "absolutamente desnecessária e afastada dos requisitos legais e fáticos que visam garantir a ordem pública e o regular andamento da investigação, os quais sempre foram respeitados".

"O ex-presidente jamais compactuou com qualquer movimento que visasse a desconstrução do Estado Democrático de Direito ou as instituições que o pavimentam", assegurou.

Mas o que pesa especificamente contra Bolsonaro nas operações da PF?

Entenda a seguir.

Conhecimento e alterações na 'minuta do golpe'

A operação é realizada após o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, fechar delação premiada com a PF.

Cid está preso e é investigado por envolvimento na tentativa de golpe e outras denúncias envolvendo o ex-presidente e integrantes de seu governo.

O ex-ajudante de ordens disse na delação que Bolsonaro teria visto a minuta de um decreto que seria usado para subverter o resultado da eleição presidencial de 2022, em que o ex-presidente foi derrotado por Luís Inácio Lula da Silva (PT).

A minuta teria sido apresentada a Bolsonaro em novembro de 2022 por Filipe Martins, segundo a PF.

A minuta detalhava, segundo a polícia, supostas interferências do Judiciário e decretava a prisão de autoridades, como os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), além do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

O documento também determinaria a convocação de novas eleições.

Segundo Cid, Bolsonaro teria solicitado a Filipe Martins alterações na minuta e concordado com os termos ajustados, além de convocado uma reunião com os comandantes das Forças Armadas para apresentar a eles o documento para que aderissem à iniciativa.

Bolsonaro negou por diversas vezes ter conhecimento de uma minuta com esse teor.

Operação é realizada após o tenente-coronel Mauro Cid (esq.), ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, fechar delação premiada (Reuters)

Prisão de Moraes e anuência de Bolsonaro

"Conforme descrito, os elementos informativos colhidos revelaram que Jair Bolsonaro recebeu uma minuta de decreto apresentado por Filipe Martins e Amauri Feres Saad para executar um Golpe de Estado, detalhando supostas interferências do Poder Judiciário no Poder Executivo e ao final decretava a prisão de diversas autoridades, entre as quais os ministros do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, além do Presidente do Senado Rodrigo Pacheco e por fim determinava a realização de novas eleições", diz um trecho da representação da PF feita ao STF.

Ainda de acordo com a PF, após receber o documento, Bolsonaro sugeriu mudanças.

"Posteriormente foram realizadas alterações a pedido do então Presidente permanecendo a determinação de prisão do Ministro Alexandre de Moraes e a realização de novas eleições", diz o documento.

A PF afirma ainda que após as mudanças terem sido feitas, Bolsonaro concordou com a versão do documento e convocou uma reunião com militares.

"Apos a apresentação da nova minuta modificada, Jair Bolsonaro teria concordado com os termos ajustados e convocado uma reunião com os Comandantes das Forças Militares para apresentar a minuta e pressioná-los a aderirem ao Golpe de Estado", diz a PF ao STF.

Segundo a PF, a minuta teria sido apresentada por Bolsonaro aos então comandantes das três forças militares (Aeronáutica, Marinha e Exército) em uma reunião no dia 7 de dezembro de 2023.

De acordo com trecho de parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) com base nos dados colhidos pela PF, a reunião teria o objetivo de pressionar os comandantes militares a aderirem a um suposto golpe no mesmo dia, a fim de apresentar-lhes a minuta e pressioná-los a aderir ao golpe de Estado.

Esta não é a primeira vez que a PF encontra evidências sobre minutas prevendo a manutenção de Bolsonaro no poder após a derrota nas eleições de 2022. Em 2023, a PF encontrou uma minuta prevendo a convocação de novas eleições na casa do ex-ministro da Justiça durante o governo Bolsonaro, Anderson Torres.

Desde então, Bolsonaro vem negando ter conhecimento sobre a existência do documento.

"Não tomei conhecimento desse documento, dessa minuta. Nas perícias, só encontraram digitais do delegado da operação e de um agente, de mais ninguém. Papéis, eu recebia um monte. Então, é óbvio que não tem cabimento você dar golpe com respaldo da Constituição", disse Bolsonaro em junho de 2023.

Outra reunião

Além disso, em um computador apreendido na residência de Cid, havia um vídeo de uma reunião, realizada em 5 de julho de 2022, de Bolsonaro com outros alvos da operação, como Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o general Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, e Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa.

Na ocasião, o presidente reforçou as suspeitas sem provas de que haveria fraude eleitora, e os presentes "ratificavam a narrativa mentirosa apresentada pelo então Presidente da República", de acordo com a decisão de Moraes.

Na reunião, Bolsonaro teria instado seus ministros a divulgar "desinformações e notícias fraudulentas quanto à lisura do sistema de votação, com uso da estrutura do Estado brasileiro para fins ilícitos e dissociados do interesse público".

O ex-presidente teria afirmado, no entanto, que as pesquisas estavam certas e que provavelmente Lula ganharia a eleição.

Heleno teria respondido então que, para "virar a mesa", tem que ser "antes da eleição" e que era preciso “agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas".

O general também teria, segundo os investigadores, discutido que agentes da Abin se infiltrassem nas campanhas eleitorais, mas Bolsonaro teria interrompido a conversa para que falassem sobre o assunto “em particular”.

Publicado originariamente pela BBC News Brasil, em 09.02.24

Os argumentos da PF e de Alexandre de Moraes para operação que atingiu Bolsonaro

A operação deflagrada pela Polícia Federal (PF) na quinta-feira (8/02) contra Jair Bolsonaro (PF), ex-ministros militares e aliados do ex-presidente foi baseada em investigações que apontaram que uma tentativa de golpe de Estado teve o envolvimento de Bolsonaro.

Segundo investigações, Bolsonaro sabia de minuta golpista e manteve no texto prisão do ministro do STF, Alexandre de Moraes (foto: Reuters)

De acordo com a decisão do ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal (STF), que autorizou a operação Tempus Veritatis, a PF obteve evidências de que:

Bolsonaro tinha conhecimento da existência de uma minuta de decreto com medidas para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PF) e mantê-lo no poder;

militares organizaram manifestações contra o resultado das eleições e atuaram para garantir que os manifestantes tivessem segurança;

e que o grupo em torno de Bolsonaro monitorou os passos de Moraes, incluindo acesso à sua agenda de forma antecipada.

A investigação da PF aponta para uma suposta organização criminosa que teria tentado abolir o Estado Democrático de Direito.

A operação de quinta-feira envolveu, entre outras medidas, ordens de prisão contra quatro ex-assessores de Bolsonaro e da entrega do passaporte do ex-presidente.

Trata-se de um desdobramento do inquérito das "milícias digitais", que tramita no STF e que investiga um grupo ligado a Bolsonaro com o objetivo de promover ataques a autoridades. Bolsonaro é um dos investigados no inquérito.

A investigação também contou com informações repassadas pela colaboração premiada firmada pelo ex-Ajudante de Ordens de Jair Bolsonaro, o tenente-coronel do Exército Mauro Cid.

Foram alvo de mandados de busca e apreensão o general Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o general Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa, o almirante Almir Garnier Santos, ex-comandante-geral da Marinha, e Valdemar da Costa Neto, presidente do PL.

A operação é a que se aproximou de mais integrantes do chamado "núcleo duro" do governo Bolsonaro até o momento.

Os documentos divulgados pelo STF após a sua deflagração trazem informações sobre como funcionaria o esquema supostamente montado nos gabinetes do Palácio do Planalto para impedir que Lula tomasse posse.

Entenda a seguir os argumentos da PF e de Moraes que embasaram a operação.

Operação atingiu, além de ex-assessores, ex-ministros do governo Bolsonaro como Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) (Valter Campanato / Ag. Brasil)

Bolsonaro e a 'minuta do golpe'

Os investigadores da PF apontam que Bolsonaro não apenas teve conhecimento de uma minuta que previa sua manutenção no poder como sugeriu alterações no documento que teria recebido de seu então assessor especial para assuntos internacionais, Filipe Garcia Martins e pelo advogado Amauri Feres Saad.

Além de manter Bolsonaro no governo, o decreto previa a prisão de ministros do STF como Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

"Conforme descrito, os elementos informativos colhidos revelaram que Jair Bolsonaro JAIR recebeu uma minuta de decreto apresentado por Filipe Martins e Amauri Feres Saad para executar um Golpe de Estado, detalhando supostas interferências do Poder Judiciário no Poder Executivo e ao final decretava a prisão de diversas autoridades, entre as quais os ministros do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, além do Presidente do Senado Rodrigo Pacheco e por fim determinava a realização de novas eleições", diz um trecho da representação da PF feita ao STF.

Ainda de acordo com a PF, após receber o documento, Bolsonaro sugeriu mudanças.

"Posteriormente foram realizadas alterações a pedido do então Presidente permanecendo a determinação de prisão do Ministro Alexandre de Moraes e a realização de novas eleições", diz o documento.

A PF afirma ainda que após as mudanças terem sido feitas, Bolsonaro concordou com a versão do documento e convocou uma reunião com militares.

"Após a apresentação da nova minuta modificada, Jair Bolsonaro teria concordado com os termos ajustados e convocado uma reunião com os Comandantes das Forças Militares para apresentar a minuta e pressioná-los a aderirem ao Golpe de Estado", diz a PF ao STF.

Segundo a PF, a minuta teria sido apresentada por Bolsonaro aos então comandantes das três forças militares (Aeronáutica, Marinha e Exército) em uma reunião no dia 7 de dezembro de 2023.

PF aponta que Bolsonaro não só teve conhecimento de uma minuta que previa sua manutenção no poder como sugeriu alterações no documento que teria recebido de seu então assessor especial para assuntos internacionais, Filipe Garcia Martins. (Ag. Senado)

De acordo com trecho de parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) com base nos dados colhidos pela PF, a reunião teria o objetivo de pressionar os comandantes militares a aderirem a um suposto golpe no mesmo dia, a fim de apresentar-lhes a minuta e pressioná-los a aderir ao golpe de Estado.

Esta não é a primeira vez que a PF encontra evidências sobre minutas prevendo a manutenção de Bolsonaro no poder após a derrota nas eleições de 2022. Em 2023, a PF encontrou uma minuta prevendo a convocação de novas eleições na casa do ex-ministro da Justiça durante o governo Bolsonaro, Anderson Torres.

Desde então, Bolsonaro vem negando ter conhecimento sobre a existência do documento.

"Não tomei conhecimento desse documento, dessa minuta. Nas perícias, só encontraram digitais do delegado da operação e de um agente, de mais ninguém. Papéis, eu recebia um monte. Então, é óbvio que não tem cabimento você dar golpe com respaldo da Constituição", disse Bolsonaro em junho de 2023.

Militares organizaram manifestações e segurança de manifestantes

De acordo com a decisão de Alexandre de Moraes, a PF conseguiu obter informações que apontam que parte das manifestações contrárias ao resultado das eleições de 2022 em Brasília teriam sido organizadas por militares próximos ao então presidente Jair Bolsonaro.

As manifestações e acampamentos realizados em Brasília logo após as eleições resultaram na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023.

De acordo com a PF, essas ações eram organizadas pelo chamado "núcleo operacional" da organização investigada.

Segundo os investigadores, esse grupo ficou encarregado de planejar e executar "medidas no sentido de manter as manifestações em frente aos quarteis militares, incluindo mobilização, logística e financiamento de militares das forças especiais em Brasília".

As ações seriam executadas por militares como o major do Exército Rafael Martins, alvo de um dos mandados de prisão expedidos pela PF.

"No dia 12/11/2022, o major Rafael Martins participou de reunião em Brasília/DF juntamente com Mauro Cid e outros militares investigados para tratar de assuntos relacionados a estratégia golpista", diz um trecho da representação da PF.

Os investigadores obtiveram trocas de mensagens entre Mauro Cid e Rafael Martins em que o major faz uma estimativa de custos para as ações organizadas por ele de R$ 100 mil e repassa o valor para Cid.

Mauro Cid era ajudante de ordens de Bolsonaro (Arquivo - PR)

Em outro trecho das mensagens, Martins é orientado por Cid a trazer pessoas do Rio (provável menção à cidade do Rio de Janeiro) para Brasília e questiona Cid sobre se as Forças Armadas garantiriam a permanência delas nos locais selecionados.

A PF diz ainda que Mauro Cid teria orientado Martins a destinar os manifestantes para pontos estratégicos como o Congresso Nacional e o STF.

"O ajudante de ordens do Presidente Jair Bolsonaro (Mauro Cid) confirma que os alvos seriam o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal e sinaliza que as tropas garantiriam a segurança dos manifestantes", diz a PF.

Em outro trecho da representação feita ao STF, a polícia avalia que as manifestações não teriam tido origem apenas na mobilização popular.

"Logo após, os dois (Rafael Martins e Mauro Cid) trocam mensagens de chamamento para as manifestações do feriado de 15/11/2022 (Proclamação da República), o que demonstra que os protestos convocados não se originavam da mobilização popular, mas sim da arregimentação e do suporte direto do grupo ligado ao então Presidente Jair Bolsonaro, como estratégia de demonstração de 'apoio popular' aos intentos criminosos", diz o documento encaminhado ao STF.

Grupo monitorou voos de Moraes

Os investigadores da PF apontam ainda que militares e assessores próximos de Bolsonaro monitoraram os passos de Alexandre de Moraes e avaliam que esse monitoramento poderiam ainda estar em andamento.

Segundo a PF, o monitoramento de Alexandre de Moraes seria importante para o grupo porque se um golpe de Estado fosse dado, uma das medidas a serem implementadas era a prisão de Alexandre de Moraes, que, na ocasião, também era o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

A investigação demonstra, também, a existência de um núcleo de inteligência, formado por assessores próximos ao então Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, que teria monitorado a agenda, o deslocamento aéreo e a localização de diversas autoridades, dentre elas o Ministro Relator do presente inquérito (Alexandre de Moraes), com o escopo de garantir sua captura e a detenção nas primeiras horas do início daquele plano, como acentuado pela Polícia Federal", diz um trecho da decisão de Alexandre de Moraes.

A PF suspeita, ainda, que o grupo investigado pudesse ter acesso a informações privilegiadas sobre a agenda de Moraes e o uso de equipamentos tecnológicos para fazer o monitoramento do ministro.

Leandro Prazeres, de Brasília-DF para a  BBC News Brasil 

Quão perto o Brasil esteve de um golpe militar em 2022?

A operação da Polícia Federal (PF) desta quinta-feira (8/2) contra pessoas acusadas de uma "tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito" jogou luz sobre membros da cúpula das Forças Armadas e sobre o risco de um golpe militar no Brasil na virada de 2022 para 2023.

Entre os investigados na operação estão o general da reserva Paulo Sérgio Nogueira e o almirante da reserva Almir Garnier Santos -— eles foram, respectivamente, comandante do Exército e comandante-geral da Marinha no governo Bolsonaro. (foto: Marcelo Camargo / Ag. Brasil)

Ambos foram alvos de mandados de busca e apreensão nesta quinta.

A PF diz que as pessoas investigadas na operação, batizada de Tempus Veritatis e autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, buscavam "a manutenção do então presidente da República (Bolsonaro) no poder".

Outros aliados e ex-ministros de Bolsonaro também foram alvo da operação, entre os quais o general da reserva Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e o general da reserva Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil.

Outro general, o então Comandante de Operações Terrestres do Exército, Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira em 2022, é citado como tendo concordado com uma suposta sublevação. Quatro militares ainda da ativa, de diversas patentes, também estão entre os implicados nas investigações.

Em entrevista à CNN após a operação, Jair Bolsonaro disse que não articulou um golpe de Estado. Antes, afirmou à Folha de S. Paulo que está sendo alvo de uma perseguição implacável (veja aqui o que disseram outros acusados).

"Ninguém entende essa 'tentativa de golpe'. Não se movimentou um soldado em Brasília para dar golpe em ninguém", disse Bolsonaro.

Aliados do ex-presidente também criticaram a operação e a associaram ao retorno de Bolsonaro a eventos públicos (leia mais abaixo).

Um dos documentos que embasaram a operação, segundo a PF, foi uma minuta que decretava a prisão de autoridades e determinava a convocação de novas eleições. O texto teria sido apresentado a Bolsonaro em novembro de 2022 por seu então assessor Filipe Martins, que foi preso nesta quinta.

Segundo o tenente coronel Mauro Cid, que foi ajudante de ordens de Bolsonaro e se tornou depois colaborador das investigações, o texto que propunha a ruptura da ordem democrática chegou a ser debatido pela alta cúpula militar.

Se todos as informações forem comprovadas, isso significa que o Brasil esteve próximo de ser palco de um golpe de Estado quase 60 anos depois da última ruptura, em 1964?

Para dois historiadores ouvidos pela BBC News Brasil, sim, houve risco, ainda que o suposto movimento investigado aparenta não ter tido força para convencer um órgão central na hierarquia militar, o Alto Comando do Exército.

A instância é composta por 16 generais de quatro estrelas da força terrestre, tradicionalmente a mais influente das Forças Armadas.

Parte dos eleitores de Bolsonaro defendia uma 'intervenção militar' nas ruas (Reuters)

'Muito perto de um golpe'

Para João Roberto Martins, professor de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e pesquisador de temas militares, os fatos divulgados até agora, se comprovados, indicam que "estivemos muito perto de um golpe".

Para ele, já havia indícios de participação de autoridades em discussões sobre um golpe de Estado mesmo antes desta última operação.

"O que talvez não se acreditasse é que iria ser feita uma investigação tão profunda e detalhada como esta", afirma.

Martins diz que a suposta presença de comandantes das Forças Armadas em uma reunião que teria tratado de um possível golpe sugere que o tema chegou à alta cúpula militar. "É impossível chegar mais alto do que isso."

Ele diz acreditar que só não houve um golpe porque o Alto Comando do Exército teria rejeitado a iniciativa.

Martins avalia que um golpe de Estado teria de ser necessariamente aprovado por essa instância formada por 16 generais do topo de carreira -— afinal, a entidade controla a mais poderosa das três forças brasileiras.

Ele diz acreditar que o comandante do Exército -— que é um dos membros do Alto Comando -— levou o tema para o órgão, mas que não houve apoio majoritário à causa.

Martins embasa essa opinião no fato de que, após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva na eleição, apoiadores de Bolsonaro que defendiam uma intervenção militar passaram a divulgar nomes de generais que seriam "traidores" do movimento.

Ainda assim, o pesquisador rejeita a noção de que o "Exército agiu em defesa da democracia".

"Não, o Exército impediu uma aventura que era defendida por um grupo muito comprometido com Bolsonaro e que recebeu um apoio assustador no seio militar, mas isso não foi suficiente para convencer a alta cúpula do Exército."

"Um grupo de generais percebeu que, numa aventura dessas, você sabe como entra, mas não sabe como sai", prossegue, afirmando que as condições para um golpe em 2022 eram muito mais adversas do que em 1964, última ocasião em que as Forças Armadas tomaram o poder no Brasil.

Em 1964, diz Martins, o golpe era apoiado por uma grande potência, os Estados Unidos. Já em 2022, a vitória de Lula foi saudada por muitos líderes estrangeiros, e os EUA sinalizaram que não aceitariam uma ruptura democrática no Brasil, diz o professor.

'Quadrilha contra Estado de Direito'

No dia 8 de janeiro de 2023, multidão invadiu e depredou sedes dos Três Poderes (Reuters)

"Acho que o risco (de um golpe militar) foi muito grande", diz Francisco Teixeira da Silva, professor aposentado de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Para Silva, a operação desta quinta-feira expôs "um caso claro de formação de quadrilha contra o Estado de Direito Democrático no Brasil".

Segundo o professor, de acordo com o relato da PF, se tramou em 2022 um dos "famosos auto-golpes latino-americanos", nos quais governantes agem para se manter no poder ao arrepio da lei.

Silva também diz acreditar que a iniciativa fracassou por ter sido rejeitada pela maioria dos membros do Alto Comando do Exército.

Foi então, que, segundo o professor, defensores de uma intervenção militar teriam mudado de estratégia: em vez de promover um golpe "pelo alto", passaram a apostar numa "via por baixo", na qual uma mobilização popular impediria Lula de governar e forçaria os militares a entrar em ação.

Ele diz acreditar que os ataques às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 foram uma tentativa de pôr esse plano B em prática.

Silva critica os que, ao argumentar que "as instituições estavam funcionando", minimizavam os riscos de uma ruptura no Brasil.

"Numa democracia que funciona, quem perde eleições vai pra casa, e não trama um golpe de Estado", diz.

"Nossa democracia não está assegurada enquanto não houver exemplo muito claro de punição de qualquer tentativa golpista", completa.

'Último suspiro de grupos delirantes'

Não é unânime, no entanto, a opinião de que a democracia brasileira correu sérios riscos na virada de 2022 para 2023.

Em dois artigos publicados em janeiro no jornal O Estado de São Paulo -—antes, portanto, da operação desta quinta -—, Carlos Pereira, professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz que não houve chance real de ruptura ou mesmo fragilização da democracia no governo Bolsonaro.

Ele não atribui essa resiliência à suposta não adesão do Alto Comando do Exército a uma eventual proposta golpista ou a ação de Alexandre Moraes no Supremo.

Segundo ele, a estrutura do sistema político brasileiro, composta por órgãos independentes e que impõem limites uns aos outros, é que desencoraja "saídas extremas e radicais", conforme escreveu em 8 de janeiro.

Para Pereira, "Bolsonaro ficou sem alternativas e terminou sendo domesticado, forçado a jogar o jogo do presidencialismo de coalizão em busca de um escudo protetor, ainda que minoritário, no Legislativo".

Em outro artigo, de 17 de janeiro, Pereira associou os ataques em Brasília ao "ultimo suspiro de grupos delirantes e saudosistas da ditadura" e rejeitou a ideia de que um eventual golpe não aconteceu pela atuação de "heróis" individualmente.

"Ou seja, significaram o ocaso ou o esgotamento das esperanças de um projeto autoritário que não tinha as mínimas condições de vingar em uma democracia sofisticada e consolidada como a brasileira."

Intenção de grupo, segundo investigação da PF, seria anular eleição de Lula (Crédito: Reuters)

Próximos passos

Se militares forem condenados por envolvimento em uma tentativa de golpe, o que ocorrerá com eles?

Militares são julgados pela Justiça Militar quando as acusações tratam de crimes militares.

Mas isso não impede que também sejam julgados pela Justiça comum quando são acusados de crimes não militares. É o caso das investigações em curso, que apuram, entre outros pontos, a violação do artigo 359 do Código Penal ("tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído").

O crime tem pena de reclusão de 4 a 12 anos, além da pena correspondente à violência.

Para Carlos Fico, professor titular de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), se a Justiça comum condenar os militares a mais de dois anos de reclusão, a Justiça Militar terá o dever de cassar suas patentes, conforme previsto na Constituição.

"O STM (Superior Tribunal Militar) teria de declarar a indignidade ou a incompatibilidade desses oficiais com o oficialato, sendo obrigatória a cassação do posto e da patente", o professor afirmou em sua conta no X (antigo Twitter).

Segundo Fico, no entanto, esse processo demoraria, pois só seria consumado com uma sentença definitiva da Justiça Militar.

"Seria mais ou menos inédito (militares golpistas sendo punidos), mas é previsível em função da quantidade de crimes cometidos, dos inúmeros vestígios que deixaram e do empoderamento do STF desde 1988", diz o professor.

"Duro é termos de 'celebrar' que o Alto Comando do Exército não tenha optado pelo golpe, o que significa que havia a alternativa", afirma Fico.

'Perseguição' e pedido de ação dos militares

A operação desta quinta-feira foi criticada por aliados de Bolsonaro. Um dos protestos mais veementes veio do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), general da reserva que foi vice-presidente no governo Bolsonaro.

Mourão disse que estava havendo uma "supressão da oposição política no país" e que "nenhuma suposta ameaça ao Estado Democrático de Direito justifica tal devassa persecutória".

O senador disse ainda que havia uma "condução arbitrária" de processos que investigam generais da ativa e cobrou que as Forças Armadas não se omitam.

"Não podemos nos omitir, nem as Forças Armadas, nem a Justiça Militar, sobre esse fenômeno de desmando desenfreado que persegue adversários e que pode acarretar instabilidade no país", disse Mourão.

Os deputados federais Helio Lopes (PSL-RJ) e Carla Zambelli (PSL-SP) citaram o fato de que a operação ocorreu um dia após Bolsonaro participar de evento com centenas de apoiadores em São Sebastião (SP).

"Ações contra a direita sempre depois de um grande evento… coincidência ou perseguição?", escreveu Lopes no X.

"24h após uma linda demonstração de apoio popular, Bolsonaro e aliados são alvo de mandados", disse Zambelli, na mesma plataforma.

Para o líder do PL no Senado, Carlos Portinho (PL-RJ), o "regime" instalado no país "acua, persegue, silencia e aplaca a oposição no Brasil querendo exterminar politicamente os seus opositores com a mão de ferro do Judiciário e a Polícia do Estado".

João Fellet, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 09.02.24

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

PF tem vídeo de reunião de Bolsonaro e ministros com “dinâmica golpista”

Na conversa, ex-ministro Anderson Torres faz ilação de vínculo do PT com crime organizado e general Paulo Sergio ataca TSE

Paulo Sérgio, ex-ministro da Defesa e Jair Bolsonaro — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

A Polícia Federal tem em mãos um vídeo de uma reunião secreta realizada em 5 de julho de 2022 de Jair Bolsonaro, na época presidente, com Anderson Torres (então Ministro da Justiça), Augusto Heleno (então Chefe do Gabinete de Segurança Institucional), Paulo Sérgio Nogueira (então Ministro da Defesa), Mário Fernandes (então Chefe-substituto da Secretaria-Geral da Presidência da República) e Walter Braga Netto (ex-Ministro Chefe da Casa Civil e futuro candidato a vice-Presidente da República). O material foi apreendido em uma busca na casa do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, o tenente Mauro Cid.

"A descrição da reunião de 5 de julho de 2022, nitidamente, revela o arranjo de dinâmica golpista, no âmbito da alta cúpula do governo, manifestando-se todos os investigados que dela tomaram parte no sentido de validar e amplificar a massiva desinformação e as narrativas fraudulentas sobre as eleições e a Justiça eleitoral, entre outras, inclusive lançadas e reiteradas contra o então possível candidato Luiz Inácio Lula da Silva, contra o TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, seus Ministros e contra Ministros do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL", explica a Polícia Federal.

No vídeo, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres atendeu ao pedido do ex-presidente Jair Bolsonaro de reforçar os ataques à credibilidade do sistema eleitoral e diz que a Polícia Federal fez várias sugestões que nunca foram acatadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “O outro lado joga muito pesado, senhores”, disse Torres sobre a Justiça Eleitoral.

O ex-ministro também fez ilações, sem provas, de que o PT teria relações com uma facção criminosa, como aponta o relatório da PF. “Por fim, ANDERSON TORRES faz imputações graves, relacionando a facção criminosa PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL (PCC) ao Partido dos Trabalhadores (PT), afirmando que muita coisa estaria vindo à tona, inclusive com depoimentos. De forma enfática diz: "Isso não é mentira. Isso não é mentira.". Por fim, o então Ministro da Justiça afirma que atuaria de forma mais incisiva, por meio da Polícia Federal”, diz a decisão do ministro Alexandre de Moraes.

Na mesma reunião, o então ministro da Defesa, Paulo Sergio Nogueira, trata o TSE como inimigo e diz que a Comissão de Transparência da corte era "pra inglês ver", constituindo um "ataque à Democracia".

“PAULO SÉRGIO NOGUEIRA demonstra sua desconfiança em relação ao Tribunal Superior Eleitoral. Diz: "Muito bem, o TSE ele tem o sistema e o controle do Processo Eleitoral. Então, como disse o Presidente, eles decidem aquilo que possa interessar ou não e não tem instância superior. E a gente fica meio que de mãos atadas esperando a boa vontade dele aceitar isso ou aquilo outro". O Ministro da Defesa faz uma imputação grave ao TSE, afirmando que a Comissão de Transparência Eleitoral seria "pra inglês ver", constituindo um "ataque à Democracia". Diz: "Vou falar aqui muito claro. Senhores! A comissão é pra inglês ver. Nunca essa comissão sentou numa mesa e discutiu uma proposta. É retórica, discurso, ataque à Democracia".

O ex-ministro da Defesa também admite que a atuação das Forças Armadas na comissão do TSE com o discurso de "garantir transparência, segurança, condições de auditoria" nas eleições tinha a finalidade de reeleger Bolsonaro.

“Pra encerrar... senhor Presidente eu estou realizando reuniões com os Comandantes de Força quase que semanalmente. Esse cenário, nós estudamos, nós trabalhamos. Nós temos reuniões pela frente, decisivas pra gente ver o que pode ser feito; que ações poderão ser tomadas pra que a gente possa ter transparência, segurança, condições de auditoria e que as eleições se transcorram da forma como a gente sonha! E o senhor, com o que a gente vê no dia a dia, tenhamos o êxito de reelegê-lo e esse é o desejo de todos nós”, disse o general Paulo Sergio Nogueira.

Na mesma conversa, o então ministro-chefe do GSI, Augusto Heleno, disse aos presentes que conversou com o diretor-adjunto da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) “para infiltrar agentes nas campanhas eleitorais”. O ministro, porém, logo foi calado por Bolsonaro, que pediu para o tema ser tratado apenas com ele. Heleno também destaca a necessidade dos órgão do governo federal atuarem pela vitória de Bolsonaro.

"Não vai ter revisão do VAR. Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa é antes das eleições".

O ministro defende que as ações sejam feiras antes da realização as eleições presidenciais daquele ano: "Eu acho que as coisas têm que ser feitas antes das eleições. E vai chegar a um ponto que nós não vamos poder mais falar. Nós vamos ter que agir. Agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas. Isso pra mim é muito claro".

Bela Megale, repórter especializada em investigações criminais, bastidores do poder e vida política de Brasília para O Globo, em 08.02.24

PF mira Jair Bolsonaro e aliados em operação que também tem Braga Netto, Heleno, Anderson Torres e Valdemar como alvos

Investigação apura tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito. Ex-presidente precisa entregar passaporte em 24h e não pode se comunicar com outros investigados

O ex-presidente Jair Bolsonaro no aeroporto de Brasília — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo/19-09-2023

A Polícia Federal realiza nesta quinta-feira uma operação para apurar organização criminosa que atuou na tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito, para obter vantagem de natureza política com a manutenção de Jair Bolsonaro (PL) no poder. Entre os alvos de mandados de medidas restritivas está o próprio ex-presidente. Ele está proibido de deixar o país, deve entregar o passaporte no prazo de 24 horas, e está proibido de se comunicar com demais investigados, nem por meio de advogados.

Alvo da PF, ex- ministro da Defesa compartilhou texto que chamava eleição de Lula de 'ruína moral da nação'

Entre os alvos de busca e apreensão estão aliados muito próximos do ex-presidente, como Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, Anderson Torres, Valdemar Costa Neto, Almir Garnier e Tercio Arnaud.

Já entre os quatro alvos dos mandados de prisão estão:

Rafael Martins de Oliveira (major das Forças Especiais do Exército)

Filipe Martins (ex-assessor especial de Bolsonaro)

Bernardo Romão Corrêa Netto (coronel do exército)

Marcelo Camara (coronel do Exército)

Advogado de Bolsonaro, Fabio Wajngarten, anunciou pela rede social X (antigo Twitter) que o ex-presidente entregará o passaporte, e determinou que seu auxiliar direto, Tércio Arnaud, que estava com ele em Mambucaba, retorne para Brasília. A medida é para atender a ordem de Bolsonaro não manter contato com os demais investigados.

A delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente, cita três pessoas que foram alvos PF nesta quinta-feira: além do próprio Bolsonaro, Braga Netto e Filipe Martins.

De acordo com a PF, no total estão sendo cumpridos 33 mandados de busca e apreensão, quatro mandados de prisão preventiva e 48 medidas cautelares diversas da prisão, que incluem a proibição de manter contato com os demais investigados, proibição de se ausentarem do país, com entrega dos passaportes no prazo de 24 horas e suspensão do exercício de funções públicas.

Paradeiro de Filipe Martins era desconhecido pela PF até esta semana

Os mandados, expedidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), estão sendo cumpridos nos estados do Amazonas, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Ceará, Espírito Santo, Paraná, Goiás e no Distrito Federal.

Nesta fase, as apurações apontam que o grupo investigado se dividiu em núcleos de atuação para disseminar a ocorrência de fraude nas Eleições Presidenciais de 2022, antes mesmo da realização do pleito, de modo a viabilizar e legitimar uma intervenção militar, em dinâmica de milícia digital.

O primeiro eixo consistiu na construção e propagação da versão de fraude nas Eleições de 2022, por meio da disseminação falaciosa de vulnerabilidades do sistema eletrônico de votação, discurso reiterado pelos investigados desde 2019 e que persistiu mesmo após os resultados do segundo turno do pleito em 2022.

O segundo eixo de atuação consistiu na prática de atos para subsidiar a abolição do Estado Democrático de Direito, através de um golpe de Estado, com apoio de militares com conhecimentos e táticas de forças especiais no ambiente politicamente sensível.

O Exército Brasileiro acompanha o cumprimento de alguns mandados, em apoio à Polícia Federal.

"Os fatos investigados configuram, em tese, os crimes de organização criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado", informou a PF, em nota.

Paolla Serra, de Brasília - DF para O  Globo, em 08.02.24

Dívida pública volta a subir no 1º ano de Lula, e analistas veem trajetória de alta em 2024

Indicador observado por investidores na hora de avaliar saúde das contas públicas atinge 74,3% do PIB

Moedas de R$ 1 - Bruno Domingos -15.out.10/Reuters

Após dois anos de queda, a dívida bruta do Brasil voltou a subir e chegou a 74,3% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2023, primeiro ano do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

As despesas com os juros da dívida chegaram a R$ 718 bilhões, ou 6,61% do PIB —o maior valor desde 2015—, na esteira ainda do impacto da trajetória de alta da taxa Selic, que só foi interrompida pelo Banco Central em agosto do ano passado.

A tendência segue de alta para o endividamento público do país em 2024. A dívida bruta é um dos principais indicadores econômicos observados pelos investidores na hora de avaliar a saúde das contas públicas.

Especialistas alertam que o resultado, divulgado nesta quarta-feira (7) pelo Banco Central, mostra que o problema fiscal brasileiro ainda está longe de ser resolvido. E que o sinal de crescimento da dívida continua amarelo.

Em 2022, a dívida fechou em 71,7%, mas o governo Jair Bolsonaro (PL) adiou despesas no ano em que o então presidente disputou a eleição com Lula.

O aumento da dívida bruta é resultado principalmente do déficit primário de R$ 249,12 bilhões (2,29% do PIB) das contas do setor público (União, Estados, municípios e estatais) e dos juros, segundo o chefe do Departamento de Estatísticas do Banco Central, Fernando Rocha.

Em 2022, as contas ficaram no azul em R$ 126 bilhões. Ou seja, houve uma piora no resultado de um ano para o outro de R$ 375 bilhões.

"Tem o efeito acumulado da alta da Selic", explicou Rocha sobre o impacto elevado das despesas com juros, apesar do início da queda da taxa nos últimos meses.

No ano passado, o governo não só aumentou em R$ 168 bilhões o espaço para novas despesas com a aprovação da chamada PEC (proposta de emenda à Constituição) da Transição, como pagou R$ 93 bilhões de precatórios que tinham sido postergados no governo Bolsonaro.

"O sinal amarelo para a trajetória continua. O cenário não é tranquilo, longe disso, o ministro Fernando Haddad [Fazenda] não pode fraquejar no compromisso fiscal da meta de zerar o déficit porque o quadro fiscal ainda não está controlado", avaliou Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos e ex-diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente), ligada ao Senado Federal.

"O crescimento do PIB não foi suficiente para frear o aumento da dívida", disse. Salto projeta que a dívida bruta vai voltar a subir em 2024, para 76,8% do PIB. Ele defende que o governo persiga a meta de déficit zero neste ano justamente para controlar o crescimento da dívida.

Para o analista da área fiscal da XP Investimentos Tiago Sbardelotto, a piora de 2023 pode ser explicada por dois fatores: juros e resultado primário.

"Os juros acabam tendo um efeito maior, pois incidem sobre todo o estoque, mas a variável de ajuste mais relevante é o resultado primário [de déficit], que acabou por elevar as emissões líquidas [títulos do Tesouro] no ano", disse.

Sbardelotto também prevê que a tendência de alta deve se manter no longo prazo, apesar de uma conta de juros um pouco menor neste e no próximo ano.

"A tendência de alta deve se manter, com um crescimento médio de 2,5 ponto porcentual por ano", disse.

Para que haja estabilização da dívida nesse cenário, o analista do XP calcula que seria necessário um superávit médio de 1,8% do PIB.

Especialista em contas públicas e pesquisador do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), Fabio Giambiagi chama a atenção para a trajetória de alta da dívida líquida, que atingiu 60,8% do PIB (R$ 6,6 trilhões) no ano passado, com elevação anual de 4,7 pontos porcentuais de 2022 para 2023. O indicador considera os passivos do setor público, mas também os ativos.

(Giambiagi ressalta a importância de os analistas olharem para o indicador de dívida líquida.)

"É uma trajetória que preocupa. A tendência é de alta, sim. Vamos superar o número de 2020 [que foi influenciado pela pandemia]. Vai ser o maior número da série histórica", prevê ele, que tem um dos registros de dívida mais antigos do país.

Com o uso da chamada contabilidade criativa no governo Dilma Rousseff (PT), os analistas passaram a olhar para a dívida bruta.

"A estatística continuava a ser feita, mas ninguém ligava. E passaram a olhar para a dívida bruta. Agora sem contabilidade criativa, e não temos hoje isso, está na hora de voltar a olhar a dinâmica da dívida líquida", defendeu.

O sarrafo para o cumprimento da meta de zerar o déficit das contas públicas começou mais alto em 2024 para Haddad. A razão disso é que o déficit divulgado pelo BC para as contas do governo federal ficou R$ 34 bilhões maior do que o resultado divulgado, na semana passada, pelo Tesouro Nacional.

Enquanto o Tesouro divulgou um déficit de R$ 230,5 bilhões, o BC calculou o rombo nas contas do governo em R$ 264,5 bilhões. BC e Tesouro têm metodologias diferentes de calcular o resultado, mas em 2023 essa diferença cresceu por fatores extraordinários.

O principal motivo é que o BC não aceitou incluir na sua conta uma medida de resgate, pelo Tesouro, de R$ 26 bilhões em recursos abandonados nas contas de trabalhadores no fundo PIS/Pasep. Esses recursos foram contabilizados pelo Tesouro, mas não pelo BC.

Para a autoridade monetária, esse dinheiro não representa "esforço fiscal" e, por isso, não serve para reduzir o rombo das contas em 2023.

O BC também contabilizou de forma diferente a transferência de recursos que o governo Lula fez para estados e municípios para compensar perdas com a redução da alíquota do ICMS.

A autarquia é o órgão responsável pelas estatísticas oficiais das finanças públicas brasileiras. É o número da instituição que vale para a aferição se o governo cumpriu ou não a meta fiscal estabelecida na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias).

Em 2024, a meta é zerar o déficit. A regra de considerar a contabilidade do BC foi mantida no arcabouço fiscal, explicou o chefe do Departamento de Estatística do BC.

Adriana Fernandes, de Brasília-DF para a Folha de S. Paulo, em 08.0224. (Com Reuters).

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

A quem pertence o Orçamento

Ele deveria pertencer a todos os brasileiros. Se não pertence, o Congresso deveria assumir sua parcela de responsabilidade. Não são emendas parlamentares que farão com que isso mude

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), fez sentir sua ausência nos principais eventos políticos do início deste ano. De forma calculada, o deputado não participou das cerimônias para lembrar os atos do 8 de Janeiro nem da retomada dos trabalhos do Judiciário, em que foram retiradas as grades que cercaram a Esplanada dos Ministérios por mais de dez anos. E agora se sabe por quê. Seu primeiro discurso público, na abertura do ano legislativo, foi preparado para marcar posição e enviar recados ao Executivo.

Lira não está satisfeito com o tratamento que o governo lhe tem reservado – leia-se, com o veto presidencial que reduziu o valor das emendas de comissão em R$ 5,6 bilhões. Acredita ter feito tudo o que fora combinado – ou seja, trabalhado pela aprovação da agenda econômica do ministro da Fazenda, Fernando Haddad – e cobra do Executivo que reconheça seu esforço e faça sua parte – leia-se, pague o valor integral das emendas.

Poderia ter sido mais sutil, mas preferiu ser bem direto. Para defender seu ponto de vista, citou a Constituição para cobrar respeito ao papel do Legislativo. Mirou não apenas na chefia do Executivo, mas na própria estrutura da administração pública, a quem cabe cumprir etapas burocráticas e obrigatórias, estabelecidas em lei, até que o pagamento das verbas seja liberado.

“O Orçamento da União pertence a todos e todas e não apenas ao Executivo porque, se assim fosse, a Constituição não determinaria a necessária participação do Poder Legislativo em sua confecção e final aprovação”, afirmou.

“O Orçamento é de todos e para todos os brasileiros e brasileiras: não é e nem pode ser de autoria exclusiva do Poder Executivo e muito menos de uma burocracia técnica que, apesar de seu preparo, não duvido, não foi eleita para escolher as prioridades da nação. E não gasta a sola de sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros como nós, parlamentares”, acrescentou.

Lira, como sempre, confunde conceitos de forma propositada. Tenta convencer o público que aprovar o Orçamento é o mesmo que elaborá-lo e quer tirar do Executivo a função de executar a peça orçamentária. Para isso, defende um calendário para o pagamento das emendas e dá a entender que o governo não quer dividir os recursos que tem à disposição com o Legislativo, que, mais próximo da população, saberia exatamente onde e em que aplicar os recursos.

Mais de 90% das despesas do Orçamento são obrigatórias, ou seja, precisam ser pagas independentemente da vontade ou da existência de recursos em caixa – entre elas os salários dos servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e os benefícios da Previdência Social, como aposentadorias e pensões, bem como o fundo eleitoral.

Sobram menos de 10% em despesas discricionárias, nas quais há alguma ingerência sobre o destino final, e que incluem investimentos e emendas. Sobre este naco, o Legislativo avança ano a ano. Segundo reportagem do jornal O Globo, dos R$ 222 bilhões de livre destinação neste ano, R$ 44,6 bilhões se referem a emendas parlamentares, ou 20,05% do total. A título de comparação, em 2014, antes da criação das emendas impositivas, ao Legislativo cabia indicar 4,65% do valor dos gastos discricionários.

Se Lira estivesse certo, o olhar do Legislativo teria feito com que as desigualdades regionais caíssem vertiginosamente nos últimos anos. Este modelo, no entanto, agravou o que já era ruim e criou os chamados desertos políticos, municípios sem padrinhos em Brasília que não recebem recurso algum.

O Orçamento, de fato, deveria pertencer a todos os brasileiros e brasileiras. Se não pertence, o Congresso também deveria assumir sua parcela de responsabilidade em vez de jogar toda a culpa no Executivo.

Não basta recompor o valor das emendas parlamentares para que esse problema seja solucionado. E, se realmente quer aumentar sua participação na destinação de despesas do Orçamento, o Legislativo também terá que começar a contribuir mais ativamente pela recomposição das receitas e, eventualmente, pela elevação da carga tributária.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo,em 07.02.24

Boas intenções e efeitos colaterais

Apesar das isenções e da legislação mais flexível para abertura de igrejas no país desde 2003, a grande maioria é irregular

A avaliação de políticas públicas deveria ser ingrediente essencial do trabalho de gestores públicos, tarefa que se inicia ainda no desenho da ação estatal. Na avaliação de impacto, é necessário também detectar efeitos não esperados, sendo importante informação para ajustes na política ou mesmo sua suspensão.

Ainda que as decisões sejam eminentemente políticas, é crucial munir o debate público com essas avaliações, inclusive como instrumento para afastar ganhos indevidos de grupos organizados. No Brasil, porém, políticas são implementadas e renovadas sem o devido cuidado.

Um exemplo disso é a imunidade tributária de igrejas (mais precisamente, locais de culto). A discussão não é sobre praticá-la ou não — mesmo em países pouco religiosos, como a China, há imunidade —, mas como fazer.

Há alguns argumentos para a imunidade. Para alguns, trata-se de questão moral. Para outros tantos, a motivação é a separação entre Igreja e Estado, de modo a assegurar a liberdade religiosa.

No Brasil, a Constituição estabelece a isenção de IR, Cofins, IPVA, ITCMD e IPTU. Em 2019, se prorrogou até 2032 a isenção de ICMS para entidades religiosas. Em 2020, o Congresso aprovou a anistia de dívidas tributárias de igrejas e isenções com efeito retroativo (a estimativa era de R$ 1,6 bilhão).

Em 2022, o governo ampliou o alcance da isenção de contribuições previdenciárias sobre a remuneração de pastores, o que foi suspenso recentemente pela Receita Federal — não sem reação das igrejas. Outro capítulo recente é a isenção do IVA, na Reforma Tributária, para igrejas e atividades assistenciais e beneficentes vinculadas.

Tomando como referência os EUA, certamente a legislação brasileira é muito permissiva. Naquele país, as regras são mais rígidas — mesmo assim não impedem fraudes. São proibidas as atividades de lobby para influenciar a legislação; a interferência ou participação em campanhas políticas (ainda que preservando a liberdade de expressão de cunho pessoal, fora das funções oficiais da igreja); e atividades que geram rendas privadas a pessoas envolvidas nas atividades da organização.

As igrejas devem informar a remuneração dos seus membros e funcionários, que não podem ser exageradas.

A violação desses requisitos é, potencialmente, motivo para perda do status de imunidade tributária, inclusive das contribuições recebidas. Adicionalmente, a renda gerada indevidamente estará sujeita a impostos especiais de consumo e as irregularidades precisarão ser corrigidas. Há regras para cada situação, do que pode e do que não pode ser feito.

Há controles por parte da receita federal (Internal Revenue Service), ainda que com algumas limitações impostas pelo Congresso. As igrejas são obrigadas a manter livros contábeis e outros registros necessários para justificar a imunidade, para fins de auditoria.

Desnecessário apontar a enorme diferença com o caso brasileiro, onde certas interferências de organizações religiosas são incompatíveis com o Estado laico. Além disso, pecamos duplamente, pelo elevado número de organizações irregulares e pela falta de controle sobre as regularizadas.

Apesar das isenções e da legislação mais flexível para abertura de igrejas desde 2003, a grande maioria das igrejas é irregular, sem CNPJ e muito menos alvarás de Prefeitura e Corpo de Bombeiros.

Os números superlativos no Brasil trazem preocupação. Segundo o Censo 2022, há 579,8 mil igrejas (regularizadas ou não) — ante 264,4 mil estabelecimentos de ensino e 247,5 mil de saúde. Isso significa 2,86 igrejas para cada 1.000 habitantes. Nos EUA, com 254,7 mil igrejas, a razão é de 0,76. Na Arábia Saudita, um Estado teocrático, a proporção é de 2,76.

Mesmo o crescimento das igrejas regularizadas tem sido grande. Pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole com igrejas evangélicas, utilizando dados do CNPJ, identificou 17 mil delas em 1990, cifra que saltou para 109,6 mil em 2019.

Algumas congregações cumprem importante papel social, o que precisaria ser avaliado e, eventualmente, poderia ser ampliado — como encaminhar os vulneráveis para inclusão no Cadastro Único e para os serviços públicos assistenciais —, tendo em vista a elevada capilaridade das igrejas.

É um tema com grande impacto na vida das pessoas, especialmente os não privilegiados, e merece maior cuidado.

Zeina Latif, a autora deste artigo, é economista. Publicado originariamente no O Globo,em 07.02.24

Congresso controla mais recursos do que seria razoável

Em vez de enfrentar Executivo para ampliá-los, Lira deveria concentrar esforço no êxito da agenda econômica

A abertura do ano legislativo no Congresso Nacional — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Sob qualquer ângulo, a fatia do Orçamento da União controlada pelo Congresso é enorme. Deputados e senadores decidirão o destino de R$ 44,6 bilhões neste ano, ou 20% dos gastos livres do governo (90% das despesas são engessadas por gastos obrigatórios com salários do funcionalismo, benefícios previdenciários e demais vinculações orçamentárias). Há dez anos, a fatia dos recursos livres nas mãos dos congressistas era pouco menos de um quarto disso, ou 4,65%.

Como mostrou reportagem do GLOBO, essa parcela destoa na comparação internacional. Numa análise de 29 países, os outros três onde o Parlamento detém maior poder sobre os recursos são Estados Unidos (2,4%), Eslováquia (5,5%) e Estônia (12,3%). No Brasil, o Congresso arbitra sobre uma proporção equivalente a oito vezes a que cabe aos congressistas americanos. Só isso deveria ensejar reflexão.

(Fatia do Orçamento definida pelo Congresso no Brasil é 9 vezes maior que nos EUA: emendas dificultam ainda mais déficit zero)

Tal reflexão se torna mais necessária diante da declaração do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), na cerimônia de abertura do ano legislativo. Ao afirmar que a peça orçamentária “pertence a todos e todas, e não apenas ao Executivo”, Lira apenas constata a realidade expressa nos números. Esquece, contudo, que não se trata necessariamente de realidade positiva.

Com uma parcela maior do Orçamento sob comando dos parlamentares na última década, o governo brasileiro ganhou contornos não só de extravagância, mas de disfuncionalidade. No presidencialismo, cabe ao Legislativo elaborar a peça orçamentária, mas sua execução é, por definição e determinação constitucional, papel do Executivo. E por bons motivos. Políticas públicas são mais eficazes quando formuladas de modo abrangente, levando em conta urgências e demandas nacionais ou regionais — o oposto da lógica paroquial das emendas parlamentares. Evitar a pulverização tem a vantagem de aumentar a transparência e reduzir brechas para desvios e corrupção.

Tanto a ciência política como a comparação internacional demonstram que emendas parlamentares não são o instrumento adequado para melhorar os serviços prestados à população. Parlamentares brasileiros alegam conhecer as demandas do eleitorado. Mas não há evidência de que anabolizar o poder do Congresso sobre o Orçamento tenha obtido bons resultados. Não há notícia de país que tenha seguido os passos do Brasil nesse quesito.

Por tudo isso, seria mais lógico o Parlamento brasileiro cair em si e entender seu papel na dinâmica orçamentária. Fez bem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao vetar R$ 5,6 bilhões que seriam destinados a emendas de comissão. Em vez de tentar enfrentar o Executivo ou derrubar o veto para que congressistas controlem fatia ainda maior dos recursos, Lira deveria dar ênfase ao papel essencial que tem desempenhado para o êxito da agenda econômica, em parceria produtiva com o Executivo. Ele foi um dos protagonistas da reforma tributária e de outros avanços legislativos. Além de contribuir para o sucesso da economia, também aumentou seu capital político.

Mas essa é uma obra inacabada. Lira tem mais um ano no cargo e precisa dedicá-lo com afinco ao que falta: regulamentação da reforma tributária, reforma administrativa e medidas essenciais ao futuro do Brasil. Seria um erro político usar seu cacife para arrancar mais concessões num Orçamento cujos recursos os congressistas já controlam mais que em qualquer outro país.

Editorial de O Globo, em 07.02.24

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Farol de travessia na polarização obscura

A desolação com o presente não pode calcificar a História nem infertilizar nossas potências de invenção e reinvenção da vida, sob o farol dos valores civilizatórios

Caminhamos em chão nunca antes pisado. Para além da evidência já formulada desde o mundo antigo, de que nunca atravessamos um mesmo rio, porque mudam os rios e mudamos nós, o fato é que, neste novo milênio, a matéria-prima do passado se soma a ingredientes inéditos da contemporaneidade, conformando um tempo expressamente diferente de tudo o que já vivemos, fundindo doses de estranheza e familiaridade a uma mesma experiência.

Um exemplo decisivo? Os extremismos e populismos, que já produziram fatos históricos nefastos como o nazismo, encontram no hoje as novidades da digitalidade, com as virais e virulentas conexões em rede e o desvalor da verdade factual, estabelecendo, para quem navega fora das bolhas radicais, o espanto de uma escalada de violência anti-humanística norteada especialmente pela aposta na desagregação social.

Em solo inexplorado, a sensação de desamparo, comum a todos os viventes, se torna vertiginosa. Especialmente ante o desconhecido e o desafiante, mitos e salvadores grassam como praga, ofertando simplificações e redenções ilusórias. Na arena político-ideológica de disputa por mentes e corações, a polarização é estratégia manjada – mas, como se vê, permanentemente atualizada, como agora se faz pelas vias digitais.

Nesse sentido, durante a travessia de uma polarização obscura, é preciso que tenhamos a clareza de quatro pontos cruciais. O primeiro é que os tempos históricos são intervalos na paisagem em que a humanidade desenha seus caminhos – para o bem ou para o mal, tudo passa. Um segundo ponto é que todos os tempos são obra humana, colocando em conjugação o passado, o atual e o horizonte, numa disputa de memórias, sensações e esperanças. O terceiro é que, no percurso, não podemos perder o rumo da civilização humanística, fundamentada na dignidade irrestrita e vinculada à fraternidade, à liberdade e à igualdade. Por fim, mas não menos importante, devemos ter claro que, na verdadeira luta cotidiana pela democracia, é preciso um olhar estratégico sobre a ampla dinâmica socioeconômica e político-cultural, de modo a evitar que medidas pouco razoáveis do ponto de vista republicano e passos apartados da rota do bom senso ético-político acabem por dar munição e combustível aos discursos extremistas e divisionistas dos arautos da barbárie.

Com a consciência de que somos os autores dos tempos que se sucedem, o humanismo é um dever de casa que não cessa, sob o risco de retrocessos dramáticos. Assim, a desolação com o presente não pode calcificar a História, muito menos infertilizar nossas potências de invenção e reinvenção da vida, sob o farol dos valores civilizatórios. Como se diz, “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”.

Reconheçamos que pisamos em terreno intocado e que, ainda por cima, se mostra fluido e camaleônico. Reconheçamos os desafios deste tempo atravessado por novidades encantadoras e, ainda assim, assombrado por horrores passados que se queriam sepultados. Reconheçamos que os diálogos se submetem a uma nova lógica comunicativa que mais enseja bolhas do que amplas interações renovadoras. Reconheçamos que, juntamente com populações inteiras que se empoderam, buscando se emancipar e se autonomizar diante de opressões históricas, convivem massas sedentas de lideranças que lhes façam sonhar com a supressão da diferença.

Reconheçamos a crise, mas também reconheçamos, antes de tudo e diante de tantos desafios, que o futuro, como realização humana, não tem destino predeterminado. E que, assim, cabe àqueles que não se rendem à hipnose da polarização obscura preservar o estatuto da civilização humanística. Em muitos casos, o papel dos líderes e da cidadania organizada é, mesmo, navegar contra a correnteza.

Desse modo, requer-se perseverança na conversa multi-ideológica, na capacidade de escutar e entender o outro e suas razões. Isso tudo, de modo a romper os grilhões da manipulação, pois os agentes da discórdia empenham seus maiores esforços em nos manter no alçapão da polarização obscura, mediante uma estratégia de disputa, conquista e manutenção de poder.

É preciso lembrar que há outro modo de conceber e levar a vida para além de extremismos e populismos. Conciliação, consideração e diálogo entre diferentes percepções e maneiras de viver são atitudes éticas impositivas diante de posições sectárias, doutrinadoras e até mesmo hostis, que prescrevem a eliminação da diversidade. Pode parecer inaceitável para muitos, mas ninguém tem o monopólio da receita da História, que é, em verdade, uma realização em aberto.

Diante da miséria humana que testemunhamos aqui e acolá, lembremo-nos de que podemos nos unir em torno do que nos eleva. Lembremo-nos, com Sartre, de que estamos condenados à liberdade de nos inventarmos – e que isso pode e deve ser uma dádiva. Mãos à obra, pois, de um tempo novo, que nos inspire crescentemente a sermos o melhor que pudermos ser – como sujeitos, como cidadãos, como nação.

Paulo Hartung, o autor deste artigo, é economista, Presidente-Executivo Da IBÁ, Membro do Conselho Consultivo do RENOVABR. Foi Governador Do Estado Do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.02.24