sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Quão perto o Brasil esteve de um golpe militar em 2022?

A operação da Polícia Federal (PF) desta quinta-feira (8/2) contra pessoas acusadas de uma "tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito" jogou luz sobre membros da cúpula das Forças Armadas e sobre o risco de um golpe militar no Brasil na virada de 2022 para 2023.

Entre os investigados na operação estão o general da reserva Paulo Sérgio Nogueira e o almirante da reserva Almir Garnier Santos -— eles foram, respectivamente, comandante do Exército e comandante-geral da Marinha no governo Bolsonaro. (foto: Marcelo Camargo / Ag. Brasil)

Ambos foram alvos de mandados de busca e apreensão nesta quinta.

A PF diz que as pessoas investigadas na operação, batizada de Tempus Veritatis e autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, buscavam "a manutenção do então presidente da República (Bolsonaro) no poder".

Outros aliados e ex-ministros de Bolsonaro também foram alvo da operação, entre os quais o general da reserva Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e o general da reserva Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil.

Outro general, o então Comandante de Operações Terrestres do Exército, Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira em 2022, é citado como tendo concordado com uma suposta sublevação. Quatro militares ainda da ativa, de diversas patentes, também estão entre os implicados nas investigações.

Em entrevista à CNN após a operação, Jair Bolsonaro disse que não articulou um golpe de Estado. Antes, afirmou à Folha de S. Paulo que está sendo alvo de uma perseguição implacável (veja aqui o que disseram outros acusados).

"Ninguém entende essa 'tentativa de golpe'. Não se movimentou um soldado em Brasília para dar golpe em ninguém", disse Bolsonaro.

Aliados do ex-presidente também criticaram a operação e a associaram ao retorno de Bolsonaro a eventos públicos (leia mais abaixo).

Um dos documentos que embasaram a operação, segundo a PF, foi uma minuta que decretava a prisão de autoridades e determinava a convocação de novas eleições. O texto teria sido apresentado a Bolsonaro em novembro de 2022 por seu então assessor Filipe Martins, que foi preso nesta quinta.

Segundo o tenente coronel Mauro Cid, que foi ajudante de ordens de Bolsonaro e se tornou depois colaborador das investigações, o texto que propunha a ruptura da ordem democrática chegou a ser debatido pela alta cúpula militar.

Se todos as informações forem comprovadas, isso significa que o Brasil esteve próximo de ser palco de um golpe de Estado quase 60 anos depois da última ruptura, em 1964?

Para dois historiadores ouvidos pela BBC News Brasil, sim, houve risco, ainda que o suposto movimento investigado aparenta não ter tido força para convencer um órgão central na hierarquia militar, o Alto Comando do Exército.

A instância é composta por 16 generais de quatro estrelas da força terrestre, tradicionalmente a mais influente das Forças Armadas.

Parte dos eleitores de Bolsonaro defendia uma 'intervenção militar' nas ruas (Reuters)

'Muito perto de um golpe'

Para João Roberto Martins, professor de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e pesquisador de temas militares, os fatos divulgados até agora, se comprovados, indicam que "estivemos muito perto de um golpe".

Para ele, já havia indícios de participação de autoridades em discussões sobre um golpe de Estado mesmo antes desta última operação.

"O que talvez não se acreditasse é que iria ser feita uma investigação tão profunda e detalhada como esta", afirma.

Martins diz que a suposta presença de comandantes das Forças Armadas em uma reunião que teria tratado de um possível golpe sugere que o tema chegou à alta cúpula militar. "É impossível chegar mais alto do que isso."

Ele diz acreditar que só não houve um golpe porque o Alto Comando do Exército teria rejeitado a iniciativa.

Martins avalia que um golpe de Estado teria de ser necessariamente aprovado por essa instância formada por 16 generais do topo de carreira -— afinal, a entidade controla a mais poderosa das três forças brasileiras.

Ele diz acreditar que o comandante do Exército -— que é um dos membros do Alto Comando -— levou o tema para o órgão, mas que não houve apoio majoritário à causa.

Martins embasa essa opinião no fato de que, após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva na eleição, apoiadores de Bolsonaro que defendiam uma intervenção militar passaram a divulgar nomes de generais que seriam "traidores" do movimento.

Ainda assim, o pesquisador rejeita a noção de que o "Exército agiu em defesa da democracia".

"Não, o Exército impediu uma aventura que era defendida por um grupo muito comprometido com Bolsonaro e que recebeu um apoio assustador no seio militar, mas isso não foi suficiente para convencer a alta cúpula do Exército."

"Um grupo de generais percebeu que, numa aventura dessas, você sabe como entra, mas não sabe como sai", prossegue, afirmando que as condições para um golpe em 2022 eram muito mais adversas do que em 1964, última ocasião em que as Forças Armadas tomaram o poder no Brasil.

Em 1964, diz Martins, o golpe era apoiado por uma grande potência, os Estados Unidos. Já em 2022, a vitória de Lula foi saudada por muitos líderes estrangeiros, e os EUA sinalizaram que não aceitariam uma ruptura democrática no Brasil, diz o professor.

'Quadrilha contra Estado de Direito'

No dia 8 de janeiro de 2023, multidão invadiu e depredou sedes dos Três Poderes (Reuters)

"Acho que o risco (de um golpe militar) foi muito grande", diz Francisco Teixeira da Silva, professor aposentado de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Para Silva, a operação desta quinta-feira expôs "um caso claro de formação de quadrilha contra o Estado de Direito Democrático no Brasil".

Segundo o professor, de acordo com o relato da PF, se tramou em 2022 um dos "famosos auto-golpes latino-americanos", nos quais governantes agem para se manter no poder ao arrepio da lei.

Silva também diz acreditar que a iniciativa fracassou por ter sido rejeitada pela maioria dos membros do Alto Comando do Exército.

Foi então, que, segundo o professor, defensores de uma intervenção militar teriam mudado de estratégia: em vez de promover um golpe "pelo alto", passaram a apostar numa "via por baixo", na qual uma mobilização popular impediria Lula de governar e forçaria os militares a entrar em ação.

Ele diz acreditar que os ataques às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 foram uma tentativa de pôr esse plano B em prática.

Silva critica os que, ao argumentar que "as instituições estavam funcionando", minimizavam os riscos de uma ruptura no Brasil.

"Numa democracia que funciona, quem perde eleições vai pra casa, e não trama um golpe de Estado", diz.

"Nossa democracia não está assegurada enquanto não houver exemplo muito claro de punição de qualquer tentativa golpista", completa.

'Último suspiro de grupos delirantes'

Não é unânime, no entanto, a opinião de que a democracia brasileira correu sérios riscos na virada de 2022 para 2023.

Em dois artigos publicados em janeiro no jornal O Estado de São Paulo -—antes, portanto, da operação desta quinta -—, Carlos Pereira, professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz que não houve chance real de ruptura ou mesmo fragilização da democracia no governo Bolsonaro.

Ele não atribui essa resiliência à suposta não adesão do Alto Comando do Exército a uma eventual proposta golpista ou a ação de Alexandre Moraes no Supremo.

Segundo ele, a estrutura do sistema político brasileiro, composta por órgãos independentes e que impõem limites uns aos outros, é que desencoraja "saídas extremas e radicais", conforme escreveu em 8 de janeiro.

Para Pereira, "Bolsonaro ficou sem alternativas e terminou sendo domesticado, forçado a jogar o jogo do presidencialismo de coalizão em busca de um escudo protetor, ainda que minoritário, no Legislativo".

Em outro artigo, de 17 de janeiro, Pereira associou os ataques em Brasília ao "ultimo suspiro de grupos delirantes e saudosistas da ditadura" e rejeitou a ideia de que um eventual golpe não aconteceu pela atuação de "heróis" individualmente.

"Ou seja, significaram o ocaso ou o esgotamento das esperanças de um projeto autoritário que não tinha as mínimas condições de vingar em uma democracia sofisticada e consolidada como a brasileira."

Intenção de grupo, segundo investigação da PF, seria anular eleição de Lula (Crédito: Reuters)

Próximos passos

Se militares forem condenados por envolvimento em uma tentativa de golpe, o que ocorrerá com eles?

Militares são julgados pela Justiça Militar quando as acusações tratam de crimes militares.

Mas isso não impede que também sejam julgados pela Justiça comum quando são acusados de crimes não militares. É o caso das investigações em curso, que apuram, entre outros pontos, a violação do artigo 359 do Código Penal ("tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído").

O crime tem pena de reclusão de 4 a 12 anos, além da pena correspondente à violência.

Para Carlos Fico, professor titular de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), se a Justiça comum condenar os militares a mais de dois anos de reclusão, a Justiça Militar terá o dever de cassar suas patentes, conforme previsto na Constituição.

"O STM (Superior Tribunal Militar) teria de declarar a indignidade ou a incompatibilidade desses oficiais com o oficialato, sendo obrigatória a cassação do posto e da patente", o professor afirmou em sua conta no X (antigo Twitter).

Segundo Fico, no entanto, esse processo demoraria, pois só seria consumado com uma sentença definitiva da Justiça Militar.

"Seria mais ou menos inédito (militares golpistas sendo punidos), mas é previsível em função da quantidade de crimes cometidos, dos inúmeros vestígios que deixaram e do empoderamento do STF desde 1988", diz o professor.

"Duro é termos de 'celebrar' que o Alto Comando do Exército não tenha optado pelo golpe, o que significa que havia a alternativa", afirma Fico.

'Perseguição' e pedido de ação dos militares

A operação desta quinta-feira foi criticada por aliados de Bolsonaro. Um dos protestos mais veementes veio do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), general da reserva que foi vice-presidente no governo Bolsonaro.

Mourão disse que estava havendo uma "supressão da oposição política no país" e que "nenhuma suposta ameaça ao Estado Democrático de Direito justifica tal devassa persecutória".

O senador disse ainda que havia uma "condução arbitrária" de processos que investigam generais da ativa e cobrou que as Forças Armadas não se omitam.

"Não podemos nos omitir, nem as Forças Armadas, nem a Justiça Militar, sobre esse fenômeno de desmando desenfreado que persegue adversários e que pode acarretar instabilidade no país", disse Mourão.

Os deputados federais Helio Lopes (PSL-RJ) e Carla Zambelli (PSL-SP) citaram o fato de que a operação ocorreu um dia após Bolsonaro participar de evento com centenas de apoiadores em São Sebastião (SP).

"Ações contra a direita sempre depois de um grande evento… coincidência ou perseguição?", escreveu Lopes no X.

"24h após uma linda demonstração de apoio popular, Bolsonaro e aliados são alvo de mandados", disse Zambelli, na mesma plataforma.

Para o líder do PL no Senado, Carlos Portinho (PL-RJ), o "regime" instalado no país "acua, persegue, silencia e aplaca a oposição no Brasil querendo exterminar politicamente os seus opositores com a mão de ferro do Judiciário e a Polícia do Estado".

João Fellet, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 09.02.24

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

PF tem vídeo de reunião de Bolsonaro e ministros com “dinâmica golpista”

Na conversa, ex-ministro Anderson Torres faz ilação de vínculo do PT com crime organizado e general Paulo Sergio ataca TSE

Paulo Sérgio, ex-ministro da Defesa e Jair Bolsonaro — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

A Polícia Federal tem em mãos um vídeo de uma reunião secreta realizada em 5 de julho de 2022 de Jair Bolsonaro, na época presidente, com Anderson Torres (então Ministro da Justiça), Augusto Heleno (então Chefe do Gabinete de Segurança Institucional), Paulo Sérgio Nogueira (então Ministro da Defesa), Mário Fernandes (então Chefe-substituto da Secretaria-Geral da Presidência da República) e Walter Braga Netto (ex-Ministro Chefe da Casa Civil e futuro candidato a vice-Presidente da República). O material foi apreendido em uma busca na casa do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, o tenente Mauro Cid.

"A descrição da reunião de 5 de julho de 2022, nitidamente, revela o arranjo de dinâmica golpista, no âmbito da alta cúpula do governo, manifestando-se todos os investigados que dela tomaram parte no sentido de validar e amplificar a massiva desinformação e as narrativas fraudulentas sobre as eleições e a Justiça eleitoral, entre outras, inclusive lançadas e reiteradas contra o então possível candidato Luiz Inácio Lula da Silva, contra o TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, seus Ministros e contra Ministros do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL", explica a Polícia Federal.

No vídeo, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres atendeu ao pedido do ex-presidente Jair Bolsonaro de reforçar os ataques à credibilidade do sistema eleitoral e diz que a Polícia Federal fez várias sugestões que nunca foram acatadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “O outro lado joga muito pesado, senhores”, disse Torres sobre a Justiça Eleitoral.

O ex-ministro também fez ilações, sem provas, de que o PT teria relações com uma facção criminosa, como aponta o relatório da PF. “Por fim, ANDERSON TORRES faz imputações graves, relacionando a facção criminosa PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL (PCC) ao Partido dos Trabalhadores (PT), afirmando que muita coisa estaria vindo à tona, inclusive com depoimentos. De forma enfática diz: "Isso não é mentira. Isso não é mentira.". Por fim, o então Ministro da Justiça afirma que atuaria de forma mais incisiva, por meio da Polícia Federal”, diz a decisão do ministro Alexandre de Moraes.

Na mesma reunião, o então ministro da Defesa, Paulo Sergio Nogueira, trata o TSE como inimigo e diz que a Comissão de Transparência da corte era "pra inglês ver", constituindo um "ataque à Democracia".

“PAULO SÉRGIO NOGUEIRA demonstra sua desconfiança em relação ao Tribunal Superior Eleitoral. Diz: "Muito bem, o TSE ele tem o sistema e o controle do Processo Eleitoral. Então, como disse o Presidente, eles decidem aquilo que possa interessar ou não e não tem instância superior. E a gente fica meio que de mãos atadas esperando a boa vontade dele aceitar isso ou aquilo outro". O Ministro da Defesa faz uma imputação grave ao TSE, afirmando que a Comissão de Transparência Eleitoral seria "pra inglês ver", constituindo um "ataque à Democracia". Diz: "Vou falar aqui muito claro. Senhores! A comissão é pra inglês ver. Nunca essa comissão sentou numa mesa e discutiu uma proposta. É retórica, discurso, ataque à Democracia".

O ex-ministro da Defesa também admite que a atuação das Forças Armadas na comissão do TSE com o discurso de "garantir transparência, segurança, condições de auditoria" nas eleições tinha a finalidade de reeleger Bolsonaro.

“Pra encerrar... senhor Presidente eu estou realizando reuniões com os Comandantes de Força quase que semanalmente. Esse cenário, nós estudamos, nós trabalhamos. Nós temos reuniões pela frente, decisivas pra gente ver o que pode ser feito; que ações poderão ser tomadas pra que a gente possa ter transparência, segurança, condições de auditoria e que as eleições se transcorram da forma como a gente sonha! E o senhor, com o que a gente vê no dia a dia, tenhamos o êxito de reelegê-lo e esse é o desejo de todos nós”, disse o general Paulo Sergio Nogueira.

Na mesma conversa, o então ministro-chefe do GSI, Augusto Heleno, disse aos presentes que conversou com o diretor-adjunto da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) “para infiltrar agentes nas campanhas eleitorais”. O ministro, porém, logo foi calado por Bolsonaro, que pediu para o tema ser tratado apenas com ele. Heleno também destaca a necessidade dos órgão do governo federal atuarem pela vitória de Bolsonaro.

"Não vai ter revisão do VAR. Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa é antes das eleições".

O ministro defende que as ações sejam feiras antes da realização as eleições presidenciais daquele ano: "Eu acho que as coisas têm que ser feitas antes das eleições. E vai chegar a um ponto que nós não vamos poder mais falar. Nós vamos ter que agir. Agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas. Isso pra mim é muito claro".

Bela Megale, repórter especializada em investigações criminais, bastidores do poder e vida política de Brasília para O Globo, em 08.02.24

PF mira Jair Bolsonaro e aliados em operação que também tem Braga Netto, Heleno, Anderson Torres e Valdemar como alvos

Investigação apura tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito. Ex-presidente precisa entregar passaporte em 24h e não pode se comunicar com outros investigados

O ex-presidente Jair Bolsonaro no aeroporto de Brasília — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo/19-09-2023

A Polícia Federal realiza nesta quinta-feira uma operação para apurar organização criminosa que atuou na tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito, para obter vantagem de natureza política com a manutenção de Jair Bolsonaro (PL) no poder. Entre os alvos de mandados de medidas restritivas está o próprio ex-presidente. Ele está proibido de deixar o país, deve entregar o passaporte no prazo de 24 horas, e está proibido de se comunicar com demais investigados, nem por meio de advogados.

Alvo da PF, ex- ministro da Defesa compartilhou texto que chamava eleição de Lula de 'ruína moral da nação'

Entre os alvos de busca e apreensão estão aliados muito próximos do ex-presidente, como Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, Anderson Torres, Valdemar Costa Neto, Almir Garnier e Tercio Arnaud.

Já entre os quatro alvos dos mandados de prisão estão:

Rafael Martins de Oliveira (major das Forças Especiais do Exército)

Filipe Martins (ex-assessor especial de Bolsonaro)

Bernardo Romão Corrêa Netto (coronel do exército)

Marcelo Camara (coronel do Exército)

Advogado de Bolsonaro, Fabio Wajngarten, anunciou pela rede social X (antigo Twitter) que o ex-presidente entregará o passaporte, e determinou que seu auxiliar direto, Tércio Arnaud, que estava com ele em Mambucaba, retorne para Brasília. A medida é para atender a ordem de Bolsonaro não manter contato com os demais investigados.

A delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente, cita três pessoas que foram alvos PF nesta quinta-feira: além do próprio Bolsonaro, Braga Netto e Filipe Martins.

De acordo com a PF, no total estão sendo cumpridos 33 mandados de busca e apreensão, quatro mandados de prisão preventiva e 48 medidas cautelares diversas da prisão, que incluem a proibição de manter contato com os demais investigados, proibição de se ausentarem do país, com entrega dos passaportes no prazo de 24 horas e suspensão do exercício de funções públicas.

Paradeiro de Filipe Martins era desconhecido pela PF até esta semana

Os mandados, expedidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), estão sendo cumpridos nos estados do Amazonas, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Ceará, Espírito Santo, Paraná, Goiás e no Distrito Federal.

Nesta fase, as apurações apontam que o grupo investigado se dividiu em núcleos de atuação para disseminar a ocorrência de fraude nas Eleições Presidenciais de 2022, antes mesmo da realização do pleito, de modo a viabilizar e legitimar uma intervenção militar, em dinâmica de milícia digital.

O primeiro eixo consistiu na construção e propagação da versão de fraude nas Eleições de 2022, por meio da disseminação falaciosa de vulnerabilidades do sistema eletrônico de votação, discurso reiterado pelos investigados desde 2019 e que persistiu mesmo após os resultados do segundo turno do pleito em 2022.

O segundo eixo de atuação consistiu na prática de atos para subsidiar a abolição do Estado Democrático de Direito, através de um golpe de Estado, com apoio de militares com conhecimentos e táticas de forças especiais no ambiente politicamente sensível.

O Exército Brasileiro acompanha o cumprimento de alguns mandados, em apoio à Polícia Federal.

"Os fatos investigados configuram, em tese, os crimes de organização criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado", informou a PF, em nota.

Paolla Serra, de Brasília - DF para O  Globo, em 08.02.24

Dívida pública volta a subir no 1º ano de Lula, e analistas veem trajetória de alta em 2024

Indicador observado por investidores na hora de avaliar saúde das contas públicas atinge 74,3% do PIB

Moedas de R$ 1 - Bruno Domingos -15.out.10/Reuters

Após dois anos de queda, a dívida bruta do Brasil voltou a subir e chegou a 74,3% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2023, primeiro ano do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

As despesas com os juros da dívida chegaram a R$ 718 bilhões, ou 6,61% do PIB —o maior valor desde 2015—, na esteira ainda do impacto da trajetória de alta da taxa Selic, que só foi interrompida pelo Banco Central em agosto do ano passado.

A tendência segue de alta para o endividamento público do país em 2024. A dívida bruta é um dos principais indicadores econômicos observados pelos investidores na hora de avaliar a saúde das contas públicas.

Especialistas alertam que o resultado, divulgado nesta quarta-feira (7) pelo Banco Central, mostra que o problema fiscal brasileiro ainda está longe de ser resolvido. E que o sinal de crescimento da dívida continua amarelo.

Em 2022, a dívida fechou em 71,7%, mas o governo Jair Bolsonaro (PL) adiou despesas no ano em que o então presidente disputou a eleição com Lula.

O aumento da dívida bruta é resultado principalmente do déficit primário de R$ 249,12 bilhões (2,29% do PIB) das contas do setor público (União, Estados, municípios e estatais) e dos juros, segundo o chefe do Departamento de Estatísticas do Banco Central, Fernando Rocha.

Em 2022, as contas ficaram no azul em R$ 126 bilhões. Ou seja, houve uma piora no resultado de um ano para o outro de R$ 375 bilhões.

"Tem o efeito acumulado da alta da Selic", explicou Rocha sobre o impacto elevado das despesas com juros, apesar do início da queda da taxa nos últimos meses.

No ano passado, o governo não só aumentou em R$ 168 bilhões o espaço para novas despesas com a aprovação da chamada PEC (proposta de emenda à Constituição) da Transição, como pagou R$ 93 bilhões de precatórios que tinham sido postergados no governo Bolsonaro.

"O sinal amarelo para a trajetória continua. O cenário não é tranquilo, longe disso, o ministro Fernando Haddad [Fazenda] não pode fraquejar no compromisso fiscal da meta de zerar o déficit porque o quadro fiscal ainda não está controlado", avaliou Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos e ex-diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente), ligada ao Senado Federal.

"O crescimento do PIB não foi suficiente para frear o aumento da dívida", disse. Salto projeta que a dívida bruta vai voltar a subir em 2024, para 76,8% do PIB. Ele defende que o governo persiga a meta de déficit zero neste ano justamente para controlar o crescimento da dívida.

Para o analista da área fiscal da XP Investimentos Tiago Sbardelotto, a piora de 2023 pode ser explicada por dois fatores: juros e resultado primário.

"Os juros acabam tendo um efeito maior, pois incidem sobre todo o estoque, mas a variável de ajuste mais relevante é o resultado primário [de déficit], que acabou por elevar as emissões líquidas [títulos do Tesouro] no ano", disse.

Sbardelotto também prevê que a tendência de alta deve se manter no longo prazo, apesar de uma conta de juros um pouco menor neste e no próximo ano.

"A tendência de alta deve se manter, com um crescimento médio de 2,5 ponto porcentual por ano", disse.

Para que haja estabilização da dívida nesse cenário, o analista do XP calcula que seria necessário um superávit médio de 1,8% do PIB.

Especialista em contas públicas e pesquisador do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), Fabio Giambiagi chama a atenção para a trajetória de alta da dívida líquida, que atingiu 60,8% do PIB (R$ 6,6 trilhões) no ano passado, com elevação anual de 4,7 pontos porcentuais de 2022 para 2023. O indicador considera os passivos do setor público, mas também os ativos.

(Giambiagi ressalta a importância de os analistas olharem para o indicador de dívida líquida.)

"É uma trajetória que preocupa. A tendência é de alta, sim. Vamos superar o número de 2020 [que foi influenciado pela pandemia]. Vai ser o maior número da série histórica", prevê ele, que tem um dos registros de dívida mais antigos do país.

Com o uso da chamada contabilidade criativa no governo Dilma Rousseff (PT), os analistas passaram a olhar para a dívida bruta.

"A estatística continuava a ser feita, mas ninguém ligava. E passaram a olhar para a dívida bruta. Agora sem contabilidade criativa, e não temos hoje isso, está na hora de voltar a olhar a dinâmica da dívida líquida", defendeu.

O sarrafo para o cumprimento da meta de zerar o déficit das contas públicas começou mais alto em 2024 para Haddad. A razão disso é que o déficit divulgado pelo BC para as contas do governo federal ficou R$ 34 bilhões maior do que o resultado divulgado, na semana passada, pelo Tesouro Nacional.

Enquanto o Tesouro divulgou um déficit de R$ 230,5 bilhões, o BC calculou o rombo nas contas do governo em R$ 264,5 bilhões. BC e Tesouro têm metodologias diferentes de calcular o resultado, mas em 2023 essa diferença cresceu por fatores extraordinários.

O principal motivo é que o BC não aceitou incluir na sua conta uma medida de resgate, pelo Tesouro, de R$ 26 bilhões em recursos abandonados nas contas de trabalhadores no fundo PIS/Pasep. Esses recursos foram contabilizados pelo Tesouro, mas não pelo BC.

Para a autoridade monetária, esse dinheiro não representa "esforço fiscal" e, por isso, não serve para reduzir o rombo das contas em 2023.

O BC também contabilizou de forma diferente a transferência de recursos que o governo Lula fez para estados e municípios para compensar perdas com a redução da alíquota do ICMS.

A autarquia é o órgão responsável pelas estatísticas oficiais das finanças públicas brasileiras. É o número da instituição que vale para a aferição se o governo cumpriu ou não a meta fiscal estabelecida na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias).

Em 2024, a meta é zerar o déficit. A regra de considerar a contabilidade do BC foi mantida no arcabouço fiscal, explicou o chefe do Departamento de Estatística do BC.

Adriana Fernandes, de Brasília-DF para a Folha de S. Paulo, em 08.0224. (Com Reuters).

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

A quem pertence o Orçamento

Ele deveria pertencer a todos os brasileiros. Se não pertence, o Congresso deveria assumir sua parcela de responsabilidade. Não são emendas parlamentares que farão com que isso mude

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), fez sentir sua ausência nos principais eventos políticos do início deste ano. De forma calculada, o deputado não participou das cerimônias para lembrar os atos do 8 de Janeiro nem da retomada dos trabalhos do Judiciário, em que foram retiradas as grades que cercaram a Esplanada dos Ministérios por mais de dez anos. E agora se sabe por quê. Seu primeiro discurso público, na abertura do ano legislativo, foi preparado para marcar posição e enviar recados ao Executivo.

Lira não está satisfeito com o tratamento que o governo lhe tem reservado – leia-se, com o veto presidencial que reduziu o valor das emendas de comissão em R$ 5,6 bilhões. Acredita ter feito tudo o que fora combinado – ou seja, trabalhado pela aprovação da agenda econômica do ministro da Fazenda, Fernando Haddad – e cobra do Executivo que reconheça seu esforço e faça sua parte – leia-se, pague o valor integral das emendas.

Poderia ter sido mais sutil, mas preferiu ser bem direto. Para defender seu ponto de vista, citou a Constituição para cobrar respeito ao papel do Legislativo. Mirou não apenas na chefia do Executivo, mas na própria estrutura da administração pública, a quem cabe cumprir etapas burocráticas e obrigatórias, estabelecidas em lei, até que o pagamento das verbas seja liberado.

“O Orçamento da União pertence a todos e todas e não apenas ao Executivo porque, se assim fosse, a Constituição não determinaria a necessária participação do Poder Legislativo em sua confecção e final aprovação”, afirmou.

“O Orçamento é de todos e para todos os brasileiros e brasileiras: não é e nem pode ser de autoria exclusiva do Poder Executivo e muito menos de uma burocracia técnica que, apesar de seu preparo, não duvido, não foi eleita para escolher as prioridades da nação. E não gasta a sola de sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros como nós, parlamentares”, acrescentou.

Lira, como sempre, confunde conceitos de forma propositada. Tenta convencer o público que aprovar o Orçamento é o mesmo que elaborá-lo e quer tirar do Executivo a função de executar a peça orçamentária. Para isso, defende um calendário para o pagamento das emendas e dá a entender que o governo não quer dividir os recursos que tem à disposição com o Legislativo, que, mais próximo da população, saberia exatamente onde e em que aplicar os recursos.

Mais de 90% das despesas do Orçamento são obrigatórias, ou seja, precisam ser pagas independentemente da vontade ou da existência de recursos em caixa – entre elas os salários dos servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e os benefícios da Previdência Social, como aposentadorias e pensões, bem como o fundo eleitoral.

Sobram menos de 10% em despesas discricionárias, nas quais há alguma ingerência sobre o destino final, e que incluem investimentos e emendas. Sobre este naco, o Legislativo avança ano a ano. Segundo reportagem do jornal O Globo, dos R$ 222 bilhões de livre destinação neste ano, R$ 44,6 bilhões se referem a emendas parlamentares, ou 20,05% do total. A título de comparação, em 2014, antes da criação das emendas impositivas, ao Legislativo cabia indicar 4,65% do valor dos gastos discricionários.

Se Lira estivesse certo, o olhar do Legislativo teria feito com que as desigualdades regionais caíssem vertiginosamente nos últimos anos. Este modelo, no entanto, agravou o que já era ruim e criou os chamados desertos políticos, municípios sem padrinhos em Brasília que não recebem recurso algum.

O Orçamento, de fato, deveria pertencer a todos os brasileiros e brasileiras. Se não pertence, o Congresso também deveria assumir sua parcela de responsabilidade em vez de jogar toda a culpa no Executivo.

Não basta recompor o valor das emendas parlamentares para que esse problema seja solucionado. E, se realmente quer aumentar sua participação na destinação de despesas do Orçamento, o Legislativo também terá que começar a contribuir mais ativamente pela recomposição das receitas e, eventualmente, pela elevação da carga tributária.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo,em 07.02.24

Boas intenções e efeitos colaterais

Apesar das isenções e da legislação mais flexível para abertura de igrejas no país desde 2003, a grande maioria é irregular

A avaliação de políticas públicas deveria ser ingrediente essencial do trabalho de gestores públicos, tarefa que se inicia ainda no desenho da ação estatal. Na avaliação de impacto, é necessário também detectar efeitos não esperados, sendo importante informação para ajustes na política ou mesmo sua suspensão.

Ainda que as decisões sejam eminentemente políticas, é crucial munir o debate público com essas avaliações, inclusive como instrumento para afastar ganhos indevidos de grupos organizados. No Brasil, porém, políticas são implementadas e renovadas sem o devido cuidado.

Um exemplo disso é a imunidade tributária de igrejas (mais precisamente, locais de culto). A discussão não é sobre praticá-la ou não — mesmo em países pouco religiosos, como a China, há imunidade —, mas como fazer.

Há alguns argumentos para a imunidade. Para alguns, trata-se de questão moral. Para outros tantos, a motivação é a separação entre Igreja e Estado, de modo a assegurar a liberdade religiosa.

No Brasil, a Constituição estabelece a isenção de IR, Cofins, IPVA, ITCMD e IPTU. Em 2019, se prorrogou até 2032 a isenção de ICMS para entidades religiosas. Em 2020, o Congresso aprovou a anistia de dívidas tributárias de igrejas e isenções com efeito retroativo (a estimativa era de R$ 1,6 bilhão).

Em 2022, o governo ampliou o alcance da isenção de contribuições previdenciárias sobre a remuneração de pastores, o que foi suspenso recentemente pela Receita Federal — não sem reação das igrejas. Outro capítulo recente é a isenção do IVA, na Reforma Tributária, para igrejas e atividades assistenciais e beneficentes vinculadas.

Tomando como referência os EUA, certamente a legislação brasileira é muito permissiva. Naquele país, as regras são mais rígidas — mesmo assim não impedem fraudes. São proibidas as atividades de lobby para influenciar a legislação; a interferência ou participação em campanhas políticas (ainda que preservando a liberdade de expressão de cunho pessoal, fora das funções oficiais da igreja); e atividades que geram rendas privadas a pessoas envolvidas nas atividades da organização.

As igrejas devem informar a remuneração dos seus membros e funcionários, que não podem ser exageradas.

A violação desses requisitos é, potencialmente, motivo para perda do status de imunidade tributária, inclusive das contribuições recebidas. Adicionalmente, a renda gerada indevidamente estará sujeita a impostos especiais de consumo e as irregularidades precisarão ser corrigidas. Há regras para cada situação, do que pode e do que não pode ser feito.

Há controles por parte da receita federal (Internal Revenue Service), ainda que com algumas limitações impostas pelo Congresso. As igrejas são obrigadas a manter livros contábeis e outros registros necessários para justificar a imunidade, para fins de auditoria.

Desnecessário apontar a enorme diferença com o caso brasileiro, onde certas interferências de organizações religiosas são incompatíveis com o Estado laico. Além disso, pecamos duplamente, pelo elevado número de organizações irregulares e pela falta de controle sobre as regularizadas.

Apesar das isenções e da legislação mais flexível para abertura de igrejas desde 2003, a grande maioria das igrejas é irregular, sem CNPJ e muito menos alvarás de Prefeitura e Corpo de Bombeiros.

Os números superlativos no Brasil trazem preocupação. Segundo o Censo 2022, há 579,8 mil igrejas (regularizadas ou não) — ante 264,4 mil estabelecimentos de ensino e 247,5 mil de saúde. Isso significa 2,86 igrejas para cada 1.000 habitantes. Nos EUA, com 254,7 mil igrejas, a razão é de 0,76. Na Arábia Saudita, um Estado teocrático, a proporção é de 2,76.

Mesmo o crescimento das igrejas regularizadas tem sido grande. Pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole com igrejas evangélicas, utilizando dados do CNPJ, identificou 17 mil delas em 1990, cifra que saltou para 109,6 mil em 2019.

Algumas congregações cumprem importante papel social, o que precisaria ser avaliado e, eventualmente, poderia ser ampliado — como encaminhar os vulneráveis para inclusão no Cadastro Único e para os serviços públicos assistenciais —, tendo em vista a elevada capilaridade das igrejas.

É um tema com grande impacto na vida das pessoas, especialmente os não privilegiados, e merece maior cuidado.

Zeina Latif, a autora deste artigo, é economista. Publicado originariamente no O Globo,em 07.02.24

Congresso controla mais recursos do que seria razoável

Em vez de enfrentar Executivo para ampliá-los, Lira deveria concentrar esforço no êxito da agenda econômica

A abertura do ano legislativo no Congresso Nacional — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Sob qualquer ângulo, a fatia do Orçamento da União controlada pelo Congresso é enorme. Deputados e senadores decidirão o destino de R$ 44,6 bilhões neste ano, ou 20% dos gastos livres do governo (90% das despesas são engessadas por gastos obrigatórios com salários do funcionalismo, benefícios previdenciários e demais vinculações orçamentárias). Há dez anos, a fatia dos recursos livres nas mãos dos congressistas era pouco menos de um quarto disso, ou 4,65%.

Como mostrou reportagem do GLOBO, essa parcela destoa na comparação internacional. Numa análise de 29 países, os outros três onde o Parlamento detém maior poder sobre os recursos são Estados Unidos (2,4%), Eslováquia (5,5%) e Estônia (12,3%). No Brasil, o Congresso arbitra sobre uma proporção equivalente a oito vezes a que cabe aos congressistas americanos. Só isso deveria ensejar reflexão.

(Fatia do Orçamento definida pelo Congresso no Brasil é 9 vezes maior que nos EUA: emendas dificultam ainda mais déficit zero)

Tal reflexão se torna mais necessária diante da declaração do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), na cerimônia de abertura do ano legislativo. Ao afirmar que a peça orçamentária “pertence a todos e todas, e não apenas ao Executivo”, Lira apenas constata a realidade expressa nos números. Esquece, contudo, que não se trata necessariamente de realidade positiva.

Com uma parcela maior do Orçamento sob comando dos parlamentares na última década, o governo brasileiro ganhou contornos não só de extravagância, mas de disfuncionalidade. No presidencialismo, cabe ao Legislativo elaborar a peça orçamentária, mas sua execução é, por definição e determinação constitucional, papel do Executivo. E por bons motivos. Políticas públicas são mais eficazes quando formuladas de modo abrangente, levando em conta urgências e demandas nacionais ou regionais — o oposto da lógica paroquial das emendas parlamentares. Evitar a pulverização tem a vantagem de aumentar a transparência e reduzir brechas para desvios e corrupção.

Tanto a ciência política como a comparação internacional demonstram que emendas parlamentares não são o instrumento adequado para melhorar os serviços prestados à população. Parlamentares brasileiros alegam conhecer as demandas do eleitorado. Mas não há evidência de que anabolizar o poder do Congresso sobre o Orçamento tenha obtido bons resultados. Não há notícia de país que tenha seguido os passos do Brasil nesse quesito.

Por tudo isso, seria mais lógico o Parlamento brasileiro cair em si e entender seu papel na dinâmica orçamentária. Fez bem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao vetar R$ 5,6 bilhões que seriam destinados a emendas de comissão. Em vez de tentar enfrentar o Executivo ou derrubar o veto para que congressistas controlem fatia ainda maior dos recursos, Lira deveria dar ênfase ao papel essencial que tem desempenhado para o êxito da agenda econômica, em parceria produtiva com o Executivo. Ele foi um dos protagonistas da reforma tributária e de outros avanços legislativos. Além de contribuir para o sucesso da economia, também aumentou seu capital político.

Mas essa é uma obra inacabada. Lira tem mais um ano no cargo e precisa dedicá-lo com afinco ao que falta: regulamentação da reforma tributária, reforma administrativa e medidas essenciais ao futuro do Brasil. Seria um erro político usar seu cacife para arrancar mais concessões num Orçamento cujos recursos os congressistas já controlam mais que em qualquer outro país.

Editorial de O Globo, em 07.02.24

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Farol de travessia na polarização obscura

A desolação com o presente não pode calcificar a História nem infertilizar nossas potências de invenção e reinvenção da vida, sob o farol dos valores civilizatórios

Caminhamos em chão nunca antes pisado. Para além da evidência já formulada desde o mundo antigo, de que nunca atravessamos um mesmo rio, porque mudam os rios e mudamos nós, o fato é que, neste novo milênio, a matéria-prima do passado se soma a ingredientes inéditos da contemporaneidade, conformando um tempo expressamente diferente de tudo o que já vivemos, fundindo doses de estranheza e familiaridade a uma mesma experiência.

Um exemplo decisivo? Os extremismos e populismos, que já produziram fatos históricos nefastos como o nazismo, encontram no hoje as novidades da digitalidade, com as virais e virulentas conexões em rede e o desvalor da verdade factual, estabelecendo, para quem navega fora das bolhas radicais, o espanto de uma escalada de violência anti-humanística norteada especialmente pela aposta na desagregação social.

Em solo inexplorado, a sensação de desamparo, comum a todos os viventes, se torna vertiginosa. Especialmente ante o desconhecido e o desafiante, mitos e salvadores grassam como praga, ofertando simplificações e redenções ilusórias. Na arena político-ideológica de disputa por mentes e corações, a polarização é estratégia manjada – mas, como se vê, permanentemente atualizada, como agora se faz pelas vias digitais.

Nesse sentido, durante a travessia de uma polarização obscura, é preciso que tenhamos a clareza de quatro pontos cruciais. O primeiro é que os tempos históricos são intervalos na paisagem em que a humanidade desenha seus caminhos – para o bem ou para o mal, tudo passa. Um segundo ponto é que todos os tempos são obra humana, colocando em conjugação o passado, o atual e o horizonte, numa disputa de memórias, sensações e esperanças. O terceiro é que, no percurso, não podemos perder o rumo da civilização humanística, fundamentada na dignidade irrestrita e vinculada à fraternidade, à liberdade e à igualdade. Por fim, mas não menos importante, devemos ter claro que, na verdadeira luta cotidiana pela democracia, é preciso um olhar estratégico sobre a ampla dinâmica socioeconômica e político-cultural, de modo a evitar que medidas pouco razoáveis do ponto de vista republicano e passos apartados da rota do bom senso ético-político acabem por dar munição e combustível aos discursos extremistas e divisionistas dos arautos da barbárie.

Com a consciência de que somos os autores dos tempos que se sucedem, o humanismo é um dever de casa que não cessa, sob o risco de retrocessos dramáticos. Assim, a desolação com o presente não pode calcificar a História, muito menos infertilizar nossas potências de invenção e reinvenção da vida, sob o farol dos valores civilizatórios. Como se diz, “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”.

Reconheçamos que pisamos em terreno intocado e que, ainda por cima, se mostra fluido e camaleônico. Reconheçamos os desafios deste tempo atravessado por novidades encantadoras e, ainda assim, assombrado por horrores passados que se queriam sepultados. Reconheçamos que os diálogos se submetem a uma nova lógica comunicativa que mais enseja bolhas do que amplas interações renovadoras. Reconheçamos que, juntamente com populações inteiras que se empoderam, buscando se emancipar e se autonomizar diante de opressões históricas, convivem massas sedentas de lideranças que lhes façam sonhar com a supressão da diferença.

Reconheçamos a crise, mas também reconheçamos, antes de tudo e diante de tantos desafios, que o futuro, como realização humana, não tem destino predeterminado. E que, assim, cabe àqueles que não se rendem à hipnose da polarização obscura preservar o estatuto da civilização humanística. Em muitos casos, o papel dos líderes e da cidadania organizada é, mesmo, navegar contra a correnteza.

Desse modo, requer-se perseverança na conversa multi-ideológica, na capacidade de escutar e entender o outro e suas razões. Isso tudo, de modo a romper os grilhões da manipulação, pois os agentes da discórdia empenham seus maiores esforços em nos manter no alçapão da polarização obscura, mediante uma estratégia de disputa, conquista e manutenção de poder.

É preciso lembrar que há outro modo de conceber e levar a vida para além de extremismos e populismos. Conciliação, consideração e diálogo entre diferentes percepções e maneiras de viver são atitudes éticas impositivas diante de posições sectárias, doutrinadoras e até mesmo hostis, que prescrevem a eliminação da diversidade. Pode parecer inaceitável para muitos, mas ninguém tem o monopólio da receita da História, que é, em verdade, uma realização em aberto.

Diante da miséria humana que testemunhamos aqui e acolá, lembremo-nos de que podemos nos unir em torno do que nos eleva. Lembremo-nos, com Sartre, de que estamos condenados à liberdade de nos inventarmos – e que isso pode e deve ser uma dádiva. Mãos à obra, pois, de um tempo novo, que nos inspire crescentemente a sermos o melhor que pudermos ser – como sujeitos, como cidadãos, como nação.

Paulo Hartung, o autor deste artigo, é economista, Presidente-Executivo Da IBÁ, Membro do Conselho Consultivo do RENOVABR. Foi Governador Do Estado Do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.02.24

Aumento no número de casos de dengue reforça importância da vacinação

Marcos Boulos acredita que, além da vacinação, o importante é evitar os criadouros do mosquito transmissor da doença e capacitar os profissionais de saúde

É normal um aumento de ocorrências de dengue na época de verão, o que justifica um reforço nas ações de prevenção  – Foto: James Gathany/CDC-HHS

O número de casos de dengue no Brasil já chegou a 217 mil em 2024, representando quase cinco vezes o total calculado no mesmo período do ano passado. Até o momento, são 15 mortes confirmadas e 149 óbitos em investigação. Nesse sentido, o governo anunciou uma campanha de vacinação contra a doença, com previsão para começar no início de fevereiro, que inclui cerca de 500 municípios em 16 Estados e possui um público-alvo de adolescentes entre 10 e 14 anos.

O professor Marcos Boulos, do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina (FMUSP) da Universidade de São Paulo, comenta o crescimento de casos da doença no Brasil e traz informações sobre essa vacinação. 

Causas da dengue

Segundo o docente, é normal um aumento de ocorrências de dengue na época de verão, uma vez que se intensifica o número de chuvas e poças d’água que ajudam na reprodução do mosquito Aedes aegypti. Contudo, possíveis fenômenos causados pelo El Niño (chuvas intensas e calor excessivo) potencializaram esses fatores, causando uma epidemia maior, o que não ocorria desde 2019 — o especialista conta que, a cada quatro ou cinco anos, há uma explosão de um tipo novo de dengue, causando novos sorotipos.

“A doença dá imunidade permanente por cada tipo de vírus, e nós temos quatro. Nós estávamos com o tipo 1 circulando por muito tempo já, e as pessoas começam a ficar imunes, mas, de repente, quando vem algum outro, a doença começa a aumentar mais do que a gente esperava”, conta Boulos. O médico ainda adiciona que a doença em si não é grave, mas o retardo do atendimento ou da busca do procedimento em alguns casos, além de uma possível falta de preparo dos especialistas, aumentam a gravidade da dengue.

Marcos Boulos – Foto: Secretaria de Estado da Saúde

Vacinação contra a doença

O Ministério da Saúde anunciou, ainda no final do ano passado, a incorporação da vacina da dengue Qdenga, comprada do laboratório Takeda Pharma, ao Sistema Único de Saúde (SUS), mas a necessidade de aplicação dupla de doses e o pouco número de vacinas disponíveis fez o governo definir um público-alvo: adolescentes de 10 a 14 anos, público bastante suscetível à doença. Outros focos são regiões com alta transmissão da doença tipo 2.

“Ela deve ser utilizada em regiões onde se tem mais casos de dengue, porque a vacina é mais efetiva quando as pessoas já tiveram um sorotipo de dengue, ela diminui a gravidade da doença. Então, por isso, o Ministério da Saúde está priorizando os lugares onde a endemia acontece todos os anos”, explica Boulos. Ele ainda complementa que, por esses fatores, a vacina não está indicada para ser utilizada na cidade de São Paulo, mesmo com um grande aumento do número de ocorrências de dengue.

O docente também comenta da vacina que está sendo desenvolvida pelo Instituto Butantan, que será aplicada em apenas uma dose e mostrou ter uma efetividade muito boa. Segundo dados do próprio instituto, a Butantan-DV mostrou quase 80% de eficácia nos resultados preliminares da terceira fase dos estudos clínicos. Em pessoas que já contraíram a doença, a prevenção pode chegar próxima de 90%, mas o número cai para aproximadamente 70% em casos de primeiro contato com o vírus.

Outras soluções

Apesar da importância das vacinas, o professor acredita que a verdadeira solução é evitar os criadouros do mosquito, com águas paradas dentro das casas ou quintais da população. Boulos ainda diz ser importante lembrar que o Aedes aegypti é um vetor urbano, diferente de algumas outras doenças causadas por insetos.

O médico também complementa sobre a importância de capacitar recursos humanos para o atendimento da população nos casos de dengue. “Como não é uma doença grave, você pode fazer rapidamente o atendimento daqueles poucos que chegam com maior gravidade e aí a doença é controlada”, explica Boulos. Ele ainda cita a necessidade de uma capacitação anual, já que há muita mudança do local de atendimento entre os profissionais capacitados, podendo ser substituídos por pessoas não habituadas com a doença. “Então, o mais importante, além de todo o trabalho que nós temos para evitar os criadouros, é que os profissionais estejam capacitados com o atendimento dos pacientes, que certamente virão em maior quantidade neste momento”, finaliza.

  Publicado originalmente no Jornalda USP, em 31/01/2024. Atualizado: 06/02/2024 as 11:17.

Caso raro de gambá infectado com raiva acende alerta sobre circulação do vírus em ambiente urbano

Animal, também conhecido como saruê, foi encontrado morto em Campinas, e tinha mesma variante de vírus da raiva de morcegos que comem frutas

Transmissão entre morcegos e gambás pode se dar pela interação entre os animais durante competição por hábitats – Foto: Alex Popovkin/Wikimedia Commons

Encontrado em 2021 no Parque Bosque dos Jequitibás, região central de Campinas, o corpo de uma fêmea de gambá-de-orelha-branca (Didelphis albiventris), mamífero também conhecido como saruê ou sariguê, teve a causa da morte determinada por um grupo de pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz e da USP, além de profissionais da saúde de instituições públicas dos municípios de São Paulo e Campinas: meningoencefalite causada por infecção pelo vírus da raiva. Publicado na revista Emerging Infectious Diseases, o resultado acende um alerta sobre a presença do vírus, mortal para humanos, no ambiente urbano.

Eduardo Ferreira Machado – Foto: Lattes

“A variante da raiva de cães não é mais detectada no Estado de São Paulo, por conta do sucesso das campanhas de vacinação de animais domésticos. Por isso, é importante monitorar outros mamíferos que possam ser vetores do vírus, principalmente animais negligenciados por esse tipo de vigilância, como os gambás”, alerta Eduardo Ferreira Machado, que conduziu o trabalho durante seu doutorado na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Os sinais neurológicos da doença detectados no animal sugerem a forma que causa paralisia e é transmitida por morcegos. A detecção de partículas virais em outros órgãos indicou, ainda, que a infecção estava na fase de espalhamento sistêmico.

O gambá foi um dos 22 testados para raiva e outras doenças pela equipe em 2021, no âmbito de um projeto de vigilância epidemiológica realizado em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e o Centro de Controle de Zoonoses de Campinas. No mesmo ano, a equipe analisou ainda 930 morcegos, 30 deles positivos para a raiva. Entre os infectados, a maior parte (17 ou 56,7%) era de espécies frugívoras do gênero Artibeus. Os outros 13 (43,4%) eram insetívoros de três gêneros diferentes.

A transmissão entre morcegos e gambás pode se dar pela interação entre os animais, que competem por hábitats tanto naturais (como alto de árvores) quanto aqueles fornecidos por humanos (sótãos de casas, por exemplo). Em 2014, um caso de raiva em um gato foi notificado em Campinas. O vírus era de uma variante encontrada em morcegos. Assim como os gatos, os gambás também podem predar esses animais, o que leva à hipótese mais provável para a transmissão.

Em amostra de cérebro de gambá (Didelphis albiventris), imagem feita com microscópio indica antígenos do vírus da raiva em neurônios (indicados por setas) – Imagem: Reprodução/Eduardo Ferreira Machado

Ponte para humanos

Os pesquisadores destacam ainda que, dos 22 gambás analisados, 15 haviam sido mortos por ataques de cães. “Os cachorros poderiam ser uma ponte entre os gambás e nós, trazendo a raiva e outras doenças para os humanos. Por isso, também, a importância de monitorar os animais silvestres que vivem nas cidades”, completa Machado. Segundo José Luiz Catão Dias, professor da FMVZ e orientador de Machado, os gambás são estratégicos para esse tipo de vigilância, uma vez que se adaptam muito bem a ambientes urbanos, sem necessariamente deixar de interagir com áreas silvestres.

“Mesmo assim, são muito negligenciados. Não se sabe quase nada das doenças que eles podem ter e, eventualmente, transmitir para nós”, diz o pesquisador, que coordena o projeto Patologia comparada e investigação de doenças em marsupiais neotropicais, ordem Didelphimorphia: uma proposta de vigilância em um grupo de mamíferos negligenciado nos estudos de sanidade de fauna selvagem, apoiado pela Fapesp. Os autores lembram que um estudo dos anos 1960 sugeriu que os gambás seriam resistentes ao vírus da raiva, um argumento que ganhou força pelo fato de haver relatos escassos de casos da doença nesses animais.

A baixa temperatura corporal (entre 34,4° C e 36,1° C) e as poucas chances de sobreviverem a um ataque de um animal com raiva foram sugeridos como as prováveis causas da baixa ocorrência da doença em gambás na América do Norte, uma vez que carnívoros selvagens são reservatórios naturais do vírus. O estudo brasileiro, porém, mostra que a transmissão ocorre e precisa ser monitorada.

Os pesquisadores seguem investigando animais mortos que chegam até o Centro de Patologia do Instituto Adolfo Lutz, tanto para monitorar a presença de raiva como de outras doenças. Uma das ideias para continuar os estudos é firmar parcerias com instituições em outros países que realizem a vigilância de marsupiais como os gambás, por exemplo, a Austrália. “Lá eles possuem bastante experiência nessa área e podemos fazer comparações que sejam úteis para os dois países”, encerra Catão. O artigo Naturally Acquired Rabies in White-Eared Opossum, Brazil pode ser lido neste link. wwwnc.cdc.gov/eid/article/29/12/23-0373_article.

André Julião, da Agência Fapesp, adaptado por Júlio Bernardes. Publicado originalmente no Jornal da USP, em 06.02.24

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Custo de tribunais impõe adequação à realidade fiscal

Com gasto estimado em 1,6% do PIB, Judiciário e MPs brasileiros compõem a Justiça mais cara entre 53 países

Brasil tem uma das Justiças mais caras do mundo, segundo relatório do Tesouro Nacional — Foto: Márcio Alves / Agência O Globo

Publicado no final do mês passado, o relatório do Tesouro Nacional classificando as despesas do governo confirma o que se sabe há tempos: o Brasil tem uma das Justiças mais caras do mundo, provavelmente a mais cara. Os tribunais e Ministérios Públicos (MPs) estaduais e federal custaram à sociedade 1,6% do PIB em 2022. Foi a proporção mais alta numa amostra de 53 países. O gasto brasileiro equivale ao quádruplo da média. Em termos absolutos, a Justiça custou perto de R$ 160 bilhões.

Para dar uma ideia da ordem de grandeza da cifra, basta lembrar que a despesa com todas as polícias foi de R$ 114 bilhões. Com serviços de proteção contra incêndios, R$ 8,8 bilhões. Com penitenciárias, R$ 26,3 bilhões. Em pesquisa e desenvolvimento sobre ordem pública e segurança, mirrados R$ 44 milhões. Quando são consideradas as despesas com “ordem pública e segurança” — incluindo a Justiça —, a despesa alcança R$ 311 bilhões, ou 3% do PIB, mais que na América Latina (2,6%) e nas economias emergentes (2,3%).

Custo: Brasil gasta 1,6% do PIB com tribunais, maior despesa entre 53 países

Associações de classe contestaram a metodologia usada pelo Tesouro para cotejar o gasto dos diversos países. Mas é a mesma adotada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para comparar gastos públicos. Ao mesmo tempo, tentaram justificar a despesa afirmando que o Judiciário brasileiro custa mais caro porque trabalha mais, tamanha a quantidade de temas que, pela Constituição, suscitam recurso aos tribunais. Pode até ser verdade. Há, porém, algo além do excesso de processos que distingue a Justiça brasileira.

Judiciário e MPs gastam sobretudo com salários, e a quantidade de benesses que usufruem juízes e procuradores brasileiros — como férias de dois meses, auxílios e verbas indenizatórias de todo tipo — é única no mundo. Tais “penduricalhos” inflam a remuneração, com frequência para além do teto constitucional, colocando as duas categorias da elite do funcionalismo no centésimo de maior renda no Brasil.

Opinião: Benesses a juízes erodem confiança na Justiça

Não se trata de questionar a necessidade de remunerar de modo justo serviço tão essencial e relevante quanto a Justiça. Mas é preciso ter senso de medida. Apenas um exemplo de desconexão da realidade: em 2017, ficou decidido que as licenças-prêmio de 90 dias a que procuradores têm direito — em si um privilégio que deveria ser extinto — poderiam ser pagas em dinheiro. Só esse benefício custou quase meio bilhão de reais aos cofres públicos entre 2019 e 2022 . No ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu que juízes também poderiam reivindicar as mesmas benesses dos procuradores. Para não falar nas tentativas de restaurar promoções automáticas a cada cinco anos (quinquênio) e outras iniciativas do tipo.

Estudioso do assunto, o cientista político Luciano Da Ros, da Unicamp e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), creditou em análise de 2015 o “elevado grau” de independência — inclusive orçamentária — do Judiciário e dos MPs no Brasil ao esforço da sociedade na transição para a democracia. É verdade. Mas isso não justifica a profusão de benesses. Juízes e procuradores deveriam entender a realidade de um país com alta dívida pública e social, em que o Estado precisa promover o equilíbrio fiscal para o bem de todos. Os números do Tesouro revelam a urgência dessa discussão.

Editorial de O Globo, em 05.02.24

Governo Lula tem dado sinais dúbios no combate à corrupção ao invés de amarrar suas próprias mãos

Percepção de corrupção também pode ser afetada pela ausência de sinais claros e críveis de governos de que estariam de fato comprometidos com o combate a esse mal

Escolhas de Dino, um então ministro de seu governo, para o STF, e de Gonet, de fora da lista tríplice, reforçam sinais dúbios de Lula quanto ao combate à corrupção Foto: Ricardo Stuckert/PR

A Transparência Internacional divulgou seu Índice de Percepção de Corrupção (IPC) de 2023, em que avalia 180 países atribuindo notas entre zero (mais corrupto) a 100 (mais íntegro). O Brasil caiu 10 posições passando agora a ocupar a 104ª posição com 36 pontos, dois a menos que no ano anterior. Na América Latina, ficou atras do Uruguai (76), Chile (66), Cuba (42) e Argentina (37).

Treisman, no artigo “What have we learned about the causes of corruption from ten years of cross-national empirical research?”, considera que índices subjetivos de corrupção não são uma medida direta da corrupção. Tais índices, por medirem a percepção da dinâmica da corrupção entre os cidadãos, não são livres de vieses e de imprecisões.

Escolhas de Dino, um então ministro de seu governo, para o STF, e de Gonet, de fora da lista tríplice, reforçam sinais dúbios de Lula quanto ao combate à corrupção

De tal modo, não se deve esperar uma relação linear entre o nível de corrupção de fato existente em um determinado país com a percepção que seus cidadãos têm do quanto ele é corrupto. Países podem ser muito corruptos, mas suas instituições serem débeis para detectar e punir comportamentos desviantes. Ou seja, o fato de os cidadãos não perceberem o problema não necessariamente significa que a corrupção seja baixa.

Existiria um paradoxo, portanto, entre a atuação das organizações de controle coibindo a corrupção e a percepção que as pessoas têm dela. Quanto mais efetiva for a atuação de tais organizações, maior será a exposição a eventos de corrupção que, muito provavelmente, irão afetar a percepção das pessoas de que aquele país é muito corrupto.

Assim, a percepção de mal-estar gerada por uma suposta maior corrupção pode ser também produto do processo de fortalecimento das organizações de combate ao problema. Esse foi o caso do IPC-Brasil que caiu de 43 para 35 em 2018, após o início da Operação Lava Jato em 2014 que expôs a corrupção bilionária no escândalo do Petrolão.

Por outro lado, a percepção também pode ser afetada pela ausência de sinais claros e críveis de governos de que estariam de fato comprometidos com o combate à corrupção. Esse parece ser o caso do atual governo Lula que, ao invés de amarrar suas próprias mãos, especialmente diante de condenações prévias por corrupção e lavagem de dinheiro, tem dado sinais dúbios.

A continuidade do orçamento secreto por meio de emendas Pix, a nomeação de políticos para a diretoria e presidência de estatais, a indicação de Cristiano Zanin (advogado particular) e de Flávio Dino (ex-ministro da justiça) para o STF e de Paulo Gonet (fora da lista tríplice) para a PGR são alguns exemplos desta dubiedade.

Carlos Pereira, o autor deste artigo, é cientista político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE) e sênior fellow do CEBRI. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.02.24

sábado, 3 de fevereiro de 2024

É preciso qualificar o emprego

Taxa de desemprego de um dígito é positiva, mas País tem de combater trabalho precária

A taxa de desemprego de 7,8% e a criação de quase 1,5 milhão de empregos formais formam um bom saldo para 2023, mas o mercado de trabalho ainda está longe de uma reativação que caminhe junto com a melhoria da renda e da qualificação. Em primeiro lugar, o 1,484 milhão de vagas com carteira assinada criadas no ano passado é um resultado 26% inferior ao de 2022.

O saldo também não chegou aos 2 milhões previstos pelo governo. Melhor seria se o crescimento da formalidade fosse inversamente proporcional à queda do desemprego. Ou até mesmo superior, já que emprego formal, como se sabe, funciona como salvaguarda contra a precarização do trabalho por garantir acesso aos direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Em segundo lugar, apesar de ter descido a um patamar mais próximo ao de 2014 – quando, com taxa de desemprego de 7%, o mercado de trabalho chegou quase ao nível de pleno-emprego –, a taxa do ano passado guarda uma diferença fundamental: o mercado de trabalho ainda não recuperou o mesmo nível de participação. Traduzindo, menos pessoas em idade ativa (pelos critérios do IBGE, acima de 14 anos) participam do mercado.

O desemprego diminuiu não apenas porque mais pessoas conseguiram uma ocupação, formal ou informal, mas porque há menos gente integrando a força de trabalho. Foi um movimento muito claro durante a pandemia, por causa das medidas de isolamento social, que permanece, em parte, porque um contingente expressivo de beneficiários de programas de transferência de renda não retornou ao mercado.

Esse monitoramento comprova que é necessário relativizar os dados. Não são poucos os economistas que atestam que, se o País tivesse retornado ao mesmo nível de participação pré-pandemia, o nível de ocupação atual levaria a taxa de desemprego a oscilar em torno de 10%. Por tudo isso, a manutenção do desemprego em um dígito deve, sim, ser comemorada, mas com a devida ponderação.

Mesmo que o mercado não esteja tão aquecido quanto parecem indicar as estatísticas do IBGE, o resultado geral é, de fato, positivo. Mas um aspecto que merece atenção especial é o da precarização do mercado de trabalho. A reforma trabalhista teve o mérito de facilitar o acesso ao mercado, ao permitir diferentes contratos de trabalho. O aumento na quantidade de microempreendedores individuais (MEIs) talvez seja o exemplo mais típico dessa nova relação.

Mas não haverá reconstrução adequada do mercado de trabalho sem investimentos em sua qualificação. A fórmula, há muito conhecida, está na educação. É o que justifica a campanha permanente pelo desenvolvimento e apoio ao ensino técnico e profissional que este jornal defende. Sem treinamento não há mão de obra qualificada, e sem aprendizado tecnológico não surgem gerações de profissionais especializados.

A queda do desemprego será mais bem celebrada quando vier precedida de medidas que se firmem como uma nova política de qualificação profissional que apoie um crescimento econômico sustent

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 03.02.24

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Corrupção: Brasil está mal na foto

O ranking da Transparência Internacional é apenas um dado. Mas não deveria ser esquecido rapidamente

Creio que foi Guy Debord, no seu livro A Sociedade do Espetáculo, que enfatizou pela primeira vez como a percepção dos governos era mais importante que o que realmente faziam. Esta semana, o Brasil sofreu um pequeno baque. No ranking da Transparência Internacional sobre percepção de corrupção, caiu para 104.º lugar entre 180 países. Não estamos bem na fotografia.

Nos últimos tempos, tenho enfatizado a necessidade de se preocupar com a imagem das instituições, sobretudo para evitar súbitas e inesperadas revoltas populares como aconteceu em 2013.

São coisas distintas corrupção e sua percepção pela sociedade. Nesse particular, o chamado orçamento secreto, que vigorou no governo Bolsonaro, foi mais longe, para além de apenas passos suspeitos: a Polícia Federal teve de investigar compra de material robótico para escolas que não tinham internet, superfaturamento de tratores e um escandaloso caso numa cidade do Maranhão onde, para aumentar os repasses de emendas parlamentares, todos os habitantes teriam quebrado o dedo em um ano.

Mesmo sem avaliar o mérito das decisões de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, elas deixam no ar um vazio que deveria ser preenchido com abundantes explicações. Por duas vezes denúncias contra Arthur Lira, presidente da Câmara, foram aceitas e, depois, rejeitadas pelo Supremo. Um duplo recuo. O ministro Dias Toffoli anulou uma multa de R$ 10 bilhões da J&F, mais tarde defendida nos EUA pelo ex-ministro da Corte Ricardo Lewandowski. Tudo isso merecia grande argumentação e, ainda assim, deixa no ar uma desconfiança que pode aumentar a percepção negativa, mesmo que o conteúdo das decisões não o seja.

A decisão do Supremo de permitir que os juízes julguem casos defendidos por parentes é medida que dificilmente escapa do paredão das dúvidas.

No Executivo, ministros indicados pelo Centrão, como o das Comunicações, aparecem em várias notícias. Recentemente, um ministro foi acusado de gastar fortunas em gasolina, com dinheiro da Câmara. Culpou o posto.

Despotismo cruzado, colocação de mulheres de políticos em tribunais de contas, uma série de práticas que produzem algumas notas rápidas, também contribuem para que o Brasil caia no ranking.

Talvez a batalha mais importante nesse particular esteja se dando no Congresso. Os parlamentares detêm R$ 47 bilhões do Orçamento. No momento, lutam para que não haja um corte de cerca de R$ 5 bilhões em emendas de comissão, uma espécie de recompensa pelo fim do orçamento secreto. Só de emendas chamadas PIX, dinheiro enviado para prefeituras, sem especificação do emprego, eles vão consumir R$ 8 bilhões. Como controlar o uso deste dinheiro enviado de forma tão, digamos, generosa?

E, como se não bastasse tudo isso, o Congresso aprovou uma verba de quase R$ 5 bilhões para financiar as eleições municipais. Devem ser uma das mais caras do mundo. Mesmo no tempo em que eram financiadas por empresas, o custo das eleições no Brasil rivalizava com o das norte-americanas.

Já se viu no passado que grandes campanhas repressivas contra a corrupção não resolvem. A desgraça da Lava Jato é um fator importante para analisar saídas.

Da mesma forma, grandes lições de moral entram por um ouvido e saem pelo outro. O caminho mais sensato é analisar esses dados, compreender que são negativos para atrair investimentos e avaliar os mecanismos de transparência e controle.

Sempre haverá teses de que nada disso importa, de que a percepção da corrupção é um problema da classe média e de que isso é apenas uma nota no pé de página da História.

Apesar da calma política que o País vive nas ruas, é possível dizer que esta percepção das instituições não é exclusiva das classes médias: há uma grande base popular que compartilha a desconfiança com as elites.

O ranking da Transparência Internacional é apenas um dado. Mas não deveria ser esquecido rapidamente, como tantas coisas que passam no Brasil. Elas indicam um acúmulo que não é sensato ignorar. Na história recente do País, esta larga percepção é instrumentalizada por falsos salvadores. Recentemente, foi a extrema direita que a capitalizou e acabou respaldando um orçamento secreto.

Desde a redemocratização, com a guerra contra os marajás, o slogan da ética na política, muitas tentativas falharam.

Talvez seja um passo adiante o fato de a percepção persistir, mas ter desaparecido a crença em soluções mágicas vindas da política. A mudança é mais lenta e, possivelmente, muito mais ampla do que simples troca de governos.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 02.02.24

Surpresa com Lula: seu Governo apresenta aumento da corrupção, maior que com Bolsonaro

O presidente brasileiro tropeçou no facto de as instituições do Estado serem dominadas pela corrupção e com as quais teve que fazer acordos para governar

Lula da Silva, presidente do Brasil, durante entrevista coletiva nesta quinta-feira em Brasília. (Sdriano Machado, Reuters) 

O Governo Lula, que veio reparar o desastre de Jair Bolsonaro, não se conforma com o resultado recentemente divulgado dos índices de corrupção registados pela ONG Transparência Internacional, a mais antiga e global da história da corrupção mundial. O partido de Lula, o PT, reagiu de forma dura e indignada.

Segundo esta ONG, o Brasil perdeu 10 posições nos índices mundiais, passando para a 104ª posição entre 180 países. Aparece como um dos países mais corruptos da América Latina e perdeu 30 cargos em relação ao último ano do governo Bolsonaro. Hoje o Brasil aparece em índices de corrupção no nível de países como Argélia, Sérvia e Ucrânia.

A BBC Brasil destacou sete razões para explicar este retrocesso nos índices de corrupção do Governo como “a falta de compromisso com a reconstrução dos sistemas e mecanismos de controlo da corrupção no primeiro ano de Governo”, entre elas, destaca, a interferência na autonomia das instituições, nomeando, por exemplo, seu advogado e amigo pessoal, Cristiano Zanin, para o Supremo Tribunal Federal, e não tendo respeitado a regra da lista apresentada pelos procuradores para a nomeação do importante cargo de Procurador-Geral do Estado, nomeando um católico conservador, amigo dele.

Em seu editorial da última quinta-feira, o jornal O Globo alertou que o aumento dos índices de corrupção no Brasil é um risco, pois “desincentiva os empresários a investir no país”. Lula preferiu ficar calado diante do aumento dos índices de corrupção e deixou sua defesa ao presidente do seu partido, o PT, sua fiel escudeira, Gleisi Hoffmann , que chegou a acusar a ONG Transparência de corrupção. “Explicar primeiro (referindo-se aos membros da ONG internacional) quem os financia, abrir as suas contas, explicar os seus negócios”, escreveu em X e acrescentou que se trata de um sistema de medição da corrupção global “onde a injustiça da lei” é é aplicado de acordo com os interesses do Governo e das elites."

Talvez a maior dificuldade de Lula esteja justamente na questão do combate à corrupção. Ao contrário dos seus dois governos anteriores, Lula teve de enfrentar o facto de as instituições do Estado, como o Congresso, o Judiciário ou os governos locais, serem dominadas pela corrupção e com as quais teve de se reconciliar, oferecendo-lhes ministérios e cargos em cargos públicos. o Estado, para poder governar e aprovar algumas das suas medidas mais importantes.

Existe o perigo de que também neste ano de eleições municipais Lula tenha que fechar os olhos ao apoiar candidatos ligados a Bolsonaro ou negociar com eles para poder escolher seus candidatos e não repetir as últimas eleições de 2020 em que seu partido fracassou abertamente ao não conseguir vencer um único grande governo local.

A dificuldade de Lula é justamente que ele se viu, seja no nível nacional ou local, com o poder nas mãos de políticos de extrema direita, com os quais ele precisa mais do que combatê-los de frente, mas negociar para recuperar terreno para ser capaz de realizar as reformas de fundo que pretende impor, precisamente para reduzir os índices de corrupção que envergonham um país.

O Governo Lula, como ao mesmo tempo reconhece a ONG Transparência Internacional, fez esforços no primeiro ano para renovar as instituições e as liberdades civis, bem como para reforçar os mecanismos de ajuda às classes mais necessitadas e reforçar as políticas sociais, algo que tem sido feito. reconhecido internacionalmente.

Daí a necessidade de Lula saber manter o equilíbrio neste ano, para compensar o desastre das eleições de 2020. Lula vai precisar de um equilíbrio forte para poder recuperar o poder local perdido sem fazer concessões excessivas à extrema direita que ele mantém, precisamente nesse poder local, a sua força reacionária.

Perguntar muito? Talvez, mas se ele sonha com um quarto mandato em 2026, quando completar 82 anos, ele e seu partido precisarão nestes três anos de governo mais do que realizar um duelo ideológico com seu antecessor Bolsonaro para apresentar ações concretas de profunda renovação social que até restaurar à direita não fascista a esperança de um Brasil renascido do pesadelo de Bolsonaro, que apesar de tudo, continua vivo e com aspirações de voltar ao poder.

Juan Arias, ao autor deste artigo é Jornalista. Publicado originalmente no EL PAÍS (Espanha), em 02.02.24

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Pessoas com mais de 70 anos podem escolher se casar com partilha de bens, decide STF

Por unanimidade, ministros afastaram regra do Código Civil que obrigava casais idosos a adotarem regime de separação de bens

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira, 1º, por unanimidade, que pessoas com mais de 70 anos podem se casar em regime de partilha de bens. A regra também vale para uniões estáveis.

A tese aprovada foi a seguinte: “Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública.”

A decisão tem repercussão geral, ou seja, valerá como diretriz para todos os juízes e tribunais do País.

Pessoas com mais de 70 anos podem escolher se casar com partilha de bens, decide STF

O Código Civil impõe o regime de separação de bens – quando não há divisão de patrimônio em caso de divórcio ou morte de um dos cônjuges – para pessoas nesta faixa etária. Com a decisão do STF, o casal poderá escolher livremente o modelo patrimonial para a união.

Prevaleceu o posicionamento do ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, para quem a restrição viola a dignidade e a autonomia dos idosos.

“As pessoas têm o direito de fazerem as suas escolhas existenciais na vida”, defendeu. “No fundo, esse artigo está ali (no Código Civil) para proteger os herdeiros.”

Barroso também considerou que o artigo viola o princípio da igualdade por usar a idade como critério de “desequiparação”. Na avaliação do ministro, a norma incorre em etarismo.

Rayssa Motta, do blog do Fausto Macedo, originalmente para O Estado de S.Paulo, em 01.02.24

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

A necessária renovação política, nos EUA e no Brasil

A falta de novas candidaturas, mais conectadas aos anseios da sociedade, poderá trazer desânimo aos mercados e à sociedade

Os EUA terão eleição este ano num clima de desânimo. De um lado, uma sociedade insatisfeita e, de outro, a incapacidade de renovação da política. Os partidos rivais não conseguiram construir candidaturas competitivas alternativas a Donald Trump e Joe Biden.

Nutre-se, assim, a polarização, que por sua vez, dificulta a construção de consensos necessários para atender aos anseios da sociedade, hoje mais complexa. Que o Brasil não siga o mesmo caminho

O desconforto da sociedade é revelado em pesquisas de opinião e nos indicadores de confiança. O baixo desemprego (3,7% em dezembro ante 14,9% no auge da pandemia e média histórica de 5,7%) e o recuo da inflação (3,3% ao ano em 2023 ante 8,9% em meados de 2022) não têm trazido maior satisfação aos indivíduos.

Afinal, não basta ter trabalho; as pessoas anseiam também por melhor qualidade de vida, igualdade de oportunidades e justiça.

O indicador de confiança do consumidor até aponta algum otimismo no curto prazo (o subíndice “situação presente” está em 148 pontos, ante média histórica de 100 pontos e pico de 187 pontos em julho de 2000, na gestão Bill Clinton), mas isso não se traduz em melhores perspectivas para os próximos meses (o subíndice “expectativas” tem oscilado em torno de 77 pontos, ante média histórica de 91,5 pontos). O descasamento está em níveis recordes.

A pesquisa Gallup traz outro ângulo do descontentamento: a desconfiança nas instituições. Apenas 27% das pessoas confiam na Suprema Corte (o pico foi 56% em 1988); 8% confiam no Congresso (42% em 1973); 26% confiam na Presidência (72% no início de 1991). O sentimento atinge ainda jornais (18%), grandes negócios (14%) e escolas públicas (26%), que também exibem aprovação em queda nas últimas décadas.

(Avanço: Previdência dos militares tem rombo de quase R$ 50 bi em 2023, alta de 3,6%)

O mal-estar social não é de hoje e não parece descolado da economia. Alguns indicadores econômicos dão pistas da insatisfação. A remuneração dos trabalhadores (corrigida pela inflação) tem aumentado menos do que os ganhos de produtividade do trabalho (produção por hora trabalhada). Entre 1985-2022, o rendimento real aumentou em média 0,4% ao ano, enquanto a produtividade cresceu em média 1,9% ao ano.

Como resultado, a participação dos salários no PIB teve um recuo relevante entre 1970 (51,6%) e 2013 (42%), com recuperação muito modesta nos últimos anos (43,1% em 2022). Enquanto isso, a distribuição de renda piorou desde os anos 1980, com pequena melhora em 2022, mas decorrente do achatamento da renda dos grupos do meio e do topo, e não do aumento da renda dos mais pobres.

Não se trata, portanto, de algo novo, ainda que a crise financeira (do subprime) de 2008 tenha piorado bastante os indicadores econômicos citados e recrudescido a insatisfação social, como aponta Luigi Zingales.

Parece justo, pois, afirmar que os EUA necessitam de renovação na política. Em que pese a solidez democrática daquele país, chama a atenção a incapacidade dos partidos de promoverem uma renovação nos seus quadros, de forma a permitir uma corrida presidencial arejada este ano.

Falta, de lado a lado, um olhar para a insatisfação da sociedade. E aqui não há grandes diferenças entre eleitores dos partidos Democrata e Republicano.

Apesar da maior blindagem da economia americana ao ciclo político, o quadro atual de polarização dificulta o enfrentamento de problemas que afetam a sociedade. No ano passado, a agência de classificação de risco Fitch reduziu a nota de crédito de longo prazo dos EUA, por conta da deterioração fiscal, citando os repetidos impasses no Congresso para a elevação dos limites de dívida.

Apontou ainda o enfrentamento insatisfatório de questões como saúde pública e seguridade social diante do envelhecimento da população.

O quadro no Brasil guarda algumas semelhanças, certamente agravado pela renda per capita muito menor e a pior distribuição de renda. A necessidade de reformas estruturais é muito maior aqui, e o ciclo político tem maior efeito na economia. Por esse aspecto, a renovação da política ganha importância ainda maior.

Está cedo para discutir os nomes de candidatos para 2026. Ainda assim, um quadro em que não se vislumbre a construção de novas candidaturas, mais conectadas aos novos anseios da sociedade e de modo a reduzir a polarização extrema, poderá trazer desânimo, aos mercados e à sociedade.

Zeina Latif, a autora deste artigo, é economista. Publicado originariamente n'OGlobo, em 31.01.24


Alta na percepção de corrupção traz custo ao Brasil

Recuo do país em ranking global expõe enfraquecimento de instituições de controle depois da Lava-Jato

Ação da Operação Lava-Jato em 2020 (Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo)

O Judiciário — em especial os tribunais superiores — deveria dar atenção à última lista de percepção da corrupção global preparada pela Transparência Internacional. A sensação de um ambiente contaminado por negociatas tem custo enorme para a reputação brasileira e afasta empresas e investidores sérios do país.

Numa escala em que zero é o cenário menos e cem o mais corrupto, o Brasil ficou com 36 pontos. Caiu dez posições, para o 104º lugar entre 180 países. Merece reflexão o histórico dos últimos dez anos. Em 2014, início da Operação Lava-Jato, eram 43 pontos. De lá para cá, a trajetória, com altos e baixos, foi descendente. Os piores resultados aconteceram em 2018 e 2019, quando a pontuação foi 35, patamar equivalente ao atual.

(Recuo: Brasil perde dez posições em ranking internacional de percepção da corrupção)

Medir corrupção é das tarefas mais difíceis. Negociatas são feitas nas sombras justamente para ficarem longe do escrutínio público. Paradoxalmente, um aumento no combate à corrupção pode, com a revelação dos esquemas, contribuir para a percepção de que houve aumento na roubalheira. Um ranking que apenas somasse os valores descobertos em operações ilegais penalizaria os países dispostos a coibi-las. Por isso a análise baseada em percepção, de preferência com prazo mais alongado, é medida mais precisa.

O efeito da Lava-Jato foi inequívoco no caso brasileiro. Embora a governança das estatais nunca tenha sido exemplar, a extensão dos desvios na Petrobras despertou incredulidade. Fora do círculo criminoso, poucos imaginavam que estivesse na casa dos bilhões. Com as investigações e condenações, os brasileiros tiveram a esperança de ver criminosos de colarinho branco enfim punidos com o rigor da lei. Mas os erros do então juiz Sergio Moro e dos procuradores abriram espaço a um contra-ataque no meio político e no Judiciário. A reação representou um retrocesso que tenta apagar tudo o que veio à tona — e enfraqueceu mecanismos institucionais que disciplinam a relação entre as empresas e o Estado.

Indicações de Lula, estatais e atuação do Centrão: 5 pontos que explicam queda do Brasil em ranking de percepção da corrupção

A Transparência dá uma série de exemplos dessa erosão. Houve, nas palavras do relatório Retrospectiva Brasil 2023, desmanche provocado pela “ingerência sistemática” em instituições como Procuradoria-Geral da República, Polícia Federal e Abin. No próprio Judiciário, a partir da reviravolta dos casos da Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal, ficou patente um recuo sistemático — e não apenas nos processos da Lava-Jato. “Talvez os exemplos mais graves tenham sido as ações sob relatoria do ministro Dias Toffoli”, afirma o relatório. Monocraticamente, ele atendeu a demandas “que tiveram imenso impacto sobre a impunidade de casos de corrupção que figuraram entre os maiores da história mundial”. Em setembro, Toffoli anulou todas as provas da delação da Odebrecht. Em dezembro, noutra decisão provisória, suspendeu as parcelas da multa de R$ 10,3 bilhões que a J&F pagava no âmbito da Operação Greenfield.

As duas medidas, que deveriam ser avaliadas por um colegiado de ministros, dão apenas um exemplo da frustração que se abateu sobre quem vira na Lava-Jato a esperança contra mazelas históricas do capitalismo brasileiro. A derrocada no ranking da Transparência não será revertida enquanto a Justiça não demonstrar à sociedade que o respeito — sempre necessário — aos direitos dos réus e investigados não equivale à impunidade. Ainda é possível escrever uma história diferente.

Editorial de O Globo, em 31.01.24