quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Polarização como vício

          As declarações recentes de Lula mostram um presidente capturado pela ideia de contraposição com Bolsonaro

Bolsonaro e Lula: antagonismo que se retroalimenta — Foto: Fotos: AFP

Não bastasse o mal que faz ao debate público, o desgaste que causa às instituições de Estado e o risco que representa para a própria democracia, a polarização política virou uma muleta que os dois lados que dela se alimentam passaram a usar para justificar todas as suas mazelas e exigir do público complacência com as inconsistências de seus projetos de governo.

O clã Bolsonaro — investigado em múltiplas frentes por suspeitas que vão de aparelhamento de Estado e tentativa de minar o processo eleitoral, por parte do patriarca e ex-presidente, a traficâncias várias por que são investigados os filhos — coloca tudo no saco da perseguição política do PT, do Judiciário e da imprensa.

Mais: essa sanha incontrolável não estaria voltada apenas à família, mas seria destinada a abater toda a direita e o pensamento conservador, incluídos aí cristãos, por meio de uma cruzada religiosa.

Trata-se de uma tática tão surrada quanto ainda eficaz de criar uma cortina de fumaça para fatos de extrema gravidade. A parcela do público que reza segundo a cartilha do bolsonarismo compra de forma acrítica essa explicação, que não se sustenta de pé e funciona como elixir para tudo, de Abin paralela a joias ofertadas por um país ao governo brasileiras e vendidas sorrateiramente.

Qual seria o antídoto para evitar que esse expediente diversionista continuasse vicejando? Que o outro lado da disputa política aposentasse as práticas e restabelecesse no trato da política e da coisa pública parâmetros mais impessoais e racionais de atuação. Mas nem sempre tem sido assim.

O episódio em que a Secom de Lula usou suas redes sociais para lacrar em cima da operação que teve Carlos Bolsonaro como alvo mostra que os expedientes usados pelo adversário foram em parte absorvidos pela nova gestão. Às favas o que diz a Constituição quanto aos princípios que devem nortear a administração e a comunicação públicas.

Não bastasse ser antirrepublicano, o uso partidário das redes de um órgão de Estado dessa forma ainda corrobora de modo pouco inteligente o discurso do clã Bolsonaro de que é vítima de perseguição. O vício na polarização é de tal natureza que não há ninguém para apontar, se não o desvio de finalidade de uma ferramenta pública, ao menos a pouca inteligência da “sacada”.

As declarações recentes de Lula também mostram um presidente totalmente capturado pela contraposição com o bolsonarismo, como se apenas isso pudesse ser um projeto de governo capaz de assegurar sua reeleição daqui a três anos. A volta por cima do trumpismo, a vitória de Javier Milei na Argentina e outras rebordosas de países igualmente mergulhados num embate entre antípodas políticos deveriam mostrar o risco de não quebrar esse mal.

O presidente foi aconselhado, ainda na aurora de seu terceiro mandato, a não incorrer na armadilha de trazer o “coiso”, como seus ministros se referiam a Bolsonaro, à cena a cada declaração. Um ano depois, segue fazendo isso e tropeçando em cada casca de banana que o antecessor coloca em seu caminho, como a reação a suas declarações mais recentes, depois de uma live marcada justamente para medir forças num terreno — as redes sociais — onde a polarização redutora é fermentada.

Lula deveria estar cobrando soluções de seus ministérios para nós concretos que podem macular sua gestão, e não usando uma conferência sobre educação para dizer que “vai ter polarização” e que ele acha “bom que tenha” nas eleições municipais. O resultado é abrir o flanco para a acusação de que a educação é palco de uma guerra ideológica, exatamente como Bolsonaro fez, a um preço altíssimo para o país.

Ao aceitar que a eleição de 2024 será um repeteco da de 2022, Lula contribui para manter Bolsonaro forte até 2026. E anabolizado pelo discurso de que as graves acusações que pesam contra ele e seu governo são apenas e tão somente vingança política.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista. Analisa os principais fatos da política, do Judiciário e da economia. Publicado originalemnte n'O Globo,em 31.01.24

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O recado que Bolsonaro enviou a Moraes sobre Carluxo quando era presidente

A preocupação de que Carlos Bolsonaro fosse alvo de uma operação da Polícia Federal acompanha Jair Bolsonaro desde os tempos que ocupava a Presidência.

(A paranoia de Carlos Bolsonaro com seu celular apreendido pela PF / PF apreende celular de Carlos Bolsonaro e três computadores na casa de Angra)

Ainda no comando do Executivo, Bolsonaro pediu a interlocutores que procurassem o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes para pedir que não mirasse o seu filho.

Um ex-integrante do governo anterior e um membro do Judiciário relataram à coluna que buscaram Moraes, de maneira reservada, para levar o pedido do então presidente.

Na época, havia especulações de que Carlos Bolsonaro seria alvo de investigações da Polícia Federal por comandar o ‘gabinete do ódio’, formado por servidores da Presidência da República e focado em destruir reputações de desafetos do governo.

A primeira ação efetiva contra Carlos Bolsonaro ocorreu nesta segunda-feira, no âmbito da investigação que apura a formação de uma Abin paralela para monitorar autoridades e pessoas consideradas inimigas da família Bolsonaro. O vereador foi alvo de um pedido de busca e apreensão.

Bela Megale, a autora deste informe, é repórter d'O Globo, especializada em investigações criminais, bastidores do poder e a vida política de Brasília. Publicado originalmente em 30.01.24

Gasto não é sinônimo de eficiência

Estudo do Tesouro Nacional sobre despesas com ordem pública, segurança e tribunais de Justiça mostra o prejuízo duplo da população: o Brasil gasta muito para manter serviços ruins

Tem algo de muito errado num país que, enquanto enfrenta gravíssimos e não resolvidos problemas de violência, gasta com ordem pública e segurança 3% do Produto Interno Bruto (PIB), o maior índice entre 53 países selecionados, acima da média das nações que integram o G-20 e mais ainda do que o padrão das economias avançadas. Esse foi o resultado mais eloquente – e perturbador – de um estudo produzido pela Secretaria do Tesouro Nacional.

Intitulado Despesa por Função do Governo Geral, com dados do IBGE, da Secretaria de Orçamento Federal e do próprio Tesouro referentes a 2021, o levantamento também escancarou outro descompasso: a despesa bilionária do Brasil com o sistema de Justiça na comparação com os demais analisados. Gastamos três vezes mais do que a média internacional (1,6% do PIB, ante 0,37%), na rubrica na qual se incluem os Tribunais de Justiça (estaduais e regionais), o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal.

Tanto num caso quanto em outro, o País concentra suas despesas em salários e benefícios, e menos no que efetivamente importa para torná-lo mais seguro e com um sistema de Justiça eficiente – mais uma evidência de que gastos elevados não compram serviços melhores. No caso da segurança e da ordem pública, a anomalia é puxada para cima pelas despesas com os tribunais, historicamente tisnados por alguns dos mais altos salários do serviço público, pela profusão de verbas indenizatórias e incontáveis penduricalhos e acréscimos que dão maior musculatura às remunerações. Se consideradas apenas as despesas com os serviços de polícia, proteção de incêndios, estabelecimentos prisionais e pesquisa e desenvolvimento, a realidade seria distinta. O gasto com os serviços policiais é 0,1 ponto porcentual menor do que nos países emergentes e apenas 0,1 ponto maior do que a média internacional. Já em relação aos estabelecimentos prisionais, o Brasil segue os parâmetros globais, com gasto de 0,2% do PIB.

A Associação dos Juízes Federais do Brasil e a Associação dos Magistrados Brasileiros questionam os elevados índices destacados pela imprensa. Argumentam que o levantamento não leva em conta as particularidades dos países analisados. Citam países que não incluem nas despesas do Judiciário os custos com infraestrutura, ressaltam nações com população bem menor do que a brasileira e destacam o fato de o Brasil ter um alto número de processos ajuizados e julgados, acarretando maior demanda sobre seu sistema de Justiça.

O argumento ignora alguns pontos relevantes. Primeiro: embora comparações internacionais acabem de fato desconsiderando particularidades domésticas, a distância do Brasil em relação aos melhores exemplos internacionais é bastante elevada. Segundo: está-se falando na proporção em relação ao PIB, portanto importa menos se o País é pequeno ou grande. Terceiro: o espanto com o tamanho das despesas não se resume ao número em si, pois todas as análises confrontaram as despesas elevadas com a baixa qualidade dos serviços.

O Brasil gasta muito para manter serviços piores. Não provê segurança pública de qualidade, como atestam sucessivas pesquisas que apontam o tema como um dos principais problemas e temores lembrados pela população. Não tem uma Justiça ágil e acessível, muito menos um sistema prisional corretivo e eficiente – ao contrário, é marcado por décadas de superlotação, violações dos direitos humanos e submissão perigosa a facções criminosas. E nosso sistema de Justiça apresenta alto custo e baixa efetividade, especialmente na Justiça Criminal, um funcionamento burocratizado e pouco acessível à população.

Por fim, reafirme-se, há a realidade incontornável das generosas benesses salariais como uma das anomalias do Judiciário. Tem-se aí a maior concentração de fura-teto da administração pública. Ainda que um projeto limitando supersalários no setor público tenha sido aprovado pela Câmara em 2021, o texto esbarrou no Senado – e, ainda que venha a ser aprovado, considera válidos mais de 30 tipos de pagamentos, entre indenizações, direitos adquiridos ou ressarcimentos. A conta não fecha.

Editorial / Notas e Informações Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.01.24

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Os negócios bilionários do marido de Marta em meio à sua volta ao PT

Projeto que seguia em trâmite desde 2020 passou por aprovação no Senado e na Câmara em meio às conversas entre Marta e o PT

Imagem colorida mostra Rui Falcão, Lula, Marta e Márcio Toledo, sorrindo em uma foto posada, com lula de mãos dadas para Marta, todos olhando para a Câmara, no Palácio do Planalto - Metrópoles

São Paulo – O governo federal articulou a aprovação de um projeto de lei no Congresso que atendeu a interesses de uma entidade presidida por Marcio Toledo, marido de Marta Suplicy, paralelamente às negociações entre a ex-prefeita de São Paulo e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que ela retornasse ao PT e disputasse as eleições da capital neste ano ao lado de Guilherme Boulos (PSol).

Toledo tem empresas no setor de infraestrutura e energia e, em setembro passado, criou com outros empresários a Associação Brasileira de Armazenamento de Energia (Armazene), entidade encarregada do lobby do setor junto ao poder público.

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Uma das pautas do setor era a aprovação de um projeto de lei, apresentado no segundo semestre de 2020 pelo deputado João Maia (PP-RN), que permitia que empresas privadas detentoras de contratos com o setor público pudessem emitir debêntures (títulos de dívidas) para financiar seus investimentos.

A pauta era suprapartidária e tinha coassinatura de parlamentares que iam do PT ao PL. O texto havia sido aprovado na Câmara ainda em 2022, mas só no fim de setembro foi votado no Senado – e retornou à Câmara com emendas.

Negociações em paralelo

Toledo esteve em Brasília, no fim de novembro, com outros representantes da Armazene para um congresso do setor de energia. Na ocasião, reuniu-se como representante do setor com o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, segundo o site da entidade. O encontro não estava na agenda do ministro.

Naquela ocasião, contudo, segundo membros do PT, ele já havia sido informado sobre o interesse de Lula por Marta, e o casal já havia iniciado as conversas com os petistas, em paralelo ao trabalho de Toledo com as empresas de energia.

O texto das debêntures entrou na pauta de votações da Câmara duas semanas depois do encontro com Padilha. O relator do projeto foi o deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania-SP).

Além de empresário e deputado federal, Jardim é presidente do conselho consultivo da Armazene.

Durante a votação do texto na Câmara, Jardim fez questão de agradecer publicamente, no microfone do plenário, ao líder do governo na Casa, José Guimarães (PT-CE), que “pessoalmente diligenciou para que a matéria pudesse vir a plenário”.

Dois dias depois da aprovação final do texto, Marta deixou a Prefeitura de São Paulo, alegando férias. Na época, embora uma série de notícias sobre seu retorno ao PT já circulasse na imprensa, ela não havia conversado sobre o tema com o prefeito Ricardo Nunes (MDB), de quem era secretária de Relações Internacionais.

Acordo fechado

Lula recebeu Marta e Toledo em seu gabinete na segunda-feira (8/1), quando fecharam o acordo sobre o retorno dela ao PT. O grupo posou junto para fotos ao lado do deputado federal Rui Falcão (PT-SP), que participou do diálogo para a mudança de partido. Dois dias depois, o presidente sancionou o projeto de lei das debêntures.

Na prefeitura, aliados de Nunes – que não esconde a mágoa de Marta por ter sido trocado por Boulos e o PT – afirmam, reservadamente, que a aprovação do projeto das debêntures foi uma das “moedas de troca” oferecidas ao casal Marta e Toledo para a mudança de lado da ex-prefeita.

O Metrópoles procurou Toledo para comentar o caso por meio da assessoria de imprensa de Marta, que não enviou nenhuma resposta.

Incentivos bilionários

Segundo o site da própria Armazene, a nova lei deve injetar recursos da ordem de R$ 200 bilhões somente no setor de energia.

Outros setores da economia, contudo, também defendiam a aprovação da proposta. Durante a tramitação no Senado, o relator do projeto na Casa, Rogério Carvalho (PT-SE), estimou que a norma poderia alavancar R$ 1 trilhão em investimentos no país.

O PSol, partido de Boulos, foi contrário ao texto final, diante da constatação de que empresas que detiverem contratos de concessão de escolas, presídios e hospitais também possam aproveitar o novo benefício.

O projeto autoriza que empresas que detêm contratos de concessão com o poder público ou participem de Parcerias Público-Privadas (PPPs) possam emitir debêntures (títulos de dívida) ao mercado para financiar seus projetos, e que esses títulos possam ser adquiridos também por fundos de pensão.

Além disso, o texto prevê incentivos tributários para as empresas que financiam projetos de infraestrutura e emitem os títulos. A nova lei ainda precisa de um decreto de regulamentação.

Bruno Ribeiro, originalmente, de S. Paulo para o Metropóles, em 29.01.24

Força da grana move Brasília

Os políticos brasileiros estão passando dos limites, uma forma de perder a sabedoria

Plenário do Congresso Nacional

No fim do século passado, um famoso artigo de Francis Fukuyama previu o fim da História. Errou o alvo, ainda bem, porque, sem as peripécias da História, nossa vida seria tomada pelo tédio e pela melancolia. Apesar disso, há momentos arrastados na História do Brasil, como essa briga do Congresso por verbas do Orçamento, algo tão chato como uma reunião de condomínio.

No entanto, se vencermos as barreiras do tédio, veremos que estamos diante de algo essencial para nossa vida cotidiana e mesmo para o futuro da democracia. Trava-se uma luta pela grana que todos pagam em impostos. Teoricamente, esse dinheiro deveria ser usado de uma forma racional para a prestação de todos os serviços que o Estado nos deve.

Isso é tão importante que, nas revoltas de 2013, segundo muitos observadores, houve protesto porque o Estado não devolvia em serviços eficazes o grande volume de impostos pagos a ele.

O avanço do Congresso sobre o dinheiro a ser gasto tem sido intenso nos últimos anos. Alguns ainda se lembram do orçamento secreto do período Bolsonaro. Era ilegal e acabou caindo por ordem do STF. Mas a força do Congresso é tão grande que ele continua impondo ao governo altos gastos em suas emendas parlamentares. Só no Orçamento deste ano, a coisa vai para mais de R$ 47 bilhões. Isso sem contar os quase R$ 5 bilhões que destinaram ao financiamento das eleições municipais.

Não vai dar certo. O dinheiro já é curto e, se não for usado com o máximo de racionalidade, com visão nacional, as frustrações podem aumentar. Salário mínimo um pouco melhor não basta. Há outros fatores — como escola pública de qualidade, saneamento, hospitais razoáveis — que influenciam a sensação de pobreza ou bem-estar.

Os deputados dizem que não há problemas se destinarem grande parte da grana nacional para suas obras. Afinal, argumentam, ninguém conhece melhor o país do que eles. Acontece que conhecem tão bem, a ponto de saber qual obra dá mais votos que a outra, e de modo geral sempre optarão por bons resultados eleitorais.

Na época do orçamento secreto, houve coisas do arco-da-velha que, provavelmente, continuarão acontecendo. Escolas receberam equipamento de robótica e não tinham sequer conexão com a internet. O episódio mais pitoresco ocorreu em Igarapé Grande, no Maranhão, onde a Polícia Federal fez a Operação Quebra-Ossos. O município tem 12 mil habitantes, mas registrou gastos de raio X com 7.500 dedos quebrados. Inimaginável o que fizeram com as mãos para chegar a esses números. Há registro também, noutros pontos do país, de tratoraços, a compra de tratores por preços superfaturados.

Sinceramente, não escrevo com intenções moralistas. A esta altura da vida, fora da política, trabalho outras categorias, distante do protesto indignado. Prefiro fazer parte de uma discreta versão moderna de um coro grego, como na Antígona. Qualquer procura humana que ignore limites, sugere Sófocles, inevitavelmente trará a desgraça.

Surfando numa conjuntura de tolerância com os erros, os políticos brasileiros estão passando dos limites, uma forma de perder a sabedoria. Com todos os pequenos deslizes recebidos com silêncio pela sociedade, avançam cada vez mais rumo a uma dominação indiscriminada, voltada apenas para o próprio umbigo.

Todos sabemos das grandes necessidades do país. Sabemos também que, mesmo usando racionalmente os recursos, não conseguiremos satisfazê-las, o cobertor é curto.

O uso leviano do dinheiro arrecadado, gastos milionários com partidos políticos, isso é muito perigoso. Em 2013, tudo parecia bem, até que alguma coisa explodiu. Há tempo de corrigir o rumo, embora seja difícil imaginar como o gênio voltará para a lâmpada, como o Congresso se conformará em não ter tanto dinheiro para se perpetuar no poder. Infelizmente, é disso que se trata. Os donos da grana se reelegem, e as coisas nunca mudam por lá.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Publicado originalmente n'O Gobo,em 29.01.24

O poder de uma sociedade unida

35 anos da volta das diretas para presidente e 30 anos do real servem para lembrar que brasileiros são capazes de feitos extraordinários quando se unem em torno de objetivos comuns

Tempo de homens púbicos com espirito público - Brizola, Ulisses, Tancredo, Montoro, FHC (a unica mulher na foto é D.Mora, a mulher do Ulisses).

Em 2024, completam-se 35 anos da retomada das eleições diretas para o cargo de presidente da República no País e 30 anos do Plano Real. Ambos os marcos históricos revelam, inequivocamente, que a sociedade brasileira é capaz de feitos extraordinários quando decide se unir em torno de propósitos comuns; quando é capaz de reconhecer que há questões de interesse nacional que se impõem às diferenças político-ideológicas que possa haver entre os cidadãos – de resto um atributo próprio de qualquer democracia vibrante.

Essa união dos cidadãos para reaver um direito político elementar e recuperar o valor de sua moeda, com o fim da hiperinflação, não surgiu por geração espontânea nem de longe foi obra do acaso. Tampouco derivou de diferenças essenciais entre o povo brasileiro de então – meados das décadas de 1980 e 1990, respectivamente – e o de hoje. O povo brasileiro segue o mesmo, com todas as suas potências e limitações.

O que, então, houve de diferente na mobilização da sociedade para superar um dos últimos resquícios da ditadura militar e para derrotar a inflação que havia décadas corroía a renda dos brasileiros, ampliava desigualdades e, como se não bastasse, desviava a atenção da Nação de outras questões tão ou mais graves? A resposta é simples: líderes políticos à altura dos desafios de seu tempo.

A redemocratização do País e, consequentemente, a retomada do direito de voto direto para a Presidência da República decorreram de um longo processo de negociações políticas e engajamento social que decerto teria outro desfecho não fossem a liderança e o espírito público de Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, André Franco Montoro e Fernando Henrique Cardoso, entre outros, àquela época.

De igual modo, o Brasil dificilmente teria vencido a hiperinflação sem que Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso tivessem a visão digna de estadistas de que aquele problema obstava o enfrentamento de todos os outros. E não só: sem que ambos os presidentes tivessem sido capazes de montar uma equipe altamente qualificada, dadas as credenciais técnicas e republicanas de seus membros, para auxiliá-los naquela faina. Destaca-se, por fim, a capacidade de comunicação de Fernando Henrique para dialogar com todos os cidadãos em termos compreensíveis, a fim de dar-lhes a dimensão do desafio a ser enfrentado e dos sacrifícios que haveriam de ser feitos em nome daquele objetivo coletivo.

As eleições indiretas e a hiperinflação ficaram para trás e, neste ano, a sociedade tem razões de sobra para celebrar ambas as conquistas: há eleições livres e periódicas no País e a inflação já não assombra os brasileiros como há mais de três décadas. Isso não significa, por óbvio, que não haja desafios tão ou mais prementes do que aqueles a demandar, hoje, a atenção coletiva. Desigualdades persistem em níveis obscenos, malgrado avanços pontuais nos últimos anos. A educação pública segue negligenciada, em particular o ensino básico. O medo da violência paralisa quase todos os brasileiros. A lista é longa.

O que parece não haver mais são estadistas imbuídos de um interesse genuíno de, mais uma vez, unir os brasileiros e concertar soluções para cada uma dessas mazelas. Os dois presidentes mais populares da história recente do País, Lula da Silva e Jair Bolsonaro, vivem de insuflar a cizânia entre os brasileiros, fazendo crer, cada um a seu feitio, que adversários políticos são inimigos a serem alijados do debate público. Ao contrário de unir os cidadãos em torno de propósitos comuns, tanto Lula como Bolsonaro reforçam o tribalismo – a união entre os que veem o País e o mundo pelas mesmas lentes – e a exclusão de quem pensa diferente.

Não haverá progresso enquanto novas lideranças não se erguerem inspiradas por espírito público e senso de união; e os cidadãos se deixarem seduzir pelo discurso populista, agrupando-se em identidades políticas estreitas e inflexíveis. Tanto pior no contexto em que crenças particulares, cada vez mais, se sobrepõem à verdade factual.

Editorial \ Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 29.01.24

sábado, 27 de janeiro de 2024

Não foi essa a agenda que venceu a eleição

Lula ainda não entendeu que só ganhou a eleição porque a alternativa era Bolsonaro. Ao tentar impor agenda petista de desbragada intervenção estatal, ele flerta com o desastre

Diante da péssima repercussão da crescente pressão do governo petista para que a Vale aceitasse colocar o ex-ministro Guido Mantega na presidência da empresa, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, correu a dar explicações, dizendo que o presidente Lula da Silva jamais interviria numa empresa de capital aberto. Acredita quem quer.

O fato é que a pressão existiu, desvalorizando as ações da Vale – que, sintomaticamente, voltaram a se valorizar depois da informação de que o governo teria desistido de impor Mantega. E esse caso em particular, sobretudo por tratar de ingerência numa empresa que não pertence ao governo há 27 anos, é um dos principais sintomas de que Lula da Silva está convencido de que conquistou seu terceiro mandato não para “defender a democracia”, como apregoou na campanha, mas para impor a agenda petista de desbragada intervenção estatal.

A ofensiva lulopetista sobre a Vale já seria indecorosa mesmo se fosse uma iniciativa isolada, mas está longe de ser. Tudo parece fazer parte da visão fantasiosa segundo a qual o Brasil elegeu Lula para dissipar o pouco progresso que o País fez para regular o apetite estatal. O governo, por exemplo, decidiu entrar na Justiça para retomar assentos que perdeu no Conselho de Administração da Eletrobras após a privatização, retomar investimentos na malfadada Refinaria Abreu e Lima, resgatar a combalida indústria naval e lançar uma política industrial que só gerou apreensão – em suma, retomar políticas fracassadas e marcadas pela mão pesada do Estado.

Está claro que a única preocupação no horizonte de Lula da Silva são as eleições. De olho nos desdobramentos da disputa municipal, o presidente corre para recriar bandeiras ideológicas que impulsionem os candidatos a prefeito do PT e de partidos aliados. Vê nisso um caminho para ampliar a rede de apoios regionais e fortalecer sua própria candidatura à reeleição em 2026, bem como ampliar a base aliada no Congresso.

Lula da Silva, no entanto, parece ter dificuldade de entender o contexto que o levou à conquista do terceiro mandato. Parece ter esquecido que venceu a disputa eleitoral mais acirrada da história por pouco mais de 2 milhões de votos – uma diferença que não chegou a alcançar 2% dos votos válidos.

Se isso não diminui sua vitória, deveria fazê-lo refletir sobre as razões pelas quais não conseguiu impor uma derrota acachapante a um presidente que atacou a democracia e as instituições ao longo de todo o seu mandato.

Muitos dos votos que Lula obteve no segundo turno não representaram apoio incondicional ao petista e às suas políticas, mas uma rejeição inequívoca à figura intragável de Jair Bolsonaro, que, durante a pandemia de covid-19, boicotou medidas preventivas, postergou a compra de vacinas e debochou da morte de milhares de brasileiros.

Ao convidar o ex-adversário Geraldo Alckmin para compor sua chapa como vice-presidente e obter o endosso de Simone Tebet entre o primeiro e o segundo turnos, o petista pôde assumir o discurso de uma “frente ampla” sem o qual certamente não teria sido eleito.

O tom conciliador que Lula adotou assim que foi eleito começa a dar lugar a um revisionismo histórico que nega os equívocos que permearam a malfadada “Nova Matriz Econômica”. A nova política industrial recentemente apresentada, por exemplo, é um compilado das ideias atrasadas que tantos prejuízos causaram ao longo da trevosa era petista, em especial durante a terrível passagem de Dilma Rousseff pela Presidência. Lá estão as exigências de “conteúdo local” e o velho protecionismo que incentivam o subdesenvolvimento.

A mera cogitação do nome de Guido Mantega para fincar a bandeira do governo na direção da Vale mostra que Lula quer mesmo reescrever a história da passagem do PT pelo poder. Mantega, como poucos, representa o desastre petista. Ao tentar reabilitá-lo, Lula quer na verdade que o País se convença de que esse desastre nunca aconteceu. Vai ser difícil.

Editorial \ Notas & Informações, O Estado de S. Paulo,em 27.01.27

Para os amigos, tudo

Culpados, com sentenças em todas as instâncias, não são declarados inocentes. Apenas se arranja uma formalidade, e todo mundo livre

A Petrobras foi alvo de corrupção — Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Quando a descoberta dos casos de corrupção estava no auge, derrubando políticos e empresários, tive uma boa conversa com Fernando Henrique Cardoso, já ex-presidente, sobre as relações perversas entre os interesses públicos e privados no Brasil. Um grande empresário, que começava a ser apanhado, havia dito a interlocutores que estava em curso a formação de ampla aliança para acabar com aquela sangria. FH estaria nesse movimento.

De jeito nenhum, disse o ex-presidente quando o procurei para checar a história. Lembro que ficou bem incomodado. Falou com várias pessoas para entender e desmentir a versão do empresário — que, aliás, acabou preso e fez delação.

Para além dos fatos, a questão que colocava para o político e sociólogo FH era a seguinte: como o país havia sido tão tolerante com a corrupção? Pensando bem, o que mais chamava a atenção na Lava-Jato e noutras operações não era propriamente a roubalheira revelada, mas o fato de, finalmente, apanharem os corruptos.

Caramba! Pegaram os caras — essa parecia a surpresa.

FH apontou para certa cultura espalhada pela sociedade: em geral, as pessoas acham que, aparecendo a chance, têm o direito de se aproveitar do Estado. Ou melhor, têm o justo privilégio de obter alguma vantagem. Isso vai desde tirar uma casquinha, como estacionar num lugar proibido ou cavar uma mordomia para o Sambódromo, até roubar a Petrobras ou assaltar o Orçamento da União.

O ex-presidente então me contou algo que acontecera naquele dia mesmo. Um familiar pedira a ele para usar o carro oficial, com motorista, à disposição do ex-presidente. Para ir ao aeroporto. FH explicou: o veículo era “institucional”, para uso oficial de uma autoridade. Ofereceu-se para pagar um táxi. Disse que o familiar reclamou da má vontade.

O antropólogo Roberto DaMatta tem tratado desse tema. Cita Oliveira Viana para acentuar a chave da política nacional: “Temos todas as coragens, menos a de negar o pedido de um amigo”.

Adhemar de Barros, que foi governador de São Paulo, sabia bem. Dizia:

— Amigo meu não fica na estrada.

E nomeava todo mundo.

E hoje? Parece que estamos voltando ao normal. O empresário ali do início foi ao Judiciário para anular a delação e cancelar as multas. Está quase conseguindo. As condenações aos corruptos têm sido anuladas. Reparem: os então culpados, com sentenças em todas as instâncias jurídicas, não são declarados inocentes. Apenas se arranja uma formalidade, e todo mundo livre. Os réus ficam satisfeitos. Não lhes ocorre pleitear uma sentença de absolvição. Preferem seguir na linha do “não aconteceu nada”.

Os pedaços do bolo continuam na mesa. Nesta semana, o Tesouro Nacional divulgou estudo mostrando que os tribunais brasileiros gastaram 1,6% do PIB em 2021, algo como R$ 160 bilhões. São os mais caros entre 53 países analisados. Do total, nada menos que 80% (perto de R$ 130 bilhões) correspondem a remuneração de juízes e servidores. E onde estão os melhores salários? No Judiciário — onde os próprios interessados inventaram truques para ultrapassar o teto salarial de R$ 41 mil por mês, que já não é pouca coisa.

Segundo dados do IBGE, a renda média real do trabalhador brasileiro chegou a R$ 3.034 no final do ano passado. Em alta. Mas ganhar 13 vezes mais que a média nacional não parece suficiente. São frequentes as remunerações que ultrapassam de longe os R$ 41 mil, tudo no rigor da lei, interpretada pelos próprios juízes. Se os juízes consideram normal que eles próprios fixem seus salários, e fazem isso generosamente, onde reclamar? É como se um juiz atendesse ao pedido do outro, seu amigo.

A gente até entende que as pessoas achem melhor buscar suas próprias vantagens. Se os de cima podem, por que não os de baixo? Como dizia Stanislaw Ponte Preta, nos anos 1960: “Restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos”.

O problema é que não tem para todo mundo. Se você não tem amigos no governo, cai no rigor da lei. É por isso que se vê essa onda de nomeações quando um partido ou um grupo chegam ao poder. Melhor aproveitar. O que queriam, que nomeassem os inimigos?

Carlos Alberto Sardenberg, oo autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 27.01.24


sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Tribunais no Brasil têm custo acima da média global e consomem 1,6% do PIB

Relatório do Tesouro Nacional compara a despesa no País com a de outras 53 nações; gasto brasileiro com o sistema de Justiça é muito superior à média dos países analisados


É assim que (não) funciona. O Direito amarrado entre a arrogância da preguiça intelectual, quase sempre na falta de vocação e de espirito público em grande parte dos juízes e a Justiça enredada na má vontade serventuária dos balcões e totalmente dominada pela burocracia processual.

O Poder Judiciário brasileiro concentra parte da elite do funcionalismo público, que recebe salários próximos do teto constitucional pago a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), além de diversos penduricalhos. Essas benesses são os principais fatores relacionados à despesa bilionária do Brasil com os tribunais de Justiça, que consumiram, em 2022, 1,6% do Produto Interno Bruto (PIB), de acordo com levantamento produzido pela Secretaria do Tesouro Nacional e divulgado ontem.

Os estudos realizados pela equipe econômica do governo federal mostram que o Brasil gasta com o Poder Judiciário um porcentual correspondente a quatro vezes a média de 53 países analisados, entre economias emergentes e avançadas. A média internacional de gasto proporcional ao PIB foi de 0,37% em 2021.

Os números registrados no Brasil destoam mesmo quando comparados com os de outras economias emergentes. Os países em desenvolvimento gastaram, em média, 0,5% do PIB com os tribunais de Justiça em 2021, enquanto as economias avançadas desembolsaram, no mesmo ano, cerca de 0,3% de toda a riqueza produzida com a manutenção do sistema judiciário.

Uma das poucas exceções de despesas elevadas com o Judiciário, mas mesmo assim atrás do Brasil, é a Costa Rica. O país localizado na América Central gastou 1,54% do seu PIB em 2021 com a manutenção de tribunais.

‘CAPTURA’. De acordo com o relatório produzido pelo Tesouro, a maior parte do gasto discrepante do Brasil com os tribunais está relacionada ao pagamento de salários e contribuições sociais efetivas – ou seja, despesas obrigatórias. Essas obrigações orçamentárias custaram R$ 109 bilhões aos cofres públicos em 2022. Naquele mesmo ano, o gasto total com o Judiciário foi de R$ 159 bilhões, dos quais apenas R$ 2,9 bilhões foram destinados a investimentos.

“Parece ter uma captura do Orçamento por parte dessa elite do sistema de Justiça que tem ganhos muitos superiores comparados com outros países e também com a média do (trabalhador) brasileiro”, avaliou Juliana Sakai, que é diretora executiva da Transparência Brasil.

“O que a gente tem ao final das contas é um Judiciário muito elitizado que está recebendo muito às custas do contribuinte e que deveria, no mínimo, entregar o suficiente. Acabamos encontrando uma série de questionamentos a respeito do accountability (responsabilização) e da prestação de contas com a sociedade em relação a esses valores”, completou Sakai.

DRIBLES. Em dezembro do ano passado, a Transparência Brasil apresentou um estudo que analisou as manobras do Poder Judiciário e do Ministério Público para criar benefícios que aumentam em até um terço os salários de juízes e procuradores. A diretora executiva aponta que os próprios tribunais e unidades do MP criam mecanismo internos, sem a chancela do Poder Legislativo, para aumentar os ganhos de seus membros.

O relatório concluiu que as instituições que integram o sistema de Justiça “promovem dribles no teto constitucional, comprometendo a racionalidade nos gastos públicos e gerando disparidades gritantes com relação a outras categorias do funcionalismo”.

Em dezembro do ano passado, o ministro do STF Dias Toffoli cassou um acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU) que havia suspendido um pagamento de valor bilionário em penduricalhos a juízes federais. Em abril do mesmo ano, o Estadão revelou que o corregedor nacional de Justiça, Luís Felipe Salomão, autorizou o pagamento retroativo do benefício extinto em 2006, cujo desembolso custaria R$ 1 bilhão aos cofres públicos.

Conforme o relatório do Tesouro Nacional, os demais gastos do Brasil na área de segurança e ordem pública seguem a média internacional.

O estudo enquadrou as despesas do Brasil com a Justiça dentro da categoria de ordem pública e segurança, que também reuniu dados dos recursos destinado aos serviços de polícia, proteção de incêndios, estabelecimentos prisionais, pesquisa e desenvolvimento, dentre outros.

O levantamento indica um gasto de 3% do PIB com segurança e ordem pública, porcentual superior em relação à média do grupo de economias avançadas (1,6% do PIB), como França, Alemanha, Itália e Japão. E superior até mesmo em relação a outros países da América Latina (2,7% do PIB), como Costa Rica e Guatemala. A média internacional é de 1,9% do produto interno bruto dos países analisados.

O Brasil segue a tendência do gasto mundial nas áreas definidas pelo Tesouro como ordem e segurança pública. A única exceção é Poder Judiciário, que puxa pra cima o resultado das despesas nessa categoria.

O relatório reuniu dados do IBGE, do Orçamento, da Secretaria do Tesouro, do FMI e da OCDE

SERVIÇOS POLICIAIS. O gasto com os serviços policiais, por exemplo, é 0,1 ponto porcentual menor do que nos países emergente e apenas 0,1 ponto maior do que a média internacional. Já em relação aos estabelecimentos prisionais, o Brasil segue todos os parâmetros globais de gasto de 0,2% nessa área.

O Tesouro reuniu dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e da própria Secretaria do Tesouro. Para fazer as comparações com as realidades de outros países, as fontes foram o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento (OCDE). •

Weslley Galzo, o autor, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.01.24

O fator humanista das emissoras públicas

A democracia depende da existência de uma população educada, culta e questionadora, assim como a pregação totalitária depende de massas ignorantes, raivosas e obedientes

Desde o final de semana, protestos eclodiram em dúzias de cidades da Alemanha. Nas ruas de Berlim, Munique, Hamburgo, Dresden, Colônia e outros centros urbanos, centenas de milhares de manifestantes marcharam juntos. O objetivo foi um só: repudiar os planos da extrema direita de expulsar do país milhões de imigrantes, mesmo aqueles que já tenham cidadania.

A conspiração de xenofobia era mantida em segredo, mas foi revelada por uma reportagem investigativa do Correctiv, um site jornalístico independente, apartidário e sem fins lucrativos. Logo após veiculação da notícia, as passeatas vieram. Foram a primeira reação, em tempo devido e em bom volume, e foram bem recebidas pela opinião pública internacional.

Mas, como sabemos, passeatas não bastarão para barrar a intolerância e o ódio que grassam na Europa. No ano passado, extremistas de direita ganharam posições mais altas na Suécia e na Holanda. Agora, de modo perturbador, surge esse fato novo na Alemanha. O que mais vem por aí? Será que estamos à beira de um revival da distopia da morte, na terra que é o berço e o túmulo do nazismo?

Não, passeatas não bastam e todas as preocupações procedem. Conforme noticiou o Estadão, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que tem integrantes diretamente envolvidos nos planos de xenofobia, coopta mais adeptos a cada dia. Fundado em 2013 com um discurso de oposição à União Europeia, o AfD logo se firmou como referência de ideários reacionários, encantando os saudosistas enrustidos de Hitler. Já nas eleições federais de 2021, obteve 10,3% dos votos. Pouco depois, em 2023, despontou nas pesquisas com 23% das preferências do eleitorado. O quadro faz soar o alarme, sobretudo quando se leva em conta que as bandeiras contra os estrangeiros e contra a União Europeia são apenas a ponta do iceberg. O mal maior corre por baixo, e está correndo solto.

E agora? O campo democrático, alicerçado na cultura dos direitos humanos, será capaz de resistir? Com todas as cautelas de praxe, temos motivos para acreditar que sim. No caso alemão, diferentemente do que se viu na Argentina e do que começa a se desenhar nos Estados Unidos, a confiança nas forças democráticas se justifica. As razões são pelo menos três.

Em primeiro lugar, o Estado alemão soube institucionalizar de modo eficiente – e juridicamente eficaz – a proteção das liberdades e da dignidade humana, proibindo a propaganda abertamente nazista. Essa vedação nada tem de limitadora, como pode parecer aos desavisados. Trata-se, antes, do contrário: o veto ao culto do nazismo – que se comprovou historicamente (e traumaticamente) a antítese da liberdade – não diminui, mas amplia a diversidade e a pluralidade no debate público.

Em segundo lugar, o regramento para combater a desinformação pelas mídias digitais deu bons resultados na Alemanha. A legislação limita e inibe a difusão das mentiras deslavadas que, em outros países, têm sido a principal arma do neofascismo e do neonazismo. Pelo menos na Alemanha, as fraudes informativas prosperam menos.

Há, por fim, a terceira razão, que quase não tem sido comentada. A democracia alemã conta com um dos melhores sistemas de comunicação pública do mundo. No Brasil, nós conhecemos mais a Deutsche Welle, mas essa é apenas a face internacional de um modelo inteligente e original, que se firmou como um fator de sustentação da qualidade das discussões e das decisões coletivas de interesse público naquele país. Os telespectadores e os ouvintes alemães, na verdade, não seguem a Deutsche Welle, que é feita para o mercado externo – o que eles acompanham internamente são duas outras grandes redes de emissoras públicas: a ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen), que cuida da programação e dos telejornais nacionais, e a ARD (Arbeitsgemeinschaft der öffentlich-rechtlichen Rundfunkanstalten der Bundesrepublik Deutschland), dedicada aos conteúdos regionais.

As duas organizações compõem um complexo cujo orçamento é da ordem dos dez bilhões de euros por ano. Ambas são bem-sucedidas. Os noticiários da ZDF e da ARD figuram entre os mais vistos e os mais respeitados do país, com uma credibilidade indiscutível. A exemplo de outras instituições de comunicação pública no mundo, como a BBC, do Reino Unido, a ZDF e a ARD não são governistas. Nenhuma das duas é comandada ou teleguiada por autoridades do Estado. Em vez disso, ambas observam os cânones da independência editorial, o que faz delas veículos confiáveis e valorizados aos olhos, aos ouvidos e ao juízo livre de cidadãs e cidadãos.

Conclusão: a sociedade alemã tem mais antídotos contra o fanatismo, pois tem mais acesso à informação desinteressada (que não quer instrumentalizar a vontade de ninguém) e, consequentemente, tem mais acesso ao conhecimento crítico. A democracia depende da existência de uma população educada, culta e questionadora, assim como a pregação totalitária depende de massas ignorantes, raivosas e obedientes. Onde existem emissoras públicas de qualidade, o populismo autoritário e o totalitarismo são menos prováveis. •

Eugênio Bucci, o autor deste artigo é jornalista e professor na USP. Publicadooriginalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.01.24.

O Brasil na era das ferrovias?

O esforço do governo em buscar receitas novas para financiar o desenvolvimento do setor está alinhado com a agenda mundial.

Vem sendo anunciado um plano para ampliar a malha ferroviária no Brasil, mediante a retomada de investimentos públicos em parcerias públicoprivadas no setor. Ao sinalizar uma estratégia de desenvolvimento – sem a falsa narrativa de que o capital privado pode financiar sozinho os gargalos no setor, o Ministério dos Transportes indica que o Brasil se insere na agenda global de investimentos em infraestrutura ferroviária.

Como autor do projeto de lei que se converteu no Marco Legal das Ferrovias – Lei n.º 14.273, de 2021 –, vejo com bons olhos a proposta do governo. Fui um crítico do teto de gastos e um dos parlamentares a propor um novo arcabouço fiscal, para preencher lacunas que hoje ainda estão na Lei de Responsabilidade Fiscal. Na vigência do teto, prevaleceu no País a ideologia de que o setor privado pode resolver sozinho todos os gargalos da infraestrutura de grande vulto, em especial ferrovias. Virou pecado falar em um orçamento de capital para promover o setor.

O teto de gastos, que vigorou até 2022, dilacerou os investimentos públicos em ferrovias, levando-os a patamares inferiores a R$ 400 milhões, quando o governo federal investira mais de R$ 3 bilhões por ano até 2016. A correlação com os investimentos privados é clara: os investimentos privados no setor se reduziram de R$ 8,3 bilhões por ano, na média do período de 2010 a 2016, para R$ 5,9 bilhões entre 2019 e 2022.

Mas os efeitos do teto podem ter sido ainda piores, devido à negligência do gestor na arrecadação de receitas.

Afinal, para que arrecadar mais se há um limite de gastos impedindo o uso de recursos orçamentários? No final do dia, um real adicional que ingressasse na conta única do Tesouro era automaticamente contingenciado pelo Ministério da Fazenda.

Importa aqui ressaltar que o investimento em infraestrutura no País – setores público e privado, juntos – corresponde a 1,85% do Produto Interno Bruto (PIB) ao ano, na média anual, no período entre 2008 e 2020. Esse valor é muito inferior ao necessário, estimado entre 4% e 5%. Ou seja, a lacuna de investimentos corresponde a no mínimo 2% do PIB. Considerando o investimento público, o Brasil é um dos países que menos investe na América Latina. Entre 2008 e 2019, cerca de 0,7% do PIB ao ano, na média, enquanto outros países chegaram a investir mais de 3% do PIB.

O atual Ministério dos Transportes vem promovendo uma revisão de receitas e despesas decorrentes das políticas que conviveram com o teto de gastos, baseando-se na prática internacional conhecida como spending reviews. Como entusiasta do tema, por ter sido inclusive o autor do projeto aprovado no Senado Federal para instituir no País essa boa prática internacional (PLS n.º 428, de 2017), percebo que as novas fontes de recursos que financiarão os investimentos públicos em ferrovias serão provenientes de descumprimentos contratuais e revisões do modelo de precificação de ativos. O próprio Tribunal de Contas da União (TCU), e mesmo empresas do setor, analisam o tema com sinalizações de que o processo das prorrogações antecipadas poderia ter sido mais vantajoso para o setor ferroviário.

Vale registrar o empenho de vários países em investir recursos do orçamento público em ferrovias. Os Estados Unidos anunciaram um orçamento de US$ 66 bilhões para investimentos no setor. A Índia alocou em seu orçamento algo em torno de US$ 30 bilhões, para fomentar a aquisição de locomotivas a hidrogênio e equipamentos elétricos.

O esforço do governo brasileiro em buscar receitas novas para financiar o desenvolvimento do setor ferroviário está alinhado com a agenda mundial. Organismos internacionais, como o Banco Mundial, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), apontam para a importância dos investimentos públicos em infraestrutura sustentável, como é o caso das ferrovias. Trata-se, portanto, de uma agenda internacional.

Acredito que a nova estrutura de investimentos públicos em ferrovias deva compreender um sistema de governança baseado em bons projetos, considerando as dimensões de uma infraestrutura sustentável: econômica, ambiental e social. E com políticas públicas bem desenhadas, capazes de atrair o investimento privado, o Brasil pode conferir a necessária segurança jurídica para destravar corredores ferroviários estruturantes.

Sabe-se que o País precisa ampliar a participação das ferrovias na matriz de transporte. No segmento de transporte de passageiros, não faltam oportunidades para o desenvolvimento de políticas públicas específicas, bem como para a estruturação de projetos. E com um transporte de carga pujante, com corredores estruturantes alimentados por shortlines, nosso país poderá transportar minérios, grãos e carga geral, de forma eficiente e sustentável.

Fico na torcida para que o plano nacional ferroviário saia do papel. Pode ser um importante passo para que o Brasil ingresse na era das ferrovias, com a agenda voltada para uma infraestrutura sustentável e eficiente. •



José Serra, o autor deste artigo, é economista. Foi Governador de S. Paulo e candidato a Presidente da Republica. Pubicado originalmene n'O Estado de S. Paulo, em 25.01.23

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

A esquerda precisa deixar de ser chata se quiser se manter competitiva

A meta deles é transformar simpatizantes em neutros, neutros em adversários e adversários em inimigos

Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes - Ariel Severino

A minha última proposta de mudança de atitude para uma esquerda que quiser se manter competitiva é bem prosaica: deixem de ser chatos, ninguém gosta de chatos, o chato estraga qualquer causa.

Basta um pouco de bom senso. Suponhamos que você seja proprietário, sei lá, da Concessionária Brasil. Quem você contrataria para vender carros? Alguém simpático, capaz de identificar desejos que o comprador nem sabia ter e convertê-los em vendas, ou um chato? Na política, uma atividade que requer, por natureza, persuasão, convencimento e sedução, a mesma lógica se aplica.

Na ilustração em preto e branco sobre um fundo chapado amarelo, mostra uma cabeça feita de frangalhos, como tiras de papel, que tenta se desvencilhar de uma mão que a sujeita, pressionando com força com o dedo indicador contra o piso. A cabeça está pressa numa extremidade e as facões se deformam mostrando a violência do ato. A sombra da cabeça de tiras de papel sobre o fundo amarelo acrescenta dramatismo.

O chato é insuportável, molesto, inconveniente. Quer estragar uma pauta? Tornar socialmente antipática a causa mais nobre? Quer aumentar o número dos seus adversários? Deixe por conta dos chatos e tudo isso estará garantido.

O chato despreza a simpatia como estratégia, o negócio dele é incomodar. A meta é transformar simpatizantes em neutros, neutros em adversários e adversários em inimigos.

Para não deixar dúvida, "chato" aqui não tem o sentido de maçante, aborrecido, enfadonho, uma acepção possível, mas de antipático, desagradável. "Monótono" pode até ser um predicado positivo nesses tempos de coisas bizarras, mas o chato a que me refiro acumula os defeitos de ser ativo, incômodo e repelente.

Foi Jô Soares quem melhor o descreveu: "Um chato nunca perde o seu tempo. Perde sempre o dos outros". Foi ele quem lapidou a lei mor do chato: "Todo chato cutuca". Cutuca, apalpa e acha sempre uma costura frouxa na sua camisa. Tudo isso a cinco centímetros da sua boca.

Toda área tem seu chato, mas o paradigma é o mesmo. Na religião, há aqueles sujeitos que batem à porta da sua casa às sete da manhã do domingo para indagar: "Olá, você teria um minuto para ouvir a palavra?". Cogita-se um "chaticídio", claro. O chato não tem senso, conveniência ou limites, não aceita ser ignorado.

Há várias categorias de chatos na esquerda e, aparentemente, estão se multiplicando nesses tempos em que os ativistas nem sequer tiveram um treinamento "presencial". Formaram-se sozinhos, nas quebradas digitais. Tivessem passado pela convivência física, teriam aprendido a regra de ouro: o que você não teria coragem de dizer a alguém a meio metro distância tampouco deveria ser dito online.

O chato mais comum na esquerda é o "problematizador". Ele tem ideias curtas, mas opiniões compridas, que simplesmente precisa apresentar. Não importa se alguém se interessa por elas ou se a audiência está ali por outra pessoa. Antigamente, o tipo mais clássico de problematizador de esquerda era o "louco de palestra", que já frequentou muita crônica —e muita conferência.

Eu o acho mais chato que maluco e tenho certeza que um chato aparecerá aqui para denunciar que "saúde mental é coisa séria e que essa acepção de maluco é politicamente incorreta". Como a "chatofobia" ainda não foi criminalizada, tentarei por esse caminho.

"Gostaria de problematizar essa sua colocação" é uma forma de cutucar ou achar uma linha solta ou uma migalha na camisa do interlocutor, no caso, do palestrante, colunista ou autor do post. "Acho que você está certo, mas senti um certo tom de misoginia" é frase típica do chato da hipercorreção política. "O que você está dizendo dos yanomamis procede, mas acho desrespeitoso não mencionar os ataques americanos aos houthis do Iêmen" é próprio do chato sommelier de indignações morais.

"Seu texto até estava indo bem, mas ‘la donna è mobile’ é de uma ária da ‘Traviata’ e não do ‘Rigoletto’" é do chato sabe-tudo, que em geral corrige errado. "É evidente que você não sabe do que está falando, sugiro que em vez de Habermas leia Bohumila", diz o chato que passa bibliografia.

Mas o "Chato’s Award" de 2023 certamente vai para o beato da pureza política. Ele é o olheiro, "que a vida do vizinho e da vizinha pesquisa, escuta, espreita esquadrinha, para o levar à praça e ao terreiro", a que se refere Gregório de Matos. O beato da pureza política se encarrega de fazer listas dos delitos de opinião que devem ser atribuídos a fulano e a sicrano para desmascará-los perpetuamente.

"Sabem essas jornalistas cujos textos vocês estão compartilhando? Uma apoiou a Lava Jato a outra chegou a dizer que Sergio Moro era inteligente. Em 2014." O "desmascarado" naturalmente se resume a isso, à "falha" que o chato detectou e precisa repetidamente mostrar. O chato não faz novos amigos nem quer que ninguém os faça; ele precisa de inimigos, quanto mais, melhor.

Wilson Gomes, o autor deste artigo, é professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada". Pubicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 24.01.24

Lênin: por que cérebro de líder comunista foi fatiado em mais de 30 mil pedaços

Após a morte do fundador da extinta União Soviética, Vladimir Ilyich Ulyanov, mais conhecido como Lênin, em janeiro de 1924, alguns dos médicos que cuidaram dele propuseram a remoção de seu cérebro para estudá-lo.

A múmia de Lenin no Mausoléu de Moscou (Crédito: Getty Images)

Há cem anos, o objetivo desses cientistas e de políticos aliados era descobrir onde residia o que consideravam a "genialidade" de Lênin.

A ideia foi aprovada pela hierarquia soviética, que criou uma instituição com a finalidade de realizar tais pesquisas.

Um século depois, onde está o cérebro de Lenin e que resultados as análises mostraram? Para responder a essas e outras perguntas, a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, conversou com historiadores e neurocirurgiões que pesquisaram o caso.

O médico alemão Oskar Vogt, um dos maiores especialistas no estudo do cérebro no início do século 20, foi chamado pelos soviéticos para analisar o cérebro de Lênin (Crédito: Getty Images)

Um convidado incômodo

"A história do cérebro de Lênin começa com uma proposta ao Politburo (comitê central do partido comunista da extinta União Soviética) do ministro da Saúde, Nikolai Semashko, e do assistente pessoal de Stalin, Ivan Tovstukha, de 'exportar' o órgão para Berlim (Alemanha) para estudo", disse o historiador americano Paul Roderick Gregory.

O especialista, que escreveu o livro Lenin's Brain and Other Tales from the Secret Soviet (em tradução livre, "O cérebro de Lenin e outras histórias dos arquivos secretos soviéticos") especificou que, no momento da morte do líder, a Rússia carecia de neurocientistas.

E, por isso, as autoridades soviéticas convidaram o médico alemão Oskar Vogt (1870-1959) para analisar o órgão, que foi colocado em formaldeído (conhecido como formol) após ter sido retirado durante a autópsia.

Vogt era um renomado neurologista que fundou e dirigiu o Instituto Imperador William para Pesquisa do Cérebro (hoje Sociedade Max Planck, uma prestigiada organização que reúne vários centros científicos alemães).

O cérebro de Lênin foi cortado em mais de 30.000 partes e estas foram colocadas em placas de vidro e algumas foram banhadas em corantes para estudo. Na década de 90, as amostras foram expostas à imprensa (Crédito: Getty Images)

"A Alemanha tinha o melhor nível científico da época e o maior número de prêmios Nobel", explica José Ramón Alonso, professor de Neurobiologia da Universidade de Salamanca (Espanha), à BBC News Mundo.

"E embora Vogt tivesse alguma relutância em aceitar a tarefa, o governo alemão o instou a fazer isso. Naquela altura, a Alemanha estava interessada em manter boas relações com a URSS, para ultrapassar através daquele país as sanções que a impediam de desenvolver armamentos após a Primeira Guerra Mundial", acrescenta o especialista, que estudou o assunto para seu livro Historia del Cerebro ("História do Cérebro").

Contudo, o plano de levar o cérebro de Lênin para Berlim foi abortado.

"Stalin não gostou da ideia de um estrangeiro estar envolvido nesse processo, porque não conseguiria controlá-lo", diz Gregory, que é bolsista do Instituto Hoover da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.

Retrato de Stalin discursando no sexto congresso do Partido Comunista Soviético (Getty Images)

'Como um queijo suíço'

Apesar das objeções de setores da liderança soviética, Vogt acabou sendo convidado a participar da pesquisa e recebeu uma das 30.953 partes em que foram divididos o cérebro do falecido líder, que ele poderia levar para seu laboratório na Alemanha para estudá-lo.

Em troca, Moscou pediu ao especialista alemão que treinasse médicos russos na área de neurociências e dirigisse a criação do Instituto Russo do Cérebro (hoje Academia Russa de Ciências Médicas).

No entanto, anos mais tarde, confrontos que Vogt teve com o regime nazista não só lhe custaram as suas posições na Alemanha, mas também ofereceram a Stalin a desculpa para dispensá-lo, acrescentou o historiador americano.

As dúvidas soviéticas sobre a intervenção estrangeira pareciam justificadas. Na década de 1930, do Terceiro Reich, alegaram que Lênin estava doente e que seu cérebro parecia "queijo suíço", lembra Alonso.

E é por isso que, quase no final da Segunda Guerra Mundial, Moscou lançou uma operação secreta para resgatar a amostra que estava nas mãos de Vogt, disseram os pesquisadores belgas L. van Bogaert e A. Dewulf.

"Os soviéticos temiam que a amostra que Vogt tinha caísse nas mãos dos americanos e pudessem usá-la para desacreditar Lênin, dizendo que ele sofria de sífilis ou que não era um gênio", afirma o professor espanhol.

Caricatura de Lênin retratada como uma aranha destruindo a Rússia (Getty Images)

Os nazistas retrataram Lênin como um doente e um criminoso e alegaram que seu cérebro se assemelhava a um 'queijo suíço' porque estava cheio de buracos

Tentativa fracassada de agradar

No final da década de 1920, Vogt apresentou os resultados preliminares de seus estudos em uma série de palestras na Europa. E ali afirmou que "os neurônios piramidais da camada III do córtex cerebral de Lênin eram excepcionalmente grandes e numerosos".

Para o neurologista alemão, isso explicava a "mente ágil" do falecido líder e a sua capacidade de "relacionar ideias muito rapidamente, bem como o seu sentido de realidade", razão pela qual chamou Lênin de "atleta do pensamento associativo".

Embora à primeira vista o especialista tenha dado a Moscou o que procurava, alguns líderes soviéticos não ficaram satisfeitos. A razão? Outros especialistas da época sustentavam que grandes e numerosos neurônios piramidais também eram característicos de atraso mental, alertou um líder comunista em um relatório.

"As descobertas de Vogt foram amplamente criticadas porque se acredita que ele disse aos russos o que eles queriam ouvir: que o cérebro de Lenin era único e excepcional", diz Alonso.

"As autoridades soviéticas sustentavam que Lênin era o maior dos gênios e esperavam que o seu cérebro tivesse características especiais e que houvesse algo distinguível que lhes permitisse dizer que não era como o de qualquer outro ser humano", acrescenta o neurobiólogo espanhol.

Vogt acreditava que havia ligações diretas entre a estrutura (tamanho e forma) do cérebro e a inteligência das pessoas.

Os líderes soviéticos sustentaram que Lênin era um gênio e procuraram provar isso cientificamente, estudando o seu cérebro (Getty Images)

Sob sete chaves

Uma pessoa que defendeu o uso do terror para controlar as massas ou que viveu às custas da mãe até ela morrer pode ser considerada intelectualmente superior?

Os biógrafos soviéticos ignoraram isso e destacaram que a grande memória de Lênin lhe permitiu dominar sete línguas e ser capaz de escrever um artigo para um jornal em apenas uma hora.

As investigações para encontrar a raiz de "gênio" do líder bolchevique duraram mais de uma década, pois foi necessário começar a coletar outros cérebros para que os especialistas pudessem compará-los com o do falecido revolucionário, explicam os estudiosos sobre o tema.

Essa é a razão pela qual nas prateleiras da Academia de Ciências Médicas de Moscou hoje não apenas o cérebro de Lênin é mantido trancado a sete chaves, mas também o do fisiologista Ivan Pavlov, o do engenheiro aeronáutico Konstantin Tsiolkovski e o do escritor Maxim Gorky.

No entanto, os pedaços de cérebro do fundador da URSS foram comparados não apenas com os de compatriotas brilhantes, mas também com os de dez cidadãos comuns. Os resultados não foram divulgados e apenas apresentados às mais altas autoridades.

"No Instituto Hoover há uma cópia do relatório que o Politburo recebeu, que tem 63 páginas. O relatório está em mau estado e contém muita linguagem científica e coisas sem sentido, mas é claro que conclui que Lênin foi um gênio até ao fim dos seus dias. Isso apesar de ele ter sofrido quatro derrames cerebrais e ter ficado incapacitado desde o segundo deles", diz Gregory.

"Foi cômico ler esse documento, porque parecia que (seus autores) estavam inventando coisas para chegar à conclusão que queriam", acrescenta.

Desde 1922, Lênin sofreu pelo menos quatro derrames, o que o impediu de falar, escrever e andar, mas a liderança soviética da época insistiu que a sua mente funcionava como uma máquina (Getty Images)

Embora pesasse apenas em 1,3kg, em comparação com mais de 2 para alguns escritores famosos da época, os investigadores soviéticos asseguraram que o cérebro de Lênin apresentava uma "complexidade de relevos e peculiaridades na configuração dos sulcos e circunvoluções, especialmente no seu lobo frontal" dignos de alguém com "altas habilidades intelectuais".

Alonso rejeita as conclusões de Vogt e daqueles que o sucederam.

"Ninguém acredita que o tamanho ou a forma do cérebro tenha alguma coisa a ver com a inteligência (...) Há pessoas com cérebros grandes que deixaram grandes obras artísticas ou científicas, mas também há pessoas com cérebros pequenos que o fizeram. Não encontramos um padrão que nos permita dizer onde está a genialidade", explica.

E Alonso lembra que "hoje continuamos discutindo o que chamamos de inteligência".

"(O pintor Vincent) Van Gogh é considerado um gênio artístico, mas era uma pessoa com muitos problemas. O mesmo aconteceu com (o físico Isaac) Newton, que é considerado o melhor cientista da história, mas não tinha amigos e vivia quase na miséria, apesar de ter dinheiro", conclui o especialista.

Na Academia Russa de Ciências Médicas há um modelo em cera do cérebro de Lênin, que permite vê-lo como era no momento de sua morte (Getty Images)

Uma arma política

Após a dissolução da URSS em 1991, alguns cientistas que guardavam ou examinavam o cérebro de Lênin começaram a oferecer outras versões além da oficial.

"Certamente tinha um grande lobo frontal e um grande número de neurônios piramidais. Agora, o que isso significa? Só podemos especular (...) que o cérebro não tem nada de especial", admitiu Oleg Adrianov em 1993, então diretor do centro que protege os cérebros do líder bolchevique.

"Não creio que ele fosse um gênio", concluiu o cientista russo em declarações à imprensa britânica.

O estudo do cérebro de Lênin também foi uma das armas com as quais Stalin procurou se estabelecer como herdeiro do fundador da URSS.

"Stalin não só queria provar a genialidade de Lênin, mas também se tornar o intérprete desse gênio, a fim de fortalecer a sua posição na luta pelo poder que começou assim que Lênin morreu", acrescenta Gregory.

A imortalidade de Lênin fazia parte da estratégia de Stalin para obter o controle da nova URSS (Getty Images)

Mas o cérebro de Lênin não foi a única coisa que Stalin usou na sua guerra pelo poder. Ele ignorou os desejos do seu antecessor e da sua família e decidiu preservar o corpo de Lenine e exibi-lo publicamente como o de um santo no mausoléu construído sob os muros do Kremlin, onde permanece até hoje.

No entanto, especialistas como o historiador cubano Armando Chaguaceda acreditam que o próprio Lênin deu origem em vida ao seu posterior processo de endeusamento.

"Lênin foi o criador do Estado totalitário soviético, que tem a propaganda entre os seus pilares", diz.

"Uma coisa é o que dizem os dirigentes e outra coisa é o que acontece na prática, para todos estes líderes: Lênin, Fidel Castro ou Mao Tse Tsung disseram que não queriam um culto à personalidade à sua volta, mas isso era retórica, porque em vida eles organizaram ou patrocinaram um culto à sua figura e isso continuou após suas mortes", afirma.

Juan Francisco Alonso, o autor deste artigo, é jornalista. Pubicado originamente pela BBC News Mundo em 22.01.23

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Redescobrir a leitura é preciso

A nova geração tem mais acesso à informação que qualquer outra antes dela. Mas isso não se reflete em um ganho cultural

A dependência das ferramentas da era digital é um fato. Os adolescentes não desgrudam do celular. Passam horas navegando na web ou absortos nos videogames. Mas não só eles. Todos, jovens e menos jovens, estamos reféns do mundo digital.

Para o norte-americano Nicholas Carr, formado em Harvard e autor de livros de tecnologia e administração, a dependência no uso da internet está empobrecendo nossa cultura, matando talentos e causando distúrbios psíquicos. Ele não fala do uso da internet, mas da compulsividade virtual.

Segundo Carr, o uso exagerado da internet está reduzindo nossa capacidade de pensar com independência e profundidade. “Você fica pulando de um site para o outro. Recebe várias mensagens ao mesmo tempo. Isso desenvolve um novo tipo de intelecto, mais adaptado a lidar com as múltiplas funções simultâneas, mas está perdendo a capacidade de se concentrar, ler atentamente ou pensar com profundidade.”

A nova geração de adolescentes tem mais acesso à informação que qualquer outra antes dela. Mas isso não se reflete em um ganho cultural. De fato, há uma perda considerável de qualidade da mão de obra. Os índices de leitura e de compreensão de texto vêm caindo intensamente. A conclusão é que, apesar do maior acesso às tecnologias, não se vê um ganho expressivo em termos de apreensão de conhecimento.

A internet é uma formidável ferramenta. Mas não deve perder o seu caráter instrumental. O excesso de internet termina em compulsão, um tipo de desvio que já começa a preocupar os especialistas em saúde mental. Usemos a internet, mas tenhamos moderação. Precisamos, todos, redescobrir o prazer e a beleza da leitura.

Estou de férias e dando voltas ao tema desta coluna. Qual será o tema? Bingo! Ocorreu-me compartilhar com você, amigo leitor, algumas obras. Espero, quem sabe, que o estimulem em suas férias de verão. Vamos lá:

O Óbvio Ululante – As Primeiras Confissões (Editora Agir, Rio de Janeiro). Como dizia Nelson Rodrigues, “a arte da leitura é a releitura”. Comentário certeiro. Acabo de reler as memórias de Nelson Rodrigues, suas Confissões, condensadas no magnífico Óbvio Ululante. Trata-se de um dos maiores cronistas que o Brasil já teve. Seu conhecimento da alma humana, com seus picos de grandeza de seus abismos de miséria, fica esculpido num texto insuperável. Nelson foi um criador de tipos antológicos. Como o anônimo cidadão que lhe serviu para criar Palhares, o canalha, o que “atacava as cunhadas nos corredores”. Ou a imortal grã-fina “com nariz de cadáver”. Ou, ainda, o sacerdote que o inspirou a criar o “padre de passeata”. Seu texto, brilhante e saboroso, dissecava a alma humana e radiografava a sociedade. Mas o que mais me impressiona é a atualidade do pensamento rodrigueano. Um livro fascinante.

O Quinto Movimento – Propostas para uma Construção Inacabada (Já Editora, Porto Alegre). Seu autor, Aldo Rebelo, é um estadista. Quatro vezes ministro de Estado, deputado federal em muitas legislaturas, presidiu a Câmara dos Deputados e, como relator, dotado de grande capacidade de convencimento, conseguiu aprovar um Código Florestal irretocável. Trata-se de um depoimento sobre a centralidade da questão nacional que, segundo Rebelo, “é a ideia de que a nação é o eixo organizador da vida social na presente etapa da história da civilização: a convicção segundo a qual o Estado nacional é a organização apta para proteger os valores da dignidade da pessoa humana e a crença na certeza de que viver em um país livre de qualquer submissão a outro país é o mais sagrado dos direitos do homem depois do direito à vida”. Dotado de uma cultura extraordinária e uma incontida paixão pelo Brasil, Aldo Rebelo apresenta propostas que merecem uma reflexão. A coragem e sinceridade do autor é uma lufada de esperança num ambiente tão conturbado e num momento tão crucial da nossa história. Um livro obrigatório para quem quer entender o Brasil.

A Igreja das Revoluções (Editora Quadrante, São Paulo). Esse é o último título da História da Igreja de Cristo, a monumental obra de Daniel-Rops. O autor, membro da Academia Francesa de Letras, estava trabalhando no 11.º, que trataria do Concílio Vaticano II, quando faleceu. A multissecular história da Igreja, intimamente relacionada com a história da civilização, é um banho de cultura e um magnífico prazer intelectual.

O Fio de Ariadne – A Literatura e o Labirinto da Vida (Cultor de Livros, São Paulo). Rafael Ruiz, em seu livro, procura olhar para a literatura como um caminho que leva o ser humano à plena realização, ou seja, é um trajeto que humaniza o ser humano. Nas palavras do autor, o livro funciona como um mapa que nos leva “em busca do humano”. Esse mapa nos guia através de histórias já muito conhecidas, apontando-nos as armadilhas e os tesouros do coração do homem. Ulisses, El Cid e os personagens de O Senhor dos Anéis viajam e regressam conosco, transformados. Frankenstein e os personagens de Dostoievski viajam, mas nunca retornam. E nós?

A literatura é o Waze que nos conduz na aventura da vida.

Boa leitura!

Carlos Alberto Di Franco, o autor dese artigo, é jornalista. Escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 22.01.24.

Lula é um oportunista

Presidente muda discurso ao sabor de seus interesses, o que traz descrédito para a política

O presidente Lula em reunião em Brasília - Gabriela Biló - 12.dez.23/Folhapress) - Folhapress

Lula é um oportunista, no que o termo encerra de positivo e de negativo. Quando viu que enfrentaria uma disputa difícil contra o então presidente Jair Bolsonaro, o petista veio com o discurso da frente ampla para salvar a democracia e convidou o ex-adversário Geraldo Alckmin para compor a chapa, na posição de vice.

Com isso, conseguiu atrair o voto de eleitores que faziam restrições ao PT, mas tinham ainda mais medo de Bolsonaro. Deu certo. Lula venceu por estreita margem.

O panorama agora é outro. O TSE tornou Bolsonaro inelegível. Isso é bom para Lula e o PT. O bolsonarismo sem Bolsonaro fica enfraquecido, mas ainda é forte o suficiente para inibir o surgimento de outras forças oposicionistas. Lula já não necessita do discurso da frente ampla. Isso lhe deu liberdade para tentar reescrever a história, em linhas que podem ajudar seu partido nos pleitos municipais deste ano. Os casos de corrupção no entorno da Petrobras, que o próprio Lula já reconhecera como reais ("Você não pode dizer que não há corrupção, se as pessoas confessaram"), acabam de se tornar uma orquestração dos Estados Unidos com juízes e procuradores brasileiros para prejudicar a empresa petrolífera.

Não foi a única reviravolta conceitual de Lula, que fez questão de subir a rampa do Planalto acompanhado de minorias, mas não se esforçou tanto para encontrar mulheres para pôr no STF ou que agora empresta a Advocacia-Geral da União para fazer coro ao machismo dos militares, que insistem em vetar a incorporação de membros do sexo feminino em unidades de combate.

Fazer política é negociar. Daí que o discurso de políticos é necessariamente menos definitivo do que o de líderes religiosos, por exemplo. O problema é que, quando as mudanças batem de frente contra os fatos ou soam muito oportunistas (agora só no sentido pejorativo), contribuem para o descrédito da própria política, o que é ruim para a democracia.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, ediçao digital, em 23.01.23

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Apetite parlamentar sobre Orçamento precisa de freio

Ideias mirabolantes se avolumam a cada ciclo

O presidente Lula, junto aos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira, durante sua cerimônia de diplomação - Ueslei Marcelino - 12.dez.22/Reuters - REUTERS

Os vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à lei orçamentária deste ano, que devem abrir uma nova frente de disputa com o Congresso Nacional, poderiam ser o pontapé inicial para uma discussão que deveria envolver a sociedade civil para o resgate do equilíbrio na relação entre o Legislativo e o Executivo.

Enquanto a cobertura da imprensa ainda foca no vaivém do embate sobre o veto, o pecado original está na aprovação, em 2015 e em 2019, das emendas orçamentárias impositivas e igualitárias. A partir de então, o Executivo se viu obrigado a empenhar todas as emendas individuais e coletivas de maneira equitativa entre os parlamentares. As mudanças abriram as portas para tentativas cada vez mais ousadas dos congressistas de se apropriar do planejamento e da execução de políticas públicas. A cada ciclo orçamentário, deputados e senadores apresentam novas ideias mirabolantes para ganhar mais poder orçamentário.

Na votação da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) deste ano, a ousadia parlamentar foi ainda maior ao tentar estabelecer um calendário de execução obrigatório das emendas. É meritório discutir um ordenamento ao toma lá dá cá estabelecido na dinâmica do relacionamento entre Executivo e Legislativo.

O governo eleva o volume de liberação das emendas nas negociações para a aprovação de pautas de interesse no Congresso, e não é razoável acreditar que os prefeitos, na ponta, tenham de estar sujeitos a essa incerteza ou ao timing de Brasília.

Contudo, o calendário de execução acaba dando mais poder sobre partes do Orçamento a deputados específicos (como o relator da LDO) e à cúpula do Congresso do que ao presidente da República. Sem contar que, na impossibilidade de o governo definir prioridades na alocação das emendas e com um Orçamento cujo espaço para despesas discricionárias gira em torno de 7% do total, a execução da política pública na ponta fica prejudicada, favorecendo apenas as lideranças locais com acesso aos legisladores de turno.

Emenda parlamentar amplia abismo no acesso a água com abandono e desperdício

Muito se fala de o Congresso impor alguns limites ao ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal e, apesar de os projetos ora apresentados e votados trazerem mais fumaça do que calor, a democracia ganha quando o Legislativo se fortalece. Por exemplo, a literatura em ciência política aponta que os parlamentares da coalizão em geral corrigem e aperfeiçoam proposições de lei do Executivo via emendas.

O Congresso também foi responsável pela adoção de inúmeras políticas públicas importantes. Em 2020, os parlamentares constitucionalizaram o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que financia a educação básica e pública país afora. No mesmo ano, aprovaram o Marco Legal do Saneamento Básico, política pública gestada dentro do Congresso que regulou possíveis investimentos do setor privado visando melhorar o saneamento básico.

Mario Sérgio Lima e Beatriz Rey, os autores deste artigo, são - ele, Analista sênior da consultoria de risco político Medley Advisors; e ela, Doutora em ciência política, é pesquisadora sênior do Núcleo de Estudos sobre o Congresso (Necon), da Uerj, e da Fundação POPVOX (EUA). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 20.01.23