segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Emenda para um verso de pé quebrado

Retomada das obras da Refinaria Abreu e Lima não é resgate de um projeto visionário, como o governo anuncia, e sim uma tentativa de reduzir o prejuízo com o desatino lulopetista

Como uma reprise de um filme ruim, a cerimônia de retomada das obras da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, paralisadas desde 2015, foi marcada por discursos tão grandiloquentes quanto delirantes. Ao ouvir o presidente Lula da Silva cantar as glórias da iniciativa de gastar ainda mais dinheiro numa obra que simboliza a corrupção e a inépcia da era lulopetista, é impossível deixar de lembrar do ufanismo que acompanhou, entre 2005 e 2006, os anúncios de investimentos astronômicos da Petrobras, como a própria refinaria pernambucana e o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), dois sumidouros de recursos públicos que viraram símbolos de corrupção.

Havia dois caminhos para a Refinaria Abreu e Lima, que produz menos da metade do que previa o projeto original. O melhor deles, de longe, seria a venda, que chegou a ser tentada, em meados de 2019. Não apareceram compradores, e a pandemia de covid que veio a seguir enterrou de vez as esperanças de atrair investidores. A outra via era concluí-la, para pelo menos reduzir o prejuízo da empresa depois dos quase R$ 60 bilhões despejados na obra.

O que está ocorrendo agora, portanto, é uma tentativa de emendar um verso de pé quebrado, não o resgate de um projeto visionário, como o governo tenta apregoar. Por essa razão, o governo faria melhor se realizasse a retomada das obras sem fanfarra, com a discrição e a modéstia exigidas daqueles que cometeram um erro grave e são capazes de reconhecê-lo. Mas Lula e o PT, claro, nunca erram. De maneira constrangedora, em vez da discrição escolheram o estardalhaço, num comício em que Lula não só anunciou, como se fosse algo positivo, que o Brasil gastaria ainda mais dinheiro num projeto perdulário que nem deveria existir, como o fez atacando o governo anterior, a Lava Jato e as elites. No mesmo tom, Abreu e Lima foi apresentada como “a refinaria do futuro, da virada” pelo presidente da Petrobras, Jean Paul Prates.

Nem todo o malabarismo retórico do lulopetismo, no entanto, é capaz de esconder o fato de que dezenas de bilhões de dólares foram consumidos em obras que, quando muito, ficaram pela metade, tornando-se um butim para políticos e executivos corruptos. Os testemunhos dos próprios envolvidos no esquema não deixaram dúvidas sobre a farra inescrupulosa que levou a Petrobras ao centro de um dos mais rumorosos casos de corrupção do mundo.

Mas Lula da Silva não se dá por vencido. Insiste na tese de que o escândalo conhecido como “petrolão” fez parte, na verdade, de “uma mancomunação entre alguns juízes e procuradores (da Lava Jato) subordinados ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que nunca aceitaram o Brasil ter uma empresa como a Petrobras”. Sem pudor, voltou a usar a tese de que seu governo e a Petrobras foram vítimas de um grande complô, capitaneado, é claro, pelos “imperialistas estadunidenses”.

Prates anunciou, pela primeira vez, a estimativa de gastos para terminar a obra: R$ 8 bilhões – quase o mesmo valor inicialmente previsto para a obra na época em que foi apresentada pelo então diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, o principal delator do esquema de corrupção que ajudou a montar na empresa. Costa também alardeava que o projeto representava o estado da arte no setor de petróleo, com o uso de novas tecnologias para refinar tanto o petróleo do pré-sal quanto o venezuelano. A parceria entre Lula e o então ditador da Venezuela, Hugo Chávez, deveria significar o grande salto adiante dos dois países. Chávez, que era esperto, ignorou o acordo e não colocou um tostão na empreitada.

Dezoito anos depois, só restaram um imenso prejuízo e a habitual alucinação patrioteira do lulopetismo. A refinaria, que levou nove anos para entrar em operação parcial, foi descrita pelo atual presidente da Petrobras como “uma máquina maravilhosa”, a mais moderna de todo o continente americano. Será, quando muito, a prova cabal dos estragos que uma ideologia antediluviana é capaz de causar ao País.

Editorial \ Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 22/01/2024 

sábado, 20 de janeiro de 2024

O desastre é nosso

Lula voltou para refazer exatamente o que deu errado na Petrobras. Colocará entre R$ 6 bilhões e R$ 8 bilhões na Abreu e Lima

Obra da Refinaria Abreu e Lima, envolvida na Lava-Jato, vai custar até R$ 8 bi, diz presidente da Petrobras (Foto: Agência O Globo)

Em entrevista ao Valor Econômico, publicada em 17 de setembro de 2009, o presidente Lula (segundo mandato) contou como levara a Petrobras a mergulhar num programa de investimento ambicioso. Ele ficara decepcionado com os planos da estatal propostos em 2008. O que fez?

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— Convoquei o conselho da empresa.

A pressão funcionou. O portfólio de investimentos da estatal escalou para nada menos que quatro refinarias, das grandes, construídas ao mesmo tempo. A economia mundial estava desacelerando, empresas globais reduziam investimentos temendo queda de demanda e de preços. Exatamente o que aconteceu com o petróleo. Mas Lula disse, naquela entrevista, que era preciso atacar, sair na frente e coisas assim. E lá se foi a Petrobras na direção do desastre.

Obra da Refinaria Abreu e Lima, envolvida na Lava-Jato, vai custar até R$ 8 bi, diz presidente da Petrobras

As refinarias Abreu e Lima, em Pernambuco, e o Comperj, no Rio, já estavam no pacote. Entraram outras duas, tipo premium, uma no Ceará, outra no Maranhão, que seria a maior do país. Não saíram do papel. Em janeiro de 2015, a então presidente da estatal, Graça Foster, cancelou oficialmente os projetos, por absoluta inviabilidade técnica e financeira. Ela até havia tentado salvar a coisa, mandando as plantas para revisão nos Estados Unidos. Não deu. Foi melhor cancelar. Mas a Petrobras gastou, em dinheiro de hoje, perto de R$ 5 bilhões em projetos, terraplenagem e compra de equipamentos. Para nada.

O Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro andou quase nada. A Refinaria Abreu e Lima estava em construção. Fora anunciada em 2005 ao preço de US$ 2,3 bilhões. Mas, já naquele setembro de 2009, a estatal fizera, digamos, ligeira reavaliação. A coisa custaria o quíntuplo, cerca de US$ 13 bilhões. Quando as obras foram paralisadas, em 2015, estava concluída meia refinaria, por quase US$ 20 bilhões. De longe, a mais cara do mundo.

Por que parou?

Segundo Lula, este do terceiro mandato, por causa de uma conspiração de juízes e promotores da Lava-Jato com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, para destruir a Petrobras. Narrativas à parte, a Petrobras estava esgotada. Em quatro anos, já no governo Dilma, acumulara prejuízo de R$ 100 bilhões. Duas causas: os enormes investimentos mal dimensionados e a venda de combustível por um preço mais barato do que a estatal pagava na importação e produção. Isso para derrubar a inflação.

Assim a petrolífera brasileira tornou-se a mais endividada do mundo. Mesmo sem corrupção, a estatal não aguentaria. No balanço, a Petrobras registrou oficialmente, lá atrás, perdas de R$ 6 bilhões por causa da roubalheira. Mixaria perto dos equívocos de gestão.

De todo modo, o então candidato Lula admitiu que houve corrupção na empresa. Em entrevista ao Jornal Nacional, atacou a Lava-Jato, mas disse que era difícil negar quando pessoas confessavam ter roubado. Agora, é tudo mentira. Não teve corrupção, não teve investimento errado, não teve preço subsidiado.

Debelada a tal conspiração, o governo Lula voltou para refazer exatamente o que deu errado. Colocará algo entre R$ 6 bilhões e R$ 8 bilhões na Abreu e Lima para deixá-la entre as maiores e mais eficientes do mundo. Mas quem pode acreditar nessas estimativas? Volta também o Comperj. Ainda não falaram nada sobre Maranhão e Ceará. E é melhor nem lembrar.

A Petrobras também não esconde seu objetivo de explorar o petróleo da Margem Equatorial, no litoral do Amapá ao Rio Grande do Norte. As grandes petroleiras globais continuam explorando óleo. Não investem, porém, no refino, levando em conta as restrições mundiais, já anunciadas, para a produção e comercialização de veículos a combustão. A estatal brasileira vai em todas, óleo e refino, em grande escala.

E o governo ainda se apresenta como campeão da luta contra o aquecimento global, desenvolvedor das energias verdes. Isso também exige investimentos novos. E daí? Lula não quer apenas voltar ao passado. Pretende dobrar a aposta.

O governo americano não tem o menor interesse em acabar com a Petrobras. Ao contrário, topa comprar óleo brasileiro, e as empresas americanas topam ser sócias da brasileira.

Qualquer coisa errada é coisa nossa mesmo.

Carlos Alberto Sardenberg, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo,em 20.01.24.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

‘Viagem’ de Lula ao passado do PT no governo é um ‘trem-fantasma’ que assombra a oposição

Presidente embarca no ‘túnel do tempo’, ao ressuscitar projetos malsucedidos de gestões anteriores do partido, como a retomada de investimentos na Refinaria Abreu e Lima, e ao tentar revogar tudo o que veio após o impeachment de Dilma, para consertar o estrago causado ao País naquele período

A lista de ações do governo Lula para resgatar projetos malsucedidos no passado parece não ter fim Foto: Ricardo Stuckert/PR

A decisão da Petrobras de investir até R$ 8 bilhões para promover a ampliação da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, celebrada de forma entusiasmada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, simboliza com perfeição a viagem no “túnel do tempo” que o atual governo está empreendendo, para ressuscitar um passado que deixou um saldo doloroso para o País.

Como uma espécie de “trem-fantasma”, que assombra a oposição e todos os brasileiros que zelam pela responsabilidade fiscal e acreditam na força do setor privado para conduzir o processo de desenvolvimento, Lula vem tentando retomar, desde o primeiro dia de seu governo, uma série de planos e projetos adotados em gestões anteriores do PT, ancorados na visão estatista que predominou naquele período.

Ao mesmo tempo, ele tem se oposto a tudo o que veio depois do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, para reequilibrar as finanças públicas e melhorar a governança das estatais, violentadas nos governos petistas, e para tornar mais amigável o ambiente de negócios para os empreendedores.

Do uso de estatais como a Petrobras para tentar impulsionar a fórceps o crescimento econômico às investidas para interferir na gestão de empresas privadas como a Vale; da retomada do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e dos incentivos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) à gastança sem lastro que jogou o País na maior recessão de que se tem notícia em todos os tempos, que prejudicou principalmente os mais pobres, a lista de ações do governo Lula para resgatar projetos malsucedidos do passado parece não ter fim.

Isso sem falar na tentativa de promover um “revogaço” das medidas liberalizantes e de melhoria da gestão pública adotadas nos governos Temer e Bolsonaro, como a autonomia do Banco Central, a Lei das Estatais, o novo marco do saneamento, que tornou mais atraentes a realização de investimentos na área pelo iniciativa privada, e a privatização da Eletrobras. Até a Ceitec (Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada), uma empresa criada no segundo mandato de Lula para fabricar circuitos integrados, que estava em processo de extinção e só deu prejuízo desde então, ganhou uma sobrevida na atual gestão.

“O PT e a maioria das lideranças do partido e da esquerda não admitem que as políticas adotadas atrás foram a causa da grande recessão de 2014 a 2016

Como diz o economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, uma escola de negócios, direito e engenharia de São Paulo, Lula, o PT e seus aliados parecem ser incapazes de aprender com seus erros, ignorando os efeitos nefastos que produziram na economia. “O PT e a maioria das lideranças do partido e da esquerda não admitem que as políticas adotadas atrás foram a causa da grande recessão de 2014 a 2016″, afirmou Mendes, em entrevista recente ao Estadão. “Eles acham que tudo estava indo muito bem e que foi a Lava Jato, o processo de impeachment, alguma coisa no campo político que atrapalhou o projeto deles. É natural, portanto, que, ao voltar ao poder, retomem aquelas políticas que eles acreditam que estavam indo bem.”

Em linha com o que diz Mendes, é sintomático que Lula tenha acusado a Lava Jato, sem quaisquer provas, de ter agido em conluio com o governo americano para prejudicar a estatal petrolífera brasileira, no discurso que fez ao anunciar a retomada dos investimentos em Abreu e Lima, um exemplo emblemático da aplicação inadequada de recursos públicos e de corrupção nos governos petistas.

‘Mancomunação’

“Tudo o que aconteceu neste país foi uma mancomunação entre alguns juízes, alguns procuradores subordinados ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que nunca aceitou o Brasil ter uma empresa como a Petrobras”, disse Lula, desconsiderando que os crimes apurados pela Lava Jato jamais foram contestados, apesar dos “problemas processuais” que levaram o STF (Supremo Tribunal Federal) a tirá-lo do xilindró e a anular decisões judiciais tomadas no âmbito da operação, que recuperou cerca de R$ 5 bilhões para os cofres públicos do País.

Em sua ofensiva para ressuscitar as malfadadas políticas do passado, tema de uma reportagem recente do jornal Financial Times, Lula e o PT “se esquecem” também de que, desde que Dilma foi defenestrada pelo Congresso pelas “pedaladas fiscais” que promoveu, numa iniciativa considerada até hoje como um “golpe” pelo partido e por seus apoiadores, o Brasil já não é o mesmo das primeiras administrações petistas.

Hoje, o governo enfrenta dificuldades no Congresso para tocar os seus planos estatizantes, apesar do fisiologismo de boa parte dos parlamentares, que reforça as características perdulárias do presidente. Ainda que avalize o aumento de gastos sem lastro proposto por Lula, a maioria dos parlamentares da atual legislatura é de centro, centro-direita e direita, e não tem se mostrado disposta até agora apoiar o “revogaço” proposto pelo governo.

Foi assim, por exemplo, com as tentativas de revogar o novo marco do saneamento e a medida que liberava o trabalho aos domingos no comércio. Foi assim também com as propostas para rever a autonomia do Banco Central e a privatização da Eletrobras, ventiladas nos bastidores e rejeitadas pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira.

Margem de manobra

“A principal reforma que o Congresso brasileiro vai ter que brigar diariamente (para implementar) é a reforma de não deixar retroceder tudo o que já foi aprovado no Brasil no sentido da amplitude do que é mais liberal” afirmou Lira, em maio do ano passado, ao participar de evento em Nova York com lideranças empresarias e investidores estrangeiros.

O problema é que, mesmo assim, o governo ainda tem uma margem de manobra considerável para reviver políticas nocivas, independentemente do aval do Congresso, como no caso do investimento da Petrobras em Abreu e Lima e da possível ida do ex-ministro da Fazenda Guido Mantega para o Conselho de Administração da Vale, com o objetivo de interferir nos rumos da empresa.

Investir em refinarias é uma decisão equivocada da Petrobras, diz Adriano Pires

Além disso, o governo aposta no apoio do STF para legitimar sua agenda, com decisões favoráveis a seus pleitos em questões como a privatização da Eletrobras e a revisão da Lei das Estatais, que foram judicializadas pelo PT e por seus aliados, o que pode contribuir para agravar o quadro sinistro que já está se desenhando no horizonte.

Eleito com um discurso voltado para a “pacificação” do País, por um frentão “pela democracia” que incluiu forças que iam da extrema esquerda à centro-direita, Lula até o momento só atuou para reforçar a polarização política e impor a velha agenda estatista do PT à sociedade, como se tivesse vencido as eleições com uma chapa “puro-sangue”.

Forças alienígenas

Sua determinação em ressuscitar planos e projetos do passado e rever medidas adotadas nos governos Temer e Bolsonaro é um aviso inequívoco, para quem ainda tinha alguma dúvida, de que Lula, o PT e seus aliados não estão nem um pouco preocupados com que o que pensam sobre o assunto as forças alienígenas que “fizeram o L” no pleito de 2022.

Pelo que já se vê em pouco mais de um ano de governo, o discurso de campanha de Lula foi apenas isso – discurso de campanha, para enganar os incautos e voltar ao poder. Agora, porém, “a Inês é morta’, como se diz por aí. Aos brasileiros descontentes com os rumos do governo, aí incluídos aqueles que votaram e os que não votaram em Lula, só resta esperar que o Congresso continue a minimizar os danos do flashback do presidente, no que for possível, e se preparar para enfrentar o que seu trem-fantasma nos reserva pela frente.

José Fucs, o autor deste artigo, é repórter especial d'O Estado de S. Paulo. Jornalista desde 1983, foi repórter especial e editor de Economia da revista Época, editor-chefe da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios, editor-executivo da Exame e repórter do Estadão, da Gazeta Mercantil e da Folha. Pubicado originalmente na edicão em 19.01.24, às 17h05

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Em Davos, super-ricos pedem para pagar mais impostos

Grupo de 250 multimilionários entrega carta a líderes mundiais pedindo que lhes sejam cobrados mais tributos a fim de combater desigualdades e melhorar serviços públicos. Apenas um brasileiro está entre os signatários.

Schweiz Davos | Weltwirtschaftsforum (Foto: Markus Schreiber/AP/picture alliance)

Um grupo de mais de 250 bilionários e milionários divulgou uma carta nesta quarta-feira (17/01) exigindo que a elite política global, reunida nesta semana no Fórum Econômico Mundial de Davos, aumente os impostos sobre suas fortunas, a fim de combater as desigualdades e possibilitar melhoras nos serviços públicos às populações em todo o mundo.

"Estamos surpresos que vocês fracassaram em responder a uma simples pergunta que fazemos há três anos: quando vocês vão taxar a riqueza extrema? Se os representantes eleitos nas principais economias do mundo não adotarem medidas para lidar com o aumento dramático da desigualdade econômica, as consequências continuarão a ser catastróficas para a sociedade", afirma a carta aberta aos líderes mundiais.

"Nós somos as pessoas que investem em startups, moldam os mercados de ações, fazem os negócios crescerem e fomentam o crescimento econômico sustentável. Somos os que mais se beneficiam do status quo. Mas a desigualdade atingiu um ponto de inflexão, e os custos dos riscos à nossa estabilidade econômica, societal e ecológica são graves, e aumentam a cada dia. Em suma, precisamos de ação já." 

Os signatários da carta são pessoas ricas de 17 países, entre os quais estão a herdeira do império Disney, Abigail Disney; o ator e roteirista Simon Pegg; Valerie Rockefeller, herdeira da dinastia de sua família; Ise Bosch, neta do industrial alemão Robert Bosch e o músico e compositor Brian Eno, além do ator da série Succession, Brian Cox.

O único brasileiro na lista é João Paulo Pacífico, fundador do grupo de investimentos Gaia que hoje investe em projetos sociais e colabora com as cooperativas do Movimento dos Sem Terra (MST).

"Queremos ser taxados"

"Nosso pedido é simples. Nós, os muito ricos em nossa sociedade, queremos ser taxados por vocês. Isso não vai alterar fundamentalmente o nosso padrão de vida, tampouco prejudicar nossas crianças ou afetar as economias de nossas nações. Irá transformar a riqueza extrema e improdutiva em investimento em nosso futuro democrático comum", diz o documento.

O grupo quer entregar a carta intitulada Proud to pay ("Orgulhosos em pagar") diretamente aos líderes mundiais reunidos em Davos.

Uma pesquisa recente revela que 74% dos super-ricos apoiam pagar mais impostos sobre suas fortunas para ajudar a combater a crise no custo de vida e melhorar os serviços públicos.

O levantamento realizado pela entidade de pesquisas Survation a pedido do grupo Patriotic Millionaires, dos Estados Unidos, entrevistou mais de 2,3 mil pessoas em 20 países que possuem cada um mais e 1 milhão de dólares (R$ 4,94 milhões) em bens de investimentos, excluindo suas próprias casas – o que os coloca entre os 5% mais ricos do mundo.

Segundo a pesquisa, 58% dos ricos apoiam a criação de uma taxa de 2% sobre os que possuem fortunas de 10 milhões de dólares, sendo que 54% acreditam que a riqueza extrema gera ameaças à democracia.

Aumento das desigualdades

Um relatório da ONG de combate à pobreza Oxfam apresentado em Davos nesta semana revelou que as fortunas dos cinco homens mais ricos do mundo mais do que dobraram desde 2020, enquanto 5 bilhões de pessoas ficaram mais pobres.

A Oxfam International afirmou que, somadas, as fortunas das cinco pessoas mais ricas do mundo – Elon Musk (Tesla, SpaceX), Bernard Arnault (LVHM), Jeff Bezos (Amazon), Larry Ellison (Oracle) e o megainvestidor Warren Buffet – aumentaram 114%, o que corresponde a 464 bilhões de dólares (R$ 2,26 trilhões), chegando a 869 bilhões de dólares no ano passado.

Em contrapartida, desde 2020 o poder financeiro de quase 4,77 bilhões de pessoas – ou 60% da população mundial – caiu 0,2% em termos reais. Segundo a entidade, seriam precisos 229 anos para erradicar a pobreza a nível global.

Publicado originalmente por DeutscheWelle Brasil, em 18.01.24

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

O liberalismo está abalado, mas ainda não quebrado

Liberais compartilham a confiança de que seres humanos podem decidir as coisas por si mesmos

A ideia central da democracia —de que os governos são responsáveis perante os governados— ainda é valorizada em grande parte do mundo. De que outra forma explicar o fato de que mais da metade da população mundial vai votar este ano?

No entanto, o mundo também tem passado por uma "recessão democrática", como Larry Diamond, da Universidade Stanford, chama, há quase duas décadas.

O poder da autocrática China tem aumentado. Vladimir Putin sufocou a democracia na Rússia. O autoritarismo está triunfando em muitos países. A reeleição de Donald Trump, após sua tentativa de derrubar o resultado da última eleição presidencial dos Estados Unidos, também seria uma mudança decisiva na democracia mais influente do mundo.

No entanto, o que está acontecendo não é principalmente uma perda de confiança nas eleições em si. Afinal, os autoritários frequentemente usam as eleições para consagrar seu poder.

Como Francis Fukuyama argumenta em seu livro recente, "Liberalismo e seus Descontentamentos", "as instituições liberais que estão sob ataque imediato".

Ele está se referindo aqui às instituições centrais —tribunais, burocracias não partidárias e mídia independente. Estamos vendo uma perda de confiança no liberalismo, o conjunto de crenças que pareciam tão triunfantes após a queda da União Soviética.

Afinal, o que é o liberalismo? Escrevi sobre isso em uma coluna publicada em 2019, em resposta a uma afirmação de Putin de que "a chamada ideia liberal já cumpriu seu propósito".

O liberalismo, argumentei, não é o que os americanos geralmente pensam que é, porque a história de seu país é única. O que os liberais compartilham é a confiança nos seres humanos para decidir as coisas por si mesmos. Isso implica o direito de fazer seus próprios planos, expressar suas próprias opiniões e participar da vida pública.

Essa capacidade de exercer agência depende da posse de direitos econômicos e políticos. São necessárias instituições para proteger esses direitos.

Mas essa agência também depende de mercados para coordenar os agentes econômicos, mídia livre para debater a verdade e partidos políticos para organizar a política.

Por trás dessas instituições estão valores e normas de comportamento —um senso de cidadania; crença na necessidade de tolerar aqueles que diferem de si mesmo; e a distinção entre ganho privado e propósito público, necessária para conter a corrupção.

O liberalismo é uma atitude, não uma filosofia completa do mundo. Ele reconhece conflitos e escolhas inevitáveis. É ao mesmo tempo universal e particular, idealista e pragmático. Ele reconhece que não pode haver respostas finais para a pergunta de como os seres humanos devem viver juntos. No entanto, ainda existem princípios centrais.

Sociedades baseadas em princípios liberais são as mais bem-sucedidas na história mundial. Mas tanto elas quanto suas ideias estão em disputa.

Como observou o Centre for the Future of Democracy [Centro para o Futuro da Democracia] em um relatório publicado no final de 2022, a invasão da Rússia galvanizou o apoio à Ucrânia entre as democracias liberais ocidentais. Mas o oposto aconteceu em grande parte do resto do mundo.

"Como resultado, China e Rússia estão agora ligeiramente à frente dos EUA em sua popularidade entre os países em desenvolvimento." Isso certamente é preocupante. Além disso, acrescenta, com base em pesquisas que abrangem 97% da população mundial, isso "não pode ser reduzido a interesses econômicos simples ou conveniência geopolítica".

"Pelo contrário, segue uma clara divisão política e ideológica. Em todo o mundo, os melhores preditores de como as sociedades se alinham são seus valores e instituições fundamentais —incluindo crenças na liberdade de expressão, escolha pessoal e o grau em que as instituições democráticas são praticadas e percebidas como legítimas", afirma o relatório.

Uma maneira interessante de analisar isso é fornecida pelo "Mapa Cultural Inglehart-Welzel", da World Values Survey. Ele mapeia valores em dois eixos: um mostra o foco na "autoexpressão" em relação à "sobrevivência", o outro mostra o foco em valores "seculares" em relação a valores "tradicionais".

Notavelmente, diferentes regiões do mundo estão em lugares muito diferentes. O destaque na autoexpressão (um valor liberal central) é relativamente alto na Europa Ocidental e nos países de língua inglesa, com os países africanos-islâmicos no extremo oposto.

Curiosamente, as sociedades "confucianas" têm maior ênfase em valores seculares, em oposição a valores tradicionais, do que os EUA. O ponto principal, no entanto, é que as diferenças de valores são profundas.

Alguns aspectos do liberalismo —como mercados livres, por exemplo— viajam com bastante facilidade, mas outros —como a mudança de normas de gênero, por exemplo–, não.

No entanto, a resistência ao liberalismo é evidente não apenas no exterior. Também é doméstica. Fukuyama destaca, por exemplo, como a esquerda progressista e a direita reacionária concordam com a centralidade das identidades de grupo na política dos EUA.

Eles concordam também que suas diferenças são sobre quais grupos detêm o poder, em vez de como criar as melhores oportunidades iguais para os indivíduos. Mas os conflitos de poder são um jogo de soma zero.

Além disso, a esquerda "progressista" parece ter esquecido que, em uma guerra de identidades, as minorias quase certamente perderão. Por que esses ativistas não conseguem entender esse ponto óbvio?

Com o liberalismo em xeque não apenas em todo o mundo, mas até mesmo em seus redutos, é fácil acreditar que o futuro está nas políticas autoritárias e nos valores sociais tradicionais. Se assim for, este século pode ecoar o anterior, embora sem o fervor revolucionário daquela época.

O apelo do "grande líder" que assumirá tudo para si mesmo parece eterno. Também são eternos os confortos do tribalismo, das hierarquias tradicionais e das verdades antigas. Também é eterno o carisma do profeta revolucionário que promete transformar a sociedade para melhor. Conflitos sobre poder e modos de vida são inevitáveis.

Além disso, a liberdade sempre significará escolhas difíceis. Ela é necessariamente limitada. Significa responsabilidade, ansiedade e insegurança. No entanto, a liberdade é preciosa. Ela deve ser defendida, por mais difícil que seja essa tarefa.

Martin Wolf, o autor deste artigo, é comentarista-chefe de economia no Financial Times, de Londres-UK e doutor em economia pela London School of Economics. Publicado no Brasil pela Folha de S. Paulo, online, em 09.01.24, às 19,30 hrs.

Lula, o presidente Sol

A julgar pelo discurso do presidente a propósito do 8 de Janeiro, o Brasil gira em torno do lulopetismo, aquele que, nas palavras de seu líder, é a ‘garantia’ da democracia nacional

Não há mais dúvida: o Brasil gira em torno de Lula. Esse arremedo de Luís 14 considera que a história dele e a do PT são a “garantia”, segundo suas próprias palavras, de que a democracia brasileira existirá “inabalável” no País.

O demiurgo petista detalhou sua teoria lulocêntrica perto do final de seu discurso por ocasião do evento de anteontem, em Brasília, que lembrou o primeiro aniversário da tentativa de golpe de Estado promovida por hordas bolsonaristas.

Era para ser um pronunciamento adequado ao momento solene – no qual era preciso enfatizar o papel das instituições na resistência à barbárie dos liberticidas que, insuflados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, pretendiam criar o caos a partir do qual, conforme seus delírios, produzir-se-iam uma ruptura e o estabelecimento de um regime de exceção liderado por tiranetes bolsonaristas.

Lula até que salientou, corretamente, “a coragem de parlamentares, governadores e governadoras, ministros e ministras da Suprema Corte, ministros e ministras de Estado, militares legalistas e, sobretudo, da maioria do povo brasileiro” naquele dia infame.

No entanto, em vez de ater-se ao script à sua frente, cujo tom, malgrado alguns exageros retóricos, parecia no geral correto, Lula foi fiel à sua vocação palanqueira e transformou aquela cerimônia de defesa da democracia em comício para atacar seus adversários e louvar a si mesmo e a seu partido – exatamente como previam os vários governadores de oposição que, por essa razão, se recusaram a comparecer.

Lula chamou Bolsonaro de “golpista” e fez diversas insinuações de malfeitos do ex-presidente. No trecho do discurso em que claramente estava improvisando – e, portanto, foi mais autêntico –, Lula chegou a sugerir que os três filhos de Bolsonaro que se elegeram para cargos políticos renunciassem a seus mandatos em protesto contra as urnas eletrônicas, que, dizem os extremistas bolsonaristas, foram fraudadas para impedir a reeleição do ex-capitão.

Ora, não era isso o que se esperava do estadista que Lula julga ser. Nem se discute que a cantilena bolsonarista contra a lisura das urnas eletrônicas era e é profundamente antidemocrática, como já dissemos repetidas vezes neste espaço, mas Lula, na condição de presidente da República e sendo o principal orador de um evento voltado à celebração da democracia e à pacificação nacional, deveria ter se limitado a louvar a manutenção do regime de liberdade e de respeito à lei.

Mas a natureza é implacável. Lula não conhece outra língua senão a do enfrentamento. Aproveita todo e cada momento para estimular o rancor contra aqueles que considera seus inimigos, o que é particularmente inapropriado no momento em que as autoridades públicas, sobretudo o presidente da República, têm o dever de esfriar os ânimos e buscar convergências.

No mesmo fôlego em que atacou duramente seus adversários políticos numa cerimônia supostamente apolítica, Lula foi capaz de declarar que a democracia brasileira viceja, vejam só, porque ele e o PT existem. “Eu queria dizer para vocês, e sobretudo aos companheiros da Suprema Corte e ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral: quando alguém colocar dúvidas sobre a democracia no Brasil, seria importante que vocês não tivessem receio de utilizar a minha história e a história do meu partido como garantia da existência inabalável da democracia neste país”.

Mais autorreferente do que nunca, o presidente mostra que nada aprendeu com os fatos recentes. Se a democracia resistiu ao 8 de Janeiro, foi em razão da força de suas instituições, testadas até o limite nos últimos anos, e da união da sociedade, que ignorou suas diferenças para derrotar um de seus maiores inimigos. O mérito é de muitos, inclusive de alguns que se ausentaram ou que não se sentiram representados no evento comemorativo.

É realmente lamentável que uma data que tinha tudo para se firmar como uma efeméride relevante para a democracia brasileira tenha sido convertida por Lula em uma festa em louvor a si mesmo e à companheirada. Do mesmo modo que Bolsonaro tentou sequestrar o 7 de Setembro, Lula quer se apropriar do 8 de Janeiro. Se depender dos verdadeiros democratas, não conseguirá.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 10.01.24

sábado, 30 de dezembro de 2023

Os desafios para Lula em 2024

Maior dificuldade virá da gestão das contas públicas, essencial para ditar a expectativa de investidores e agentes econômicos

Presidente Lula e Nicolás Maduro Presidente da Venezuela — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Se 2023 foi o ano da preservação da democracia, de bons resultados na economia e da aprovação da reforma tributária, 2024 exigirá do governo Lula maior capacidade de negociar com os demais Poderes e de apresentar soluções contemporâneas para problemas complexos. Isso demandará mais competência para atingir, por meio de projetos e políticas públicas, os setores da sociedade ainda impermeáveis a seu programa.

O maior desafio será a gestão das contas públicas, essencial para pautar as expectativas de investidores e agentes econômicos. É uma contradição perigosa o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentar sucessivas medidas, como as anunciadas ontem, para corrigir o que ele considera distorções em termos de benefícios tributários e de outra natureza a empresas e setores inteiros da economia, enquanto Congresso, Judiciário e o próprio governo elevam seus gastos sem limites.

Também parece uma aposta arriscada do ministro esperar os últimos dias do ano para anunciar uma Medida Provisória para revogar uma lei aprovada pelo Congresso que havia sido vetada pelo presidente e restaurada pelos parlamentares, por meio da derrubada do veto.

Esse “pôquer interminável” com o Legislativo só traz desgastes. Ao longo de 2023, viu-se que o Executivo não dispõe de uma articulação política azeitada o suficiente, a despeito da grande nominata de partidos que em tese integram a coalizão de Lula, para comprar brigas com o Congresso.

Isso só elevará a dependência já considerável em relação ao Judiciário, especificamente ao Supremo Tribunal Federal. Depois não adianta reclamar de excessiva “judicialização”, ou de busca por “protagonismo” ou de “ativismo” da Corte. Essa é outra das questões desbalanceadas que precisam ser calibradas no ano que vem para o bem da harmonia dos entes republicanos.

Mais uma contradição evidente precisará ser equacionada, sob pena de o presidente ver mais arranhões em sua tão cara imagem de líder global: a que existe entre um país que quer ser vanguarda no combate à emergência climática e na preservação ambiental e o que está de olho na nova fronteira petrolífera. Lula se esquivou de arbitrar a disputa ao longo do primeiro ano, mas algum desfecho terá forçosamente de ser dado ao embate entre setores do próprio governo nos próximos meses.

Outra questão em que o Planalto ficou devendo neste primeiro quarto de mandato, e, certamente, responsável por manter em níveis bem parcimoniosos a popularidade do presidente outrora chamado “o cara”, são as posições em política externa.

O endosso incondicional a Nicolás Maduro não foi consenso nem entre os integrantes do Mercosul e forneceu matéria-prima farta para a narrativa da extrema direita bolsonarista, contraponto que eles não poderiam esperar melhor ao desgaste do 8 de Janeiro, das joias sauditas, da inelegibilidade de Bolsonaro e de outros reveses.

Nessa mesma linha, a dubiedade de Lula, que arrastou em algumas ocasiões o próprio Itamaraty, em relação à guerra da Rússia contra a Ucrânia e ao conflito israelo-palestino também turvou a tentativa de, logo de cara, mostrar ao mundo que o Brasil “voltou” ao tabuleiro geopolítico como um ator importante. Será preciso calibrar o discurso e evitar que o presidente, com uma retórica muitas vezes não combinada com a diplomacia profissional, crie embaraços ao país.

Por fim, Lula parece carente de um mote que seja capaz de realmente unir o país. Se parece impossível atingir as franjas mais radicalizadas, ao menos fazer com que se atinjam maiores fatias do eleitorado urbano. Para isso, um posicionamento inteligente nas eleições, que minimize disputas dentro da própria base capazes de fortalecer a oposição, parece crucial. Mas não é algo, pelo que se vê, de que muita gente esteja cuidando com zelo.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado n'O Globo, em 29.12.23

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

10 sintomas do câncer que podem passar despercebidos

A maioria das pessoas, quando ouve a palavra câncer, associa o termo a uma doença perigosa com resultado fatal.


As chances de superar o câncer são muito altas se ele for diagnosticado precocemente. (Getty Images)

Mas desde a década de 1970, a taxa de sobrevivência triplicou, sobretudo graças ao diagnóstico precoce.

Na realidade, a maioria dos tumores são tratáveis ​​com um resultado favorável para o paciente quando são diagnosticados antes de chegarem a um quadro avançado.

O problema é que, muitas vezes, por não querermos ir ao médico ou por não lhe darmos a devida importância, ignoramos alguns sintomas que podem ser cruciais para um diagnóstico precoce.

Segundo um estudo realizado pela organização Cancer Research UK, no Reino Unido, mais de metade dos britânicos já sofreu algum dos sintomas que poderiam indicar a presença de um câncer, mas apenas 2% pensavam que poderiam ter a doença e mais de um terço completamente ignorou os alarmes e não foi ao médico.

Katriina Whitaker, pesquisadora da University College London e principal autora da pesquisa, falou à BBC sobre a importância de ir ao médico.

“Há quem pense que não deveríamos encorajar as pessoas a serem hipocondríacas, mas temos um problema com indivíduos que não vão ao médico porque acreditam que estão desperdiçando seu tempo e usando inutilmente os recursos do sistema de saúde".

“Temos que transmitir a mensagem de que se você tiver sintomas que não desaparecem, especialmente aqueles que são considerados sinais de alerta, você não deve ignorá-los, deve ir ao médico e procurar ajuda”, diz.

A BBC News Mundo, serviço em língua espanhola da BBC, compilou uma lista com 10 sintomas gerais de câncer que, segundo a American Cancer Society, você não deveria ignorar.

O diagnóstico precoce pode impedir que o câncer se espalhe para o resto do corpo. (Getty Images)

1. Perda de peso inexplicável

A maioria das pessoas com câncer experimenta perda de peso em algum momento.

Quando você emagrece sem motivo aparente, isso é chamado de perda de peso inexplicável.

Uma perda de 5kg ou mais pode ser o primeiro sinal de câncer.

Isso ocorre com mais frequência no caso de câncer de pâncreas, estômago, esôfago e pulmão.

2. Febre

A febre é muito comum em pacientes com câncer, embora ocorra com mais frequência depois que o câncer se espalhou desde o local de origem.

A febre afetará quase todas as pessoas com câncer especialmente se a doença ou seus tratamentos afetarem o sistema imunológico.

Com menos frequência, a febre pode ser um sinal precoce de câncer, como leucemia ou linfoma.

3. Cansaço

A fadiga é uma exaustão extrema que não melhora com o repouso. Pode ser um sintoma importante à medida que o câncer progride.

No entanto, em alguns tipos de câncer, como a leucemia, pode ocorrer cansaço no início.

Alguns tipos de câncer de cólon ou estômago podem causar perda de sangue anormal.

Esta é outra forma pela qual o câncer pode causar cansaço.

A febre constante é um sintoma a se ficar atento (Getty Images)

4. Alterações na pele

Junto com os cânceres de pele, alguns outros tipos de câncer podem causar alterações visíveis na pele.

Esses sinais e sintomas incluem: escurecimento da pele (hiperpigmentação), pele e olhos amarelados (icterícia), vermelhidão (eritema), comichão (prurido), além do crescimento excessivo de pêlos.

5. Mudanças nas funções da bexiga e do cólon

Constipação, diarreia ou alteração no tamanho das fezes por um longo período podem ser um sinal de câncer de cólon.

Por outro lado, dor ao urinar, sangue na urina ou alterações na função da bexiga (como urinar com mais ou menos frequência) podem estar relacionadas ao câncer de bexiga ou de próstata.

6. Feridas que não cicatrizam

Muitas pessoas sabem que manchas que crescem, doem ou sangram podem ser sintomas de câncer de pele, mas também devemos estar atentos a pequenas feridas que não cicatrizam por mais de quatro semanas.

Uma ferida na boca que não cicatriza pode ser causada por câncer bucal.

Qualquer alteração na boca que perdure por muito tempo deve ser examinada imediatamente por um médico ou dentista.

Feridas no pênis ou na vagina podem ser sinais de infecção ou câncer em estágio inicial e devem ser examinadas por um profissional de saúde.

Mulher sendo atendida por profissional de saúde (Getty Images)

7. Sangramento

Sangramento incomum pode ocorrer com câncer em estágio inicial ou avançado.

Tossir sangue pode ser um sinal de câncer de pulmão.

Por outro lado, se aparecer sangue nas fezes (que podem ser de cor muito escura), pode ser um sinal de câncer de cólon ou câncer de reto.

O câncer cervical do endométrio (revestimento do útero) pode causar sangramento vaginal anormal.

Além disso, sangue na urina pode ser um sinal de câncer de bexiga ou rim.

Uma secreção com sangue no mamilo pode ser um sinal de câncer de mama.

8. Rigidez ou caroços em qualquer parte do corpo

Muitos tipos de câncer podem ser sentidos na pele.

Esses cânceres ocorrem principalmente nas mamas, testículos, gânglios linfáticos (glândulas) e tecidos moles do corpo.

Um caroço ou rigidez pode ser um sinal precoce ou tardio de câncer.

9. Dificuldade para engolir

Indigestão persistente ou dificuldade para engolir podem ser sinais de câncer de esôfago (o tubo de deglutição que leva ao estômago), estômago ou faringe (garganta).

No entanto, como a maioria dos sintomas desta lista, muitas vezes são causados ​​por outras causas além do câncer.

10. Tosse ou rouquidão persistente

Uma tosse persistente pode ser um sinal de câncer de pulmão.

É aconselhável consultar um médico após a terceira semana de tosse.

Já a rouquidão pode ser um sinal de câncer na laringe ou na glândula tireoide.

BBC News, em 10.09.23

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Governo sem marca

Encerrado o primeiro ano de seu terceiro mandato, Lula se limita a repetir o que fez nos mandatos anteriores, sem deixar claro o que pretende para o futuro e sem reduzir a tensão política


Presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao lado da primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja Foto: Ricardo Stuckert / PR

O presidente Lula da Silva voltou ao Palácio do Planalto em 2023 sem grandes expectativas, pois afinal não se elegeu em razão de ideias novas e projetos ousados, e sim porque a rejeição ao então presidente Jair Bolsonaro provou ser maior que a sua. Sua vitória dizia mais respeito ao passado do que ao futuro: foi uma espetacular volta por cima, depois de anos de escândalos de corrupção que culminaram com sua prisão – revertida não porque sua inocência tenha sido comprovada, mas por vícios processuais – e quando ainda estava fresca na memória nacional a tragédia do governo de Dilma Rousseff, criatura de Lula. Não é pouca coisa.

Ainda assim, cobrado insistentemente durante a campanha sobre o que pretendia fazer caso fosse eleito, Lula limitou-se a dizer que estava ali, sobretudo, para “salvar a democracia”. Uma vez salva a democracia, obviamente não por méritos de Lula, e sim porque as instituições republicanas resistiram ao assalto bolsonarista, restou um governo eleito sem projeto definido.

Ao final do primeiro ano, período em que normalmente os presidente dizem a que vieram, a malaise é evidente, e mesmo em áreas nas quais o governo mostrou empenho genuíno, como na Fazenda ou nas Relações Exteriores, os resultados foram relativamente frustrantes.

Ao mesmo tempo que tratou de restaurar a imagem internacional do Brasil, transformado em orgulhoso pária por Bolsonaro, Lula não aproveitou todo o capital político que o País tem por sua natural liderança na área ambiental, preferindo meter-se em querelas nas quais a diplomacia brasileira, por mais habilidosa que seja, não tinha capacidade nenhuma de interferir. Ademais, alinhou o Brasil a blocos claramente enviesados contra o Ocidente, particularmente os EUA. O tal “Sul Global” de que Lula tanto fala nada mais é do que o nome fantasia do quintal chinês, onde o Brasil é mero vassalo dos interesses de Pequim.

Na Fazenda, destaque-se, por justiça, o trabalho do ministro Fernando Haddad, que em vários momentos conseguiu dobrar um Congresso fortemente hostil ao PT, ajudando a encaminhar a reforma tributária. E mostrou sangue-frio ao enfrentar o “fogo amigo” do próprio PT e do presidente. Ou seja, Haddad fez da Fazenda uma ilha de bom senso cercada de tubarões petistas por todos os lados, mas há dúvidas razoáveis sobre sua capacidade de resistir a esse cerco por mais três anos, nos quais haverá duas eleições – e todos sabem o que os governos petistas são capazes de fazer para vencê-las.

Lula retornou ao poder embevecido pela própria glória, com a autodeclarada aura de ser uma “ideia” – para usar a expressão com que se definiu no discurso que fez antes de ir para a prisão, em abril de 2018. O petista segue a cartilha dos líderes que só conseguem enxergar as próprias virtudes, e não raro transfere para ministros a responsabilidade pela ausência de grandes feitos. Ele ainda parece trabalhar como se tivesse ganhado a eleição muito mais para impedir que Bolsonaro vencesse do que para governar. Sobram-lhe planos, retóricas e simbologias. Faltam-lhe projetos compatíveis com os desafios de um Brasil hoje distante de 2002 ou de 2010.

Num país que saiu das urnas cindido, Lula tinha o dever de articular um processo de união e de reconstrução nacional, como, aliás, prometeu. Mas, fiel à sua natureza sindical, optou por continuar a ser uma fonte permanente de divisões. É cansativo.

Mas ano novo é tempo de esperança, então não custa nada esperar que Lula demonstre que não venceu a eleição só para desmoralizar o juiz que mandou prendê-lo. O tempo é para o atual governo tanto um apoio quanto ameaça. Drummond chamou de genial “quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano”. Ao fazer isso, disse, “industrializou a esperança”, pois 12 meses são suficientes para cansar qualquer ser humano. Mas aí, lembra Drummond, “entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez (...) com outra vontade de acreditar que daqui pra adiante vai ser diferente”. Nada mais longe da poesia do que a política, mas Lula conhece não só o poder da esperança, como também a força demolidora do desencanto.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.12.23

Fora do governo, Bolsonaro e Michelle receberam mais de R$ 500 mil no PL em 2023

Ex-presidente e esposa recebem como dirigentes partidários

O ex-presidente Jair Bolsonaro e sua mulher, Michelle, que deve ser candidata ao Senado pelo PL em 2026: oposição traça plano por espaço — Foto: Cristiano Mariz/07-09-2022

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e a sua esposa, Michelle Bolsonaro, podem fechar o ano recebendo cerca de R$ 589 mil do PL, legenda pela qual o ex-mandatário concorreu à reeleição no ano passado. O casal passou a integrar a cúpula da sigla no começo do ano, pouco após deixarem o governo. Os dados referentes aos salários foram informados pelo PL ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na prestação de contas anual.

O partido declarou informações de pagamentos feitos entre fevereiro e outubro ao casal, e O GLOBO fez a projeção dos rendimentos para novembro e dezembro com base em valores pagos em meses passados. A informação foi inicialmente noticiada pelo portal Metrópoles e confirmada pelo GLOBO.

Presidente do PL Mulher desde fevereiro, a ex-primeira-dama já recebeu R$ 236,3 mil da legenda na rubrica "serviços técnico-profissionais" até setembro. Já o ex-presidente recebeu R$ 200 mil entre abril e outubro.

O casal recebe como dirigentes partidários, de R$ 30.483,16. O valor é pouco menor que o recebido por Bolsonaro enquanto estava à frente da presidência, de R$ 30.934,70. Não estão incluídos no valor despesas com assessores, advogados e despesas como deslocamentos e alimentação.

Principal beneficiado pelo fundo partidário, o PL somou R$ 141.072.720,75 em recursos disponíveis para gasto neste ano, sendo mais de 99% provenientes do conhecido "fundão". Já no ano, a sigla declarou ter, até o momento, R$ 96.882.198,78 em despesas.

Julia Noia, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 28.12.23

2023: o ano em que a democracia venceu

O que faltou a Lula foi antever que o 8 de Janeiro não acabaria ali, com as rápidas e exemplares punições da Justiça

Lula, ministros do STF, ministros e governadores em reunião em 9 de janeiro — Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

Se não tivesse havido nada mais de positivo em 2023, o ano já mereceria figurar nos livros de História como aquele em que a democracia brasileira sobreviveu a uma tentativa de solapá-la por parte do bolsonarismo, o movimento político que governou o país nos quatro anos anteriores e que termina o ano com seu líder, Jair Bolsonaro, inelegível.

Não é pouca coisa, e o fato de termos não só contido o dique do golpismo, como julgado Bolsonaro no mesmo ano em que o 8 de Janeiro aconteceu nos coloca à frente dos Estados Unidos em termos de mecanismos capazes de lidar com as muitas ameaças às instituições que vicejam no mundo tomado pelas novas formas de radicalização política.

É verdade que o governo Lula, os demais Poderes e os partidos políticos não conseguiram executar, ao longo dos 11 meses e pouco desde a intentona golpista, uma agenda de fôlego capaz de fazer com que a polarização que divide quase ao meio a sociedade brasileira arrefecesse.

No oportuno “Biografia do abismo”, os autores Felipe Nunes e Thomas Traumann vão além ao chamar essa divisão de calcificação, dada sua imutabilidade mesmo diante de dados e evidências e dado o descolamento até em relação aos resultados da economia, fator que sempre moveu, como um pêndulo, a avaliação de um governo entre negativa e positiva.

Os indicadores econômicos que Lula entrega depois de um ano são, todos, superiores aos de Bolsonaro, mas ainda assim a avaliação positiva do presidente e de sua gestão ao cabo de um ano é bastante semelhante ao contingente que o elegeu. Foi pequeno o avanço em relação ao eleitorado bolsonarista, e aí não se está falando nem do núcleo duro que aplaudiu tudo que o ex-presidente fez em quatro anos — de oferecer cloroquina para as emas a ameaçar não cumprir ordens do Supremo Tribunal Federal (STF).

Fica, portanto, para um governo que ainda se mostra muito desconectado da nova agenda global e restrito às fórmulas que deram a Lula picos de 80% de popularidade num passado que, vê-se agora, é remoto dada a velocidade das mudanças a tarefa de entender o que aconteceu e de propor novos projetos se quiser amolecer os blocos petrificados.

A despeito do que mostram as pesquisas, há o que celebrar em 2023. Quem assistiu pela TV às cenas de 8 de janeiro não poderia imaginar que a resposta do criticado establishment seria tão rápida, uníssona e eficaz. Basta comparar com a invasão do Capitólio americano, que registrou mortes, ocorreu dois anos antes e até hoje apresenta um histórico de punições mais brando que o nosso.

A atuação da Justiça em todas as etapas em que a democracia foi posta em xeque desde 2020 foi fundamental. O Brasil deve em grande parte ao TSE e ao STF não ter assistido a uma ruptura e ter punido aqueles que tentaram provocá-la.

Lula também teve papel decisivo de segurar o solavanco golpista quando entendeu que precisaria chamar todos, inclusive os governadores oposicionistas, para um compromisso com a República naquele momento.

O que faltou ao presidente foi antever que o 8 de Janeiro não acabaria ali, com as punições rápidas e exemplares da Justiça. Faltou partir da frente ampla da campanha e do pacto civil pós-intentona para tentar quebrar as bases da radicalização política com um novo discurso e uma nova agenda, que não fosse a reprise do que deu certo lá atrás ou a reafirmação de simpatias e crenças — como a defesa da Venezuela como democracia — que simplesmente não encontram aderência na maioria da população brasileira.

A tarefa para 2024 é justamente entender o que precisa mudar. Caso contrário, contrataremos um 2026 com o eleitorado dividido e altamente radicalizado, uma revanche rancorosa de 2022. Tema para a próxima coluna, a última do ano.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista. Comenta os principais fatos da política, do Judiciário e da economia. Publicado originalmente n'O Globo,em 27.12.23

É um erro excluir os delatores do indulto de Natal

Medida de Lula desestimula um instrumento poderoso de investigação e dificulta a resolução de crimes

Presídio Ary Franco, no Rio de Janeiro — Foto: Daniel Marenco/Agência O Globo

Definido de forma vaga na Constituição, o indulto natalino se transformou nos últimos anos numa forma de o presidente da República manifestar suas inclinações pessoais e, ao mesmo tempo, aliviar a carga que pesa sobre um sistema carcerário superlotado. Em 2017, ficou célebre o perdão abrangente do então presidente Michel Temer a todos os presos por crimes não violentos (contestado na Justiça, depois validado pelo Supremo). No indulto final de seu governo, Jair Bolsonaro fez questão de incluir policiais e militares. Agora, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva excluiu do indulto concedido na semana passada os condenados que tenham feito colaboração premiada com a Justiça.

Além dos delatores, Lula deixou de fora — corretamente nesse caso — os autores de crimes hediondos, violência contra a mulher, delitos ambientais e os que atentam contra o Estado Democrático de Direito, como os réus e condenados pelos ataques do 8 de Janeiro. É prerrogativa do presidente manter presos réus ou condenados por crimes que considera graves. Mas não faz sentido Lula excluir do perdão quem assinou acordo de delação. Com isso, ele desincentiva um instrumento poderoso de investigação criminal.

É frágil o argumento, usado por petistas, de que delatores já foram beneficiados com redução da pena. Uma coisa nada tem a ver com a outra. A exclusão, inédita, apenas expõe a má vontade do governo petista com a colaboração premiada. Lula acredita que o modelo foi desvirtuado e que as acusações acabam anuladas na Justiça por falta de provas.

A delação premiada foi regulamentada pela Lei de Organizações Criminosas no governo da petista Dilma Rousseff. Trata-se de acordo entre Estado e réu para obter informações que ajudem a resolver crimes ou desbaratar quadrilhas. Quando as delações da Operação Lava-Jato levaram à prisão figuras históricas do PT, como o próprio Lula, passaram a ser amaldiçoadas.

É certo que as informações obtidas por meio de delações não bastam como provas. São pontos de partida para investigações mais detalhadas. Em geral, fornecem à polícia e ao Ministério Público pistas para destrinchar crimes que permaneceriam insolúveis de outro modo. Cabe aos investigadores cruzar dados, aprofundar a apuração e verificar o relato dos delatores. Na dúvida, a acusação é descartada.

Com os reveses da Lava-Jato, tornou-se frequente a anulação de acordos de leniência e delação, ainda que os réus tenham confessado seus crimes diante das câmeras. A defesa costuma alegar que a confissão ocorreu sob pressão, ou até tortura. São conhecidos os erros da Lava-Jato, mas não dá para querer reescrever a História do maior esquema de corrupção desbaratado no Brasil.

E acordos de delação premiada não existem apenas no âmbito da Lava-Jato. A colaboração premiada do ex-PM Élcio de Queiroz mudou o rumo das investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. A delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid tem ajudado a desvendar as tramas golpistas no Planalto durante o governo Bolsonaro.

A concessão do indulto de Natal é obviamente prerrogativa do presidente, mas não tem cabimento pôr no mesmo patamar quem fez delação premiada e réus ou condenados por crimes hediondos. Desestimular colaborações só tornará ainda mais difícil esclarecer crimes, num país em que quase dois terços deles permanecem sem solução.

Editorial de O Globo, em 28.12.23

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Pacote de Milei decreta emergência até 2025, muda eleições, endurece segurança e desregula economia

Texto com 664 artigos foi entregue ao Congresso, acaba com as eleições primárias na Argentina e muda forma de eleger deputados

Protesto em Buenos Aires nesta quarta contra medidas de Milei; pacote de medidas prevê novas regras contra "piqueteiros" Foto: Gustavo Garello / AP

O presidente da Argentina, Javier Milei, entregou nesta quarta-feira, 27, um amplo pacote de medidas ao Congresso do país. O projeto, denominado “Lei de Bases e Pontos para Liberdade dos Argentinos”, conta com 664 artigos e prevê estado de emergência e mudanças em diversas áreas, incluindo fim das eleições primárias, alterações na forma de eleger deputados, nova forma de financiar partidos políticos, aumento da pena para manifestantes contra o governo e mais desregulação da economia.

O estado de emergência vale para “temas econômicos, financeiros, fiscais, de seguridade social, segurança, defesa, tarifas, energia, saúde, administrativos e sociais até 31 de dezembro de 2025″, podendo ser prorrogado por até dois anos. Milei já havia declarado emergência na área de energia no último dia 18 de dezembro.

O projeto introduz mais limites para passeatas - a ministra da Segurança Pública, Patricia Bullrich, já havia anunciado algumas medidas como forma de conter os protestos realizados no país contra as primeiras decisões do governo Milei. Em Buenos Aires, três grandes manifestações foram realizadas contra o pacote de decretos de desregulação da economia. A última manifestação ocorreu nesta quarta.

Entre outras medidas, o pacote também traz os seguintes pontos:

Elimina as eleições primárias (conhecidas na Argentina pela sigla PASO)

Modifica a forma de eleger deputados

Muda o financiamento dos partidos políticos

Aumenta pena de prisão para quem participar de atos contra o governo

Cria novas regras para reajuste de aposentados

Dá poderes ao Executivo para fundir organismos públicos e privatizar empresas estatais

Cria um exame para estudantes parecido com o Enem no Brasil

Protesto em Buenos Aires nesta quarta contra medidas de Milei; pacote de medidas prevê novas regras contra "piqueteiros"

Protesto em Buenos Aires nesta quarta contra medidas de Milei; pacote de medidas prevê novas regras contra "piqueteiros" Foto: Gustavo Garello / AP

Fim das eleições primárias

O pacote prevê acabar com as PASO - sigla para “primárias abertas, simultâneas e obrigatórias”. Criadas em 2009 e disputadas desde 2011, essas eleições eram utilizadas para indicar aos partidos quem deveriam ser os candidatos a cargos eletivos nacionais.

São obrigatórias para todos os eleitores, e os partidos que desejem ter candidatos também têm que participar.

Na argumentação, o governo Milei diz que tenta devolver a liberdade aos partidos de indicarem quem quiserem e poupa aos contribuintes de financiarem uma parte da atividade política que é de interesse privado.

Nova forma de eleger deputados

O pacote propõe alterar a forma de escolher os deputados. A ideia é adotar voto distrital, a partir de divisões do território feitas com base no Censo argentino de 2022. Um único candidato seria apresentado por distrito, sem suplente.

“O sistema eleitoral de lista fechada beneficia apenas aqueles que têm o poder de determinar a composição das listas, em vez de dar poder aos cidadãos. O sistema de eleitorado de membro único visa resolver essa dissociação entre os interesses do político e os interesses do cidadão”, argumenta o texto.

O número de deputados eleitos será de um para cada 180 mil habitantes - o número não poderá ser menor do que um para cada 90.000 habitantes. A Câmara argentina tem 257 deputados, e o número deve permanecer o mesmo com a alteração no texto.

Financiamento de partidos

Segundo o projeto, a ideia da mudança no financiamento dos partidos é dar transparência e melhorar a igualdade de condições, eliminando a vantagem de quem está no controle do Estado.

Entre as medidas, está a criação de uma plataforma da Justiça Eleitoral para que os partidos declarem quem realizou doações.

Outra é a utilização de uma única conta bancária da agremiação por distrito; os órgãos nacionais dos partidos deverão ter uma conta única em seu distrito de fundação, e todas as contas deverão ser registradas no Ministério do Interior e no juizado federal do distrito correspondente.

Também será criada uma unidade monetária denominada de “módulo eleitoral” para determinar o limite de gastos autorizado por lei. O valor do módulo será definido anualmente no Orçamento. Para o cálculo e alocação dos recursos nas campanhas eleitorais e no Fundo Partidário Permanente, será utilizado 50% do valor do módulo eleitoral.

Prisão para quem participa de manifestações contra o governo

Em questões criminais, a lei introduz várias mudanças. Por um lado, ela aumenta a pena por participar de um piquete para até 3 anos e 6 meses de prisão, e para até 4 anos se houver danos.

Enquanto isso, para os líderes de piquetes que, forçarem terceiros a participar sob a ameaça de lhes retirarem os subsídios, a pena pode ser de até seis anos.

O artigo 333 da lei também estipula que as manifestações devem ser notificadas “ao Ministério de Segurança da Nação com pelo menos 48 horas de antecedência”.

Por outro lado, em um aceno às forças de segurança, a lei agrava as penalidades para o crime de resistência à autoridade e amplia a figura da legítima defesa.

Flexibilização da economia

No pacote, o governo Milei tenta blindar o megadecreto de desregulação da economia publicado na última semana. A intenção é evitar que as regras sejam contestadas no Congresso ou na Justiça.

No artigo 654, o projeto apresentado nesta quarta prevê que o decreto seja ratificado, o que evitaria outras mudanças no Congresso e barraria as ações judiciais - até o momento, ao menos cinco já foram apresentadas.

O megadecreto prevê medidas para desregular a economia, modifica a lei dos aluguéis e abre caminho para privatizar todas as empresas públicas.

Reajustes de aposentados

O projeto permite ao poder executivo estabelecer uma fórmula para reajustar as aposentadorias e pensões e conceder “aumentos periódicos discricionários, dando prioridade aos beneficiários de menor renda”.

Assim, o sistema atual, de “mobilidade” das aposentadorias, seria encerrado - nos governos anteriores, de Mauricio Macri e Alberto Fernández, os reajustes ficaram abaixo da inflação.

No entanto, o texto não define qual seria essa nova fórmula para os reajustes, em qual periodicidade ocorreriam, nem um prazo para que o governo a estabeleça. Ela não precisaria ser aprovada pelo Congresso.

Fusões e privatizações de entidades públicas

No texto, o governo se dá o poder de “centralizar, fundir, transformar o status legal, reorganizar, dissolver ou suprimir, total ou parcialmente, órgãos e entidades descentralizados criados por lei”.

Ou seja, permite juntar órgãos e empresas estatais caso considere que isso possa levar a uma maior economia ou racionalização na prestação de serviços.

No decreto da última semana, o governo Milei já havia facilitado o caminho para realizar a privatização das empresas públicas argentinas.

Educação: um teste como o Enem

Uma das reformas propostas consiste em estabelecer um exame obrigatório para todos os alunos que concluem o ensino médio. Seria algo semelhante ao Enem no Brasil.

Editado da Redação de O Estado de S. Paulo, em 27.12.23, às 20,30hs.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Gleisi e as ideias fora de lugar

A ideia de agenda vitoriosa é descabida; as críticas aos parceiros da vitória, idem

A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e o presidente Lula durante a abertura do 26º Encontro do Foro de São Paulo, em Brasília - Pedro Ladeira - 29.jun.23/Folhapress

Na conferência eleitoral do PT a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, defendeu uma proposta na qual se afirma que "as forças conservadoras e fisiológicas do chamado centrão, fortalecido pela absurda norma do orçamento impositivo num regime presidencialista, exercem influência desmedida sobre o Legislativo e o Executivo, atrasando, constrangendo e até tentando deformar a agenda política vitoriosa na eleição presidencial".

Aqui o confronto Executivo-Legislativo poderia sugerir uma questão de legitimidade dual (ambos os Poderes são eleitos) em regimes presidenciais a la Juan Linz. Mas se trata, na realidade, de ideias fora de lugar. O PT tem 68 deputados, meros 13% da Câmara. O PC do B e PV, de sua coligação, agregam 2%. Juntos, os blocos parlamentares liderados pelo União Brasil e Republicanos detêm 196 parlamentares, ou 62% da Câmara. A oposição —PL e Novo— conta com 99 deputados.

A referência à agenda vitoriosa na eleição presidencial é estapafúrdia. O pleito presidencial foi uma disputa de rejeições, não um confronto programático. E sequer foi formada uma frente ampla. O argumento que Lula recebeu mandato para implementar uma agenda é uma miragem majoritária em um contexto hiperfragmentado, em que o PT é francamente minoritário. O programa do partido ou da frente sequer apareceu durante a campanha.

Causa espécie também o ataque aos parceiros da coalizão de governo vindo da presidente de um partido hiperminoritário. O PT tem governado com coalizões a contragosto. Depende delas mas não as inclui plenamente nos governos. Em Lula 1, o mensalão foi uma forma de compensar a sub-representação dos membros da coalizão nos ministérios, como escrevi aqui. Sob Lula 3, a realidade hiperminoritária acabou se impondo. Mesmo assim a prática hegemônica do partido permanece. Suas principais consequências são os malogros legislativos do governo.

A referência a uma supostamente absurda norma do orçamento impositivo no presidencialismo é também esdrúxula, ignora a experiência de países como os EUA ou o semipresidencialismo francês. Nos EUA, o orçamento é globalmente impositivo. Suas práticas orçamentárias constituíram-se em modelo histórico sob democracias. O que é absurdo é a ausência de qualquer referência programática na formação de governos, como escrevi aqui.

A oportunidade das declarações merece comentário adicional: ocorreram na semana em que vetos presidenciais cruciais foram derrubados e às vésperas da aprovação da reforma tributária por 365 votos a favor e 118 contra —quórum avassalador que veio majoritariamente do centrão. O contraste sugere que a reforma reflete não a agenda do PT, mas uma agenda suprapartidária.

Marcus André Melo, o autor deste artigo, é Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 18.12.23

Um fundo de R$ 5 bilhões

Na hora de encarar o dinheiro, não há diferença entre Gleisi Hoffmann e Arthur Lira

Congresso Nacional, em Brasília — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Na hora de encarar o dinheiro, não há diferença entre Gleisi Hoffmann e Arthur Lira. Até o momento, nem o combativo PT, tampouco os notáveis do Centrão, todos com serviços prestados a seus próprios interesses corporativos, impuseram qualquer objeção a engordar o fundo eleitoral. Projeta-se um aumento do atual R$ 1 bilhão para insondáveis R$ 5 bilhões. Melhor colocar noutra moeda. Estamos falando em US$ 1 bilhão.

Seria uma distorção da democracia? Diante de um salário mínimo de R$ 1.320 brutos ou de R$ 300 mensais retirarem da linha de pobreza milhares de brasileiros, que dizer?

Desde a ditadura militar, o Brasil carrega uma democracia assemelhada a um pensamento mágico, distante, porém, de uma representatividade real. Para inglês ver. Nem a Constituinte de 1988 enfrentou o problema, além de transformar territórios — como Roraima e Amapá — em estados, portanto com direito a três senadores e a uma bancada de deputados federais. Mesmo que a população roraimense (atualmente 636 mil almas) fosse à época menor que a de Del Castilho.

Por causa dos espertos de sempre, permanece a distorção no número de representantes vis-à-vis habitantes. O último Censo — mais uma vez — mostrou o desequilíbrio entre o bruto populacional e a quantidade de deputados federais. A Constituição estipula entre oito e 70 deputados por estado — e o último ajuste ocorreu em 1993, quando o Brasil tinha 158 milhões de habitantes. Hoje somos perto de 203 milhões. O recenseamento do ano passado registrou no Amapá, dos senadores Davi Alcolumbre e Randolfe Rodrigues, cerca de 733 mil moradores — pouco acima da Zona Sul carioca (639 mil). Apenas a Região Metropolitana de São Paulo conta com mais de 22 milhões. A despeito dos números, vale lembrar que os dois políticos amapaenses defendem a exploração de petróleo na Margem Equatorial, ao lado da foz do Amazonas.

De acordo com o último levantamento, Alagoas, estado do deputado Arthur Lira, conta com cerca de 3 milhões de pessoas. Pelas regras constitucionais, a bancada alagoana deveria diminuir de nove para oito deputados. A Bahia, do ministro Rui Costa, perderia dois assentos. O Piauí, do senador Ciro Nogueira, também ficaria com menos dois representantes. O Paraná, da deputada Gleisi Hoffmann, manteria suas 30 cadeiras.

Quanto à ameaça de aumentar o fundo eleitoral para R$ 5 bilhões, façamos um paralelo simples. Neste ano, a dotação prevista para o Sistema Único de Segurança Pública também é de R$ 5 bilhões. O Susp não chega a ser uma realidade, assim como as emendas parlamentares (temos de pensar sempre nas ações administrativas de Arthur Lira e Juscelino Filho). Fosse mais bem dotado, o Susp ajudaria no combate à robustez das empresas multinacionais como PCC e Comando Vermelho e de outras regionais, mas promissoras, como Família do Norte. Permitiria o enfrentamento ao tráfico de armas e até a migração de criminosos entre os entes da Federação.

No Brasil, a democracia aparentemente representativa custa caro. Também não oferece meios de cobrar os serviços prestados pelos eleitos. Não há, e nem haverá, voto distrital — Deus não é brasileiro, está provado. Raros eleitores conhecem pessoalmente seus representantes. Um deputado ganha votos em Campo Grande, em Búzios e na Barra, mas mora em Ipanema. Não é de ninguém. Caso se candidatasse apenas por seu distrito, e lá colhesse seus votos, se eleito, quando tomasse um café na padaria, seria interpelado em sua base sobre sua posição contra ou a favor de determinado tema. A pulverização de votos ainda distorce os quadros de opinião da sociedade, em geral minoritários, sem oferecer um retrato real da população. Um distrito majoritariamente estudantil ou de eleitores mais jovens acaba diluído por grupos maiores de religiosos conservadores ou ruralistas. Em tese, todos são filhos de Deus.

Assim montada, a democracia tupiniquim perpetua, e não renova, portanto, o elenco de políticos (pense no atual Congresso Nacional) eleitos com o dinheiro de seu imposto. Depois não se pergunte por que existem dinastias políticas. Não houvesse tal fundo — R$ 5 bilhões, Gleisi? —, os candidatos a cargos eletivos ou usariam seus próprios recursos ou teriam de receber doações de pessoas físicas. Para isso, teriam de encontrar eleitores que se identificassem com suas ideias a ponto de lhes dar apoio financeiro. Seria o momento adequado para dar o troco.

 Miguel de Almeida, o autor deste artigo, é editor e diretor de cinema. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 18.12.23

Orçamento vai a plenário repleto de distorções

Comissão mista inflou fundo eleitoral e emendas parlamentares, tirando autonomia do Executivo


O Congresso Nacional em Brasília — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

O relatório final da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), aprovado na semana passada na Comissão Mista de Orçamento (CMO) do Congresso, confirmou as piores expectativas: deputados e senadores tentam aumentar o dinheiro das emendas parlamentares e controlar seus prazos de execução, em detrimento do planejamento do Executivo. Se nesta semana for aprovado como está, representará um retrocesso.

Com o fim das emendas do relator, os parlamentares têm agora à disposição três tipos de emenda: individual (proposta por senadores ou deputados), de bancadas estaduais e de comissão (apresentada pelas comissões técnicas e mesas diretoras da Câmara e do Senado). As duas primeiras são impositivas — de pagamento obrigatório. Havia o temor de que o texto da LDO, sob relatoria do deputado Danilo Forte (União-CE), também tornasse impositivas as emendas de comissão. Felizmente, isso não aconteceu.

Orçamento: Comissão aprova LDO de 2024 com meta de déficit zero e R$ 48 bilhões em emendas parlamentares

Em contrapartida, o texto aumentou em 61% o total das emendas de comissão (para R$ 11 bilhões) e em 23% as individuais e de bancada (para mais de R$ 37 bilhões). Com isso, cada deputado terá direito a alocar R$ 37,8 milhões e cada senador R$ 69,6 milhões ao longo do ano. Não satisfeitos com o valor, os parlamentares da CMO estabeleceram prazos para o governo analisar as emendas individuais e de bancada e empenhar os recursos: 105 dias para as emendas individuais e 90 dias para as de bancada. Na ausência de problema técnico, o dinheiro deverá ser liberado em 30 dias. Em ano eleitoral, o Parlamento tenta garantir o dinheiro logo no primeiro semestre.

Nas democracias, é comum congressistas influírem na alocação de recursos com emendas que beneficiam seus redutos. No Brasil, porém, elas perderam a proporção: o total foi multiplicado por nove desde 2015. E o Parlamento tem feito o possível para tornar o pagamento obrigatório, reduzindo a autonomia do Executivo para cumprir a missão constitucional de executar o Orçamento. Num momento em que o próprio Congresso clama por harmonia entre os Poderes, deveria saber se conter, preservando a função precípua de votar o Orçamento, mas evitando hipertrofia nos próprios recursos.

Orçamento: Relator da LDO define teto do fundo eleitoral em R$ 4,9 bilhões, cinco vezes mais do que o proposto pelo governo

O dinheiro das emendas é canalizado levando em conta interesses políticos, não necessidades urgentes ou critérios técnicos. Todos os municípios brasileiros demandam investimentos. Mas, ao tirar do governo a capacidade de priorizar as prefeituras com carências prementes, as emendas tornam a ação do Estado mais injusta e mais cara. Um município ganha um posto de saúde, enquanto outro ao lado fica sem nenhum. Ainda que os parlamentares conheçam suas bases eleitorais, elas seriam mais beneficiadas por meio de políticas públicas elaboradas pelas equipes técnicas dos ministérios. Sair distribuindo dinheiro a esmo só contribui para deteriorar as contas públicas.

Não é apenas nas emendas que o relatório final da LDO decepciona. O texto ainda manteve um fundo eleitoral de R$ 4,9 bilhões para financiar as eleições municipais — quase o dobro do gasto no pleito de 2020 (R$ 2,5 bilhões, em valores corrigidos). Tal valor fará do Brasil o país com maior gasto per capita entre aqueles com financiamento público de campanha. O plenário do Congresso ainda pode corrigir os erros, mas para isso os parlamentares teriam de demonstrar um desprendimento que até agora tem sido escasso.

Editorial de O GLOBO, em 18.112.23

domingo, 17 de dezembro de 2023

A retórica perdulária de Lula

O presidente diz que o País só vai crescer se se endividar, classifica a responsabilidade fiscal como um problema e desmoraliza mais uma vez seu ministro da Fazenda

O presidente Lula da Silva estava animado na última reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, conhecido como Conselhão. Em discurso, declarou que não vê nenhum problema em fazer dívida para gerar crescimento econômico, tornou a questionar a meta de déficit zero defendida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e ainda incluiu a inflação entre os parâmetros que podem ser ignorados em nome da necessidade de estimular a economia. Ou seja, Lula corroborou, praticamente na íntegra, o documento irresponsável do PT que, dias antes, defendeu que o governo dê uma banana para os limites fiscais em nome da necessidade de ganhar eleições – a única coisa que realmente importa para o lulopetismo.

“Se for necessário este país fazer um endividamento para crescer, qual é o problema?”, questionou Lula. Em vez de fazer essa pergunta retórica, o presidente poderia ter consultado seu ministro da Fazenda, que certamente saberia lhe explicar que endividamento não gera crescimento, mas inflação, juros altos e estagnação. Se gastança fosse solução, o Brasil, cujo Estado é perdulário praticamente desde a Independência, teria crescimento chinês.

Enquanto o pobre ministro da Fazenda tenta encontrar tostões nos bolsos das calças para fechar as contas de um governo com cada vez menos recursos, o presidente desmoraliza publicamente seu esforço: “Eu não quero saber de onde a gente vai ter dinheiro”.

O flerte de Lula com a irresponsabilidade fiscal está se transformando em relacionamento sério. A certa altura de sua arenga, o chefão petista declarou que já conhece “o caminho das pedras” e que, portanto, é preciso “decidir agora se vamos retirar essas pedras ou não”, isto é, “se a gente vai chegar à conclusão que, olha, por um problema da Lei de Responsabilidade Fiscal, de superávit primário, de inflação, a gente não poder fazer”.

Ou seja, Lula considera que a Lei de Responsabilidade Fiscal é um “problema” a ser ignorado, uma “pedra” a ser removida, em nome do crescimento econômico. No mesmo fôlego, desestimou o caráter inflacionário do endividamento. Esse é o receituário do desastre, como já deveria ter ficado claro para um presidente que está em seu terceiro mandato e que teve bastante tempo para aprender com seus próprios erros e com os de sua inesquecível criatura, Dilma Rousseff, cujo mote “gasto é vida” ornou a maior recessão da história recente do País.

Não há milagre. Somente o aumento da produtividade da economia é capaz de induzir períodos de crescimento perenes e estáveis. Não basta ampliar de forma desmedida qualquer tipo de investimento sem considerar a qualidade desses gastos nem a óbvia necessidade de encontrar as receitas correspondentes – isso num país já sufocado por imensa carga tributária. Não adianta escolher a dedo setores a serem estimulados nem “campeões nacionais” a serem financiados sem considerar as condições da economia brasileira e sua capacidade de competir e se integrar com as cadeias globais.

Lula parece convencido de que ainda estamos na primeira década do século, quando o mundo vivia o superciclo de commodities, que gerou o vigoroso crescimento brasileiro registrado em alguns daqueles anos. Não há nada parecido com isso no horizonte.

Não se trata de demonizar o papel da política fiscal para reativar a economia durante turbulências, como a crise financeira mundial de 2008 e a pandemia de covid-19. Mas é fundamental que todo governo minimamente responsável saiba a hora de retirar os estímulos para deixar a economia voltar a andar com as próprias pernas. Lula, ao contrário, acha que é função dele guiá-la pelo melhor caminho.

Contrariando todas as expectativas, felizmente o País deve encerrar o ano com um crescimento de 3%. É um crescimento robusto, muito puxado pelo agronegócio. Seria o momento ideal de investir em uma política fiscal anticíclica, que dialogue com a política monetária e crie um espaço fiscal para que a sociedade possa enfrentar momentos de crise – que sempre virão – de uma forma menos penosa.

É, contudo, o exato oposto do que Lula defende. Para ele, basta querer – e gastar – que os problemas acabam.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.012.23