quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Governo sem marca

Encerrado o primeiro ano de seu terceiro mandato, Lula se limita a repetir o que fez nos mandatos anteriores, sem deixar claro o que pretende para o futuro e sem reduzir a tensão política


Presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao lado da primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja Foto: Ricardo Stuckert / PR

O presidente Lula da Silva voltou ao Palácio do Planalto em 2023 sem grandes expectativas, pois afinal não se elegeu em razão de ideias novas e projetos ousados, e sim porque a rejeição ao então presidente Jair Bolsonaro provou ser maior que a sua. Sua vitória dizia mais respeito ao passado do que ao futuro: foi uma espetacular volta por cima, depois de anos de escândalos de corrupção que culminaram com sua prisão – revertida não porque sua inocência tenha sido comprovada, mas por vícios processuais – e quando ainda estava fresca na memória nacional a tragédia do governo de Dilma Rousseff, criatura de Lula. Não é pouca coisa.

Ainda assim, cobrado insistentemente durante a campanha sobre o que pretendia fazer caso fosse eleito, Lula limitou-se a dizer que estava ali, sobretudo, para “salvar a democracia”. Uma vez salva a democracia, obviamente não por méritos de Lula, e sim porque as instituições republicanas resistiram ao assalto bolsonarista, restou um governo eleito sem projeto definido.

Ao final do primeiro ano, período em que normalmente os presidente dizem a que vieram, a malaise é evidente, e mesmo em áreas nas quais o governo mostrou empenho genuíno, como na Fazenda ou nas Relações Exteriores, os resultados foram relativamente frustrantes.

Ao mesmo tempo que tratou de restaurar a imagem internacional do Brasil, transformado em orgulhoso pária por Bolsonaro, Lula não aproveitou todo o capital político que o País tem por sua natural liderança na área ambiental, preferindo meter-se em querelas nas quais a diplomacia brasileira, por mais habilidosa que seja, não tinha capacidade nenhuma de interferir. Ademais, alinhou o Brasil a blocos claramente enviesados contra o Ocidente, particularmente os EUA. O tal “Sul Global” de que Lula tanto fala nada mais é do que o nome fantasia do quintal chinês, onde o Brasil é mero vassalo dos interesses de Pequim.

Na Fazenda, destaque-se, por justiça, o trabalho do ministro Fernando Haddad, que em vários momentos conseguiu dobrar um Congresso fortemente hostil ao PT, ajudando a encaminhar a reforma tributária. E mostrou sangue-frio ao enfrentar o “fogo amigo” do próprio PT e do presidente. Ou seja, Haddad fez da Fazenda uma ilha de bom senso cercada de tubarões petistas por todos os lados, mas há dúvidas razoáveis sobre sua capacidade de resistir a esse cerco por mais três anos, nos quais haverá duas eleições – e todos sabem o que os governos petistas são capazes de fazer para vencê-las.

Lula retornou ao poder embevecido pela própria glória, com a autodeclarada aura de ser uma “ideia” – para usar a expressão com que se definiu no discurso que fez antes de ir para a prisão, em abril de 2018. O petista segue a cartilha dos líderes que só conseguem enxergar as próprias virtudes, e não raro transfere para ministros a responsabilidade pela ausência de grandes feitos. Ele ainda parece trabalhar como se tivesse ganhado a eleição muito mais para impedir que Bolsonaro vencesse do que para governar. Sobram-lhe planos, retóricas e simbologias. Faltam-lhe projetos compatíveis com os desafios de um Brasil hoje distante de 2002 ou de 2010.

Num país que saiu das urnas cindido, Lula tinha o dever de articular um processo de união e de reconstrução nacional, como, aliás, prometeu. Mas, fiel à sua natureza sindical, optou por continuar a ser uma fonte permanente de divisões. É cansativo.

Mas ano novo é tempo de esperança, então não custa nada esperar que Lula demonstre que não venceu a eleição só para desmoralizar o juiz que mandou prendê-lo. O tempo é para o atual governo tanto um apoio quanto ameaça. Drummond chamou de genial “quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano”. Ao fazer isso, disse, “industrializou a esperança”, pois 12 meses são suficientes para cansar qualquer ser humano. Mas aí, lembra Drummond, “entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez (...) com outra vontade de acreditar que daqui pra adiante vai ser diferente”. Nada mais longe da poesia do que a política, mas Lula conhece não só o poder da esperança, como também a força demolidora do desencanto.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.12.23

Fora do governo, Bolsonaro e Michelle receberam mais de R$ 500 mil no PL em 2023

Ex-presidente e esposa recebem como dirigentes partidários

O ex-presidente Jair Bolsonaro e sua mulher, Michelle, que deve ser candidata ao Senado pelo PL em 2026: oposição traça plano por espaço — Foto: Cristiano Mariz/07-09-2022

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e a sua esposa, Michelle Bolsonaro, podem fechar o ano recebendo cerca de R$ 589 mil do PL, legenda pela qual o ex-mandatário concorreu à reeleição no ano passado. O casal passou a integrar a cúpula da sigla no começo do ano, pouco após deixarem o governo. Os dados referentes aos salários foram informados pelo PL ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na prestação de contas anual.

O partido declarou informações de pagamentos feitos entre fevereiro e outubro ao casal, e O GLOBO fez a projeção dos rendimentos para novembro e dezembro com base em valores pagos em meses passados. A informação foi inicialmente noticiada pelo portal Metrópoles e confirmada pelo GLOBO.

Presidente do PL Mulher desde fevereiro, a ex-primeira-dama já recebeu R$ 236,3 mil da legenda na rubrica "serviços técnico-profissionais" até setembro. Já o ex-presidente recebeu R$ 200 mil entre abril e outubro.

O casal recebe como dirigentes partidários, de R$ 30.483,16. O valor é pouco menor que o recebido por Bolsonaro enquanto estava à frente da presidência, de R$ 30.934,70. Não estão incluídos no valor despesas com assessores, advogados e despesas como deslocamentos e alimentação.

Principal beneficiado pelo fundo partidário, o PL somou R$ 141.072.720,75 em recursos disponíveis para gasto neste ano, sendo mais de 99% provenientes do conhecido "fundão". Já no ano, a sigla declarou ter, até o momento, R$ 96.882.198,78 em despesas.

Julia Noia, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 28.12.23

2023: o ano em que a democracia venceu

O que faltou a Lula foi antever que o 8 de Janeiro não acabaria ali, com as rápidas e exemplares punições da Justiça

Lula, ministros do STF, ministros e governadores em reunião em 9 de janeiro — Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

Se não tivesse havido nada mais de positivo em 2023, o ano já mereceria figurar nos livros de História como aquele em que a democracia brasileira sobreviveu a uma tentativa de solapá-la por parte do bolsonarismo, o movimento político que governou o país nos quatro anos anteriores e que termina o ano com seu líder, Jair Bolsonaro, inelegível.

Não é pouca coisa, e o fato de termos não só contido o dique do golpismo, como julgado Bolsonaro no mesmo ano em que o 8 de Janeiro aconteceu nos coloca à frente dos Estados Unidos em termos de mecanismos capazes de lidar com as muitas ameaças às instituições que vicejam no mundo tomado pelas novas formas de radicalização política.

É verdade que o governo Lula, os demais Poderes e os partidos políticos não conseguiram executar, ao longo dos 11 meses e pouco desde a intentona golpista, uma agenda de fôlego capaz de fazer com que a polarização que divide quase ao meio a sociedade brasileira arrefecesse.

No oportuno “Biografia do abismo”, os autores Felipe Nunes e Thomas Traumann vão além ao chamar essa divisão de calcificação, dada sua imutabilidade mesmo diante de dados e evidências e dado o descolamento até em relação aos resultados da economia, fator que sempre moveu, como um pêndulo, a avaliação de um governo entre negativa e positiva.

Os indicadores econômicos que Lula entrega depois de um ano são, todos, superiores aos de Bolsonaro, mas ainda assim a avaliação positiva do presidente e de sua gestão ao cabo de um ano é bastante semelhante ao contingente que o elegeu. Foi pequeno o avanço em relação ao eleitorado bolsonarista, e aí não se está falando nem do núcleo duro que aplaudiu tudo que o ex-presidente fez em quatro anos — de oferecer cloroquina para as emas a ameaçar não cumprir ordens do Supremo Tribunal Federal (STF).

Fica, portanto, para um governo que ainda se mostra muito desconectado da nova agenda global e restrito às fórmulas que deram a Lula picos de 80% de popularidade num passado que, vê-se agora, é remoto dada a velocidade das mudanças a tarefa de entender o que aconteceu e de propor novos projetos se quiser amolecer os blocos petrificados.

A despeito do que mostram as pesquisas, há o que celebrar em 2023. Quem assistiu pela TV às cenas de 8 de janeiro não poderia imaginar que a resposta do criticado establishment seria tão rápida, uníssona e eficaz. Basta comparar com a invasão do Capitólio americano, que registrou mortes, ocorreu dois anos antes e até hoje apresenta um histórico de punições mais brando que o nosso.

A atuação da Justiça em todas as etapas em que a democracia foi posta em xeque desde 2020 foi fundamental. O Brasil deve em grande parte ao TSE e ao STF não ter assistido a uma ruptura e ter punido aqueles que tentaram provocá-la.

Lula também teve papel decisivo de segurar o solavanco golpista quando entendeu que precisaria chamar todos, inclusive os governadores oposicionistas, para um compromisso com a República naquele momento.

O que faltou ao presidente foi antever que o 8 de Janeiro não acabaria ali, com as punições rápidas e exemplares da Justiça. Faltou partir da frente ampla da campanha e do pacto civil pós-intentona para tentar quebrar as bases da radicalização política com um novo discurso e uma nova agenda, que não fosse a reprise do que deu certo lá atrás ou a reafirmação de simpatias e crenças — como a defesa da Venezuela como democracia — que simplesmente não encontram aderência na maioria da população brasileira.

A tarefa para 2024 é justamente entender o que precisa mudar. Caso contrário, contrataremos um 2026 com o eleitorado dividido e altamente radicalizado, uma revanche rancorosa de 2022. Tema para a próxima coluna, a última do ano.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista. Comenta os principais fatos da política, do Judiciário e da economia. Publicado originalmente n'O Globo,em 27.12.23

É um erro excluir os delatores do indulto de Natal

Medida de Lula desestimula um instrumento poderoso de investigação e dificulta a resolução de crimes

Presídio Ary Franco, no Rio de Janeiro — Foto: Daniel Marenco/Agência O Globo

Definido de forma vaga na Constituição, o indulto natalino se transformou nos últimos anos numa forma de o presidente da República manifestar suas inclinações pessoais e, ao mesmo tempo, aliviar a carga que pesa sobre um sistema carcerário superlotado. Em 2017, ficou célebre o perdão abrangente do então presidente Michel Temer a todos os presos por crimes não violentos (contestado na Justiça, depois validado pelo Supremo). No indulto final de seu governo, Jair Bolsonaro fez questão de incluir policiais e militares. Agora, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva excluiu do indulto concedido na semana passada os condenados que tenham feito colaboração premiada com a Justiça.

Além dos delatores, Lula deixou de fora — corretamente nesse caso — os autores de crimes hediondos, violência contra a mulher, delitos ambientais e os que atentam contra o Estado Democrático de Direito, como os réus e condenados pelos ataques do 8 de Janeiro. É prerrogativa do presidente manter presos réus ou condenados por crimes que considera graves. Mas não faz sentido Lula excluir do perdão quem assinou acordo de delação. Com isso, ele desincentiva um instrumento poderoso de investigação criminal.

É frágil o argumento, usado por petistas, de que delatores já foram beneficiados com redução da pena. Uma coisa nada tem a ver com a outra. A exclusão, inédita, apenas expõe a má vontade do governo petista com a colaboração premiada. Lula acredita que o modelo foi desvirtuado e que as acusações acabam anuladas na Justiça por falta de provas.

A delação premiada foi regulamentada pela Lei de Organizações Criminosas no governo da petista Dilma Rousseff. Trata-se de acordo entre Estado e réu para obter informações que ajudem a resolver crimes ou desbaratar quadrilhas. Quando as delações da Operação Lava-Jato levaram à prisão figuras históricas do PT, como o próprio Lula, passaram a ser amaldiçoadas.

É certo que as informações obtidas por meio de delações não bastam como provas. São pontos de partida para investigações mais detalhadas. Em geral, fornecem à polícia e ao Ministério Público pistas para destrinchar crimes que permaneceriam insolúveis de outro modo. Cabe aos investigadores cruzar dados, aprofundar a apuração e verificar o relato dos delatores. Na dúvida, a acusação é descartada.

Com os reveses da Lava-Jato, tornou-se frequente a anulação de acordos de leniência e delação, ainda que os réus tenham confessado seus crimes diante das câmeras. A defesa costuma alegar que a confissão ocorreu sob pressão, ou até tortura. São conhecidos os erros da Lava-Jato, mas não dá para querer reescrever a História do maior esquema de corrupção desbaratado no Brasil.

E acordos de delação premiada não existem apenas no âmbito da Lava-Jato. A colaboração premiada do ex-PM Élcio de Queiroz mudou o rumo das investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. A delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid tem ajudado a desvendar as tramas golpistas no Planalto durante o governo Bolsonaro.

A concessão do indulto de Natal é obviamente prerrogativa do presidente, mas não tem cabimento pôr no mesmo patamar quem fez delação premiada e réus ou condenados por crimes hediondos. Desestimular colaborações só tornará ainda mais difícil esclarecer crimes, num país em que quase dois terços deles permanecem sem solução.

Editorial de O Globo, em 28.12.23

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Pacote de Milei decreta emergência até 2025, muda eleições, endurece segurança e desregula economia

Texto com 664 artigos foi entregue ao Congresso, acaba com as eleições primárias na Argentina e muda forma de eleger deputados

Protesto em Buenos Aires nesta quarta contra medidas de Milei; pacote de medidas prevê novas regras contra "piqueteiros" Foto: Gustavo Garello / AP

O presidente da Argentina, Javier Milei, entregou nesta quarta-feira, 27, um amplo pacote de medidas ao Congresso do país. O projeto, denominado “Lei de Bases e Pontos para Liberdade dos Argentinos”, conta com 664 artigos e prevê estado de emergência e mudanças em diversas áreas, incluindo fim das eleições primárias, alterações na forma de eleger deputados, nova forma de financiar partidos políticos, aumento da pena para manifestantes contra o governo e mais desregulação da economia.

O estado de emergência vale para “temas econômicos, financeiros, fiscais, de seguridade social, segurança, defesa, tarifas, energia, saúde, administrativos e sociais até 31 de dezembro de 2025″, podendo ser prorrogado por até dois anos. Milei já havia declarado emergência na área de energia no último dia 18 de dezembro.

O projeto introduz mais limites para passeatas - a ministra da Segurança Pública, Patricia Bullrich, já havia anunciado algumas medidas como forma de conter os protestos realizados no país contra as primeiras decisões do governo Milei. Em Buenos Aires, três grandes manifestações foram realizadas contra o pacote de decretos de desregulação da economia. A última manifestação ocorreu nesta quarta.

Entre outras medidas, o pacote também traz os seguintes pontos:

Elimina as eleições primárias (conhecidas na Argentina pela sigla PASO)

Modifica a forma de eleger deputados

Muda o financiamento dos partidos políticos

Aumenta pena de prisão para quem participar de atos contra o governo

Cria novas regras para reajuste de aposentados

Dá poderes ao Executivo para fundir organismos públicos e privatizar empresas estatais

Cria um exame para estudantes parecido com o Enem no Brasil

Protesto em Buenos Aires nesta quarta contra medidas de Milei; pacote de medidas prevê novas regras contra "piqueteiros"

Protesto em Buenos Aires nesta quarta contra medidas de Milei; pacote de medidas prevê novas regras contra "piqueteiros" Foto: Gustavo Garello / AP

Fim das eleições primárias

O pacote prevê acabar com as PASO - sigla para “primárias abertas, simultâneas e obrigatórias”. Criadas em 2009 e disputadas desde 2011, essas eleições eram utilizadas para indicar aos partidos quem deveriam ser os candidatos a cargos eletivos nacionais.

São obrigatórias para todos os eleitores, e os partidos que desejem ter candidatos também têm que participar.

Na argumentação, o governo Milei diz que tenta devolver a liberdade aos partidos de indicarem quem quiserem e poupa aos contribuintes de financiarem uma parte da atividade política que é de interesse privado.

Nova forma de eleger deputados

O pacote propõe alterar a forma de escolher os deputados. A ideia é adotar voto distrital, a partir de divisões do território feitas com base no Censo argentino de 2022. Um único candidato seria apresentado por distrito, sem suplente.

“O sistema eleitoral de lista fechada beneficia apenas aqueles que têm o poder de determinar a composição das listas, em vez de dar poder aos cidadãos. O sistema de eleitorado de membro único visa resolver essa dissociação entre os interesses do político e os interesses do cidadão”, argumenta o texto.

O número de deputados eleitos será de um para cada 180 mil habitantes - o número não poderá ser menor do que um para cada 90.000 habitantes. A Câmara argentina tem 257 deputados, e o número deve permanecer o mesmo com a alteração no texto.

Financiamento de partidos

Segundo o projeto, a ideia da mudança no financiamento dos partidos é dar transparência e melhorar a igualdade de condições, eliminando a vantagem de quem está no controle do Estado.

Entre as medidas, está a criação de uma plataforma da Justiça Eleitoral para que os partidos declarem quem realizou doações.

Outra é a utilização de uma única conta bancária da agremiação por distrito; os órgãos nacionais dos partidos deverão ter uma conta única em seu distrito de fundação, e todas as contas deverão ser registradas no Ministério do Interior e no juizado federal do distrito correspondente.

Também será criada uma unidade monetária denominada de “módulo eleitoral” para determinar o limite de gastos autorizado por lei. O valor do módulo será definido anualmente no Orçamento. Para o cálculo e alocação dos recursos nas campanhas eleitorais e no Fundo Partidário Permanente, será utilizado 50% do valor do módulo eleitoral.

Prisão para quem participa de manifestações contra o governo

Em questões criminais, a lei introduz várias mudanças. Por um lado, ela aumenta a pena por participar de um piquete para até 3 anos e 6 meses de prisão, e para até 4 anos se houver danos.

Enquanto isso, para os líderes de piquetes que, forçarem terceiros a participar sob a ameaça de lhes retirarem os subsídios, a pena pode ser de até seis anos.

O artigo 333 da lei também estipula que as manifestações devem ser notificadas “ao Ministério de Segurança da Nação com pelo menos 48 horas de antecedência”.

Por outro lado, em um aceno às forças de segurança, a lei agrava as penalidades para o crime de resistência à autoridade e amplia a figura da legítima defesa.

Flexibilização da economia

No pacote, o governo Milei tenta blindar o megadecreto de desregulação da economia publicado na última semana. A intenção é evitar que as regras sejam contestadas no Congresso ou na Justiça.

No artigo 654, o projeto apresentado nesta quarta prevê que o decreto seja ratificado, o que evitaria outras mudanças no Congresso e barraria as ações judiciais - até o momento, ao menos cinco já foram apresentadas.

O megadecreto prevê medidas para desregular a economia, modifica a lei dos aluguéis e abre caminho para privatizar todas as empresas públicas.

Reajustes de aposentados

O projeto permite ao poder executivo estabelecer uma fórmula para reajustar as aposentadorias e pensões e conceder “aumentos periódicos discricionários, dando prioridade aos beneficiários de menor renda”.

Assim, o sistema atual, de “mobilidade” das aposentadorias, seria encerrado - nos governos anteriores, de Mauricio Macri e Alberto Fernández, os reajustes ficaram abaixo da inflação.

No entanto, o texto não define qual seria essa nova fórmula para os reajustes, em qual periodicidade ocorreriam, nem um prazo para que o governo a estabeleça. Ela não precisaria ser aprovada pelo Congresso.

Fusões e privatizações de entidades públicas

No texto, o governo se dá o poder de “centralizar, fundir, transformar o status legal, reorganizar, dissolver ou suprimir, total ou parcialmente, órgãos e entidades descentralizados criados por lei”.

Ou seja, permite juntar órgãos e empresas estatais caso considere que isso possa levar a uma maior economia ou racionalização na prestação de serviços.

No decreto da última semana, o governo Milei já havia facilitado o caminho para realizar a privatização das empresas públicas argentinas.

Educação: um teste como o Enem

Uma das reformas propostas consiste em estabelecer um exame obrigatório para todos os alunos que concluem o ensino médio. Seria algo semelhante ao Enem no Brasil.

Editado da Redação de O Estado de S. Paulo, em 27.12.23, às 20,30hs.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Gleisi e as ideias fora de lugar

A ideia de agenda vitoriosa é descabida; as críticas aos parceiros da vitória, idem

A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e o presidente Lula durante a abertura do 26º Encontro do Foro de São Paulo, em Brasília - Pedro Ladeira - 29.jun.23/Folhapress

Na conferência eleitoral do PT a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, defendeu uma proposta na qual se afirma que "as forças conservadoras e fisiológicas do chamado centrão, fortalecido pela absurda norma do orçamento impositivo num regime presidencialista, exercem influência desmedida sobre o Legislativo e o Executivo, atrasando, constrangendo e até tentando deformar a agenda política vitoriosa na eleição presidencial".

Aqui o confronto Executivo-Legislativo poderia sugerir uma questão de legitimidade dual (ambos os Poderes são eleitos) em regimes presidenciais a la Juan Linz. Mas se trata, na realidade, de ideias fora de lugar. O PT tem 68 deputados, meros 13% da Câmara. O PC do B e PV, de sua coligação, agregam 2%. Juntos, os blocos parlamentares liderados pelo União Brasil e Republicanos detêm 196 parlamentares, ou 62% da Câmara. A oposição —PL e Novo— conta com 99 deputados.

A referência à agenda vitoriosa na eleição presidencial é estapafúrdia. O pleito presidencial foi uma disputa de rejeições, não um confronto programático. E sequer foi formada uma frente ampla. O argumento que Lula recebeu mandato para implementar uma agenda é uma miragem majoritária em um contexto hiperfragmentado, em que o PT é francamente minoritário. O programa do partido ou da frente sequer apareceu durante a campanha.

Causa espécie também o ataque aos parceiros da coalizão de governo vindo da presidente de um partido hiperminoritário. O PT tem governado com coalizões a contragosto. Depende delas mas não as inclui plenamente nos governos. Em Lula 1, o mensalão foi uma forma de compensar a sub-representação dos membros da coalizão nos ministérios, como escrevi aqui. Sob Lula 3, a realidade hiperminoritária acabou se impondo. Mesmo assim a prática hegemônica do partido permanece. Suas principais consequências são os malogros legislativos do governo.

A referência a uma supostamente absurda norma do orçamento impositivo no presidencialismo é também esdrúxula, ignora a experiência de países como os EUA ou o semipresidencialismo francês. Nos EUA, o orçamento é globalmente impositivo. Suas práticas orçamentárias constituíram-se em modelo histórico sob democracias. O que é absurdo é a ausência de qualquer referência programática na formação de governos, como escrevi aqui.

A oportunidade das declarações merece comentário adicional: ocorreram na semana em que vetos presidenciais cruciais foram derrubados e às vésperas da aprovação da reforma tributária por 365 votos a favor e 118 contra —quórum avassalador que veio majoritariamente do centrão. O contraste sugere que a reforma reflete não a agenda do PT, mas uma agenda suprapartidária.

Marcus André Melo, o autor deste artigo, é Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 18.12.23

Um fundo de R$ 5 bilhões

Na hora de encarar o dinheiro, não há diferença entre Gleisi Hoffmann e Arthur Lira

Congresso Nacional, em Brasília — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Na hora de encarar o dinheiro, não há diferença entre Gleisi Hoffmann e Arthur Lira. Até o momento, nem o combativo PT, tampouco os notáveis do Centrão, todos com serviços prestados a seus próprios interesses corporativos, impuseram qualquer objeção a engordar o fundo eleitoral. Projeta-se um aumento do atual R$ 1 bilhão para insondáveis R$ 5 bilhões. Melhor colocar noutra moeda. Estamos falando em US$ 1 bilhão.

Seria uma distorção da democracia? Diante de um salário mínimo de R$ 1.320 brutos ou de R$ 300 mensais retirarem da linha de pobreza milhares de brasileiros, que dizer?

Desde a ditadura militar, o Brasil carrega uma democracia assemelhada a um pensamento mágico, distante, porém, de uma representatividade real. Para inglês ver. Nem a Constituinte de 1988 enfrentou o problema, além de transformar territórios — como Roraima e Amapá — em estados, portanto com direito a três senadores e a uma bancada de deputados federais. Mesmo que a população roraimense (atualmente 636 mil almas) fosse à época menor que a de Del Castilho.

Por causa dos espertos de sempre, permanece a distorção no número de representantes vis-à-vis habitantes. O último Censo — mais uma vez — mostrou o desequilíbrio entre o bruto populacional e a quantidade de deputados federais. A Constituição estipula entre oito e 70 deputados por estado — e o último ajuste ocorreu em 1993, quando o Brasil tinha 158 milhões de habitantes. Hoje somos perto de 203 milhões. O recenseamento do ano passado registrou no Amapá, dos senadores Davi Alcolumbre e Randolfe Rodrigues, cerca de 733 mil moradores — pouco acima da Zona Sul carioca (639 mil). Apenas a Região Metropolitana de São Paulo conta com mais de 22 milhões. A despeito dos números, vale lembrar que os dois políticos amapaenses defendem a exploração de petróleo na Margem Equatorial, ao lado da foz do Amazonas.

De acordo com o último levantamento, Alagoas, estado do deputado Arthur Lira, conta com cerca de 3 milhões de pessoas. Pelas regras constitucionais, a bancada alagoana deveria diminuir de nove para oito deputados. A Bahia, do ministro Rui Costa, perderia dois assentos. O Piauí, do senador Ciro Nogueira, também ficaria com menos dois representantes. O Paraná, da deputada Gleisi Hoffmann, manteria suas 30 cadeiras.

Quanto à ameaça de aumentar o fundo eleitoral para R$ 5 bilhões, façamos um paralelo simples. Neste ano, a dotação prevista para o Sistema Único de Segurança Pública também é de R$ 5 bilhões. O Susp não chega a ser uma realidade, assim como as emendas parlamentares (temos de pensar sempre nas ações administrativas de Arthur Lira e Juscelino Filho). Fosse mais bem dotado, o Susp ajudaria no combate à robustez das empresas multinacionais como PCC e Comando Vermelho e de outras regionais, mas promissoras, como Família do Norte. Permitiria o enfrentamento ao tráfico de armas e até a migração de criminosos entre os entes da Federação.

No Brasil, a democracia aparentemente representativa custa caro. Também não oferece meios de cobrar os serviços prestados pelos eleitos. Não há, e nem haverá, voto distrital — Deus não é brasileiro, está provado. Raros eleitores conhecem pessoalmente seus representantes. Um deputado ganha votos em Campo Grande, em Búzios e na Barra, mas mora em Ipanema. Não é de ninguém. Caso se candidatasse apenas por seu distrito, e lá colhesse seus votos, se eleito, quando tomasse um café na padaria, seria interpelado em sua base sobre sua posição contra ou a favor de determinado tema. A pulverização de votos ainda distorce os quadros de opinião da sociedade, em geral minoritários, sem oferecer um retrato real da população. Um distrito majoritariamente estudantil ou de eleitores mais jovens acaba diluído por grupos maiores de religiosos conservadores ou ruralistas. Em tese, todos são filhos de Deus.

Assim montada, a democracia tupiniquim perpetua, e não renova, portanto, o elenco de políticos (pense no atual Congresso Nacional) eleitos com o dinheiro de seu imposto. Depois não se pergunte por que existem dinastias políticas. Não houvesse tal fundo — R$ 5 bilhões, Gleisi? —, os candidatos a cargos eletivos ou usariam seus próprios recursos ou teriam de receber doações de pessoas físicas. Para isso, teriam de encontrar eleitores que se identificassem com suas ideias a ponto de lhes dar apoio financeiro. Seria o momento adequado para dar o troco.

 Miguel de Almeida, o autor deste artigo, é editor e diretor de cinema. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 18.12.23

Orçamento vai a plenário repleto de distorções

Comissão mista inflou fundo eleitoral e emendas parlamentares, tirando autonomia do Executivo


O Congresso Nacional em Brasília — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

O relatório final da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), aprovado na semana passada na Comissão Mista de Orçamento (CMO) do Congresso, confirmou as piores expectativas: deputados e senadores tentam aumentar o dinheiro das emendas parlamentares e controlar seus prazos de execução, em detrimento do planejamento do Executivo. Se nesta semana for aprovado como está, representará um retrocesso.

Com o fim das emendas do relator, os parlamentares têm agora à disposição três tipos de emenda: individual (proposta por senadores ou deputados), de bancadas estaduais e de comissão (apresentada pelas comissões técnicas e mesas diretoras da Câmara e do Senado). As duas primeiras são impositivas — de pagamento obrigatório. Havia o temor de que o texto da LDO, sob relatoria do deputado Danilo Forte (União-CE), também tornasse impositivas as emendas de comissão. Felizmente, isso não aconteceu.

Orçamento: Comissão aprova LDO de 2024 com meta de déficit zero e R$ 48 bilhões em emendas parlamentares

Em contrapartida, o texto aumentou em 61% o total das emendas de comissão (para R$ 11 bilhões) e em 23% as individuais e de bancada (para mais de R$ 37 bilhões). Com isso, cada deputado terá direito a alocar R$ 37,8 milhões e cada senador R$ 69,6 milhões ao longo do ano. Não satisfeitos com o valor, os parlamentares da CMO estabeleceram prazos para o governo analisar as emendas individuais e de bancada e empenhar os recursos: 105 dias para as emendas individuais e 90 dias para as de bancada. Na ausência de problema técnico, o dinheiro deverá ser liberado em 30 dias. Em ano eleitoral, o Parlamento tenta garantir o dinheiro logo no primeiro semestre.

Nas democracias, é comum congressistas influírem na alocação de recursos com emendas que beneficiam seus redutos. No Brasil, porém, elas perderam a proporção: o total foi multiplicado por nove desde 2015. E o Parlamento tem feito o possível para tornar o pagamento obrigatório, reduzindo a autonomia do Executivo para cumprir a missão constitucional de executar o Orçamento. Num momento em que o próprio Congresso clama por harmonia entre os Poderes, deveria saber se conter, preservando a função precípua de votar o Orçamento, mas evitando hipertrofia nos próprios recursos.

Orçamento: Relator da LDO define teto do fundo eleitoral em R$ 4,9 bilhões, cinco vezes mais do que o proposto pelo governo

O dinheiro das emendas é canalizado levando em conta interesses políticos, não necessidades urgentes ou critérios técnicos. Todos os municípios brasileiros demandam investimentos. Mas, ao tirar do governo a capacidade de priorizar as prefeituras com carências prementes, as emendas tornam a ação do Estado mais injusta e mais cara. Um município ganha um posto de saúde, enquanto outro ao lado fica sem nenhum. Ainda que os parlamentares conheçam suas bases eleitorais, elas seriam mais beneficiadas por meio de políticas públicas elaboradas pelas equipes técnicas dos ministérios. Sair distribuindo dinheiro a esmo só contribui para deteriorar as contas públicas.

Não é apenas nas emendas que o relatório final da LDO decepciona. O texto ainda manteve um fundo eleitoral de R$ 4,9 bilhões para financiar as eleições municipais — quase o dobro do gasto no pleito de 2020 (R$ 2,5 bilhões, em valores corrigidos). Tal valor fará do Brasil o país com maior gasto per capita entre aqueles com financiamento público de campanha. O plenário do Congresso ainda pode corrigir os erros, mas para isso os parlamentares teriam de demonstrar um desprendimento que até agora tem sido escasso.

Editorial de O GLOBO, em 18.112.23

domingo, 17 de dezembro de 2023

A retórica perdulária de Lula

O presidente diz que o País só vai crescer se se endividar, classifica a responsabilidade fiscal como um problema e desmoraliza mais uma vez seu ministro da Fazenda

O presidente Lula da Silva estava animado na última reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, conhecido como Conselhão. Em discurso, declarou que não vê nenhum problema em fazer dívida para gerar crescimento econômico, tornou a questionar a meta de déficit zero defendida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e ainda incluiu a inflação entre os parâmetros que podem ser ignorados em nome da necessidade de estimular a economia. Ou seja, Lula corroborou, praticamente na íntegra, o documento irresponsável do PT que, dias antes, defendeu que o governo dê uma banana para os limites fiscais em nome da necessidade de ganhar eleições – a única coisa que realmente importa para o lulopetismo.

“Se for necessário este país fazer um endividamento para crescer, qual é o problema?”, questionou Lula. Em vez de fazer essa pergunta retórica, o presidente poderia ter consultado seu ministro da Fazenda, que certamente saberia lhe explicar que endividamento não gera crescimento, mas inflação, juros altos e estagnação. Se gastança fosse solução, o Brasil, cujo Estado é perdulário praticamente desde a Independência, teria crescimento chinês.

Enquanto o pobre ministro da Fazenda tenta encontrar tostões nos bolsos das calças para fechar as contas de um governo com cada vez menos recursos, o presidente desmoraliza publicamente seu esforço: “Eu não quero saber de onde a gente vai ter dinheiro”.

O flerte de Lula com a irresponsabilidade fiscal está se transformando em relacionamento sério. A certa altura de sua arenga, o chefão petista declarou que já conhece “o caminho das pedras” e que, portanto, é preciso “decidir agora se vamos retirar essas pedras ou não”, isto é, “se a gente vai chegar à conclusão que, olha, por um problema da Lei de Responsabilidade Fiscal, de superávit primário, de inflação, a gente não poder fazer”.

Ou seja, Lula considera que a Lei de Responsabilidade Fiscal é um “problema” a ser ignorado, uma “pedra” a ser removida, em nome do crescimento econômico. No mesmo fôlego, desestimou o caráter inflacionário do endividamento. Esse é o receituário do desastre, como já deveria ter ficado claro para um presidente que está em seu terceiro mandato e que teve bastante tempo para aprender com seus próprios erros e com os de sua inesquecível criatura, Dilma Rousseff, cujo mote “gasto é vida” ornou a maior recessão da história recente do País.

Não há milagre. Somente o aumento da produtividade da economia é capaz de induzir períodos de crescimento perenes e estáveis. Não basta ampliar de forma desmedida qualquer tipo de investimento sem considerar a qualidade desses gastos nem a óbvia necessidade de encontrar as receitas correspondentes – isso num país já sufocado por imensa carga tributária. Não adianta escolher a dedo setores a serem estimulados nem “campeões nacionais” a serem financiados sem considerar as condições da economia brasileira e sua capacidade de competir e se integrar com as cadeias globais.

Lula parece convencido de que ainda estamos na primeira década do século, quando o mundo vivia o superciclo de commodities, que gerou o vigoroso crescimento brasileiro registrado em alguns daqueles anos. Não há nada parecido com isso no horizonte.

Não se trata de demonizar o papel da política fiscal para reativar a economia durante turbulências, como a crise financeira mundial de 2008 e a pandemia de covid-19. Mas é fundamental que todo governo minimamente responsável saiba a hora de retirar os estímulos para deixar a economia voltar a andar com as próprias pernas. Lula, ao contrário, acha que é função dele guiá-la pelo melhor caminho.

Contrariando todas as expectativas, felizmente o País deve encerrar o ano com um crescimento de 3%. É um crescimento robusto, muito puxado pelo agronegócio. Seria o momento ideal de investir em uma política fiscal anticíclica, que dialogue com a política monetária e crie um espaço fiscal para que a sociedade possa enfrentar momentos de crise – que sempre virão – de uma forma menos penosa.

É, contudo, o exato oposto do que Lula defende. Para ele, basta querer – e gastar – que os problemas acabam.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.012.23

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Democracia cara, oportunismo barato

Arranjos para viabilizar um fundo eleitoral de inacreditáveis R$ 5 bi em 2024 revelam que parlamentares já nem disfarçam que seus interesses estão muito acima dos interesses do País

Às vésperas do recesso de fim de ano em Brasília, poucas coisas têm perturbado tanto o sono dos parlamentares quanto a busca frenética de meios para encaixar no Orçamento um aumento recorde do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, o chamado fundo eleitoral, com vista às eleições municipais de 2024. A desfaçatez das tratativas revela que simulacros de republicanismo – como a falácia segundo a qual a democracia, ora vejam, “tem um custo” – já foram deixados para trás. A barreira da suposta preocupação com a opinião pública também já foi superada. A coisa começa a descambar para o escárnio.

O governo do presidente Lula da Silva propôs na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) um fundo de R$ 939,4 milhões para cobrir as despesas dos partidos com as eleições municipais de 2024. Já é muito dinheiro público para um fundo que nem sequer deveria existir, a bem da democracia representativa no Brasil. Mas, insaciáveis que são, os parlamentares ainda acham pouco, inclusive os do PT, partido de Lula. A revelar que a caradura não conhece limites, as bancadas da maioria dos partidos no Congresso se articulam para aprovar um fundo eleitoral de inacreditáveis R$ 5 bilhões em 2024.

Ignorando olimpicamente o fato de que o País está caçando moedas nos bolsos da calça para equilibrar as contas sem prejuízo de políticas públicas essenciais para a esmagadora maioria da população, os parlamentares seguem orientados por seus interesses particulares quando estes colidem com o interesse público. Como dinheiro não brota do chão, o aumento de mais de R$ 4 bilhões do fundo eleitoral, considerando o valor proposto na LDO e o desejo da maioria dos parlamentares, haverá de sair de alguma alínea do Orçamento. É quase certo que privilégios que fazem desta uma “República inacabada”, para usar a expressão de Faoro, seguirão intocados.

Uma das alternativas à mesa é abater aquela diferença bilionária do total de recursos destinados às emendas de bancada, que somam R$ 12,6 bilhões em 2024. Ou seja, para aumentar o fundo eleitoral, deputados e senadores teriam de abrir mão de recursos dos quais pode dispor o conjunto de parlamentares de cada Estado e do Distrito Federal. Eis o impasse. Se bem feitas, as emendas podem custear políticas públicas que têm impacto direto na vida dos cidadãos e lançam luz sobre seus patrocinadores. O fundo eleitoral, por sua vez, fortalece as candidaturas de aliados políticos ou dos próprios parlamentares que concorrerão a prefeito no ano que vem.

Conhecendo-se o histórico do Congresso em deliberações sobre temas que tocam diretamente os interesses dos parlamentares e dos partidos, não é improvável que esse impasse seja resolvido da pior forma possível para o País, qual seja: ao fim e ao cabo, as emendas de bancada, entre outras, serão preservadas e outras alíneas do Orçamento é que acabarão sacrificadas para que o fundo eleitoral atinja o patamar recorde de R$ 5 bilhões no ano que vem.

Desde 2015, quando o Supremo julgou, acertadamente, que as doações de empresas para financiamento de campanhas eleitorais eram inconstitucionais – pela óbvia razão de que pessoas jurídicas não são titulares de direitos políticos –, parlamentares de todos os matizes político-ideológicos têm feito de tudo para, eleição após eleição, aumentar cada vez mais o quinhão do Orçamento que abastece o fundo eleitoral. Só não têm feito o que deveriam fazer: aproximar-se da sociedade e angariar o apoio de eleitores dispostos a contribuir, por meio de doações, para o custeio tanto das atividades dos partidos com os quais têm afinidade como para suas campanhas eleitorais.

Porém, mal acostumados, aboletados no conforto do dinheiro público farto, fácil e seguro que abastece os cofres dos partidos, os parlamentares têm percorrido o caminho diametralmente oposto, fechando-se cada vez mais em seus próprios interesses, como se o Congresso fosse um mundo à parte.

Se, como apregoam os defensores dos fundos públicos, a democracia “tem um custo”, a brasileira tem se revelado cara demais.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 13.12.23

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

A sabedoria de Minerva de volta aos tribunais

Dois milênios e meio depois, a sábia prática judicante da divindade está para ser expressamente incorporada no ordenamento jurídico brasileiro


Se seis julgadores decidem que o réu é culpado e outros seis proclamam a sua inocência, qual deve ser o veredicto do juiz que preside a corte julgadora e que vota por último?

A resposta foi dada em 458 a.C., na obra A Oréstia, em que Ésquilo concebeu os fundamentos do tribunal popular, presidido pela deusa Palas Atena. Naquele panteão, estava em julgamento Orestes, que vingou o assassinato do pai, o general Agamenon, matando a própria mãe, Clitemnestra, e o amante dela, Egisto. Entronizada no Olimpo como deusa da justiça, da liberdade e da sabedoria, Atena pontificou que o empate em qualquer julgamento consubstancia irresolução, traduz dúvida e expõe a ausência de certeza da culpa, e fundamentou-se no que viria a se tornar o famoso brocardo in dubio pro reo. Ao prolatar a decisão de desempate em favor de Orestes, Atena legou com esse gesto a jurisprudência segundo a qual se há dúvida, absolva-se o réu!

A deusa grega tomou o nome de Minerva na mitologia romana, quando encarnou a virtude da misericórdia, e sua decisão ficou conhecida, a partir do latim, como Voto de Minerva – o voto de desempate que é sempre de absolvição – non liquet –, jamais de condenação.

Dois milênios e meio depois, a sábia prática judicante da divindade está para ser expressamente incorporada no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O Projeto de Lei n.º 3.453/2021, do deputado Rubens Pereira Júnior (PT-MA), já foi aprovado pela Câmara dos Deputados e acaba de receber, com uma única emenda, beneplácito na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, e vai agora ao plenário, de onde, se também aprovado, retornará à Câmara, porque os senadores introduziram leve alteração no texto. A tramitação pacífica indica, no entanto, que será promulgada uma lei que obriga os tribunais, especialmente os superiores, a adotarem essa milenar prática civilizada nos julgamentos criminais.

A lei estará a determinar que, quando houver empate no julgamento por colegiado em razão da ausência de um de seus membros – tanto pela ocasional vacância do cargo quanto por pessoal impedimento de juiz –, considera-se o julgamento consumado com a decisão mais favorável ao réu. É dizer: não será necessário interromper o julgamento e aguardar a chegada de um novo juiz ou convocar membro de outro órgão para proferir o voto final. Obriga, também, o julgador à concessão de habeas corpus de ofício, à vista de ilegalidade contra a liberdade pessoal.

Dir-se-á que a nova lei não irá positivar, propriamente, o Voto de Minerva em sua exata significação originária. No caso do pleno do STF e a depender da matéria em cognição, se dez juízes se dividirem em grupos de cinco com posição antagônica, ainda poderá dar-se que o presidente profira o voto determinante em qualquer direção, inclusive contra o réu, ignorando o modelo civilizatório. Convém esperar, no entanto, que os que ocupam a presidência dos tribunais, mortais que são, não se julguem mais iluminados (ou seria “iluministas”?) que a própria deusa da sabedoria.

Antes que a doutrina de Linch, professada pela “voz das ruas”, já acuse a futura lei de incrementar a impunidade ou de impor aos juízes leniência com acusados que ela considere antecipadamente culpados, é mister invocar o dogma civilizado da liberdade como regra e a presunção de inocência constitucionalmente proclamada como princípios basilares do Direito civilizado.

Apanágio indissociável do devido processo legal, tal garantia cintila no artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição da República, que estatui: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Encontra-se claramente estatuído, portanto, que todo acusado é inocente até receber uma condenação definitiva, que não possa ser alterada por via recursal. A condenação, por seu decisivo significado e sua validade, deve apresentar-se isenta de quaisquer dúvidas acerca da culpa do imputado. No caso dos órgãos colegiados, é imperativo que o édito condenatório seja lavrado a partir da maioria dos votos, a demonstrar a convicção majoritária dos julgadores, despida da incerteza que o empate de juízos expressa.

Já abordei o tema no artigo A sabedoria de Minerva no STF (Consultor Jurídico, 1/11/2019), tratando ilustrativamente da decisão do Supremo Tribunal Federal de negar habeas corpus preventivo ao cidadão Luiz Inácio Lula da Silva. O então ex-presidente da República pleiteava o direito de permanecer em liberdade até que fossem julgados os recursos manejados por sua defesa técnica nos processos a que respondia. Cinco ministros julgaram a favor, cinco contra, mas o voto de Minerva da presidente, que nem merecia essa designação, negou-lhe o direito, e ele foi injustamente preso. Ao fim isentado, ficaria demonstrado, e aceito pelo próprio STF, que era injusta e abusivamente acusado, e merecia o voto-lição libertário da deusa de quem o Judiciário então se esqueceu.

José Roberto Batochio, o autor deste artigo, é advogado criminalista. Foi Presidente nacional da OAB e Deputado Federal (PDT-SP). Publicado originalmente no O Estado de S. Paulo, em 12.12.23

Sinceridade petista

Ao se queixar do ‘austericídio fiscal’ de Haddad e dizer que o partido não terá voto se governo economizar dinheiro, cúpula do PT mostra-se perfeitamente alinhada a pensamento de Lula

A cúpula do Partido dos Trabalhadores (PT) não se emenda. As divergências expostas durante a Conferência Eleitoral da legenda demonstraram de forma cristalina a enrascada em que se encontra o ministro Fernando Haddad, sobretudo no debate dentro do governo sobre a meta de zerar o déficit primário em 2024, prevista no novo arcabouço fiscal. Pelo que se viu no fim de semana, se depender do PT o governo mandará às favas qualquer controle das contas públicas. Para o pensamento petista, há uma coisa muito mais importante do que o equilíbrio macroeconômico: votos.

Coube à presidente do partido, Gleisi Hoffmann, demarcar o tom e a intensidade da artilharia – que, a propósito, ignora o fato de que é o equilíbrio macroeconômico que dá sustentação a qualquer governo no longo prazo. Em debate com Haddad, Gleisi expôs o seu raciocínio primitivo em matéria econômica: “Se o privado não está bem, o Estado tem que entrar com tudo. O que tem de ser feito ano que vem: executar o Orçamento inteiro, não é um déficit que vai mudar (a situação do País)”, afirmou Gleisi. Ela reforçou a ideia – já antecipada pela repórter Vera Rosa neste Estadão – sobre o que a cúpula petista chama de “austericídio fiscal”. Daí concluiu que o governo não deveria se preocupar com o resultado fiscal.

O líder do PT na Câmara, José Guimarães, foi sincero: “Se tiver que fazer déficit, vamos fazer, ou a gente não ganha a eleição”. Ou seja, segundo Guimarães e os muitos petistas que pensam como ele, a meta de zerar o rombo das contas públicas pode fazer com que a sigla perca as eleições municipais.

Haddad parece estar cada vez mais sozinho e inspira os temores de que a meta do déficit zero não passa de um esforço isolado da equipe econômica, sem amparo no próprio governo. Primeiro, porque, conhecendo as engrenagens de funcionamento do PT e do governo, é difícil acreditar que os movimentos de Gleisi, Guimarães et caterva não tenham o aval do presidente Lula da Silva. Segundo, porque há uma avaliação majoritária no partido de Lula de que o governo terá de contingenciar recursos de emendas parlamentares e de investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para cumprir a meta fiscal no ano que vem, o que prejudicaria o envio de verba para aliados dos petistas nos municípios.

A possibilidade de contingenciamento é real porque assim funcionam boas políticas fiscais. Mas a cúpula petista – leia-se Lula – parece não ter entendido nem aprendido nada com a história, com seus mandatos e com os próprios sucessos e fracassos. Onde o PT enxerga arrocho ou coisa que o valha é, na verdade, a chave para o crescimento econômico. Desenvolvimento, como disseram alguns economistas em reação às declarações do fim de semana, não é fruto de gasto público mal feito, e sim de investimentos – e nada disso se consegue de maneira sustentável sem que a casa fiscal esteja arrumada. No debate com Gleisi, Haddad, com razão, lembrou-lhe que não é verdade que déficit faz a economia crescer nem que superávit a faça encolher.

Não é de hoje o esforço petista para desmoralizar sistemas de metas de superávit primário e gestões que deveriam se pautar pelo óbvio: o cumprimento da lei. Em 2015, no segundo mandato de Dilma Rousseff, o então ministro Joaquim Levy tinha no PT um dos seus principais algozes no Congresso, até a ponto de eliminar qualquer resquício de credibilidade perdida no mandato anterior e que a equipe econômica tentava reconstruir. O resultado, sabemos: deterioração fiscal crescente, desequilíbrio macroeconômico e perda contínua de apoios até culminar com a crise política de 2016. A lição pareceu insuficiente, porque o PT fez o que costuma fazer: pôs o fracasso na conta de forças externas.

Haddad precisará muito mais do que qualquer competência argumentativa. Só um árbitro pode conter os delírios petistas e estimular a sensatez: Lula da Silva. Mas sobre ele pesarão não apenas os ecos da cúpula petista, como também as pressões das últimas pesquisas, que apontam viés de baixa em sua popularidade. Diante disso, Lula já concluiu que a solução é a gastança – e mandou seus sabujos no PT dizerem isso em voz alta.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 1212.23

Por que a esquerda é incapaz de promover a segurança pública?

 Há muito discurso sobre causas sociais do crime, mas nada sobre enfrentamento

Polícia isola área na zona oeste de São Paulo após assalto e morte, em novembro - Reprodução/TV Globo

Vejo no WhatsApp um vídeo de linchamento em Copacabana. São homens e mulheres, jovens e idosos, brancos, mestiços e negros —uma multidão— surrando um jovem negro que tenta fugir desesperado. O vídeo não traz contexto, mas é de se supor que o sujeito tenha sido pego roubando. É uma cena bárbara.

Jamais defenderei a formação de grupos de justiceiros, mas alguém acha que a população ficará passiva apenas assistindo vizinhos, amigos e familiares vitimados pelo crime violento sem fazer nada, enquanto o Estado negligencia sua atribuição mais elementar?

Está corretíssimo quem aponta os problemas desse tipo de iniciativa. Fácil, fácil ela pode se transformar em mais uma milícia do crime organizado. O único jeito, contudo, de impedi-la é apresentar a alternativa: o Estado mostrar-se eficaz contra assaltos e arrastões. Se a polícia agora vier investigar e prender os responsáveis pelos grupos de justiceiros, enquanto continua a não fazer nada contra os assaltantes, estará apenas aprofundando o completo sentimento de abandono —e a indignação— do povo.

A humanidade não consegue entrar em acordo quanto ao sumo bem. Mas podemos, sim, nos unir para evitar aquilo que todos concordamos ser o sumo mal: a morte violenta, nossa ou de nossos entes queridos. Essa é a base do contrato social e da fundação do Estado, ao menos segundo Hobbes. Vivemos, portanto, a falência do contrato social em diversas cidades brasileiras: o medo da morte violenta é cotidiano.

Os furtos em Copacabana aumentaram 56% de janeiro a outubro de 2023 se comparados ao mesmo período de 2022. Já as prisões caíram 11%. Com a onipresença das câmeras, em postes, muros e celulares, hoje vemos muito mais do que no passado. Assaltos, arrastões, furtos. Uma jornalista da Rede Globo sofreu tentativa de furto do celular durante transmissão em São Paulo. Poucos dias depois, a deputada federal Tabata Amaral foi vítima de tentativa de assalto também em São Paulo.

Na direita, a resposta mais fácil é culpar Lula. Um discurso fácil, que se esquece de que quem cuida da segurança pública são principalmente governo do estado e prefeitura. No entanto a acusação tem seu fundinho de verdade em outro sentido: a esquerda é um vazio de propostas no tema da segurança. Quando falam de polícia e prisão, a única preocupação é garantir os direitos humanos dos presos. Isso é louvável, mas por que não se preocupar também com os direitos humanos das vítimas presentes e futuras? A proteção desses depende do uso da violência contra os criminosos que as atacam.

Há muito discurso sobre as causas sociais do crime, mas nada sobre como enfrentá-lo agora. Não adianta propor medidas de prevenção contra incêndio quando o prédio já está pegando fogo.

Ter presos em flagrante liberados por audiência de custódia ou, depois de pouco tempo presos, em regime de progressão de pena é um desrespeito a quem segue a lei. Precisamos de mais policiamento, de uma Justiça mais dura com quem comete furtos e assaltos e, possivelmente, de mais presídios.

Há tanta filmagem  e criminosos nas ruas; como é que isso não resulta em investigação e prisões? Há bastante trabalho para as três esferas do Executivo e do Legislativo. A violência sempre irá existir; a única escolha é se ela será monopólio do Estado ou se será terceirizada para os cidadãos, jogando-nos para a guerra de todos contra todos. Só existem essas duas opções, e não há discurso idealista que apague essa realidade.

Joel Pinheiro da Fonseca, o autor deste artigo, é economista e mestre em filosofia pela USP. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 11.12.23, às 20h21

Delírios petistas

Não convém que só Haddad defenda racionalidade ante teses tresloucadas da sigla

Gleisi Hoffmann, deputada federal e presidente do Partido dos Trabalhadores (PT) - Adriano machado/Reuters

Na fantasia do PT, apenas interesses perversos e forças malignas o impedem de solucionar todas as carências do país —em renda, educação, saúde, saneamento, infraestrutura— por meio do aumento contínuo do gasto público.

Por caricatural que pareça, o delírio se repete, em formulações variadas, nas manifestações de seus quadros e nos inúmeros documentos divulgados ao longo dos mais de 40 anos de vida do partido. No mais recente, datado de sexta-feira (8), a legenda arremete contra "a ditadura do Banco Central ‘independente’ e do austericídio fiscal".

O tal austericídio, sabe-se, é a meta apresentada pelo próprio governo petista de equilibrar as receitas e despesas do Tesouro Nacional no próximo ano, eliminando o déficit. Esse propósito seria uma imposição de um BC atrelado ao mercado financeiro, de rentistas e, claro, seus porta-vozes na mídia.

Assim o explicitou a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, que no dia seguinte, em evento partidário, apresentou publicamente sua divergência ao ministro Fernando Haddad, da Fazenda, com a defesa de um rombo de até 2% do PIB. Fala-se aqui de mais de R$ 200 bilhões.

Seria menos perigoso se desvarios do gênero não passassem de bravatas para inflamar militantes. Viu-se sob Dilma Rousseff, porém, que a fé cega na capacidade infinita do Estado pode gerar desastres reais. Agora, o PT não se constrange em enfraquecer Haddad, um quadro seu, e pôr em risco o governo.

Pouco importa à sigla que a meta de déficit zero seja objeto de descrédito unânime. A mera tentativa de reduzir o gigantesco desequilíbrio das contas, por meio de algum controle da despesa, já é tida como um arrocho cruel.

O setor público brasileiro gasta algo como 40% do PIB, sem considerar os encargos com juros. Trata-se de um dos maiores patamares do mundo. Incluídos os juros, o déficit próximo de 8% do PIB supera o de quase todas as principais economias. A dívida, de 75%, tem poucos paralelos entre emergentes.

Enxergar austeridade excessiva nesse cenário é alucinação que faz o PT crer que, com ainda mais gasto e déficit, fará a atividade econômica se expandir e gerar mais receita —tese que Haddad cuidou, diplomaticamente, de desmentir.

Justifica-se elevar a despesa quando o país está em recessão e é preciso estimular o consumo e o investimento. Já tomar esse expediente como moto-contínuo levaria, mais uma vez, a uma espiral de dívida, inflação, juros e baixo crescimento.

Não convém que o ministro da Fazenda assuma o papel de defensor solitário da racionalidade no partido e no governo. Luiz Inácio Lula da Silva, que se apraz em arbitrar os embates petistas, já cometeu a imprudência política de esgarçar as contas do Tesouro logo no primeiro ano de mandato.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 12.12.23 (editoriais@grupofolha.com.br)

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

O Supremo como fiador da governabilidade

Mais do que uma arena essencialmente política, o STF tornou-se, para o Executivo, um aliado indispensável para contrastar o poder de um Congresso fragmentado e incontrolável

Os últimos anos deram ao Supremo Tribunal Federal (STF) um papel inédito no arranjo institucional brasileiro, transformando a Corte numa arena essencialmente política. O tribunal expandiu gradualmente seus tentáculos políticos, ocupando o vácuo deixado pela fragilidade do sistema representativo para exercer simultaneamente os papéis de intérprete da Constituição e ator legislativo, não raro se impondo ao Congresso. Essa condição foi se aguçando passo a passo até a Corte adquirir, nos últimos dez anos, absoluta centralidade para o funcionamento do poder. O resultado disso aparece agora: do papel ora de moderador, ora de tensionador da República, o STF assumiu uma condição de fiador da governabilidade do País. O recente debate em torno da indicação do ministro da Justiça, Flávio Dino, para a vaga deixada pela ministra Rosa Weber é parte desse processo.

O chamado presidencialismo de coalizão, modelo político no qual se assentou a governabilidade brasileira depois da Constituição de 1988, entrou em crise justamente nesses últimos dez anos, algo admitido pelo próprio criador do termo, o cientista político Sérgio Abranches. O Brasil não mudou seu modelo político, afinal ainda é presidencialista e multipartidário, mas ocorreram mudanças estruturais e comportamentais que nos trouxeram a essa nova governabilidade. O número excessivo de partidos, a diminuição das bancadas, a onda bolsonarista que rompeu aquele bipartidarismo vigente entre 1994 e 2014, a radicalização da política e o fortalecimento do Congresso deixaram o Executivo fragilizado. 

E assim o presidente Lula da Silva chegou à Presidência em 2023 com muito mais dificuldades na gestão de sua coalizão do que nos dois primeiros mandatos. Isso se deu não apenas porque cometeu o grave erro de ignorar, na formação do governo, a frente ampla que o apoiou no segundo turno para enfrentar Jair Bolsonaro. Também ocorreu por uma conjuntura desfavorável ao Executivo: um Congresso fortalecido pelos poderes orçamentários adquiridos nos últimos anos, presidentes da Câmara e do Senado politicamente fortes, uma maioria parlamentar hostil e indócil e um sistema partidário menos fragmentado, porém com bancadas médias, que se unem em blocos para aumentar o número de deputados e melhorar sua participação em comissões. Tudo isso transformou as maiorias parlamentares mais instáveis, variando de tamanho a depender do tema, exigindo mais tempo e mais recursos. A governabilidade tornou-se mais penosa.

O outro elemento dessa conjuntura está fora da esfera legislativa: o Supremo Tribunal Federal. Empolgado com o papel de gabinete regulatório da crise política brasileira, o STF esticou excepcionalmente os limites de sua atuação para frear a ameaça real de ruptura prometida pelo bolsonarismo. Até aí era o que se esperava de um Poder cuja missão é zelar pelo cumprimento da Constituição. O problema é que, passada a ameaça, o Supremo parece ter se recusado a voltar para a casinha. No paralelo, como este jornal já sublinhou, ministros se deixaram influenciar pelo excesso de protagonismo, inspiraram-se nos voláteis humores da política (a ponto de influenciá-los), relativizaram direitos e atropelaram garantias em nome da salvação da democracia. As patologias já eram visíveis há algum tempo e demonstradas em pesquisas empíricas, mas o poder monocrático de ministros revelou sua força danosa sobre a credibilidade da instituição.

Uma Suprema Corte que é determinante para a política de um país é um daqueles desvios de rota que a democracia vai precisar corrigir, para evitar excessos e conter riscos presentes e futuros. Em princípio, teríamos aí simplesmente o funcionamento do sistema de pesos e contrapesos, no qual os Três Poderes se complementam e se controlam. Mas não deixa de ser perturbador ver o presidente indicar ao Supremo um ministro com notório saber político com o claro objetivo de buscar a governabilidade.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 11.12.232

Congresso gastador

Parlamentares não definem Orçamento e buscam mais despesas em benefício próprio

Prédio do Congresso Nacional, em Brasília (DF) - Roque de Sá/Agência Senado

O atual estado de desordem nas finanças públicas não se deve apenas ao ímpeto perdulário do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Sob o comando do centrão, o Congresso concorre para a alta dos gastos, reduz a qualidade das políticas públicas e eleva as incertezas.

Estamos em dezembro e os parlamentares nem mesmo concluíram a votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2024 —vale dizer, o conjunto de regras que deveria ter sido aprovado no primeiro semestre para orientar a elaboração do projeto de Orçamento do ano seguinte.

Com LDO e Orçamento em aberto, deputados e senadores aproveitam o corre-corre de final de ano na tentativa de extrair mais dinheiro do contribuinte em proveito próprio e de seus partidos.

Em uma frente, busca-se aumentar de já exorbitantes R$ 37,6 bilhões para quase R$ 50 bilhões o total de recursos reservados no próximo ano para as emendas parlamentares, ou seja, as despesas a cargo do Tesouro definidas diretamente pelos congressistas.

Nelas predominam obras e eventos nos redutos políticos de cada um dos 513 deputados e 81 senadores —um ativo eleitoral particularmente importante num ano de pleitos municipais.

Decorrência do enfraquecimento da Presidência nos últimos anos, a escalada das emendas pulveriza montantes crescentes de dinheiro público em projetos paroquiais, sem maiores considerações de mérito e prioridade.

É também sem tais critérios que a Câmara pressiona pela ampliação para R$ 4,9 bilhões do fundo eleitoral, pelo qual o erário financia desde 2018 as campanhas eleitorais. Há R$ 900 milhões reservados para ele no projeto de Orçamento do próximo ano.

O lobby das burocracias partidárias tem ocorrido ano sim, ano não, dado o calendário de pleitos no país. Desta vez, como se trata de disputa por cargos de prefeito e vereador, nem mesmo se pode empregar o surrado argumento de que os candidatos terão gastos com longas viagens.

O risco é que o despautério una situação e oposição, dado que os principais partidos têm direito a parcelas maiores do fundo.

Fato é que qualquer nova despesa, num governo cujo déficit disparou neste ano, será sempre coberta por mais endividamento público —uma conta invisível empurrada à sociedade, enquanto os parlamentares obtêm ganhos palpáveis.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 11.12.23 (editoriais@grupofolha.com.br)

O primeiro discurso de Javier Milei como presidente da Argentina, em 12 frases

A extrema-direita levantou o espectro do pânico económico e alertou na sua primeira mensagem à nação para um corte de 20 mil milhões no sector público e um agravamento da situação no curto prazo.

Javier Milei discursa diante do Congresso Nacional, neste domingo em Buenos Aires. (Foto: CASA DE SM O REI (EFE) | SARA GONZALEZ)

No domingo, 10 de dezembro, Javier Milei fez seu primeiro discurso como presidente da Argentina nas escadas do Congresso. A extrema direita recebeu o bastão de comando do peronista Alberto Fernández na cerimônia de posse, mas quebrou o protocolo e não se dirigiu aos legisladores da Assembleia em sua primeira mensagem oficial. Milei descreveu uma perspectiva económica dura e alertou os argentinos que os próximos meses serão de mais inflação e mais pobreza.

Estas são as 12 frases mais relevantes do discurso de posse de Javier Milei:

Inflação 15.000%. “Esse é o legado que eles nos deixam: uma inflação plantada de 15.000% ao ano, que vamos lutar com unhas e dentes para acabar. Consequentemente, não há solução alternativa para o ajuste, não há dinheiro.”

Corte de 5 pontos do PIB. “A solução implica, por um lado, um ajustamento fiscal no sector público nacional de 5 pontos do PIB [20 mil milhões de dólares], que, ao contrário do passado, recairá quase inteiramente sobre o Estado e não sobre o sector privado . ”

Declínio e declínio. “Hoje começa uma nova era na Argentina . “Hoje encerramos uma longa e triste história de decadência e declínio e iniciamos o caminho da reconstrução do nosso país.”

100 anos de pobreza. “Infelizmente, a nossa liderança decidiu abandonar o modelo que nos enriqueceu e abraçou as ideias de liberdade e as ideias empobrecedoras do coletivismo. Há mais de 100 anos, os políticos insistem em defender um modelo que só gera pobreza, estagnação e miséria”.

Última bebida ruim. “Esta é a última bebida ruim para iniciar a reconstrução da Argentina . Ou seja, haverá luz no fim do caminho.”

Queda de salários. “Eles arruinaram nossas vidas. Eles nos fizeram baixar nossos salários 10 vezes. Portanto, não devemos surpreender-nos com o facto de o populismo nos deixar com 45% de pobres e 10% de indigentes.”

O choque vem. “Não há espaço para discussão entre choque e gradualismo. Naturalmente, isto terá um impacto negativo no nível de atividade, no emprego, nos salários reais e no número de pessoas pobres e indigentes.”

Narcos e violência. “Nosso país foi sequestrado por traficantes de drogas e pela violência. “As nossas forças de segurança foram humilhadas durante décadas, foram abandonadas por uma classe política que virou as costas a quem cuida de nós”.

Ação imediata. “A situação na Argentina é crítica e emergencial. Não temos alternativas e também não temos tempo. Não temos espaço para discussões estéreis. Nosso país exige ação e ação imediata. “A classe política deixa um país à beira da crise mais profunda.”

100 anos de desperdício. “Vamos tomar todas as decisões necessárias para resolver o problema causado por 100 anos de desperdício da classe política. Mesmo que seja difícil no início. Sabemos que no curto prazo a situação irá piorar. Mas então veremos os frutos dos nossos esforços.”

Sem vinganças. “Quanto à classe política argentina, quero dizer-lhes que não viemos para perseguir ninguém, não viemos para resolver velhas vinganças nem para discutir espaços de poder. Não pedimos acompanhamento cego, mas não vamos tolerar que a hipocrisia, a desonestidade ou a ambição de poder interfiram na mudança que nós, argentinos, escolhemos”.

Uma verdade desconfortável. “Não é por acaso que esta posse presidencial ocorre durante o feriado de Hanukkah , o festival da luz, uma vez que celebra a verdadeira essência da liberdade. A guerra dos Macabeus é o símbolo do triunfo dos fracos sobre os poderosos, porque você sabe que prefiro contar-lhe uma verdade incômoda do que uma mentira confortável.

Publicado originalmente por EL PAÍS, em 11.12.23

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

La Banda

Caiu água fazendo som de chuva, show de chuva, trovão na percussão, harmonia insuperável, natural da banda que se chama Natureza. Não, melhor  Banda da Terra!

Por Edson Vidigal

Choveu sossêgo.

Imagina uma chuva dessa caindo intermitente, enxotando os imbecís de ambos os lados, na Faixa de Gaza!

Nada daquele clarão imitando fogos de artifícios festejando chegadas de Ano Novo, Paz na Terra, sim, mas cadê a Boa Vontade?

Em Gaza, a Paz gangrena infestada de ódios, o bibicídio e o hamascídio, comichões pandêmicos deformando as criaturas outrora de D’us, outrora de Alá, ali desumanizadas, 

impuros vestígios, totalmente desumanizados, vestígios inoculados de intolerância, estranguladores da fé, exterminadores das esperanças.

As luzes que voam e nos seus limites se exaurem nos céus e os bumbos que rasgam os silêncios despertando sirenes são tudo balas, são tudo bombas.

Nem espantam o sossego das alvíssaras!

Só tangem cada vez mais para mais longe a quietude da Paz.

Por aqui, ainda não. Queira o Planeta, a cada dia mais ferido e injuriado pela nossa ignorância, que esse tipo de guerra por aqui nem tão cedo. 

A chuva com os raios, relâmpagos, trovões bumbando, como a que despencou esta noite, é benfazeja. 

(Mesmo quando alaga campos, cidades, ruas, os vizinhos não se armam, 

nem com cabos de vassouras, saindo de suas casas num confronto, querendo trucidar uns aos outros).

Ah como é bom, Bimbinha, amanhecer nesta varanda assim - o verde em tons de bananeiras, mangueiras, abacateiros, grama, e esta espirradeira premiando a quietude do vento com seus brotos de rosas brancas.

(E agora, Banda da Terra, toca Raul! Toca.)

Bsb, 24.11.23

O caminho rumo à tolerância é penoso, mas precisa ser trilhado

“Alarmados pela intensificação atual da intolerância, da violência, do terrorismo, da xenofobia, do nacionalismo agressivo, do racismo, do antissemitismo, da exclusão, da marginalização e da discriminação contra minorias nacionais, étnicas, religiosas e linguísticas, dos refugiados, dos trabalhadores migrantes, dos imigrantes e dos grupos vulneráveis da sociedade

 e também pelo aumento dos atos de violência e de intimidação cometidos contra pessoas que exercem sua liberdade de opinião e de expressão, todos comportamentos que ameaçam a consolidação da paz e da democracia no plano nacional e internacional e constituem obstáculos para o desenvolvimento.”

“Alarmados pela intensificação atual da intolerância, da violência, do terrorismo, da xenofobia, do nacionalismo agressivo, do racismo, do antissemitismo, da exclusão, da marginalização e da discriminação contra minorias nacionais, étnicas, religiosas e linguísticas, dos refugiados, dos trabalhadores migrantes, dos imigrantes e dos grupos vulneráveis da sociedade e também pelo aumento dos atos de violência e de intimidação cometidos contra pessoas que exercem sua liberdade de opinião e de expressão, todos comportamentos que ameaçam a consolidação da paz e da democracia no plano nacional e internacional e constituem obstáculos para o desenvolvimento.”

Ainda que pareça ter sido escrita sob o impacto das tragédias atuais, essa longa frase data do breve período de relativa calmaria no mundo transcorrido entre a queda do Muro de Berlim e os atentados terroristas da Al-Qaeda. Ela integra o preâmbulo da Declaração de Princípios sobre a Tolerância, aprovada pela Conferência Geral da Unesco em 16 de novembro de 1995. Sua tradução ao português foi uma cortesia da USP, no marco das atividades preparatórias do seminário internacional Ciência, Cientistas e a Tolerância, organizado pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação, em colaboração com a Unidade da Tolerância da Unesco, em junho de 1997. A data de aprovação da Declaração, 16 de novembro, passou a ser comemorada anualmente como o Dia Internacional da Tolerância.

Um marco da excruciante jornada da humanidade rumo à tolerância é uma obra do poeta, dramaturgo e crítico Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781). Considerado um dos textos fundamentais do Iluminismo alemão, ela foi escrita no cenário de uma acirrada disputa teológica do luteranismo. A querela envolvia Lessing, ele mesmo filho de um arquidiácono e teólogo luterano, e o pastor Johann Goeze, líder espiritual da então cidade-estado de Hamburgo. Após a censura dos seus textos que criticavam o dogmatismo ortodoxo e a intolerância do referido pastor, acrescida da proibição de escrever sobre temas religiosos, Lessing decide transferir a controvérsia para o teatro. Elabora então Nathan, o Sábio, um poema dramático em cinco atos, destinado a tornar público o seu ideal de humanismo tolerante.

O eixo da obra é uma questão recorrente, que mobiliza a humanidade desde tempos imemoriais e permanece candente até os dias de hoje: qual das religiões é a verdadeira? Competições sobre qual a doutrina autêntica ocorrem ao longo da história por diversos meios, desde polêmicas intelectuais tout court e debates públicos “com cartas marcadas” (como a famosa Disputação de Tortosa, na Espanha do século 15), até conflagrações fratricidas e guerras abertas.

A narrativa de Lessing tem como pano de fundo os enfrentamentos entre cristãos, muçulmanos e judeus durante as Cruzadas, na sempre disputada cidade de Jerusalém. O conflito é personalizado em Nathan, um rico judeu, num cavaleiro templário e no sultão Saladino. Personagem-chave é a jovem Recha, filha adotiva de Nathan, que é salva de um incêndio pelo templário cristão. Este, por sua vez, deve a sua vida a Saladino, que o poupou da morte reservada aos prisioneiros infiéis pela semelhança física do cavaleiro com o seu falecido irmão.

No entretempo, a corte do Sultão enfrenta um grave problema financeiro e conta com a fortuna de Nathan para superá-lo. Saladino o convoca ao palácio, mas, ao invés de lhe solicitar explicitamente a ajuda, pergunta a Nathan qual a religião verdadeira. Percebendo o ardil, Nathan faz uso da Parábola do Anel. Dotado do poder mágico de tornar o seu dono apreciado por Deus e pelos seres humanos, o anel era passado em cada geração pelo pai ao seu filho predileto. Até chegar a vez de um pai que, amando igualmente os seus três filhos, prometeu-lhes separadamente a relíquia poderosa. Para “cumprir a promessa”, mandou confeccionar duas réplicas perfeitas do anel e, em seu leito de morte, deu um anel a cada filho.

Os irmãos passam a querelar sobre qual seria o anel genuíno. Um juiz, ao qual foi levado o caso, argumentou que era impossível naquela altura saber qual o original. E que, talvez, o original fora perdido e os três anéis eram réplicas. A única forma que os filhos tinham de verificar a legitimidade do anel recebido era viver uma vida que os levasse a ser apreciados por Deus e pelos seres humanos, comprovando assim o poder do objeto que lhes foi legado.

Nathan então equipara o anel à religião: cada pessoa deve viver de acordo com os valores religiosos que recebeu de seus antepassados. Saladino imediatamente compreende a mensagem de equivalência entre as três religiões monoteístas abraâmicas (cristianismo, islamismo e judaísmo). E, impressionado pela humanidade de Nathan, pede que este lhe conceda a sua amizade, o que é prontamente aceito. Na sequência, Nathan toma a iniciativa e oferece um empréstimo generoso ao sultão. A ameaça existencial é superada, graças à sabedoria de Nathan.

Mas a trama continua. O templário se apaixona por Recha; contudo, Nathan hesita em consenti-la, o que enfurece o pretendente. Ao descobrir que a moça era filha adotiva de pais biológicos cristãos e havia sido criada “sem religião”, o templário pede conselho ao Patriarca cristão de Jerusalém. Este decreta que Nathan seja queimado vivo, por haver induzido Recha à apostasia.

Todavia, são encontrados registros que indicam que Recha e o templário eram irmãos, o que explicava a hesitação de Nathan em consentir no casamento. E, na cena derradeira, revela-se que os dois jovens eram, na verdade, filhos do irmão do sultão, daí a parecença física que levou o templário a ser poupado de morte. Final feliz, com todos – judeus, muçulmanos e cristãos se abraçando.

A primeira encenação da peça ocorreu apenas dois anos após a morte de Lessing. Essa obra de apologia à tolerância se mantém relevante nos séculos subsequentes. Com o advento da cinematografia, é feita uma adaptação, e Nathan, o Sábio, lançado em 1922, torna-se um clássico do cinema mudo, com grande aceitação pelo público. Todavia, a intolerância interfere no seu destino: o filme é acusado de fazer “propaganda do judaísmo”, pelo que é censurado e suprimido após a ascensão do genocida Hitler ao poder.

O filme foi considerado perdido por cerca de sete décadas. Uma cópia foi miraculosamente encontrada em Moscou em 1996, após a debacle do regime soviético. Uma versão restaurada dessa cópia foi exibida há exatos dez anos, durante a 37ª Mostra Internacional de Cinema, em projeção ao ar livre no Parque do Ibirapuera.

Merece registro uma feliz coincidência: a primeira celebração do Dia Internacional da Tolerância ocorreu no mesmo ano da descoberta da cópia remanescente do filme, fruto de uma obra que ajudou como poucas a pavimentar o ainda incompleto caminho rumo à tolerância. Como no texto de Lessing, quando tudo parece perdido, eis que a centelha da tolerância reaparece e desencadeia um avanço expressivo na penosa caminhada da humanidade rumo a um mundo melhor.

A expansão do espectro de tradições valorizadas entre nós para além das três religiões abraâmicas aporta a riqueza da perspectiva africana/afrodiaspórica. Uma dessas práticas é um evento anual inspirado em celebrações das primícias na África austral. Festejado na semana final do ano gregoriano, o Kwanzaa afirma valores familiares e sociais africanos. Tanto o nome quanto a celebração foram idealizados, em 1966, por uma professora da Universidade Estadual da Califórnia.

A Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência do IEA contribui para essa visão ampliada da tolerância pela organização do inédito Festival Kwanzaa-Escrevivência, que celebra a titularidade da professora e escritora Conceição Evaristo (2022-2023), propondo dialogar sobre a presença negra na USP. O festival, que acontecerá entre os dias 13 e 15 de dezembro de 2023 no Itaú Cultural, na EACH e no IEA, pretende ser um encontro de partilhas acadêmicas e, também, de expressões musicais, cênicas, plásticas, literárias e artísticas em geral, para refletir e repensar de forma coletiva as noções de união, autodeterminação, trabalho coletivo e responsabilidade, economia criativa, propósito, criatividade e fé – princípios de Kwanzaa. Contamos com a importante parceria da Fundação Itaú de Educação e Cultura (pelos seus braços Itaú Cultural e Itaú Social) e da Fundação Tide Setubal.

Ao realizar esse festival de caráter não religioso numa universidade laica, avançamos mais um trecho no caminho trilhado por Lessing e outros precursores rumo a um mundo que abrace decididamente os valores da Declaração de Princípios sobre a Tolerância.

Guilherme Ary, o autor deste artigo, é Professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade S. Paulo. Publicado originalmente no Jornal da USP (https://jornal.usp.br/?p=706316), em 23.11.23


Por vias tortas

Movida por revanche, PEC que limita decisão individual no STF acerta no mérito

Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, e Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal - (Pedro Ladeira - 5.out.23/Folhapress)

Um jogo de exageros retóricos perpassa os debates públicos e as escaramuças privadas em torno da proposta de emenda à Constituição nº 8 de 2021, recém-aprovada no Senado e encaminhada para a análise da Câmara dos Deputados.

Não se trata, como querem fazer crer os ministros do Supremo Tribunal Federal, de ameaça existencial à corte ou ao Estado democrático de Direito. É verdade, contudo, que não estamos diante de uma medida concebida para aperfeiçoar as instituições ou aprimorar o equilíbrio entre os Poderes, como diz Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado.

A PEC, em sua versão final, tem como principal dispositivo a limitação das decisões individuais (monocráticas) de ministros e desembargadores em ações de controle de constitucionalidade —aquelas nas quais um tribunal pode suspender a eficácia de uma determinada lei por considerá-la uma afronta à Constituição Federal ou estadual.

Em texto anterior, havia ainda a previsão de disciplinar pedidos de vista, deixando-os menos à mercê dos ministros —mas esse trecho não resistiu às discussões no plenário do Senado e terminou excluído, em parte porque o próprio STF, faz poucos meses, baixou norma interna com o mesmo objetivo.

Nada há de errado nessas medidas, ainda que se possam discutir os detalhes. Ambas tocam em desvios das cortes brasileiras; integrantes do STF, em particular, recorrem tão amiúde a esses instrumentos que fazem da exceção uma regra perniciosa a serviço de seus próprios interesses. Daí por que não cabe na PEC o figurino que os ministros reservaram para ela.

Ao mesmo tempo, cumpre ressaltar, se a proposta acerta nos vícios, não o faz por virtude de seus proponentes. A despeito do discurso dos senadores, estes se mexeram sobretudo por revanchismo.

Com Pacheco e Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) à frente, parte dos congressistas joga para satisfazer setores conservadores da política e da opinião pública, em particular aliados e seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que tomaram o Supremo e o Judiciário como antagonistas.

Deve-se atentar para o risco de que prosperem propostas absurdas de retaliação política, como a que dá aos parlamentares a capacidade de anular decisões judiciais —ao arrepio do sistema de freios e contrapesos entre os Poderes.

Mas ao STF, que tem razão de se orgulhar de sua atuação no governo Bolsonaro, falta humildade para perceber que, sem autocontenção, continuará fornecendo a melhor munição a seus inimigos.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 24.11.23 (editoriais@grupofolha.com.br)