quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Democracia cara, oportunismo barato

Arranjos para viabilizar um fundo eleitoral de inacreditáveis R$ 5 bi em 2024 revelam que parlamentares já nem disfarçam que seus interesses estão muito acima dos interesses do País

Às vésperas do recesso de fim de ano em Brasília, poucas coisas têm perturbado tanto o sono dos parlamentares quanto a busca frenética de meios para encaixar no Orçamento um aumento recorde do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, o chamado fundo eleitoral, com vista às eleições municipais de 2024. A desfaçatez das tratativas revela que simulacros de republicanismo – como a falácia segundo a qual a democracia, ora vejam, “tem um custo” – já foram deixados para trás. A barreira da suposta preocupação com a opinião pública também já foi superada. A coisa começa a descambar para o escárnio.

O governo do presidente Lula da Silva propôs na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) um fundo de R$ 939,4 milhões para cobrir as despesas dos partidos com as eleições municipais de 2024. Já é muito dinheiro público para um fundo que nem sequer deveria existir, a bem da democracia representativa no Brasil. Mas, insaciáveis que são, os parlamentares ainda acham pouco, inclusive os do PT, partido de Lula. A revelar que a caradura não conhece limites, as bancadas da maioria dos partidos no Congresso se articulam para aprovar um fundo eleitoral de inacreditáveis R$ 5 bilhões em 2024.

Ignorando olimpicamente o fato de que o País está caçando moedas nos bolsos da calça para equilibrar as contas sem prejuízo de políticas públicas essenciais para a esmagadora maioria da população, os parlamentares seguem orientados por seus interesses particulares quando estes colidem com o interesse público. Como dinheiro não brota do chão, o aumento de mais de R$ 4 bilhões do fundo eleitoral, considerando o valor proposto na LDO e o desejo da maioria dos parlamentares, haverá de sair de alguma alínea do Orçamento. É quase certo que privilégios que fazem desta uma “República inacabada”, para usar a expressão de Faoro, seguirão intocados.

Uma das alternativas à mesa é abater aquela diferença bilionária do total de recursos destinados às emendas de bancada, que somam R$ 12,6 bilhões em 2024. Ou seja, para aumentar o fundo eleitoral, deputados e senadores teriam de abrir mão de recursos dos quais pode dispor o conjunto de parlamentares de cada Estado e do Distrito Federal. Eis o impasse. Se bem feitas, as emendas podem custear políticas públicas que têm impacto direto na vida dos cidadãos e lançam luz sobre seus patrocinadores. O fundo eleitoral, por sua vez, fortalece as candidaturas de aliados políticos ou dos próprios parlamentares que concorrerão a prefeito no ano que vem.

Conhecendo-se o histórico do Congresso em deliberações sobre temas que tocam diretamente os interesses dos parlamentares e dos partidos, não é improvável que esse impasse seja resolvido da pior forma possível para o País, qual seja: ao fim e ao cabo, as emendas de bancada, entre outras, serão preservadas e outras alíneas do Orçamento é que acabarão sacrificadas para que o fundo eleitoral atinja o patamar recorde de R$ 5 bilhões no ano que vem.

Desde 2015, quando o Supremo julgou, acertadamente, que as doações de empresas para financiamento de campanhas eleitorais eram inconstitucionais – pela óbvia razão de que pessoas jurídicas não são titulares de direitos políticos –, parlamentares de todos os matizes político-ideológicos têm feito de tudo para, eleição após eleição, aumentar cada vez mais o quinhão do Orçamento que abastece o fundo eleitoral. Só não têm feito o que deveriam fazer: aproximar-se da sociedade e angariar o apoio de eleitores dispostos a contribuir, por meio de doações, para o custeio tanto das atividades dos partidos com os quais têm afinidade como para suas campanhas eleitorais.

Porém, mal acostumados, aboletados no conforto do dinheiro público farto, fácil e seguro que abastece os cofres dos partidos, os parlamentares têm percorrido o caminho diametralmente oposto, fechando-se cada vez mais em seus próprios interesses, como se o Congresso fosse um mundo à parte.

Se, como apregoam os defensores dos fundos públicos, a democracia “tem um custo”, a brasileira tem se revelado cara demais.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 13.12.23

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

A sabedoria de Minerva de volta aos tribunais

Dois milênios e meio depois, a sábia prática judicante da divindade está para ser expressamente incorporada no ordenamento jurídico brasileiro


Se seis julgadores decidem que o réu é culpado e outros seis proclamam a sua inocência, qual deve ser o veredicto do juiz que preside a corte julgadora e que vota por último?

A resposta foi dada em 458 a.C., na obra A Oréstia, em que Ésquilo concebeu os fundamentos do tribunal popular, presidido pela deusa Palas Atena. Naquele panteão, estava em julgamento Orestes, que vingou o assassinato do pai, o general Agamenon, matando a própria mãe, Clitemnestra, e o amante dela, Egisto. Entronizada no Olimpo como deusa da justiça, da liberdade e da sabedoria, Atena pontificou que o empate em qualquer julgamento consubstancia irresolução, traduz dúvida e expõe a ausência de certeza da culpa, e fundamentou-se no que viria a se tornar o famoso brocardo in dubio pro reo. Ao prolatar a decisão de desempate em favor de Orestes, Atena legou com esse gesto a jurisprudência segundo a qual se há dúvida, absolva-se o réu!

A deusa grega tomou o nome de Minerva na mitologia romana, quando encarnou a virtude da misericórdia, e sua decisão ficou conhecida, a partir do latim, como Voto de Minerva – o voto de desempate que é sempre de absolvição – non liquet –, jamais de condenação.

Dois milênios e meio depois, a sábia prática judicante da divindade está para ser expressamente incorporada no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O Projeto de Lei n.º 3.453/2021, do deputado Rubens Pereira Júnior (PT-MA), já foi aprovado pela Câmara dos Deputados e acaba de receber, com uma única emenda, beneplácito na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, e vai agora ao plenário, de onde, se também aprovado, retornará à Câmara, porque os senadores introduziram leve alteração no texto. A tramitação pacífica indica, no entanto, que será promulgada uma lei que obriga os tribunais, especialmente os superiores, a adotarem essa milenar prática civilizada nos julgamentos criminais.

A lei estará a determinar que, quando houver empate no julgamento por colegiado em razão da ausência de um de seus membros – tanto pela ocasional vacância do cargo quanto por pessoal impedimento de juiz –, considera-se o julgamento consumado com a decisão mais favorável ao réu. É dizer: não será necessário interromper o julgamento e aguardar a chegada de um novo juiz ou convocar membro de outro órgão para proferir o voto final. Obriga, também, o julgador à concessão de habeas corpus de ofício, à vista de ilegalidade contra a liberdade pessoal.

Dir-se-á que a nova lei não irá positivar, propriamente, o Voto de Minerva em sua exata significação originária. No caso do pleno do STF e a depender da matéria em cognição, se dez juízes se dividirem em grupos de cinco com posição antagônica, ainda poderá dar-se que o presidente profira o voto determinante em qualquer direção, inclusive contra o réu, ignorando o modelo civilizatório. Convém esperar, no entanto, que os que ocupam a presidência dos tribunais, mortais que são, não se julguem mais iluminados (ou seria “iluministas”?) que a própria deusa da sabedoria.

Antes que a doutrina de Linch, professada pela “voz das ruas”, já acuse a futura lei de incrementar a impunidade ou de impor aos juízes leniência com acusados que ela considere antecipadamente culpados, é mister invocar o dogma civilizado da liberdade como regra e a presunção de inocência constitucionalmente proclamada como princípios basilares do Direito civilizado.

Apanágio indissociável do devido processo legal, tal garantia cintila no artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição da República, que estatui: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Encontra-se claramente estatuído, portanto, que todo acusado é inocente até receber uma condenação definitiva, que não possa ser alterada por via recursal. A condenação, por seu decisivo significado e sua validade, deve apresentar-se isenta de quaisquer dúvidas acerca da culpa do imputado. No caso dos órgãos colegiados, é imperativo que o édito condenatório seja lavrado a partir da maioria dos votos, a demonstrar a convicção majoritária dos julgadores, despida da incerteza que o empate de juízos expressa.

Já abordei o tema no artigo A sabedoria de Minerva no STF (Consultor Jurídico, 1/11/2019), tratando ilustrativamente da decisão do Supremo Tribunal Federal de negar habeas corpus preventivo ao cidadão Luiz Inácio Lula da Silva. O então ex-presidente da República pleiteava o direito de permanecer em liberdade até que fossem julgados os recursos manejados por sua defesa técnica nos processos a que respondia. Cinco ministros julgaram a favor, cinco contra, mas o voto de Minerva da presidente, que nem merecia essa designação, negou-lhe o direito, e ele foi injustamente preso. Ao fim isentado, ficaria demonstrado, e aceito pelo próprio STF, que era injusta e abusivamente acusado, e merecia o voto-lição libertário da deusa de quem o Judiciário então se esqueceu.

José Roberto Batochio, o autor deste artigo, é advogado criminalista. Foi Presidente nacional da OAB e Deputado Federal (PDT-SP). Publicado originalmente no O Estado de S. Paulo, em 12.12.23

Sinceridade petista

Ao se queixar do ‘austericídio fiscal’ de Haddad e dizer que o partido não terá voto se governo economizar dinheiro, cúpula do PT mostra-se perfeitamente alinhada a pensamento de Lula

A cúpula do Partido dos Trabalhadores (PT) não se emenda. As divergências expostas durante a Conferência Eleitoral da legenda demonstraram de forma cristalina a enrascada em que se encontra o ministro Fernando Haddad, sobretudo no debate dentro do governo sobre a meta de zerar o déficit primário em 2024, prevista no novo arcabouço fiscal. Pelo que se viu no fim de semana, se depender do PT o governo mandará às favas qualquer controle das contas públicas. Para o pensamento petista, há uma coisa muito mais importante do que o equilíbrio macroeconômico: votos.

Coube à presidente do partido, Gleisi Hoffmann, demarcar o tom e a intensidade da artilharia – que, a propósito, ignora o fato de que é o equilíbrio macroeconômico que dá sustentação a qualquer governo no longo prazo. Em debate com Haddad, Gleisi expôs o seu raciocínio primitivo em matéria econômica: “Se o privado não está bem, o Estado tem que entrar com tudo. O que tem de ser feito ano que vem: executar o Orçamento inteiro, não é um déficit que vai mudar (a situação do País)”, afirmou Gleisi. Ela reforçou a ideia – já antecipada pela repórter Vera Rosa neste Estadão – sobre o que a cúpula petista chama de “austericídio fiscal”. Daí concluiu que o governo não deveria se preocupar com o resultado fiscal.

O líder do PT na Câmara, José Guimarães, foi sincero: “Se tiver que fazer déficit, vamos fazer, ou a gente não ganha a eleição”. Ou seja, segundo Guimarães e os muitos petistas que pensam como ele, a meta de zerar o rombo das contas públicas pode fazer com que a sigla perca as eleições municipais.

Haddad parece estar cada vez mais sozinho e inspira os temores de que a meta do déficit zero não passa de um esforço isolado da equipe econômica, sem amparo no próprio governo. Primeiro, porque, conhecendo as engrenagens de funcionamento do PT e do governo, é difícil acreditar que os movimentos de Gleisi, Guimarães et caterva não tenham o aval do presidente Lula da Silva. Segundo, porque há uma avaliação majoritária no partido de Lula de que o governo terá de contingenciar recursos de emendas parlamentares e de investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para cumprir a meta fiscal no ano que vem, o que prejudicaria o envio de verba para aliados dos petistas nos municípios.

A possibilidade de contingenciamento é real porque assim funcionam boas políticas fiscais. Mas a cúpula petista – leia-se Lula – parece não ter entendido nem aprendido nada com a história, com seus mandatos e com os próprios sucessos e fracassos. Onde o PT enxerga arrocho ou coisa que o valha é, na verdade, a chave para o crescimento econômico. Desenvolvimento, como disseram alguns economistas em reação às declarações do fim de semana, não é fruto de gasto público mal feito, e sim de investimentos – e nada disso se consegue de maneira sustentável sem que a casa fiscal esteja arrumada. No debate com Gleisi, Haddad, com razão, lembrou-lhe que não é verdade que déficit faz a economia crescer nem que superávit a faça encolher.

Não é de hoje o esforço petista para desmoralizar sistemas de metas de superávit primário e gestões que deveriam se pautar pelo óbvio: o cumprimento da lei. Em 2015, no segundo mandato de Dilma Rousseff, o então ministro Joaquim Levy tinha no PT um dos seus principais algozes no Congresso, até a ponto de eliminar qualquer resquício de credibilidade perdida no mandato anterior e que a equipe econômica tentava reconstruir. O resultado, sabemos: deterioração fiscal crescente, desequilíbrio macroeconômico e perda contínua de apoios até culminar com a crise política de 2016. A lição pareceu insuficiente, porque o PT fez o que costuma fazer: pôs o fracasso na conta de forças externas.

Haddad precisará muito mais do que qualquer competência argumentativa. Só um árbitro pode conter os delírios petistas e estimular a sensatez: Lula da Silva. Mas sobre ele pesarão não apenas os ecos da cúpula petista, como também as pressões das últimas pesquisas, que apontam viés de baixa em sua popularidade. Diante disso, Lula já concluiu que a solução é a gastança – e mandou seus sabujos no PT dizerem isso em voz alta.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 1212.23

Por que a esquerda é incapaz de promover a segurança pública?

 Há muito discurso sobre causas sociais do crime, mas nada sobre enfrentamento

Polícia isola área na zona oeste de São Paulo após assalto e morte, em novembro - Reprodução/TV Globo

Vejo no WhatsApp um vídeo de linchamento em Copacabana. São homens e mulheres, jovens e idosos, brancos, mestiços e negros —uma multidão— surrando um jovem negro que tenta fugir desesperado. O vídeo não traz contexto, mas é de se supor que o sujeito tenha sido pego roubando. É uma cena bárbara.

Jamais defenderei a formação de grupos de justiceiros, mas alguém acha que a população ficará passiva apenas assistindo vizinhos, amigos e familiares vitimados pelo crime violento sem fazer nada, enquanto o Estado negligencia sua atribuição mais elementar?

Está corretíssimo quem aponta os problemas desse tipo de iniciativa. Fácil, fácil ela pode se transformar em mais uma milícia do crime organizado. O único jeito, contudo, de impedi-la é apresentar a alternativa: o Estado mostrar-se eficaz contra assaltos e arrastões. Se a polícia agora vier investigar e prender os responsáveis pelos grupos de justiceiros, enquanto continua a não fazer nada contra os assaltantes, estará apenas aprofundando o completo sentimento de abandono —e a indignação— do povo.

A humanidade não consegue entrar em acordo quanto ao sumo bem. Mas podemos, sim, nos unir para evitar aquilo que todos concordamos ser o sumo mal: a morte violenta, nossa ou de nossos entes queridos. Essa é a base do contrato social e da fundação do Estado, ao menos segundo Hobbes. Vivemos, portanto, a falência do contrato social em diversas cidades brasileiras: o medo da morte violenta é cotidiano.

Os furtos em Copacabana aumentaram 56% de janeiro a outubro de 2023 se comparados ao mesmo período de 2022. Já as prisões caíram 11%. Com a onipresença das câmeras, em postes, muros e celulares, hoje vemos muito mais do que no passado. Assaltos, arrastões, furtos. Uma jornalista da Rede Globo sofreu tentativa de furto do celular durante transmissão em São Paulo. Poucos dias depois, a deputada federal Tabata Amaral foi vítima de tentativa de assalto também em São Paulo.

Na direita, a resposta mais fácil é culpar Lula. Um discurso fácil, que se esquece de que quem cuida da segurança pública são principalmente governo do estado e prefeitura. No entanto a acusação tem seu fundinho de verdade em outro sentido: a esquerda é um vazio de propostas no tema da segurança. Quando falam de polícia e prisão, a única preocupação é garantir os direitos humanos dos presos. Isso é louvável, mas por que não se preocupar também com os direitos humanos das vítimas presentes e futuras? A proteção desses depende do uso da violência contra os criminosos que as atacam.

Há muito discurso sobre as causas sociais do crime, mas nada sobre como enfrentá-lo agora. Não adianta propor medidas de prevenção contra incêndio quando o prédio já está pegando fogo.

Ter presos em flagrante liberados por audiência de custódia ou, depois de pouco tempo presos, em regime de progressão de pena é um desrespeito a quem segue a lei. Precisamos de mais policiamento, de uma Justiça mais dura com quem comete furtos e assaltos e, possivelmente, de mais presídios.

Há tanta filmagem  e criminosos nas ruas; como é que isso não resulta em investigação e prisões? Há bastante trabalho para as três esferas do Executivo e do Legislativo. A violência sempre irá existir; a única escolha é se ela será monopólio do Estado ou se será terceirizada para os cidadãos, jogando-nos para a guerra de todos contra todos. Só existem essas duas opções, e não há discurso idealista que apague essa realidade.

Joel Pinheiro da Fonseca, o autor deste artigo, é economista e mestre em filosofia pela USP. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 11.12.23, às 20h21

Delírios petistas

Não convém que só Haddad defenda racionalidade ante teses tresloucadas da sigla

Gleisi Hoffmann, deputada federal e presidente do Partido dos Trabalhadores (PT) - Adriano machado/Reuters

Na fantasia do PT, apenas interesses perversos e forças malignas o impedem de solucionar todas as carências do país —em renda, educação, saúde, saneamento, infraestrutura— por meio do aumento contínuo do gasto público.

Por caricatural que pareça, o delírio se repete, em formulações variadas, nas manifestações de seus quadros e nos inúmeros documentos divulgados ao longo dos mais de 40 anos de vida do partido. No mais recente, datado de sexta-feira (8), a legenda arremete contra "a ditadura do Banco Central ‘independente’ e do austericídio fiscal".

O tal austericídio, sabe-se, é a meta apresentada pelo próprio governo petista de equilibrar as receitas e despesas do Tesouro Nacional no próximo ano, eliminando o déficit. Esse propósito seria uma imposição de um BC atrelado ao mercado financeiro, de rentistas e, claro, seus porta-vozes na mídia.

Assim o explicitou a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, que no dia seguinte, em evento partidário, apresentou publicamente sua divergência ao ministro Fernando Haddad, da Fazenda, com a defesa de um rombo de até 2% do PIB. Fala-se aqui de mais de R$ 200 bilhões.

Seria menos perigoso se desvarios do gênero não passassem de bravatas para inflamar militantes. Viu-se sob Dilma Rousseff, porém, que a fé cega na capacidade infinita do Estado pode gerar desastres reais. Agora, o PT não se constrange em enfraquecer Haddad, um quadro seu, e pôr em risco o governo.

Pouco importa à sigla que a meta de déficit zero seja objeto de descrédito unânime. A mera tentativa de reduzir o gigantesco desequilíbrio das contas, por meio de algum controle da despesa, já é tida como um arrocho cruel.

O setor público brasileiro gasta algo como 40% do PIB, sem considerar os encargos com juros. Trata-se de um dos maiores patamares do mundo. Incluídos os juros, o déficit próximo de 8% do PIB supera o de quase todas as principais economias. A dívida, de 75%, tem poucos paralelos entre emergentes.

Enxergar austeridade excessiva nesse cenário é alucinação que faz o PT crer que, com ainda mais gasto e déficit, fará a atividade econômica se expandir e gerar mais receita —tese que Haddad cuidou, diplomaticamente, de desmentir.

Justifica-se elevar a despesa quando o país está em recessão e é preciso estimular o consumo e o investimento. Já tomar esse expediente como moto-contínuo levaria, mais uma vez, a uma espiral de dívida, inflação, juros e baixo crescimento.

Não convém que o ministro da Fazenda assuma o papel de defensor solitário da racionalidade no partido e no governo. Luiz Inácio Lula da Silva, que se apraz em arbitrar os embates petistas, já cometeu a imprudência política de esgarçar as contas do Tesouro logo no primeiro ano de mandato.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 12.12.23 (editoriais@grupofolha.com.br)

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

O Supremo como fiador da governabilidade

Mais do que uma arena essencialmente política, o STF tornou-se, para o Executivo, um aliado indispensável para contrastar o poder de um Congresso fragmentado e incontrolável

Os últimos anos deram ao Supremo Tribunal Federal (STF) um papel inédito no arranjo institucional brasileiro, transformando a Corte numa arena essencialmente política. O tribunal expandiu gradualmente seus tentáculos políticos, ocupando o vácuo deixado pela fragilidade do sistema representativo para exercer simultaneamente os papéis de intérprete da Constituição e ator legislativo, não raro se impondo ao Congresso. Essa condição foi se aguçando passo a passo até a Corte adquirir, nos últimos dez anos, absoluta centralidade para o funcionamento do poder. O resultado disso aparece agora: do papel ora de moderador, ora de tensionador da República, o STF assumiu uma condição de fiador da governabilidade do País. O recente debate em torno da indicação do ministro da Justiça, Flávio Dino, para a vaga deixada pela ministra Rosa Weber é parte desse processo.

O chamado presidencialismo de coalizão, modelo político no qual se assentou a governabilidade brasileira depois da Constituição de 1988, entrou em crise justamente nesses últimos dez anos, algo admitido pelo próprio criador do termo, o cientista político Sérgio Abranches. O Brasil não mudou seu modelo político, afinal ainda é presidencialista e multipartidário, mas ocorreram mudanças estruturais e comportamentais que nos trouxeram a essa nova governabilidade. O número excessivo de partidos, a diminuição das bancadas, a onda bolsonarista que rompeu aquele bipartidarismo vigente entre 1994 e 2014, a radicalização da política e o fortalecimento do Congresso deixaram o Executivo fragilizado. 

E assim o presidente Lula da Silva chegou à Presidência em 2023 com muito mais dificuldades na gestão de sua coalizão do que nos dois primeiros mandatos. Isso se deu não apenas porque cometeu o grave erro de ignorar, na formação do governo, a frente ampla que o apoiou no segundo turno para enfrentar Jair Bolsonaro. Também ocorreu por uma conjuntura desfavorável ao Executivo: um Congresso fortalecido pelos poderes orçamentários adquiridos nos últimos anos, presidentes da Câmara e do Senado politicamente fortes, uma maioria parlamentar hostil e indócil e um sistema partidário menos fragmentado, porém com bancadas médias, que se unem em blocos para aumentar o número de deputados e melhorar sua participação em comissões. Tudo isso transformou as maiorias parlamentares mais instáveis, variando de tamanho a depender do tema, exigindo mais tempo e mais recursos. A governabilidade tornou-se mais penosa.

O outro elemento dessa conjuntura está fora da esfera legislativa: o Supremo Tribunal Federal. Empolgado com o papel de gabinete regulatório da crise política brasileira, o STF esticou excepcionalmente os limites de sua atuação para frear a ameaça real de ruptura prometida pelo bolsonarismo. Até aí era o que se esperava de um Poder cuja missão é zelar pelo cumprimento da Constituição. O problema é que, passada a ameaça, o Supremo parece ter se recusado a voltar para a casinha. No paralelo, como este jornal já sublinhou, ministros se deixaram influenciar pelo excesso de protagonismo, inspiraram-se nos voláteis humores da política (a ponto de influenciá-los), relativizaram direitos e atropelaram garantias em nome da salvação da democracia. As patologias já eram visíveis há algum tempo e demonstradas em pesquisas empíricas, mas o poder monocrático de ministros revelou sua força danosa sobre a credibilidade da instituição.

Uma Suprema Corte que é determinante para a política de um país é um daqueles desvios de rota que a democracia vai precisar corrigir, para evitar excessos e conter riscos presentes e futuros. Em princípio, teríamos aí simplesmente o funcionamento do sistema de pesos e contrapesos, no qual os Três Poderes se complementam e se controlam. Mas não deixa de ser perturbador ver o presidente indicar ao Supremo um ministro com notório saber político com o claro objetivo de buscar a governabilidade.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 11.12.232

Congresso gastador

Parlamentares não definem Orçamento e buscam mais despesas em benefício próprio

Prédio do Congresso Nacional, em Brasília (DF) - Roque de Sá/Agência Senado

O atual estado de desordem nas finanças públicas não se deve apenas ao ímpeto perdulário do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Sob o comando do centrão, o Congresso concorre para a alta dos gastos, reduz a qualidade das políticas públicas e eleva as incertezas.

Estamos em dezembro e os parlamentares nem mesmo concluíram a votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2024 —vale dizer, o conjunto de regras que deveria ter sido aprovado no primeiro semestre para orientar a elaboração do projeto de Orçamento do ano seguinte.

Com LDO e Orçamento em aberto, deputados e senadores aproveitam o corre-corre de final de ano na tentativa de extrair mais dinheiro do contribuinte em proveito próprio e de seus partidos.

Em uma frente, busca-se aumentar de já exorbitantes R$ 37,6 bilhões para quase R$ 50 bilhões o total de recursos reservados no próximo ano para as emendas parlamentares, ou seja, as despesas a cargo do Tesouro definidas diretamente pelos congressistas.

Nelas predominam obras e eventos nos redutos políticos de cada um dos 513 deputados e 81 senadores —um ativo eleitoral particularmente importante num ano de pleitos municipais.

Decorrência do enfraquecimento da Presidência nos últimos anos, a escalada das emendas pulveriza montantes crescentes de dinheiro público em projetos paroquiais, sem maiores considerações de mérito e prioridade.

É também sem tais critérios que a Câmara pressiona pela ampliação para R$ 4,9 bilhões do fundo eleitoral, pelo qual o erário financia desde 2018 as campanhas eleitorais. Há R$ 900 milhões reservados para ele no projeto de Orçamento do próximo ano.

O lobby das burocracias partidárias tem ocorrido ano sim, ano não, dado o calendário de pleitos no país. Desta vez, como se trata de disputa por cargos de prefeito e vereador, nem mesmo se pode empregar o surrado argumento de que os candidatos terão gastos com longas viagens.

O risco é que o despautério una situação e oposição, dado que os principais partidos têm direito a parcelas maiores do fundo.

Fato é que qualquer nova despesa, num governo cujo déficit disparou neste ano, será sempre coberta por mais endividamento público —uma conta invisível empurrada à sociedade, enquanto os parlamentares obtêm ganhos palpáveis.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 11.12.23 (editoriais@grupofolha.com.br)

O primeiro discurso de Javier Milei como presidente da Argentina, em 12 frases

A extrema-direita levantou o espectro do pânico económico e alertou na sua primeira mensagem à nação para um corte de 20 mil milhões no sector público e um agravamento da situação no curto prazo.

Javier Milei discursa diante do Congresso Nacional, neste domingo em Buenos Aires. (Foto: CASA DE SM O REI (EFE) | SARA GONZALEZ)

No domingo, 10 de dezembro, Javier Milei fez seu primeiro discurso como presidente da Argentina nas escadas do Congresso. A extrema direita recebeu o bastão de comando do peronista Alberto Fernández na cerimônia de posse, mas quebrou o protocolo e não se dirigiu aos legisladores da Assembleia em sua primeira mensagem oficial. Milei descreveu uma perspectiva económica dura e alertou os argentinos que os próximos meses serão de mais inflação e mais pobreza.

Estas são as 12 frases mais relevantes do discurso de posse de Javier Milei:

Inflação 15.000%. “Esse é o legado que eles nos deixam: uma inflação plantada de 15.000% ao ano, que vamos lutar com unhas e dentes para acabar. Consequentemente, não há solução alternativa para o ajuste, não há dinheiro.”

Corte de 5 pontos do PIB. “A solução implica, por um lado, um ajustamento fiscal no sector público nacional de 5 pontos do PIB [20 mil milhões de dólares], que, ao contrário do passado, recairá quase inteiramente sobre o Estado e não sobre o sector privado . ”

Declínio e declínio. “Hoje começa uma nova era na Argentina . “Hoje encerramos uma longa e triste história de decadência e declínio e iniciamos o caminho da reconstrução do nosso país.”

100 anos de pobreza. “Infelizmente, a nossa liderança decidiu abandonar o modelo que nos enriqueceu e abraçou as ideias de liberdade e as ideias empobrecedoras do coletivismo. Há mais de 100 anos, os políticos insistem em defender um modelo que só gera pobreza, estagnação e miséria”.

Última bebida ruim. “Esta é a última bebida ruim para iniciar a reconstrução da Argentina . Ou seja, haverá luz no fim do caminho.”

Queda de salários. “Eles arruinaram nossas vidas. Eles nos fizeram baixar nossos salários 10 vezes. Portanto, não devemos surpreender-nos com o facto de o populismo nos deixar com 45% de pobres e 10% de indigentes.”

O choque vem. “Não há espaço para discussão entre choque e gradualismo. Naturalmente, isto terá um impacto negativo no nível de atividade, no emprego, nos salários reais e no número de pessoas pobres e indigentes.”

Narcos e violência. “Nosso país foi sequestrado por traficantes de drogas e pela violência. “As nossas forças de segurança foram humilhadas durante décadas, foram abandonadas por uma classe política que virou as costas a quem cuida de nós”.

Ação imediata. “A situação na Argentina é crítica e emergencial. Não temos alternativas e também não temos tempo. Não temos espaço para discussões estéreis. Nosso país exige ação e ação imediata. “A classe política deixa um país à beira da crise mais profunda.”

100 anos de desperdício. “Vamos tomar todas as decisões necessárias para resolver o problema causado por 100 anos de desperdício da classe política. Mesmo que seja difícil no início. Sabemos que no curto prazo a situação irá piorar. Mas então veremos os frutos dos nossos esforços.”

Sem vinganças. “Quanto à classe política argentina, quero dizer-lhes que não viemos para perseguir ninguém, não viemos para resolver velhas vinganças nem para discutir espaços de poder. Não pedimos acompanhamento cego, mas não vamos tolerar que a hipocrisia, a desonestidade ou a ambição de poder interfiram na mudança que nós, argentinos, escolhemos”.

Uma verdade desconfortável. “Não é por acaso que esta posse presidencial ocorre durante o feriado de Hanukkah , o festival da luz, uma vez que celebra a verdadeira essência da liberdade. A guerra dos Macabeus é o símbolo do triunfo dos fracos sobre os poderosos, porque você sabe que prefiro contar-lhe uma verdade incômoda do que uma mentira confortável.

Publicado originalmente por EL PAÍS, em 11.12.23

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

La Banda

Caiu água fazendo som de chuva, show de chuva, trovão na percussão, harmonia insuperável, natural da banda que se chama Natureza. Não, melhor  Banda da Terra!

Por Edson Vidigal

Choveu sossêgo.

Imagina uma chuva dessa caindo intermitente, enxotando os imbecís de ambos os lados, na Faixa de Gaza!

Nada daquele clarão imitando fogos de artifícios festejando chegadas de Ano Novo, Paz na Terra, sim, mas cadê a Boa Vontade?

Em Gaza, a Paz gangrena infestada de ódios, o bibicídio e o hamascídio, comichões pandêmicos deformando as criaturas outrora de D’us, outrora de Alá, ali desumanizadas, 

impuros vestígios, totalmente desumanizados, vestígios inoculados de intolerância, estranguladores da fé, exterminadores das esperanças.

As luzes que voam e nos seus limites se exaurem nos céus e os bumbos que rasgam os silêncios despertando sirenes são tudo balas, são tudo bombas.

Nem espantam o sossego das alvíssaras!

Só tangem cada vez mais para mais longe a quietude da Paz.

Por aqui, ainda não. Queira o Planeta, a cada dia mais ferido e injuriado pela nossa ignorância, que esse tipo de guerra por aqui nem tão cedo. 

A chuva com os raios, relâmpagos, trovões bumbando, como a que despencou esta noite, é benfazeja. 

(Mesmo quando alaga campos, cidades, ruas, os vizinhos não se armam, 

nem com cabos de vassouras, saindo de suas casas num confronto, querendo trucidar uns aos outros).

Ah como é bom, Bimbinha, amanhecer nesta varanda assim - o verde em tons de bananeiras, mangueiras, abacateiros, grama, e esta espirradeira premiando a quietude do vento com seus brotos de rosas brancas.

(E agora, Banda da Terra, toca Raul! Toca.)

Bsb, 24.11.23

O caminho rumo à tolerância é penoso, mas precisa ser trilhado

“Alarmados pela intensificação atual da intolerância, da violência, do terrorismo, da xenofobia, do nacionalismo agressivo, do racismo, do antissemitismo, da exclusão, da marginalização e da discriminação contra minorias nacionais, étnicas, religiosas e linguísticas, dos refugiados, dos trabalhadores migrantes, dos imigrantes e dos grupos vulneráveis da sociedade

 e também pelo aumento dos atos de violência e de intimidação cometidos contra pessoas que exercem sua liberdade de opinião e de expressão, todos comportamentos que ameaçam a consolidação da paz e da democracia no plano nacional e internacional e constituem obstáculos para o desenvolvimento.”

“Alarmados pela intensificação atual da intolerância, da violência, do terrorismo, da xenofobia, do nacionalismo agressivo, do racismo, do antissemitismo, da exclusão, da marginalização e da discriminação contra minorias nacionais, étnicas, religiosas e linguísticas, dos refugiados, dos trabalhadores migrantes, dos imigrantes e dos grupos vulneráveis da sociedade e também pelo aumento dos atos de violência e de intimidação cometidos contra pessoas que exercem sua liberdade de opinião e de expressão, todos comportamentos que ameaçam a consolidação da paz e da democracia no plano nacional e internacional e constituem obstáculos para o desenvolvimento.”

Ainda que pareça ter sido escrita sob o impacto das tragédias atuais, essa longa frase data do breve período de relativa calmaria no mundo transcorrido entre a queda do Muro de Berlim e os atentados terroristas da Al-Qaeda. Ela integra o preâmbulo da Declaração de Princípios sobre a Tolerância, aprovada pela Conferência Geral da Unesco em 16 de novembro de 1995. Sua tradução ao português foi uma cortesia da USP, no marco das atividades preparatórias do seminário internacional Ciência, Cientistas e a Tolerância, organizado pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação, em colaboração com a Unidade da Tolerância da Unesco, em junho de 1997. A data de aprovação da Declaração, 16 de novembro, passou a ser comemorada anualmente como o Dia Internacional da Tolerância.

Um marco da excruciante jornada da humanidade rumo à tolerância é uma obra do poeta, dramaturgo e crítico Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781). Considerado um dos textos fundamentais do Iluminismo alemão, ela foi escrita no cenário de uma acirrada disputa teológica do luteranismo. A querela envolvia Lessing, ele mesmo filho de um arquidiácono e teólogo luterano, e o pastor Johann Goeze, líder espiritual da então cidade-estado de Hamburgo. Após a censura dos seus textos que criticavam o dogmatismo ortodoxo e a intolerância do referido pastor, acrescida da proibição de escrever sobre temas religiosos, Lessing decide transferir a controvérsia para o teatro. Elabora então Nathan, o Sábio, um poema dramático em cinco atos, destinado a tornar público o seu ideal de humanismo tolerante.

O eixo da obra é uma questão recorrente, que mobiliza a humanidade desde tempos imemoriais e permanece candente até os dias de hoje: qual das religiões é a verdadeira? Competições sobre qual a doutrina autêntica ocorrem ao longo da história por diversos meios, desde polêmicas intelectuais tout court e debates públicos “com cartas marcadas” (como a famosa Disputação de Tortosa, na Espanha do século 15), até conflagrações fratricidas e guerras abertas.

A narrativa de Lessing tem como pano de fundo os enfrentamentos entre cristãos, muçulmanos e judeus durante as Cruzadas, na sempre disputada cidade de Jerusalém. O conflito é personalizado em Nathan, um rico judeu, num cavaleiro templário e no sultão Saladino. Personagem-chave é a jovem Recha, filha adotiva de Nathan, que é salva de um incêndio pelo templário cristão. Este, por sua vez, deve a sua vida a Saladino, que o poupou da morte reservada aos prisioneiros infiéis pela semelhança física do cavaleiro com o seu falecido irmão.

No entretempo, a corte do Sultão enfrenta um grave problema financeiro e conta com a fortuna de Nathan para superá-lo. Saladino o convoca ao palácio, mas, ao invés de lhe solicitar explicitamente a ajuda, pergunta a Nathan qual a religião verdadeira. Percebendo o ardil, Nathan faz uso da Parábola do Anel. Dotado do poder mágico de tornar o seu dono apreciado por Deus e pelos seres humanos, o anel era passado em cada geração pelo pai ao seu filho predileto. Até chegar a vez de um pai que, amando igualmente os seus três filhos, prometeu-lhes separadamente a relíquia poderosa. Para “cumprir a promessa”, mandou confeccionar duas réplicas perfeitas do anel e, em seu leito de morte, deu um anel a cada filho.

Os irmãos passam a querelar sobre qual seria o anel genuíno. Um juiz, ao qual foi levado o caso, argumentou que era impossível naquela altura saber qual o original. E que, talvez, o original fora perdido e os três anéis eram réplicas. A única forma que os filhos tinham de verificar a legitimidade do anel recebido era viver uma vida que os levasse a ser apreciados por Deus e pelos seres humanos, comprovando assim o poder do objeto que lhes foi legado.

Nathan então equipara o anel à religião: cada pessoa deve viver de acordo com os valores religiosos que recebeu de seus antepassados. Saladino imediatamente compreende a mensagem de equivalência entre as três religiões monoteístas abraâmicas (cristianismo, islamismo e judaísmo). E, impressionado pela humanidade de Nathan, pede que este lhe conceda a sua amizade, o que é prontamente aceito. Na sequência, Nathan toma a iniciativa e oferece um empréstimo generoso ao sultão. A ameaça existencial é superada, graças à sabedoria de Nathan.

Mas a trama continua. O templário se apaixona por Recha; contudo, Nathan hesita em consenti-la, o que enfurece o pretendente. Ao descobrir que a moça era filha adotiva de pais biológicos cristãos e havia sido criada “sem religião”, o templário pede conselho ao Patriarca cristão de Jerusalém. Este decreta que Nathan seja queimado vivo, por haver induzido Recha à apostasia.

Todavia, são encontrados registros que indicam que Recha e o templário eram irmãos, o que explicava a hesitação de Nathan em consentir no casamento. E, na cena derradeira, revela-se que os dois jovens eram, na verdade, filhos do irmão do sultão, daí a parecença física que levou o templário a ser poupado de morte. Final feliz, com todos – judeus, muçulmanos e cristãos se abraçando.

A primeira encenação da peça ocorreu apenas dois anos após a morte de Lessing. Essa obra de apologia à tolerância se mantém relevante nos séculos subsequentes. Com o advento da cinematografia, é feita uma adaptação, e Nathan, o Sábio, lançado em 1922, torna-se um clássico do cinema mudo, com grande aceitação pelo público. Todavia, a intolerância interfere no seu destino: o filme é acusado de fazer “propaganda do judaísmo”, pelo que é censurado e suprimido após a ascensão do genocida Hitler ao poder.

O filme foi considerado perdido por cerca de sete décadas. Uma cópia foi miraculosamente encontrada em Moscou em 1996, após a debacle do regime soviético. Uma versão restaurada dessa cópia foi exibida há exatos dez anos, durante a 37ª Mostra Internacional de Cinema, em projeção ao ar livre no Parque do Ibirapuera.

Merece registro uma feliz coincidência: a primeira celebração do Dia Internacional da Tolerância ocorreu no mesmo ano da descoberta da cópia remanescente do filme, fruto de uma obra que ajudou como poucas a pavimentar o ainda incompleto caminho rumo à tolerância. Como no texto de Lessing, quando tudo parece perdido, eis que a centelha da tolerância reaparece e desencadeia um avanço expressivo na penosa caminhada da humanidade rumo a um mundo melhor.

A expansão do espectro de tradições valorizadas entre nós para além das três religiões abraâmicas aporta a riqueza da perspectiva africana/afrodiaspórica. Uma dessas práticas é um evento anual inspirado em celebrações das primícias na África austral. Festejado na semana final do ano gregoriano, o Kwanzaa afirma valores familiares e sociais africanos. Tanto o nome quanto a celebração foram idealizados, em 1966, por uma professora da Universidade Estadual da Califórnia.

A Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência do IEA contribui para essa visão ampliada da tolerância pela organização do inédito Festival Kwanzaa-Escrevivência, que celebra a titularidade da professora e escritora Conceição Evaristo (2022-2023), propondo dialogar sobre a presença negra na USP. O festival, que acontecerá entre os dias 13 e 15 de dezembro de 2023 no Itaú Cultural, na EACH e no IEA, pretende ser um encontro de partilhas acadêmicas e, também, de expressões musicais, cênicas, plásticas, literárias e artísticas em geral, para refletir e repensar de forma coletiva as noções de união, autodeterminação, trabalho coletivo e responsabilidade, economia criativa, propósito, criatividade e fé – princípios de Kwanzaa. Contamos com a importante parceria da Fundação Itaú de Educação e Cultura (pelos seus braços Itaú Cultural e Itaú Social) e da Fundação Tide Setubal.

Ao realizar esse festival de caráter não religioso numa universidade laica, avançamos mais um trecho no caminho trilhado por Lessing e outros precursores rumo a um mundo que abrace decididamente os valores da Declaração de Princípios sobre a Tolerância.

Guilherme Ary, o autor deste artigo, é Professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade S. Paulo. Publicado originalmente no Jornal da USP (https://jornal.usp.br/?p=706316), em 23.11.23


Por vias tortas

Movida por revanche, PEC que limita decisão individual no STF acerta no mérito

Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, e Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal - (Pedro Ladeira - 5.out.23/Folhapress)

Um jogo de exageros retóricos perpassa os debates públicos e as escaramuças privadas em torno da proposta de emenda à Constituição nº 8 de 2021, recém-aprovada no Senado e encaminhada para a análise da Câmara dos Deputados.

Não se trata, como querem fazer crer os ministros do Supremo Tribunal Federal, de ameaça existencial à corte ou ao Estado democrático de Direito. É verdade, contudo, que não estamos diante de uma medida concebida para aperfeiçoar as instituições ou aprimorar o equilíbrio entre os Poderes, como diz Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado.

A PEC, em sua versão final, tem como principal dispositivo a limitação das decisões individuais (monocráticas) de ministros e desembargadores em ações de controle de constitucionalidade —aquelas nas quais um tribunal pode suspender a eficácia de uma determinada lei por considerá-la uma afronta à Constituição Federal ou estadual.

Em texto anterior, havia ainda a previsão de disciplinar pedidos de vista, deixando-os menos à mercê dos ministros —mas esse trecho não resistiu às discussões no plenário do Senado e terminou excluído, em parte porque o próprio STF, faz poucos meses, baixou norma interna com o mesmo objetivo.

Nada há de errado nessas medidas, ainda que se possam discutir os detalhes. Ambas tocam em desvios das cortes brasileiras; integrantes do STF, em particular, recorrem tão amiúde a esses instrumentos que fazem da exceção uma regra perniciosa a serviço de seus próprios interesses. Daí por que não cabe na PEC o figurino que os ministros reservaram para ela.

Ao mesmo tempo, cumpre ressaltar, se a proposta acerta nos vícios, não o faz por virtude de seus proponentes. A despeito do discurso dos senadores, estes se mexeram sobretudo por revanchismo.

Com Pacheco e Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) à frente, parte dos congressistas joga para satisfazer setores conservadores da política e da opinião pública, em particular aliados e seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que tomaram o Supremo e o Judiciário como antagonistas.

Deve-se atentar para o risco de que prosperem propostas absurdas de retaliação política, como a que dá aos parlamentares a capacidade de anular decisões judiciais —ao arrepio do sistema de freios e contrapesos entre os Poderes.

Mas ao STF, que tem razão de se orgulhar de sua atuação no governo Bolsonaro, falta humildade para perceber que, sem autocontenção, continuará fornecendo a melhor munição a seus inimigos.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 24.11.23 (editoriais@grupofolha.com.br)

Ameaça bacteriana

Alta na resistência microbiana exige ações individuais, clínicas e do Estado.


A bactéria mais comum no estudo foi a Klebsiella pneumoniae, que pode levar à pneumonia e à infecção de corrente sanguínea

No seu discurso ao receber o prêmio Nobel em 1945 pela descoberta da penicilina cerca de 20 anos antes, Alexander Fleming imaginou um futuro no qual o remédio seria vendido livremente nas farmácias.

E fez um alerta —o uso indiscriminado poderia tornar as bactérias resistentes. Passados quase 80 anos, estudos confirmam a previsão do biólogo britânico.

Segundo pesquisa da Universidade de Sidney (Austrália), publicada na revista The Lancet Regional, mais da metade dos antibióticos usados em doenças comuns na infância, como otite e pneumonia, não são mais eficazes.

O problema, apelidado de "superbactérias", não afeta apenas crianças. Relatório da OMS divulgado no final do ano passado revelou que a resistência antimicrobiana (RAM) aumentou 15% nos microrganismos monitorados.

Mais de 20% das cepas de Escherichia coli, que causa infecção urinária, não respondem aos tratamentos disponíveis. Constatou-se, ainda, RAM acima de 50% em bactérias relacionadas à sepse (infecção generalizada), que pode ser fatal.

Mutações que tornam bactérias, fungos, vírus ou parasitas mais resistentes são naturais, mas estamos agilizando esse processo com o uso indiscriminado de remédios.

Ademais, com a pandemia, houve aumento do uso de antibióticos devido à alta de infecções hospitalares. No Brasil, a Fiocruz detectou que, em 2019, cerca de 1.000 bactérias isoladas eram resistentes; já em 2021, eram mais de 3.700.

A primeira recomendação da OMS é prevenir contaminações. Lavar as mãos e higienizar os alimentos são medidas simples. No Brasil, contudo, onde cerca de metade da população não tem acesso à rede de esgoto, a implementação de infraestrutura sanitária há tempos é urgente.

Também é fundamental que médicos prescrevam antibióticos a partir de diagnóstico exato, com dosagem e duração do tratamento corretas —ainda é comum a indicação de remédios contra bactérias para doenças virais, como gripe. E pacientes, claro, precisam seguir à risca as prescrições.

O poder público deve manter monitoramento dos patógenos, reforçar programas de prevenção e controle de infecções e amplificar informações sobre a RAM.

A indústria farmacêutica precisa diversificar os produtos, mas antibióticos não são lucrativos e, por serem oriundos de substâncias encontradas na natureza, as pesquisas são mais custosas e demoradas.

A ciência tem arsenal para combater o futuro previsto por Fleming. Basta colocar em prática.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 23.nov.2023 às 22h00 (editoriais@grupofolha.com.br)

“Você tem que abraçar suas ansiedades. Sua maior vulnerabilidade geralmente é aquilo que você mais ama.”

O psicólogo americano Kelly Wilson publica livro sobre ansiedade no qual explica as formas de conviver com a timidez, fobias e inseguranças

Psicólogo Kelly G. Wilson.

Kelly G. Wilson não é um cara pessimista, algo que ele faz questão de enfatizar diversas vezes em uma conversa descontraída por videoconferência. Talvez seja uma forma de explicar o título de seu último livro, Things Could Go Terribly Wrong (Arpa, 2023), que assinou com o terapeuta comportamental Troy DuFrene. Com essa condicional, não se pretende tanto se colocar no pior dos casos, mas sim abraçar os medos e conviver com a ansiedade como forma de terapia. Wilson, (Olympia, Estados Unidos, 69 anos) é psicólogo e professor da Universidade do Mississippi , Estados Unidos. Na juventude, superou problemas de dependência de drogas e ideias suicidas. Mais tarde, ele se tornou um acadêmico e pioneiro das terapias de aceitação.

Sua carreira pode ser resumida em três letras ACT. Mas talvez isso seja resumir demais; Esta é a sigla, por sua sigla em inglês, de Terapias de Aceitação e Compromisso, teoria que Wilson começou a pregar na década de noventa e que vem ganhando peso no mundo da psicologia ao longo dos anos. Significa que é melhor aceitar as misérias em vez de evitá-las, conectar-se com os próprios medos em vez de proteger-se deles. Em seu último livro ele explica, valendo-se de experiências e estudos, que não devemos fugir da ansiedade. Em vez disso, é melhor mergulhar totalmente nisso, sentar-se calmamente e olhar em volta.

Pergunta. As coisas podem dar terrivelmente errado. Que título...

Resposta. Bem, é bem verdade, não é? Se você viver o suficiente, experimentará uma tragédia. Quero dizer, é uma parte inevitável da vida, na medida em que você está envolvido no mundo, se preocupa com ele e vive com uma certa paixão, é vulnerável à perda. Pessoalmente, sou uma pessoa bastante otimista. Acho que as pessoas podem se libertar. Só não acho que a melhor maneira de fazer isso seja livrar-se da tristeza, da ansiedade e coisas assim.

P. E ainda assim, em certo setor da psicologia, repete-se a ideia de que as coisas vão bem , que sairemos melhores, que querer é poder...

R. Vejo frequentemente esse tipo de coisa na Internet: pessoas que pregam a psicologia como um exercício de autoafirmação, que repetem como um mantra que “sou bom o suficiente”, “mereço ser amado”. E não há evidências de que isso tenha um efeito positivo. Na verdade, existem alguns dados que sugerem o contrário. Por exemplo, houve um estudo em que participaram crianças com baixa autoestima e outras com autoestima elevada. E todos tiveram que fazer esse tipo de exercício de autoafirmação, dizendo a si mesmos que eram bons. As crianças que tinham autoestima elevada sentiram-se um pouco melhor consigo mesmas por um momento. Mas as crianças que tinham baixa auto-estima, na verdade, sentiam-se pior.

P. Em seu livro você fala sobre atenção plena . Por que você acha que esse conceito, usado há milênios em diferentes religiões, se tornou tão popular nos últimos anos ?

R. Suponho que existam algumas razões muito boas e também algumas más. Vivemos em um mundo onde não se presta atenção total. É tudo uma questão de eficiência. Você tem que fazer muitas coisas e muito rapidamente. Meu relógio está vibrando em meu pulso, me avisando do seguinte. Meu telefone está cheio de notificações . O mundo flui em nossa direção como nunca antes na história da humanidade. Temos mais acesso ao que está acontecendo no mundo e de maneiras que interferem ativamente em nossas vidas. Acho que as pessoas têm fome de simplicidade, de experiências. Antes desta entrevista, por exemplo, passei duas horas caminhando por trilhas nas montanhas do deserto. Saí de madrugada e sou só eu, a vida selvagem, o céu e o sol. Eu não toco música nem nada. É apenas o som da minha própria respiração, dos meus pés batendo no chão...

P. Eu estava no metrô e aproveitei a viagem para responder e-mails . Nem sempre é fácil encontrar hora e lugar para meditar.

R. Exatamente, e você deve se perguntar: quando teremos a chance de parar? Vivemos num mundo acelerado e devemos procurar ativamente esses momentos de pausa. E também temos que encontrar práticas que funcionem para nós. Meditações clássicas, sentadas, em silêncio... são lindas, mas são práticas monásticas. E para algumas pessoas eles podem funcionar, mas existem muitas outras maneiras de praticar a atenção plena , para focar no agora com atenção total. É por isso que incentivo as pessoas a encontrarem uma prática que funcione para elas. Eu, por exemplo, não sou um meditador muito bom quando se trata de meditações sentadas. Mas você pode experimentar ioga, correr no campo, nadar...

P. Quando falamos de ansiedade, além das causas internas, qual a importância das externas, ambientais?

R. As pessoas muitas vezes presumem que muitas dificuldades psicológicas são basicamente algo que acontece dentro do corpo. Mas sabemos que isso não é verdade, mesmo nas dificuldades psicológicas mais hereditárias. Quando alguém lhe diz que tem problemas de ansiedade, geralmente está reclamando de algo externo. Digamos que você seja uma pessoa vulnerável a um certo nível de ansiedade. E a ansiedade não é um continuum, há momentos na vida com picos em determinadas situações. Mas algumas pessoas parecem claramente mais vulneráveis, talvez por causa de variantes genéticas, mas também porque temos histórias de vida diferentes.

P. E o que as pessoas fazem quando atinge o pico de ansiedade?

R. Digamos que sou uma pessoa que tem uma certa fobia social, tenho medo que as pessoas percebam, que me humilhem, que me vejam como fraco ou que se aproveitem de mim. Uma das maneiras mais fáceis de controlar essa ansiedade seria não estar perto de pessoas. Ou me medicar para me livrar da ansiedade. Mas perceba o que aconteceu ali: minha vida ficou um pouco menor. Uma das coisas que acontece com a ansiedade é que as pessoas percebem a fonte que a gera e tentam eliminá-la. E então tente não pensar nisso. Você não vai a uma festa porque gera ansiedade, e não pensa no fato de não ter ido porque gera mais ansiedade. É uma história comum, estar ansioso é algo para se ficar ansioso.

P. E o que você propõe é o oposto, abraçar essas ansiedades e aceitá-las.

R. Correto, você tem que abraçar as ansiedades para o seu próprio bem. Valores e vulnerabilidades vêm do mesmo lugar. Sua maior vulnerabilidade geralmente é aquilo que você mais ama. O que você mais deseja é também o lugar onde você está mais vulnerável. Portanto, não conheço nenhuma maneira de nos afastarmos das inseguranças que não envolva também nos afastarmos dos nossos valores. O que fazemos com esse mundo interior? O que fazemos com situações que nos deixam ansiosos ou tristes? Podemos recuar e nosso mundo ficará menor. Mas é possível, e sei que parece uma ideia maluca, ter uma relação diferente com essas experiências.

P. Apenas 3% da população é diagnosticada com transtorno de ansiedade, mas você diz que os números mentem. Porque?

R. Uma das coisas que acontece com o diagnóstico é que dividimos os problemas psicológicos em muitas, muitas categorias. Bem, há alguns aqui que estão ansiosos e outros que estão mais deprimidos. E agora você tem duas categorias. Aí você chega naqueles que estão ansiosos e diz, bem, algumas dessas pessoas estão preocupadas com os espaços públicos, mas não estão preocupadas com os espaços internos. Ou são socialmente ansiosos, mas não se preocupam com altura. Muito em breve teremos a ansiedade dividida em 100 categorias . E cada um deles pode representar uma porcentagem bem pequena, mas se você somar, é muito maior.

P. E esses números estão aumentando? Estamos mais ansiosos agora do que há alguns anos?

R. É uma questão complicada. Sim, existem algumas evidências que sugerem que os níveis de ansiedade e depressão, bem como a sua prevalência ao longo da vida, aumentaram acentuadamente. Mas eu diria que devemos ser um pouco cautelosos com isso. Na minha idade [69 anos], sim, já me senti deprimido e ansioso. E eu disse isso. Se você perguntasse isso ao meu pai, é improvável que ele respondesse. E meu avô nunca teria confessado um problema psicológico. Acho que é saudável que as pessoas possam falar sobre essas coisas em voz alta. Sempre fui muito aberto sobre o meu. Mencionei meu histórico de saúde mental. Depressão suicida. Internação psiquiátrica. E um forte vício em drogas e álcool até os 30 anos.

P. Por que é importante dizer estas coisas em voz alta?

R. Em parte falei sobre isso porque quando escrevo e ensino sobre sofrimento psicológico faço isso daqui [é indicado um ponto intermediário entre o estômago e o coração]. Os livros são escritos de dentro para fora. Portanto, temos algo a ver com ciência, mas também com experiência real vivida.

Cresci nos anos 50 e 60, neste mundo hipermasculinizado, e qualquer um poderia me fazer chorar. Foi terrível ser menino neste mundo machista. Chorei com facilidade, me interessava mais pela máquina de costura da minha mãe do que pelo futebol. E pensei que aquela vulnerabilidade que eu tinha era o inimigo. E tentei com todas as minhas forças empurrá-lo para baixo, suprimi-lo. E o que acabou acontecendo é que essa mesma vulnerabilidade me permitiu ouvir o sofrimento dos outros e não ter que fugir dele. O que eu pensava ser o inimigo tornou-se um trunfo incrível. Não sem dor, mas com propósito.

P. Nesse sentido, parece que estamos avançando. As gerações mais jovens começaram a falar sobre saúde mental.

R. Tenho dois filhos da geração Y e um da geração X. Eles cresceram em um mundo onde as pessoas falam sobre essas coisas. Há muitas coisas sobre as quais não falávamos nos anos cinquenta, sessenta e setenta. E não foi saudável. Pense em todas as coisas que eles falam agora e que naquela época estavam escondidas à vista de todos... Então acho que é bom para eles. Embora às vezes me preocupe um pouco que as pessoas se identifiquem demais com seus diagnósticos. Como se isso se tornasse uma espécie de rótulo. Há mais em mim do que minha história de alcoolismo. Há mais em mim do que meu histórico de depressão... E o que é isso mais? Ainda estou descobrindo. Alegremente.

Enrique Alpañés, o autor desta entrevista, é graduado em Direito, Mestre em Jornalismo. Esteve nas redações da Cadena SER, Onda Cero, Vanity Fair e Yorokobu. No EL PAÍS escreve na seção Saúde e Bem-Estar. Publicado no EL PAÍS, em 24.011.23

Quais países não têm banco central como Milei propõe na Argentina

Mônaco não tem seu próprio banco central porque utiliza o euro como moeda oficial e, assim, fica submetido à política monetária da União Europeia

O porto de Monte Carlo, a capital de Mônaco (Getty Images)

Apenas algumas nações no mundo desistiram de ter um banco central, como propôs o presidente eleito da Argentina, Javier Milei — vitorioso no domingo (19/11) com 55% dos votos, após prometer durante a campanha "dinamitar" a instituição.

Quase todas as nações que extinguiram o banco central são, na verdade, países muito pequenos: Kiribati, Tuvalu, Andorra, Ilhas Marshall, Mônaco, Nauru, Micronésia, Palau e o principado de Liechtenstein são alguns dos exemplos.

O único nome nesta lista cuja população está na casa dos milhões é o Panamá, que decidiu, como os outros, utilizar uma moeda estrangeira como sua moeda oficial — neste caso, o dólar.

A primeira coisa que um país perde ao extinguir um banco central é uma política monetária soberana: não pode fixar taxas de juros ou de câmbio, nem imprimir dinheiro ou financiar os gastos públicos do Estado.

Um banco central também é responsável pela gestão das reservas internacionais e pela supervisão dos bancos comerciais e dos meios de pagamento, pois tem a função de regular o sistema financeiro com o objetivo de que ele seja sólido e confiável.

Portanto, se um país decide substituir a sua moeda nacional por uma moeda estrangeira — como o Panamá pelo dólar ou o Mônaco pelo euro —, os principais poderes de um banco central deixam de fazer sentido.

Fachada do Banco Central da Argentina (Getty Images)

Papel do Banco Central argentino na economia do país ficou ainda mais evidência com a campanha e vitória de Milei

Isto significa que uma economia dolarizada dependerá das decisões tomadas pelo Federal Reserve (o Fed, banco central dos EUA), enquanto uma economia que trabalhe com o euro está sujeita a políticas do Banco Central Europeu.

Por outro lado, o benefício para os países que adotam uma moeda estrangeira é eliminar a taxa de câmbio, exportando mais facilmente seus produtos.

“Sendo países tão pequenos, o comércio internacional é muito importante para a sua economia. Para eles, o benefício de não haver incerteza na taxa de câmbio é muito maior do que qualquer benefício de controlar a economia doméstica através da política monetária”, avalia Omar Rachedi, professor do departamento de Economia, Finanças e Contabilidade da escola de negócios Esade, em Barcelona.

Mas Eileen Gavin, analista da consultoria britânica Verisk Maplecroft, afirma que mesmo em países dolarizados ainda há necessidade de uma autoridade de controle, como no Panamá.

"Não existe um banco central oficial, mas existe uma autoridade de supervisão financeira responsável por monitorar os bancos comerciais e as regulamentações macroprudenciais”, explica Gavin.

Rachedi concorda, afirmando que para uma economia continuar funcionando, há tarefas que alguma autoridade tem que continuar fazendo.

“Pode ser feito pelo Banco Central ou por um órgão que o substitua, como o Ministério da Economia. É possível eliminar a instituição, mas não todas as suas tarefas", explica o professor.

Eileen Gavin afirma que um órgão que cumpriria parcialmente as funções de um banco central deve mirar também em outro aspecto, as reservas internacionais — e as da Argentina estão no limite há anos.

“Se um país não tem um banco central, o órgão de supervisão que o substitui tem de garantir a liquidez e as reservas internacionais do país, o que num esquema de dolarização é absolutamente crítico, porque é assim que a estabilidade é garantida”, diz Gavin.

“As reservas internacionais são realmente a última linha de defesa de uma economia."

E para protegê-las, “os bancos centrais devem ser independentes do governo, o que muitas vezes não acontece na América Latina”, acrescenta.

Extinguir ou reformar?

Javier Milei ovacionado por apoiadores em evento (Getty Images)

Uma questão fundamental sobre o plano monetário de Javier Milei é como dolarizar a economia de um país onde os dólares são escassos

“O banco central não deveria existir”, escreveu Milei em uma coluna para a revista britânica The Economist em setembro, quando ainda era apenas candidato.

“Nos últimos 20 anos, os políticos do país e os seus mestres das marionetes, que se beneficiam do status quo, roubaram bilhões de dólares dos argentinos que trabalham duro através da inflação. Estimamos que, só no último ano, os políticos roubaram mais de 5% do PIB do país ao desvalorizar o peso."

Milei argumenta que a falta de independência do banco central e a sua disposição para imprimir pesos para financiar despesas de sucessivos governos fizeram subir os preços no país.

A instituição é, em sua opinião, a culpada pelo fato de a Argentina terminar o ano com uma inflação esperada de 180%: o que no início de 2023 custava 200 pesos vai terminar o ano custando 560.

“Eliminar o banco central é essencial. Não há futuro para a Argentina com o peso (...) Vocês sabem qual é a minha posição nessa luta épica”, escreveu Milei.

Mas, para muitos analistas, essa é uma abordagem radical para resolver os problemas econômicos do país.

“A Argentina está pensando em exportar a sua autoridade monetária de Buenos Aires para Washington, em vez de pensar em como reformar a lei para tornar o banco central totalmente independente da política”, opina Rachedi.

Para o economista Juan Carlos Martínez Lázaro, a posição de Milei tem a ver com a postura do banco central nos últimos anos.

“O que Milei quer evitar é que a instituição continue financiando os déficits fiscais do governo e que este continue gastando”, afirma Lázaro, professor da escola de negócios IE, em Madri.

Ele compara o que acontece na Argentina a ter uma máquina de imprimir cédulas dentro de casa.

“Você não teria empecilhos em gastar o quanto quisesse e sem nenhum tipo de controle. Isto é o que de alguma forma acontece com o governo argentino. O banco central imprime os pesos que deseja e isso lhe permite manter um nível de gastos que de outra forma seria muito complicado."

“Mas isso só causa inflação e desvalorização do peso”, aponta Lázaro.

Placa em loja na Argentina com cotações do dólar, euro e real (Getty Images)

Este processo, tecnicamente denominado “monetização do déficit”, é absolutamente proibido na maioria dos bancos centrais do mundo.

Quanto mais técnicos e independentes do governo os bancos centrais forem, mais geram confiança e estabilidade — o que atrai investidores estrangeiros.

Ainda que reconheça o papel passível de crítica do banco central argentino, o economista afirma que a extinção da instituição pode ser um golpe forte demais.

“Sem banco central, um país perde parte da sua soberania monetária, o que é muito útil para enfrentar possíveis recessões ou possíveis crises inflacionárias”, afirma Martínez Lázaro.

Para Michael Langham, analista da empresa britânica de investimentos Abrdn, a receita de corte de gastos públicos e dolarização proposta por Milei para conter a inflação pode ser insuficiente.

“O espaço fiscal é limitado e é provável que seja necessária uma recessão profunda e prolongada para acalmar a inflação, que atingiu 142% em termos anuais em outubro”, diz Langham.

“Para ter algum sucesso significativo, a Argentina precisará de uma recessão dolorosa e de reformas importantes para melhorar o seu ambiente de negócios e encorajar os investidores estrangeiros e os poupadores nacionais."

Se realmente ocorrer a dolarização, o principal problema será qual taxa de câmbio converterá a moeda nacional em dólares americanos.

“Uma taxa de conversão muito fraca pode destruir o poder de compra da população, mas uma taxa de conversão muito forte pode deixar a economia pouco competitiva com os seus parceiros comerciais”, explica Thierry Larose, gerente do banco Vontobel.

Por esta razão, os analistas concordam que o plano de Milei de fechar o banco central e dolarizar não será de curto prazo. E, devido ao tamanho da economia argentina, o processo não seria semelhante ao de países pequenos que optaram por essa via.

Na América Latina, o Equador dolarizou a sua economia em 2000 sem fechar o banco central, uma solução intermediária que teve as suas próprias complicações, porque as reservas continuaram disponíveis para os gastos dos governos.

O tempo dirá se Milei seguirá em frente com seus planos de campanha e se a economia argentina conseguirá superar todos os enormes desafios que enfrenta.

Cristina Jiménez Orgaz, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente por BBC News Mundo, em 24.11.23

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Daniela Teixeira publica depoimento pessoal antes da posse como ministra do STJ

​A advogada Daniela Teixeira, empossada ontem, quarta feira (22) como ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ), publicou um depoimento pessoal sobre a sua experiência na advocacia e sobre suas expectativas como nova integrante do Tribunal da Cidadania.

Confira o perfil da nova ministra através de um depoimento pessoal dela:

Não é sem a consciência da grandeza e importância do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que assumo nesta quarta-feira, dia 22, uma das 33 cadeiras nesta Corte.

Criado pela Constituição Federal de 1988, o STJ é parte fundamental do processo de redemocratização do Brasil. Foi o momento em que a Cidadania ganhou um Tribunal Superior.

De fato, se a "nova" Constituição deveria refletir os anseios democráticos e as necessidades de uma sociedade em mudança, nada mais natural que a Justiça e a Cidadania fossem alçadas a um lugar sobranceiro. Eis, pois, porque a chamada Constituição Cidadã criou o Tribunal da Cidadania, como é conhecido o STJ.

Acompanhei todo esse processo do nascimento desta nova ordem ainda como estudante e acadêmica. E tão logo obtive o grau de bacharel em Direito, comecei a frequentar os corredores do Superior Tribunal de Justiça na qualidade de advogada.

Foi nesse ambiente que aprendi como é distribuída a Justiça. Conheci, nas inúmeras causas que atuei, a realidade brasileira, tão díspar e tão carente. 

Nos últimos 27 anos, poucas foram as semanas que não estive no STJ despachando, acompanhando um julgamento, ou fazendo uma sustentação oral.

Fiz amigos, conheci pessoas e, sobretudo, passei a admirar o árduo ofício de julgar. Com o tempo, meu inconformismo com este aquele julgamento, coisa ordinária para quem advoga, passou a ser mais judicioso. E não só, as escolhas das causas em que atuava também começaram a ser mais criteriosas.

E se o advogado é o primeiro juiz da causa, como diz o escritor, eu estava cumprindo isso à risca. Percebi, assim, que talvez estivesse, com a experiência adquirida no tempo, numa posição que não era mais apropriada.

Foi essa vocação inesperada, surgida a partir do dia a dia, um dos motivos que me impulsionaram a deixar a advocacia para ingressar na magistratura. 

Mas há outros dois motivos que quero contar.

Como advogada, participei ativamente de nossa entidade de classe, a Ordem dos Advogados do Brasil. Fui reiteradamente eleita no Distrito Federal, tanto como diretora, como Conselheira Federal.

E que experiência incrível é essa de poder conviver com a advocacia de todo o país! Na verdade, conhecer os advogados e advogadas dos diversos Estados brasileiros é conhecer o Judiciário pátrio, pois são eles, afinal, os fomentadores da Justiça brasileira.

Assim, convivendo com as diferentes Justiças do Brasil, aumentou ainda mais na minha consciência a importância do Superior Tribunal de Justiça que é, justamente, o responsável por unificar tão diferentes países que temos no mesmo Brasil.

Eis, pois, a segunda razão pela qual troco a beca de advogada pela toga da magistratura: levar o olhar de quem conhece a realidade atual da advocacia e da cidadania – porque o mundo é muito diferente daquele de 1988 – para um Tribunal tão importante quanto o Superior Tribunal de Justiça.

Por fim, e não menos importante, consigno que me move, e todos que conhecem um mínimo da minha história sabem disso, me move a luta das mulheres por igualdade. 

É claro que essa igualdade está em todos os comandos legais. Mas a realidade não mostra isso. E ter o olhar feminino, em todos os lugares onde a vida das pessoas possa ser decidida, é fundamental. Eis porque quis me unir ao pequeno mais valoroso grupo de mulheres que compõem ou compuseram os tribunais superiores, de modo a colaborar para que a distribuição da Justiça tenha também esse prisma, o prisma feminino.

São estas, portanto, as razões que me motivaram a estar aqui hoje: uma inerente vocação, uma experiência de país, e uma consciência de gênero.  

Espero que, amalgamadas, elas produzam a juíza justa que trabalharei diariamente para ser. 

Publicado em https://www.stj.jus.br/sites/ portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/21112023-Daniela-Teixeira-publica-depoimento-pessoal-antes-da-posse-como-ministra-do-STJ.aspx

É reducionismo ver Milei como o Trump do Prata

Passado o impacto da vitória acachapante do autodenominado anarcocapitalista e libertário Javier Milei nas eleições para presidente da Argentina, a hora é de olhar mais para o que pode acontecer e, não para o que foi a verborragia eleitoreira.

Milei é um principiante em política e em política econômica. Independentemente do que poderia ser visto como compromissos assumidos em campanha, e mais do que fazer a exegese de sua parlapatice teatral, convém entender para onde conduz a lógica dos fatos e a energia da sociedade argentina.

A retórica de campanha tem de ser entendida muito mais como fruto dos anseios da sociedade do que como políticas a serem adotadas imediatamente.

A proposta de dolarização da economia, por exemplo, é mais a necessidade de garantir certa estabilidade à moeda do que um imperativo de livre curso imediato às moedas estrangeiras no mercado local. O fechamento do Banco Central, tão insistentemente defendido pelo futuro presidente argentino, deve ser visto no sentido metafórico. O que conta é que terá de ser fechada a guitarra emissora de moeda, que até agora só produziu inflação. Mas o Banco Central não pode ser fechado para suas funções primárias, que são as de defender a moeda, de administrar o câmbio e de supervisionar o sistema bancário.

Se no cargo de comandantes da equipe econômica forem confirmados colaboradores estreitos do ex-presidente e agora aliado Mauricio Macri, como seu então (2015-2018) presidente do Banco Central Federico Sturzenegger, hoje lembrado para a pasta da Economia, então teremos indicação de que o comando da macroeconomia será entregue a condutores com bom grau de confiabilidade.

Para evitar o naufrágio não bastará credibilidade residual. Será preciso apagar vastos incêndios a bordo. A inflação se aproxima dos 150% ao ano e daí, para a hiperinflação. Tomada por subsídios, subvenções e congelamentos de preços em áreas essenciais, a estrutura de preços relativos na Argentina está uma bagunça. Sem um choque de arrumação, não será possível seguir viagem.

Um choque de arrumação, por sua vez, cujo núcleo terá de ser a recuperação das condições fiscais do país deverá piorar tudo antes de melhorar. Deverá provocar mais inflação imediata, porque preços essenciais estão muito represados, a começar pelos do câmbio oficial. Parece inevitável um colapso temporário da atividade econômica que só poderá ajudar a manter a embarcação à tona se o novo governo empenhar todo seu novo capital político para o pacote de maldades que tiver de ser distribuído à sociedade.

Não se trata aqui de dar um voto gratuito de confiança a um hábil manipulador de plateias sofridas. É questão de reler os fatos de um jeito diferente.

Mas, decididamente, seguir repetindo que Milei não passa de um “loco de extrema derecha” e de um Trump do Prata parece perigoso reducionismo. 

Celso Ming, o autor deste artigo, é Jornalista especializado em Economia. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 23.11.23

Sede por regalias

É mais fácil a República devolver o poder aos Braganças do que acabar com os privilégios

José Murilo de Carvalho acreditava que, após 140 anos de existência, havia mais democracia do que República no Brasil. Poucos seriam capazes de associar a segunda à afirmação da igualdade perante a lei, à ausência de privilégios ou ao bom governo e ao cuidado com o bem público.

Tinha razão. E ia mais longe. O historiador da República dizia que a nossa não tinha salvação, ou tinha, mas só por milagre de frei Vicente, aquele que em 1627 escreveu que no Brasil nenhum homem “é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. E Murilo concluía: “A República extinguiu o privilégio dos Braganças, mas não conseguiu eliminar os privilégios sociais.”

Eis um – entre outros – campo em que a República falhou miseravelmente: o combate aos privilégios. Se alguém quiser uma lição sobre o que disse o historiador basta ler a reportagem de Pepita Ortega, do Blog do Fausto, sobre a sessão em que o Conselho da Justiça Federal (CJF) começou a julgar se pagará R$ 240 milhões a juízes. Trata-se de velha discussão: a correção monetária pelo IPCA – e não pela Taxa Referencial – das Parcelas Autônomas de Equivalência (PAE) do auxílio moradia, pagas a magistrados entre 1994 e 2002. O pleito é da Associação dos Juízes Federais. O primeiro voto foi desfavorável ao pedido dos togados para espetar a nova conta no bolso do contribuinte.

A ministra Maria Thereza de Assis Moura, do CJF, assim manifestou sua indignação, reproduzindo as palavras do ministro João Otávio de Noronha, em sessão de 2018, quando o mesmo passivo foi pago: “Eu espero que essa grande reprodutora, a Mãe da PAE, sossegue agora, que ela seja esterilizada. Vamos ligar as trompas. Não pode mais gerar recursos de dinheiro, dinheiro, dinheiro. Isso já chegou a um limite. Espero que essa seja a última decisão em matéria de PAE.” Doce ilusão. Cinco anos depois, o CJF vai decidir a mesma matéria. A mãe PAE pode voltar a fornecer mais leite aos filhos. Após o voto contrário de Maria Thereza, o julgamento foi suspenso com pedido de vistas.

Esse não é o único caso de vantagens pretendidas pelos doutores que foi parar nas cortes e conselhos. Em outro julgamento, após 17 anos de análise, o STF concluiu pela derrubada de um penduricalho histórico do Ministério Público – os “quinto”, “décimo” e “opção”, pagos a integrantes do órgão que ocupavam cargos de direção ou assessoria, mesmo após o término do exercício da função. Se o ganho auferido era inconstitucional e, portanto, ilegal, alguém pode perguntar: os procuradores vão devolver o recebido indevidamente. José Murilo diria que não. Ele sabia que é mais fácil a República devolver o poder aos Braganças do que acabar com os privilégios dos doutores. 

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 22.11.23

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

O entretenimento engole a política

Quando as decisões que afetam a ordem do comum repelem o entendimento do que seja o bem comum, é porque vai dar ruim. O conceito de República se desfaz na poeira do tempo

Você olha e fica boquiaberto. Mas como pode ser? Você esfrega os olhos, não é possível que esteja vendo o que vê. O modo como as pessoas reagem às notícias desperta no seu espírito uma incredulidade perplexa. Tudo na política – tudo mesmo, sem exceção – virou uma questão de torcida organizada, de arrebatamento de almas (pequenas) e de furor irracional. Nos tempos da covid a gente viu de perto: a hidroxicloroquina vai dar certo porque eu tenho fé; a ivermectina vai salvar vidas porque eu acredito; a vacina chinesa carrega um chip oculto que vai rastrear os desejos de consumo da vizinha, eu sei, eu vi um vídeo na internet. Parece loucura. É loucura.

A polarização se faz de ânimos conflagrados, não mais de opiniões divergentes. A metáfora da ágora grega não serve mais para representar o debate público. A imagem da disputa de pontos de vista entre seres racionais perdeu a validade. Agora, as multidões se sentem em guerras santas, em cruzadas sanguinárias, se sentem no Coliseu de Roma apontando o polegar para baixo. O script do tempo são os linchamentos virtuais. O fundamentalismo corre solto. Intolerância na veia. Nos Estados Unidos, os numerosos radicais do Partido Republicano trabalham com o dogma tácito de que as eleições de 2020 foram roubadas, e ai de quem discordar. Para muita gente, o aquecimento global é um mito fabricado. Eis o colégio eleitoral do nosso tempo.

Como explicar esses efeitos de estrondos e de fúria? As hipóteses são múltiplas, não necessariamente excludentes, mas uma delas fala mais alto: o universo da política foi inteiramente tragado pela linguagem do entretenimento – e, no entretenimento, a reafirmação do ego (ou do eu) vale mais do que a verdade dos fatos. Ponto. Parágrafo.

É verdade que, desde que o mundo é imundo, a política traz na sua fórmula ingredientes teatrais, elementos lúdicos e temperos passionais. Sempre foi assim. A partir da prevalência das plataformas sociais, contudo, a coisa mudou de patamar. Todas as escolhas que antes se resolviam na esfera da pólis hoje se decidem num imenso reality show interativo, onde o desejo íntimo sobrepuja com folga (e com gozo) o interesse público. A razão e a objetividade escasseiam, enquanto as emoções eclodem, em apoteoses surdas.

O que vemos diante de nós não combina mais com os conceitos que valiam até algumas décadas atrás. É outra coisa, outro bicho. Já deram a esse ambiente, em que as questões políticas se comportam como atrações circenses, o nome de “era da pós-verdade”. Foi com essa expressão, aliás, que a revista The Economist se referiu à campanha presidencial de Donald Trump, numa reportagem de capa em setembro de 2016. Por certo, podemos nos referir à nova geleia geral como a “era da pós-verdade”, mas o fenômeno é maior do que imaginávamos em 2016. É mais monstruoso e mais profundo.

Vejamos o que se passa com a comunicação dos partidos, das autoridades estatais, das ONGs ou dos organismos internacionais. Essa comunicação já não interpela a razão, mas a emoção – e faz isso em formatos melodramáticos. Ou a mensagem segue o alfabeto visual estabelecido pela indústria do entretenimento, quer dizer, ou a propaganda assimila as narrativas baseadas no modelo bonzinhos-contra-malvados, ou não encontrará eco nas mentes e nos corações.

A que se reduziu o impasse da guerra do Oriente Médio? A uma disputa interminável sobre quem é que merece ser posto no papel de vítima. Os escombros da Faixa de Gaza – escombros urbanos, escombros humanos – são apenas o epicentro cenográfico de uma imensa guerra de imagem para ver quem consegue tomar para si o papel de vítima. Quem fizer jus a esse lugar merecerá o amor incondicional da plateia (antes conhecida como opinião pública). Acostume-se. A realidade se comporta como um filme de aventura, com princesinhas desprotegidas, cavalos suados e rapazes incultos, mas valentes.

Assim como o ideólogo do início do século 20 cedeu seu posto ao marqueteiro do início do século 21, o instituto da razão perdeu terreno para as identificações pulsionais, libidinais, fáceis e acachapantes propiciadas pelas técnicas industriais do entretenimento. A política hoje integra o vasto comércio das diversões públicas. O cidadão, que era a fonte de todo o poder, acomodou-se na condição de consumidor voraz de sensações estupefacientes. Não é mais como cidadão que ele se mobiliza, mas como torcedor fanático, como religioso fiel ou, ainda, como fã ardoroso. Se você ainda tem dúvidas, releia as mensagens que chegam nos grupos de WhatsApp. Lá estão os sintomas: os abaixo-assinados sentimentais, as figurinhas animadas que defendem uma tese em um único segundo, as subcelebridades desocupadas pontificando sobre assuntos complexos como se discorressem sobre o uso da cebola numa receita vegana. Está na cara, não está?

Não, isso aí não vai dar certo. Quando as decisões que afetam a ordem do comum repelem o entendimento do que seja o bem comum, é porque vai dar ruim. O conceito de República se desfaz na poeira do tempo.

Eugenio Bucci, o autor deste artigo, é Jornalista e Professor de Comunicação na Universidade de S. Paulo. Publicado originalmente em 16.11.23