sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Investidura e democracia

A melhor expressão da política para resolver os conflitos mais difíceis é tentar incansavelmente o diálogo e a negociação. Acordos entre posições difíceis de conciliar são os que mais agregam valor



Senhor Garcia

A referência à “confiança” parlamentar aparece até nove vezes na nossa Constituição, o elo jurídico-político que une os representantes dos cidadãos no Congresso dos Deputados ao Governo. Como se sabe, nem todos os países que têm uma forma de governo como a nossa exigem esta manifestação expressa, solene, de apoio a quem comparece na Câmara para solicitá-lo, se necessário obtê-lo, e liderar o Executivo. E, conforme exige o Regulamento do Congresso, desde 1982, após um debate completo, exigente para o candidato e no qual todos os grupos têm a possibilidade de explicar e contrastar a sua posição.

Uma investidura que a Constituição incentiva, desde a proposta do candidato pelo chefe de Estado, pelo Rei, até à disponibilização das duas votações sucessivas possíveis, sendo na segunda a maioria relativa suficiente para nomear o presidente. A Constituição quer a investidura e não a repetição eleitoral, embora deva deixar esta última segura caso os atores políticos falhem na sua tarefa.

E este salvo-conduto democrático é tão poderoso na sua encenação, tão real, tão verdadeiro, que afasta dos olhos de todos qualquer dúvida sobre o significado da legitimidade num Estado constitucional. Acabámos de o verificar novamente, talvez por isso seja pertinente destacá-lo, num contexto de circunstâncias inusitadas, como aquelas que já não são incomuns nas democracias. Mas o nosso demonstrou a sua consistência, tanto para proteger a mais ampla liberdade de crítica e manifestação, como para ter implementado o próprio processo de investidura com plena normalidade institucional.

O desacordo político faz todo o sentido quando é formado um novo Governo, especialmente se tiver composição e apoio plural, e quando são adoptadas decisões controversas. Mas talvez não haja tanta tentação, que tem estado muito presente nos dias de hoje, de resolver esta discrepância pelos meios expeditos de declarar como contrárias à Constituição as opiniões daqueles que a confrontam com as suas próprias. Porque recordemos que a Constituição reconhece e protege o pluralismo, a legitimidade das diversas opções e desenvolvimentos, e isso dificilmente é compatível com a intenção de converter qualquer discrepância política numa discrepância ou censura constitucional, para tentar resolver vantajosamente a primeira em favor de quem empunha o segundo.

Faz ainda menos sentido, a meu ver, e deixando de lado outras imprecações que dispensam comentários, anunciar uma espécie de futura inconstitucionalidade sistémica, invocando insidiosas mutações constitucionais ou apelando a expressões, aliás bastante banais, como " mudar a Constituição pela porta dos fundos”, que são de tal gravidade que deveriam corresponder, na palavra ou na pena de quem os brande, a uma argumentação minimamente rigorosa que os tornasse credíveis. Pelo contrário, creio, são meras previsões, tão apocalípticas quanto apodíticas, e que conheço bem, permitam-me acrescentar, porque as sofri durante o meu tempo no governo.

Pelo contrário, penso que há todos os motivos para confiar nas nossas instituições de controlo, e naqueles que as servem, a começar pelos juízes e tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, porque foram formados na cultura da democracia e do Estado de direito e são responsáveis ​​pelas resoluções que adotam e pela sua motivação. Não existem portas traseiras no nosso Estado constitucional.

Hoje em dia voltaram à minha memória as duas investiduras em que participei como candidato à presidência do Governo . Lembro-me delas como experiências de especial intensidade, entre as mais marcantes de todo o meu período político, preparando com grande concentração o discurso inicial e a articulação do programa de governo, bem como o diálogo com os grupos no debate subsequente, as respostas a o líder da oposição, e o diálogo de aproximação com os partidos que, além do seu, poderiam apoiá-lo ou conceder-lhe a abstenção...

Inevitavelmente, junto com o assalto à memória, surge a comparação dessas investiduras com esta última do Presidente Sánchez, porque no passado as coisas eram mais fáceis, claro. Na era do bipartidarismo, entenda-nos, começou a ser mais fácil do que agora para o próprio Rei exercer a sua tarefa constitucional de formular a proposta do candidato: então, o líder da força mais votada era o único (excepto, talvez, em 1996) . ) que poderiam ser investidos. E então teve que ser iniciada uma negociação ou diálogo com outros grupos, mas ambos limitados à maior ou menor oportunidade política de obter apoio parlamentar na primeira votação, com maioria absoluta, ou na segunda, com maioria relativa. Curiosamente, alcançámos o primeiro, em 2004, com 164 lugares iniciais, e ainda assim, de alguma forma, tomámos como certo, em 2008, com 169, que a minha candidatura prosperaria na segunda volta.

Como todos recordam, desde as eleições de Dezembro de 2015 houve um reajuste na representação política que enfraquece as forças maioritárias e dificulta as investiduras. E agora a negociação e os acordos entre grupos, e não apenas entre grupos com ideias semelhantes, tornam-se essenciais, essenciais. Certamente, os pais da Constituição não podiam ignorar que com um sistema eleitoral proporcional, embora corrigido, este cenário era possível e até provável, e que num período em que acreditavam, com razão, na fertilidade do consenso, eu teria de bom grado antecipamos que estas seriam necessárias para designar o Presidente do Governo como a figura central do nosso sistema político.

Não surpreende, portanto, que a Lei Fundamental vincule a confiança solicitada ao Congresso ao dever do candidato de apresentar o “programa político do Governo que pretende formar”, um programa com significado próprio, em relação aos programas eleitorais com aqueles que apareceram nos grupos que agora se reúnem, para forjar, neste caso, um governo de coligação que também necessita de apoio externo. O programa, então, do Governo possível, de acordo com o mapa da representação dos cidadãos elaborado pelo resultado das eleições gerais, um programa de programas, ainda que gira em torno do da força maioritária, exposto e suficientemente debatido antes da votação.

Poderíamos dizer, assim, que quando os cidadãos elegem os seus representantes para que depositem a sua confiança num candidato à presidência do Governo, estão, por sua vez, conferindo aos parlamentares uma margem de confiança para cumprirem esta decisão decisiva. prerrogativa. Porque escolhemos, e sabemos disso, quem vai escolher com os outros e contra os outros. Isto permite-nos compreender, por exemplo, que o programa de governo que José María Aznar defendeu após as eleições de 1996 incluía medidas relevantes não previstas no programa eleitoral com o qual o seu partido apareceu nessas eleições. Ou que, para me referir ao meu próprio partido, o PSOE, após as eleições de junho de 2016, que se realizaram após a dissolução automática das Câmaras eleitas em dezembro do ano anterior, por não terem conseguido iluminar a investidura, fez o difícil decisão de consentir com a sua abstenção na candidatura bem sucedida do então presidente em exercício, Mariano Rajoy, para evitar uma nova e muito anómala repetição eleitoral. Obviamente, tal possibilidade não tinha sido contemplada na campanha eleitoral anterior.

Confiança, então, por confiança, para que os deputados a concedam, como na investidura que acaba de ser celebrada. Confiança pela confiança, pelo programa político que o candidato defendeu para obtê-lo. Um programa sobre o qual gostaria de fazer apenas duas referências.

Em primeiro lugar, o compromisso que inclui, depois de negociado entre vários grupos da Câmara, facilitar a aprovação de uma lei de anistia. Indiquei acima a relevância de diferenciar claramente, com esta lei como com qualquer outra, os níveis de constitucionalidade e oportunidade política. Há alguns dias, antecipei fortemente meu acordo com ambos.

Em poucas palavras, a lei de amnistia goza, como todas as outras, e em nome do princípio democrático, da presunção da sua constitucionalidade, outro dos lembretes que parece necessário fazer nestes tempos, e neste caso não existem argumentos suficientemente sólidos para quebrar essa presunção, embora estejamos bem conscientes de que o legislador deve justificar a sua excepcionalidade, o que faz, na minha opinião, de forma profusa e convincente.

Quanto à sua conveniência, estou convencido de que a melhor expressão da política em democracia para resolver os conflitos mais árduos, aqueles que exigem as posições mais distantes, é tentar o diálogo e a negociação, tentar incansavelmente. Porque acordos entre posições difíceis de conciliar são também os que mais agregam valor. E, mais cedo ou mais tarde, sem anistia esse caminho seria impossível de percorrer.

Por isso acredito que a decisão tomada merece respeito e abre expectativas animadoras. E que um acordo desta natureza seja assumido pelo candidato a Presidente do Governo no momento da investidura e de forma totalmente transparente, uma vez que o texto do projeto de lei já era conhecido, mostra a determinação e exercício de liderança de Pedro Sánchez . Pela responsabilidade que implica, pela responsabilidade que assume. E também penso que sei por experiência que só com ambos, com essa determinação e com essa responsabilidade, podemos aspirar a alcançar as conquistas que parecem mais inatingíveis, mas que se inspiram no desenho de uma coexistência justa e pacífica que incentiva de forma avançada democracia como é a espanhola.

No entanto, o núcleo do programa de governo com o qual o presidente obteve a investidura, aquele que melhor e mais amplamente se conecta com o programa eleitoral apresentado pelo partido socialista e com a trajetória do governo de coligação da legislatura anterior, é o anunciado conjunto de medidas de avanço e modernização social. Acredito que o equilíbrio do que foi alcançado nos últimos anos sustenta a confiança inicial no cumprimento destes novos compromissos e no seu fio condutor: a busca inabalável da igualdade efectiva entre mulheres e homens e a redução das desigualdades sociais, porque um e outros são, aliás, o que mais compromete as opções de vida dos cidadãos que partilham a comunidade cívica.

Para concluir estas linhas, gostaria de me referir ao que poderíamos chamar de investidura da oposição, uma vez que esta também está em jogo no debate fundador da legislatura. Sempre pensei que o tom geral de um país não depende apenas do seu Governo, mas também da oposição. E igualmente, por esta razão, ela deve tornar-se, como tal, uma credora de confiança, assim como outros devem estar dispostos a concedê-la a ela.

Neste sentido, é verdade que Alberto Núñez Feijóo perdeu a oportunidade de censurar vigorosamente o assédio sustentado à sede do PSOE, uma questão verdadeiramente delicada, uma vez que todos os partidos merecem a protecção especial que se infere da sua enfática caracterização constitucional como “instrumentos fundamentais para a participação política”, mas também reconheceu expressamente, de forma muito clara e para que conste, a legitimidade da nova maioria governamental. Vou ficar com o último. E, por tudo isto, com a força demonstrada hoje pela democracia espanhola.

José Luis Rodríguez Zapatero, o autor deste artigo, foi Presidente do Governo entre abril de 2004 e dezembro de 2011. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 17.11.23

15 de novembro, Proclamação da República: por que historiadores concordam que monarquia sofreu um 'golpe'

Meses após o Marechal Deodoro da Fonseca enganar a própria mulher, burlar as recomendações médicas e levantar da cama - onde havia passado a madrugada daquele 15 de novembro febril - para proclamar a República brasileira, o país já conhecia a primeira crítica articulada sobre o processo que havia removido a monarquia do poder em 1889.

O quadro 'Proclamação da República', de Benedito Calixto; movimento que questiona rompimento com a monarquia ganhou força com as redes sociais. (Crédito: Cento Cultural S. Paulo)

Escrito pelo advogado paulistano Eduardo Prado, o livro Fastos da Ditadura Militar no Brasil, de 1890, argumentava que a Proclamação da República no Brasil tinha sido uma cópia do modelo dos Estados Unidos aplicada a um contexto social e a um povo com características distintas.

A monarquia, segundo ele, ainda era o modelo mais adequado para a sociedade que se tinha no país. Prado também foi o primeiro autor a considerar a Proclamação da República um "golpe de Estado ilegítimo" aplicado pelos militares.

Hoje, 129 anos depois, o tema ainda suscita debates: enquanto diversos historiadores apontam a importância da chegada da República ao Brasil, apesar de suas incoerências e dificuldades, um movimento que ganhou força nos últimos anos - principalmente nas redes sociais - ainda a contesta.

"A proclamação foi um golpe de uma minoria escravocrata aliada aos grandes latifundiários, aos militares, a segmentos da Igreja e da maçonaria. O que é fato notório é que foi um golpe ilegítimo", disse à BBC News Brasil o empresário Luiz Philippe de Orleans e Bragança, tataraneto de D. Pedro 2º, o último imperador brasileiro, e militante do movimento de direita Acorda Brasil.

Neste ano, ele recebeu 118.457 votos no Estado de São Paulo e se elegeu deputado federal pelo PSL, partido do presidente eleito Jair Bolsonaro.

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"Quando há ilegitimidade na proclamação de qualquer modelo de governo, não se consegue estabelecer autoridade e, dessa forma, não se tem ordem. É exatamente isso que aconteceu na República: removeram o monarca e, no momento seguinte, foi um caos", completa Orleans e Bragança, justificando a partir da história os solavancos recentes da democracia brasileira.

Retrato do Marechal Deodoro da Fonseca por Henrique Bernardelli; ele proclamou a República no Brasil após uma madrugada febril (Crédito: Museu Histórico Nacional)

O processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, deu novo gás ao movimento pró-monarquia, impulsionado pelas redes sociais e pela presença de grupos monarquistas nas manifestações contra o governo petista, entre 2015 e 2016 - muitos deles, empunhando bandeiras do Brasil Império.

Um movimento de elites

A ideia de que a Proclamação da República foi um "golpe" é engrossada pelo historiador José Murilo de Carvalho, que escreveu um livro sobre os períodos monárquico e republicano do Brasil: O Pecado Original da República (editora Bazar do Tempo). Um dos intelectuais mais respeitados no país, Murilo também admite que é possível discutir a legitimidade do processo, como reivindicam os monarquistas atuais.

"Para se sustentar (a reivindicação de legitimidade da proclamação), ela teria que supor que a minoria republicana, predominantemente composta de bacharéis, jornalistas, advogados, médicos, engenheiros, alunos das escolas superiores, além dos cafeicultores paulistas, representava os interesses da maioria esmagadora da população ou do país como um todo. Um tanto complicado", avalia.

Ainda de acordo com Murilo, não apenas foi um golpe, como ele não contou com a participação popular, o que fortalece o argumento de ilegitimidade apresentado pelos atuais monarquistas. Para ele, a distância da maior camada da população das decisões políticas é um problema que perdura até hoje.

"Embora os propagandistas falassem em democracia, o pecado foi a ausência de povo, não só na proclamação, mas pelo menos até o fim da Primeira República. Incorporar plenamente o povo no sistema político é ainda hoje um problema da nossa República. Pode-se dizer que as condições do país não permitiram outra solução e que os propagandistas eram sonhadores. Muitos realmente eram", conta.

'A proclamação foi um golpe de uma minoria escravocrata aliada aos grandes latifundiários, aos militares, a segmentos da Igreja e da maçonaria. O que é fato notório é que foi um golpe ilegítimo', diz Luiz Philippe de Orleans e Bragança (Crédito: Ana Carolina Camargo/ BBC News Brasil).

Especialista no período, o jornalista e historiador José Laurentino Gomes, autor da trilogia 1808, 1822 e 1889, concorda com a leitura do "golpe". Para ele, no entanto, o debate sobre a legitimidade da República é sobre "quem legitima o quê", o que está ligado ao processo de consolidação de qualquer regime político.

"O termo 'legitimidade' é muito relativo. Depende do que se considera o instrumento legitimador da nossa República. Se ele for o voto, ela não é legítima, porque o Partido Republicano nunca teve apoio nas urnas. Agora, se considerar esse instrumento a força das armas, foi um movimento legítimo, porque foi por meio delas que o Exército consolidou o regime", diz.

Para Laurentino, a questão envolve a luta pelo direito de nomear os acontecimentos históricos que, no caso dos republicanos, conseguiram emplacar a ideia de "proclamação" e não de "golpe".

"O que aconteceu em 1889, em 1930 e em 1964 é a mesma coisa: exército na rua fazendo política. Depende de quem legitima o quê. O movimento de 1964 não foi legitimado pela sociedade, mas a revolução de 1930 o foi tanto pelos sindicatos quanto pelas mudanças promovidas por Getúlio Vargas. A proclamação é contada hoje por quem venceu", argumenta.

Para o historiador Marcos Napolitano, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), é possível, sim, falar em golpe na fundação da República. Já questionar sua legitimidade, como faz Orleans e Bragança, seria um revisionismo histórico incabível.

"Se pensarmos que a monarquia era um regime historicamente vinculado à escravidão (esta sim, uma instituição ilegítima, sob quaisquer aspectos), acho pessoalmente que a fundação da República foi um processo político legítimo que, infelizmente, não veio acompanhado de reformas democratizantes e inclusivas", explica.

Após 129 anos, Proclamação da República ainda é alvo de debates (Crédito Reuters)

Segundo José Murilo de Carvalho, é possível afirmar que a proclamação foi obra quase totalmente dos militares, assim como conta o jornalista Laurentino Gomes em seu livro 1889.

"Só poucos dias antes do golpe é que líderes civis foram envolvidos", explica Murilo. Para o professor Marcos Napolitano, porém, o fato de ter sido uma minoria a responsável por derrubar a monarquia não retira do movimento a sua legitimidade.

"Qualquer processo político está ligado à capacidade de minorias ativas ganharem o apoio de maiorias, ativas ou passivas, e neutralizarem outros grupos que lhes são contra. Nem sempre um processo político que começa com uma minoria ativa redunda em falta de democracia. Esta é a medida de legitimidade de um processo político. Muitos processos políticos democratizantes, que mudaram a história mundial, começaram assim. O que não os exime de serem processos muitas vezes traumáticos e conflitivos", explica Napolitano.

Monarquia como opção de regime político?

Orleans e Bragança expressa uma alternativa que já existe há algum tempo entre um grupo restrito de historiadores. O mais militante deles é o professor Armando Alexandre dos Santos, da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul).

Frequentemente convidado pela Casa Real para palestras e eventos, ele é amigo pessoal de D. Luiz Gastão de Orleans e Bragança - que seria o imperador do país caso fosse uma monarquia - desde os anos 1980.

Para Santos, a República representou a instauração de uma ditadura jamais vivida até então no Brasil.

"Foi uma quartelada de uma minoria revoltosa de militares que não teve nenhum apoio popular. A própria proclamação foi um show de indecisões: Deodoro da Fonseca, por exemplo, só decidiu proclamá-la porque foi pressionado pelos membros do seu grupinho que precisavam de um militar de patente para representá-los. Foi, acima de tudo, um modismo, uma imitação servil dos EUA", argumenta.

Santos, no entanto, não encontra apoio para sua tese na maior parte da academia. Para os historiadores ouvidos pela BBC News Brasil, o retorno à monarquia não está definitivamente no horizonte político do país.

"O plebiscito de 1993 (para determinar a forma de governo do país) mostrou que há sólida maioria favorável à República, apesar das trapalhadas do regime. Fora do Carnaval, a imagem predominante da monarquia ainda é a de regime retrógrado", afirma José Murilo de Carvalho, seguido por Gomes.

"Em um momento de discussão da identidade nacional, se somos violentos ou pacíficos, corruptos ou transparentes, vamos em busca de mitos fundadores. Um deles é D. Pedro, que era um homem culto e respeitado. Esse movimento monárquico atual é freudiano. É a busca de pai que resolva tudo sem que a gente se preocupe", finaliza.

Vinícius Mendes, de São Paulo para a BBC Brasil, em 15.11.2017. / * Este texto foi publicado originalmente em 2018. Atializado e publicado em 15.11.23.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Mortes de idosos por calor cresceram 85% desde 1990, e ritmo deve se acelerar nas próximas décadas

Dados integram estudo divulgado nesta semana por equipe internacional de 114 pesquisadores

Na foto, enfermeiras preparam uma mistura para hidratar idosos em uma casa de repouso no sul da França no verão de 2015 (Foto: Regis Duvignau / Reuters)

As mudanças climáticas continuam a ter um impacto agravado na saúde e na mortalidade em todo o mundo, de acordo com um relatório publicado nesta terça-feira, 14, por uma equipe internacional de 114 pesquisadores.

Uma das descobertas mais contundentes é que as mortes relacionadas com o calor de pessoas com mais de 65 anos aumentaram 85% desde a década de 1990, de acordo com modelos que incorporam alterações demográficas e de temperatura. As pessoas nesta faixa etária, juntamente com os bebês, são especialmente vulneráveis a riscos para a saúde, como a insolação.

À medida que as temperaturas globais aumentaram, as pessoas idosas e as crianças estão agora expostas ao dobro do número de dias de ondas de calor anualmente do que estavam entre 1986 e 2005.

O relatório, publicado na renomada revista científica The Lancet, também rastreou a perda estimada de renda e a insegurança alimentar.

Globalmente, a exposição ao calor extremo e as consequentes perdas de produtividade ou incapacidade de trabalhar podem ter levado a perdas de rendimento tão elevadas como U$ 863 milhões em 2022. E, em 2021, estima-se que mais 127 milhões de pessoas sofreram de insegurança alimentar moderada ou grave ligada a ondas de calor e secas, em comparação com o período de 1981 a 2010.

Placa alerta sobre calor extremo no Vale da Morte, na Califórnia (Foto: Jorge Garcia/Reuters)

“Perdemos anos muito preciosos de ação climática e isso teve um custo enorme para a saúde”, disse Marina Romanello, pesquisadora da University College London e diretora executiva do relatório, conhecido como The Lancet Countdown. “A perda de vidas e o impacto que as pessoas experimentam são irreversíveis.”

Os indicadores de saúde pública acompanhados no relatório, em geral, diminuíram ao longo dos nove anos em que os investigadores produziram edições da avaliação.

A análise também examinou os resultados de saúde para países individualmente, incluindo os Estados Unidos. As mortes relacionadas com o calor de adultos com 65 anos ou mais aumentaram 88% entre 2018 e 2022, em comparação com 2000 a 2004. Estima-se que 23.200 americanos mais velhos morreram em 2022 devido à exposição ao calor extremo.

Além dos números

Para os profissionais de saúde, as estatísticas não são abstratas. “Esses números me lembram os pacientes idosos que atendo em meu hospital com insolação”, disse Renee Salas, médica de emergência do Massachusetts General Hospital e da Harvard Medical School.

Renee é uma das coautoras do relatório e disse que vê o projeto como um rastreamento dos sinais vitais de um paciente, mas em escala nacional e internacional.

Crianças tomam banho em chafariz do Largo do Machado, centro do Rio, durante onda de calor (Foto: Pedro Kirilos/Estadão)

Política pública

Os dados podem ajudar a preencher uma lacuna para os formuladores de políticas federais. “Temos um conjunto limitado de indicadores sobre alterações climáticas e saúde que são recolhidos rotineiramente nos Estados Unidos”, disse John Balbus, diretor do gabinete de alterações climáticas e equidade na saúde do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA.

Ele não contribuiu para este relatório e não está atualmente envolvido no The Lancet Countdown, mas atuou anteriormente como consultor científico do financiador do projeto.

Balbus advertiu que o relatório mede principalmente a exposição das pessoas aos riscos relacionados com o clima, em vez dos resultados reais de saúde, como as taxas de doenças. Para passar das exposições a resultados reais de saúde, ele disse que é necessário mais investimento em pesquisa.

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Futuro catastrófico

Pela primeira vez, o Lancet Countdown deste ano incluiu projeções para o futuro.

Se a temperatura média global aumentar 2°C em comparação com as temperaturas pré-industriais, um cenário cada vez mais provável, a menos que a sociedade reduza significativamente as emissões de gases com efeito de estufa, o número de mortes de pessoas com mais de 65 anos relacionadas com o calor aumentará 370% até meados deste século (entre 2041 e 2060).

Ao mesmo tempo, os investigadores salientam que a redução da poluição por combustíveis fósseis beneficia a saúde global. As mortes por poluição atmosférica relacionada com combustíveis fósseis diminuíram 15% desde 2005, sendo a maior parte dessa melhoria resultado de menos poluição relacionada com o carvão que entra na atmosfera.

Fumaça de queimadas florestais em Manaus (Foto: Edmar Barros/AP)

O valor da The Lancet Countdown é o monitoramento contínuo dos efeitos das alterações climáticas na saúde global, disse Sharon Friel, diretora da Planetary Health Equity Hothouse da Universidade Nacional Australiana. Friel não esteve envolvida no relatório.

Howard Frumkin, ex-assistente especial do diretor de mudanças climáticas e saúde dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), disse que o relatório é um painel valioso, mas que os impactos climáticos com os quais ele mais se preocupava não eram os óbvios destacados. Os investigadores e os políticos precisam prestar atenção aos efeitos na saúde das pessoas deslocadas pelas alterações climáticas e da migração, disse Frumkin.

“Se você está fazendo quimioterapia contra o câncer, ou se está fazendo diálise renal, ou se está fazendo tratamento contra vício em drogas, e precisa se mudar repentinamente, isso é terrivelmente perturbador e ameaçador”, disse ele. Frumkin não esteve envolvido no novo relatório, mas foi coautor nas edições anteriores.

Ao longo dos anos, os especialistas em saúde envolvidos neste projeto incluíram mais pesquisas sobre o uso contínuo de combustíveis fósseis como a causa raiz dos problemas de saúde.

“O diagnóstico neste relatório é muito claro”, disse Renee. “Uma maior expansão dos combustíveis fósseis é imprudente e os dados mostram claramente que ameaça a saúde e o bem-estar de todas as pessoas.”

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Adaptação

Os investigadores salientam que os sistemas de saúde e outras infraestruturas sociais das quais os cuidados de saúde dependem não se adaptaram com rapidez suficiente ao nosso actual nível de aquecimento global.

“Se não conseguimos lidar com a situação hoje, é provável que não consigamos lidar com a situação no futuro”, disse Romanello.

O relatório deverá ser discutido no encontro anual das Nações Unidas sobre o clima nos Emirados Árabes Unidos, que começa dentro de algumas semanas. Este ano, o debate incluirá uma maior ênfase na saúde humana. /THE NEW YORK TIMES

Delger Erdenesanaa, o autor deste artigo, é Jornalista. Escreve para o New York Times. Publicado no Brasil pelo O Estado de S. Paulo, em 15.11.23

A Suprema Corte dos EUA aprova um código de conduta após seus recentes escândalos

Os juízes sustentam que se trata, em grande medida, de uma codificação dos padrões éticos que já eram aplicáveis

A fachada da Suprema Corte dos Estados Unidos, em Washington. (Kevin Wurm / Reuters)

O Supremo Tribunal dos Estados Unidos anunciou esta segunda-feira através de um comunicado a promulgação de um código de conduta para os seus juízes. A medida surge depois de numerosos escândalos terem posto em causa a integridade de vários membros do tribunal, que aceitaram presentes e convites que levantam questões éticas, incluindo possíveis conflitos de interesses. O texto do código, contudo, não inclui qualquer regime de sanções ou outro mecanismo para impor o cumprimento. Também não introduz uma regulamentação mais rigorosa sobre os presentes que os juízes podem receber ou sobre as obrigações de transparência, pelo que, para além do gesto que representa, não está claro qual poderá ser a sua eficácia.

O novo código de conduta, assinado por todos os nove membros do Supremo Tribunal, tem apenas 15 páginas . Deles, apenas metade inclui as disposições a serem cumpridas, enquanto a apresentação, assinaturas e comentário ocupam o restante do espaço. “Os juízes abaixo assinados promulgam este Código de Conduta para expor de forma sucinta e reunir em um só lugar os padrões e princípios éticos que regem a conduta dos membros do Tribunal”, diz a declaração introdutória do documento .

“Na maior parte, estas regras e princípios não são novos: o Tribunal há muito que tem o equivalente às regras éticas do direito consuetudinário, isto é, um conjunto de regras derivadas de uma variedade de fontes, incluindo disposições legais, o código que se aplica a demais membros do judiciário federal, os pareceres consultivos sobre ética emitidos pelo Comitê de Códigos de Conduta da Conferência Judiciária e a prática histórica", explicam os juízes em um argumento que nem todos os especialistas compartilham, uma vez que não ficou claro como essas regras se aplicavam a eles.

“A ausência de um código, no entanto, levou nos últimos anos ao mal-entendido de que os juízes deste Tribunal, ao contrário de todos os outros juristas deste país, consideram-se não limitados por qualquer padrão de ética.” . Para dissipar este mal-entendido, publicamos este código, que representa em grande parte uma codificação dos princípios que há muito consideramos reger a nossa conduta”, conclui a introdução.

Três juízes do Supremo Tribunal (Amy Coney Barrett, Elena Kagan e Brett Kavanaugh) expressaram repetidamente nos últimos meses o seu apoio ao desenvolvimento de um código ético. Em maio, o Presidente do Supremo Tribunal, John Roberts, disse que o Tribunal poderia fazer mais para “aderir aos mais elevados padrões éticos”, sem fornecer detalhes concretos.

A questão tornou-se atual após uma série de reportagens que questionavam as práticas morais dos juízes. Muitas das histórias centraram-se no juiz Clarence Thomas e na sua falta de transparência e divulgação de viagens e outros laços financeiros com doadores conservadores ricos, como o magnata imobiliário do Texas Harlan Crow e os irmãos Koch. Em abril, a ProPublica revelou anos de viagens de luxo não declaradas do magistrado, às vezes em aviões particulares e a bordo de um super iate, pago pela Crow.

Vários meios de comunicação revelaram posteriormente outros presentes não declarados pelo juiz de amigos poderosos. Entre eles, a compra do motorhome que o juiz Thomas utiliza, o pagamento da mensalidade de uma escola particular para um sobrinho-neto e alguma transação imobiliária.

Os juízes Samuel Alito, Neil Gorsuch e Sonia Sotomayor também estiveram sob escrutínio. A ProPublica noticiou que o juiz Alito foi convidado para uma viagem de pesca ao Alasca com um doador do Partido Republicano, uma viagem que o ativista conservador Leonard Leo ajudou a organizar. A Associated Press informou que Sotomayor, ajudada por sua equipe, promoveu as vendas de seus livros por meio de visitas a faculdades na última década.

O primeiro artigo do código recentemente promulgado diz: “Um juiz do Supremo Tribunal dos Estados Unidos deve manter e observar elevados padrões de conduta, a fim de preservar a integridade e a independência do poder judicial federal”. A segunda afirma: “O juiz não deve permitir que as suas relações familiares, sociais, políticas, financeiras ou outras influenciem a sua conduta ou julgamento oficial. O juiz não deve usar conscientemente o prestígio das funções jurisdicionais para promover os seus interesses privados ou os de outros, nem dar ou permitir que outros dêem a impressão de que estão numa posição especial para influenciá-lo.

Várias das disposições indicam casos em que um juiz deve abster-se de decidir sobre um caso. Estabelece-se também um regime bastante laxista de incompatibilidades, que proíbe aos juízes o exercício de atividades puramente políticas, mas deixa-lhes ampla margem para atividades acadêmicas ou mesmo empresariais: “O juiz pode exercer atividades extrajudiciais, inclusive as relacionadas com o Direito, bem como como atividades cívicas, beneficentes, educacionais, religiosas, sociais, financeiras, fiduciárias e governamentais, podendo falar, escrever, dar palestras e ensinar sobre temas jurídicos e não jurídicos”, diz o código de conduta, que introduz a seguinte qualificação: “No entanto , o juiz não deve exercer atividades extrajudiciais que prejudiquem a dignidade do seu cargo, interfiram no desempenho das suas funções oficiais, ponham em causa a sua imparcialidade, resultem na sua frequente desqualificação ou violem as limitações estabelecidas.

Os juízes preferiram não aprovar regulamentações mais rígidas sobre presentes. O código estabelece que os juízes devem cumprir as restrições à aceitação de presentes e a proibição de solicitação de presentes geralmente estabelecidas nas Regras sobre Presentes da Conferência Judicial . O texto diz que o juiz deve procurar impedir que qualquer membro de sua família residente em sua casa solicite ou aceite presente, exceto na medida em que o Regulamento da Conferência Judiciária sobre Presentes o permita.

Também não está garantido que com o código de ética haverá maior transparência a partir de agora, uma vez que não foram adoptadas alterações, embora fique aberta a porta para “estudar a conveniência” de modificar algumas regras sobre obrigações de informação. “No que diz respeito à divulgação de informações financeiras, os juízes continuarão a procurar orientação do Gabinete de Consultoria Jurídica e do pessoal das comissões relevantes da Conferência Judicial”, dizem os comentários ao código.

A confiança dos cidadãos e a aprovação do Tribunal estão a aproximar-se de mínimos históricos, de acordo com uma sondagem Gallup publicada no final de Setembro, pouco antes do início do novo ano judicial.

Miguel Jiménez, de Wuashington-DC para o EL PAÍS, em 13.11.23

Mortes por calor extremo devem quintuplicar até 2050

"A saúde da humanidade está em grave perigo", diz estudo publicado na revista "The Lancet". Mortes de pessoas com mais de 65 anos relacionadas ao calor extremo já aumentaram 85% desde a década de 1990.


Segundo estimativas, 2023 será o ano mais quente registrado na história da humanidade (Foto: David Becker/REUTERS)

O número de pessoas que correm o risco de morrer devido aos efeitos do calor extremo pode aumentar em cinco vezes nas próximas décadas, alerta um relatório publicado nesta quarta-feira (15/11).

"A saúde da humanidade está em grave perigo", afirmam os autores da pesquisa de referência, elaborada em colaboração por 114 cientistas de 52 centros de pesquisa e agências das Nações Unidas de todo o mundo, e que é publicada anualmente pela revista científica The Lancet.

O estudo de 2023 afirma que, em um cenário de aumento médio da temperatura de 2 °C na comparação com o período pré-industrial até o fim do século, as mortes vinculadas ao calor podem aumentar em 4,7 vezes até 2050

O relatório é publicado a duas semanas do início da reunião da ONU sobre o clima, a COP28 de Dubai, prevista para começar em 30 de novembro, e que pela primeira vez terá sessões dedicadas à saúde.

O estudo destaca que, em média, os habitantes do planeta foram expostos a 86 dias de temperaturas potencialmente fatais em 2022 e que o número de pessoas com mais de 65 anos que morreram vítimas do calor aumentou 85% no período 2013-2022 em comparação com 1991-2000. Só a Alemanha registrou 3 mil mortes por calor neste ano.

Ano mais quente da história

Segundo as estimativas, 2023 será o ano mais quente registrado na história da humanidade. Na semana passada, o Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus (C3S), órgão da União Europeia (UE), declarou que outubro foi o mais quente de que se tem registro até agora.

Efeitos são sentidos neste momento no hemisfério sul. O Rio de Janeiro registrou na terça-feira (14/11) sensação térmica de 58,5 °C na zona oeste da cidade, a maior desde que o serviço municipal de meteorologia Alerta Rio começou a monitorar esse parâmetro.

"Os efeitos observados atualmente podem ser apenas um sintoma precoce de um futuro muito perigoso", disse Marina Romanello, diretora-executiva do estudo publicado na The Lancet.

Aviso de calor extremo Aviso de calor extremo

O estudo destaca que, em média, os habitantes do planeta foram expostos a 86 dias de temperaturas potencialmente fatais em 2022 (Foto: Bridget Bennett/REUTERS)

No documento, os cientistas destacam que o calor é apenas um dos fatores climáticos que podem contribuir para o aumento da mortalidade. Quase 520 milhões de pessoas a mais devem ainda enfrentar uma situação de insegurança alimentar moderada ou grave entre 2041 e 2060 por causa das mudanças climáticas, segundo as projeções.

E as doenças infecciosas transmitidas por mosquitos devem continuar em propagação. A transmissão da dengue, por exemplo, pode registrar alta de 36%.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, comentou o relatório e afirmou que "a humanidade enfrenta um futuro intolerável". "Já estamos vendo a catástrofe acontecendo para a saúde e a subsistência de bilhões de pessoas ao redor do mundo, ameaçados por ondas de calor recordes, secas devastadoras para as colheitas, níveis crescentes de fome, surtos crescentes de doenças infecciosas, tempestades e inundações fatais", afirmou em um comunicado.

"Passo de tartaruga"

Na terça-feira, a ONU ainda advertiu que os governos do mundo estão avançando "a passo de tartaruga" com seus compromissos de redução de emissões para tentar frear as mudanças climáticas.

Em uma mensagem devido ao lançamento do último relatório sobre as contribuições nacionais ao Acordo de Paris para limitar o aumento da temperatura global, o secretário executivo de Mudanças Climáticas da ONU, Simon Stiell, disse que os resultados mostram que os países devem tomar medidas mais ambiciosas durante a COP28, em Dubai.

"Teremos que reconstruir a confiança no processo de Paris. O que significa honrar todos os compromissos, e em particular os financeiros", destacou Stiell.

O relatório divulgado nesta quarta afirma que os compromissos nacionais propostos para enfrentar a crise climática reduziriam as emissões de poluentes globais em 2% até 2030 em comparação com os níveis de 2019.

Contudo, para cumprir o objetivo do Acordo de Paris de limitar o aquecimento a 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais - quando a maioria dos cientistas estima que os desastres ambientais, como as ondas de calor extremas ou inundações,se tornarão muito mais intensos e comuns -, seria necessária uma redução de 43%.

O Rio de Janeiro registrou na terça-feira sensação térmica de 58,5 °C na zona oeste da cidade (Foto: Lorando Labbe/Fotoarena/IMAGO IMAGES)

Concentração recorde de gases do efeito estufa

Nesta quarta-feira, a ONU também apontou que a concentração de gases do efeito estufa na atmosfera, responsável pela mudança climática, bateu recorde em 2022, em uma tendência de alta que não parece mudar.

No ano passado, as concentrações médias globais de dióxido de carbono (CO2), o principal gás do efeito estufa, ultrapassaram pela primeira vez em 50% os valores pré-industriais.

Os níveis continuaram aumentando em 2023, segundo o boletim anual de gases do efeito estufa da Organização Meteorológica Mundial (OMM).

As concentrações de metano e os níveis de óxido de nitrogênio também registraram recordes em 2022, com a alta anual mais expressiva já observada.

"Apesar de décadas de advertências por parte da comunidade científica (...) seguimos no caminho errado", afirmou o secretário-geral da OMM, Petteri Taalas. "O atual nível de concentrações de gases do efeito estufa nos leva a um aumento das temperaturas bem superior às metas do Acordo de Paris até o final do século", advertiu.

"As condições meteorológicas se tornarão mais extremas: calor intenso e tempestades fortes, derretimento das geleiras, elevação do nível do mar e aquecimento e acidificação dos oceanos. Desta maneira, nós vamos observar um aumento expressivo dos custos socioeconômicos e para o meio ambiente", acrescentou o secretário-geral da OMM.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 15.11.23jps/le (Reuters, AFP, EFE)

Calor extremo pode se tornar o 'novo normal' no Brasil?

Em decorrência das altas temperaturas, 15 Estados brasileiros e o Distrito Federal estão sob alerta de "grande perigo", segundo diferentes agências de meteorologia.

Cientistas afirmam que ondas de calor extremo devem se tornar mais frequentes (Ag. Brasil)

A onda de calor, que pode persistir em algumas localidades durante toda a semana, deve levar a recordes históricos de temperatura em diversas cidades — há locais em que os termômetros podem marcar até 13 ºC a mais do que esperado para esta época do ano.

A sensação térmica também pode ultrapassar os 50 ºC em algumas cidades.

Mas o que explica o fenômeno? Uma conjunção de fatores — como o El Niño, a formação de um "domo de calor" e as mudanças climáticas — ajudam a entender o que está acontecendo agora no Brasil.

Estudos publicados recentemente também revelam que as ondas de calor do tipo estão se tornando cada vez mais comuns no país.

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que a atual onda de calor não configura um fenômeno isolado no Brasil: segundo um relatório do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), vinculado ao Ministério da Agricultura e Pecuária, a temperatura média bateu recordes no país nos últimos quatro meses.

O levantamento, publicado em 8 de novembro, usa dados das estações meteorológicas espalhadas por todo o território nacional.


Os resultados mostram que, entre julho e outubro de 2023, as temperaturas ficaram acima da média registrada para esses períodos em anos anteriores.


Em julho, por exemplo, a temperatura média era de 21,9 ºC. Mas, em 2023, esse número ficou em 23 ºC — um desvio de 1 ºC em relação ao que era esperado.


Esse desvio se repetiu em agosto (1,4 ºC), setembro (1,6 ºC) e outubro (1,2 ºC) — e, diante da onda de calor mais recente, deve manter-se acima da média histórica também em novembro.


"O cenário indica que o ano de 2023 será o mais quente desde da década de 1960", aponta o relatório do Inmet.


"Estes resultados corroboram as perspectivas encontradas por outros órgãos de meteorologia internacional, pois, segundo pesquisadores do Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus da União Europeia, é improvável que os dois últimos meses deste ano revertam este recorde, tendo em vista que a tendência é de altas temperaturas em todo o mundo até novembro", conclui o instituto.


E aqui vale lembrar que as ondas de calor não foram um problema exclusivo do Brasil nos últimos meses.


Um estudo divulgado pela organização Climate Central em 9/11 faz um balanço dos "12 meses mais quentes já registrados na História".


Segundo os autores, que avaliaram dados de 175 países (incluindo o Brasil), houve uma elevação média de 1,3 ºC nos quatro cantos do planeta.


"Durante todo esse período, 90% das pessoas (7,3 bilhões) experimentaram pelo menos 10 dias de temperaturas fortemente afetadas pelas alterações climáticas, e 73% (5,8 bilhões) passaram mais de um mês nessas condições", estima a pesquisa.


O texto ainda aponta que, entre as nações do G20 (o grupo que reúne as maiores economias do planeta), nove tiveram problemas com ondas de calor entre maio e outubro de 2023 — na lista, o Brasil aparece como o sétimo mais afetado, atrás de Arábia Saudita, México, Indonésia, Índia, Itália e Japão, e na frente de França e Turquia.


Bombeiros tentam controlar um foco de incêndio no Pantanal no dia 13 de novembro (Getty Images)

Mudanças históricas

Mas como essa situação de momento se compara com o passado? Temos de fato mais ondas de calor agora do que nas últimas décadas?

Segundo um levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a resposta é sim: o número de eventos climáticos extremos — como temperaturas muito altas, secas ou chuvas intensas — aumentou consideravelmente no Brasil de 1960 para cá.

Para fazer essa afirmação, os pesquisadores levantaram estatísticas meteorológicas de 1961 a 2020, que foram divididas em quatro grandes períodos: de 1961 a 1990, de 1991 a 2000, de 2001 a 2010 e de 2011 a 2020.

O primeiro dado que chama a atenção tem a ver com as "anomalias positivas de temperatura máxima". Entre 1991 e 2000, essas ondas de calor não ultrapassavam um limite de cerca de 1,5 °C em comparação com a média histórica.

Elas, porém, praticamente dobraram e atingiram 3 °C a mais em alguns locais — especialmente no Nordeste — entre 2011 e 2020.

"No período de referência, a média de temperatura máxima no Nordeste era de 30,7 °C e subiu, gradualmente, para 31,2 °C em 1991-2000, 31,6°C em 2001-2010 e 32,2 °C em 2011-2020", detalha o Inpe, órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Os autores também observaram mudanças significativas no regime de chuvas. O cenário é contrastante: houve uma queda na taxa média de precipitação (entre 10 e 40%) no Nordeste, em partes do Sudeste e no Brasil central.

Já no Sul e em partes dos Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, aconteceu o contrário: um aumento de 10 a 30% nas chuvas.

Outros dois dados permitem entender esse contexto. Entre 1961 e 1990, parte do Nordeste e do Brasil central tinham entre 80 a 85 dias consecutivos sem chuva por ano. Esse número subiu para 100 dias mais recentemente, entre 2011 e 2020.

Várias cidades brasileiras registraram temperaturas acima de 40 graus nos últimos dias (Getty Images)

Enquanto isso, no Sul, a precipitação máxima ocorrida em cinco dias ficava na casa dos 140 milímetros de água entre 1961 e 1990 — mais recentemente, a taxa subiu para 160 mm.

O número de dias com "anomalias de ondas de calor" também sofreu um salto dramático.

No período de referência (1961-1990), o número de dias com ondas de calor não passava de sete ao ano. "Para o período de 1991 a 2000, subiu para 20 dias; entre 2001 e 2010 atingiu 40 dias; e de 2011 a 2020, o número de dias com ondas de calor chegou a 52", revela o artigo.

Ou seja: em três décadas, houve um salto de sete vezes na quantidade de dias no ano em que os brasileiros vivem sob uma temperatura bem alta.

Vale destacar que a análise do Inpe vai até o 2020 — e, com isso, ainda não leva em conta os fenômenos de calor de 2023.

"O mais recente relatório do IPCC [o painel sobre mudanças climáticas das Nações Unidas] destacou que as mudanças climáticas estão impactando diversas regiões do mundo de maneiras distintas", destacou Lincoln Alves, pesquisador do Inpe e coordenador do estudo.

"Nossas análises revelam claramente que o Brasil já experimenta essas transformações, evidenciadas pelo aumento na frequência e na intensidade de eventos climáticos extremos em várias regiões desde 1961, que irão se agravar nas próximas décadas proporcionalmente ao aquecimento global”, complementou ele, em nota publicada no site da instituição.

Pessoas lotaram a praia de Ipanema no domingo (12/11), um dos primeiros dias da onda de calor mais recente (Getty Images)

O que explica esse cenário

Segundo especialistas e relatórios publicados, a onda de calor atual não pode ser explicada por um único fator. Ela é resultado de uma série de fenômenos e mudanças que, juntas, fazem a temperatura subir.

Em seu artigo, o Inmet chama a atenção para o El Niño, em que ocorre um aquecimento acima da média das águas do Oceano Pacífico nas proximidades da Linha do Equador (veja mais no infográfico abaixo).

Quando essa porção do mar fica mais quente, há uma elevação da temperatura em várias regiões do planeta, inclusive em partes do Brasil.

Mas, de acordo com o estudo da Climate Central, o El Niño "está apenas começando a aumentar as temperaturas e, com base nos padrões históricos, a maior parte do efeito do fenômeno será sentido no ano que vem".

"Com base nos registros, é altamente possível que os próximos 12 meses sejam ainda mais quentes", antevê a instituição.

El Nino

A geógrafa Karina Lima, doutoranda e pesquisadora de clima na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acrescenta que boa parte do território brasileiro se encontra agora sob uma espécie de "domo de calor".

"Nesse fenômeno, forma-se uma área de alta pressão atmosférica que permanece numa mesma região e aprisiona o ar quente", explica ela.

"Também há uma instabilidade de chuvas na periferia dessa massa de ar", complementa.

Mas será que esse cenário atual é um prenúncio do que virá pela frente?

Lima pondera que o El Niño turbina as temperaturas globais e favorece o aparecimento de ondas de calor.

"Tudo isso está conectado. Observamos aumento na frequência e na intensidade dos eventos extremos. Há muita energia e calor acumulado no nosso sistema", avalia a pesquisadora.

Por outro lado, a tendência é que o El Niño tenha um pico em 2024 — o que indica um verão bem quente pela frente. Depois, porém, o fenômeno que ocorre no Oceano Pacífico deve entrar numa fase neutra.

"É provável que nem todos os anos sejam tão intensos como 2023. Mas a tendência é que, independentemente do El Niño, continuemos a experimentar eventos extremos relacionados à temperatura ou às chuvas", projeta Lima.

Entre fenômenos globais e locais, não dá para ignorar aqui os efeitos das mudanças climáticas na frequência e na intensidade das ondas de calor.

O relatório da Climate Central avalia que os recordes de temperatura registrados nos últimos meses em várias partes do mundo "não surpreendem" e fazem parte da "tendência de aquecimento alimentada pela poluição de carbono".

"Enquanto a humanidade continuar a queimar carvão, petróleo e gás natural, as temperaturas continuarão a subir, e os impactos disso vão acelerar e se espalhar", alerta a entidade.

Para lidar com o problema — ou ao menos mitigar seus efeitos na economia e na saúde de bilhões de pessoas — especialistas apostam justamente na transição energética rumo a fontes menos poluentes e na preservação das florestas.

Os acordos políticos e diplomáticos que tentam viabilizar esse processo — discutidos anualmente nas cúpulas do clima organizadas pelas Nações Unidas — tentam assegurar que a subida dos termômetros pelos próximos anos não ultrapasse certos limites (como um aumento de até 1,5 °C em relação aos níveis pré-Revolução Industrial), para minimizar as consequências deletérias.

A ideia, por exemplo, envolve substituir os combustíveis fósseis — que geram os gases por trás do efeito estufa e do consequente aquecimento do planeta — por fontes de energia sustentáveis e renováveis.

Outro aspecto fundamental dessa equação está em reduzir drasticamente o desmatamento, especialmente de florestas tropicais como a Amazônia. Isso porque essas reservas contêm grandes quantidades de carbono e ajudam a frear a subida da temperatura global.

"Essa mitigação não é simples, mas precisa ser feita para conseguirmos ficar no melhor cenário possível. Isso exige cortes drásticos, mudanças na matriz energética e alterações estruturais na nossa sociedade", pontua a geógrafa.

"Cada décimo de grau a mais que evitarmos importa e faz toda a diferença, inclusive na ocorrência de eventos extremos."

Lima ainda explica que, além da mitigação, é necessário discutir também a adaptação de cidades e bairros para esses cenários de calor extremo.

"Nós não estamos preparados para a realidade de agora e para lidar com eventos de chuvas fortes ou calor intenso", observa ela.

"Precisaremos repensar as cidades, aumentar a vegetação em locais estratégicos, como os pontos de ônibus e os locais em que as pessoas ficam expostas por um tempo prolongado, investir no isolamento térmico das casas, pintar telhados com cores mais claras, garantir o acesso à água potável e ao protetor solar, fazer campanhas de conscientização, evitar exposições ao calor que não sejam absolutamente necessárias...", lista ela.

"Não damos o devido valor à urgência deste problema. As mudanças climáticas são uma questão transversal, que afeta todas as áreas da nossa vida, da segurança alimentar à saúde e a economia."

"E esse é o maior desafio da Humanidade", conclui ela.

André Biernath, de Londres para a BBC News Brasil, em 14.11.23

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Segurança é coisa séria

Outra vez, o Estado vem a público com discurso e medidas paliativas, que talvez a mais ninguém enganam

Há alguns problemas geradores de angústia e sofrimento que já se tornaram crônicos, quer pela sua antiguidade, quer pela ausência de perspectiva de serem solucionados. Um desses é o da segurança pública, que vem sendo tratado pelas autoridades de forma episódica, sempre após a ocorrência de algum evento relevante.

Nesse momento, as autoridades fazem promessas, apregoam soluções, levantam a voz, esbravejam, mas acaba-se percebendo que as falas não passam de bazófias, conversas fiadas, pura enganação.

Quanto ao fenômeno do crime, impressiona estarmos absolutamente sem um norte a ser seguido para minimizar o problema. Discute-se, elaboram-se planos, aumenta-se o rigor das leis, prende-se antecipadamente e mantêm-se presos milhares de cidadãos durante anos sem serem julgados. No entanto, paradoxalmente, a criminalidade aumenta dia a dia.

Há, no entanto, uma questão indiscutível: todas as ações tidas como de combate ao crime só são desenvolvidas após a sua ocorrência. Interfere-se nos efeitos do crime, mas suas causas nem sequer são detectadas. Ademais, essas condutas consideradas anticrimes colocam as autoridades reféns de uma pauta elaborada pelo próprio crime. Não há ações preventivas que atuem nos fatores desencadeadores do delito. Há uma acomodação às situações desencadeadoras do fenômeno e as ações somente ocorrem na forma de reação. O crime age e o Estado tenta reagir. Quem comanda as duas atividades é o criminoso.

As reações – as de agora e as de sempre – são de total e já conhecida ineficácia. São elas fruto de situações emergenciais e motivações emocionais. Infelizmente, o crime é permanente e a reação estatal é episódica. Agora mesmo, foram mortos médicos no Rio de Janeiro; lá mesmo, ônibus foram incendiados; no Guarujá e nos Estado da Bahia, pessoas foram mortas – criminosos ou não, não se sabe – em resposta à morte de policiais. Esses foram os mais recentes sanguinários acontecimentos. Este ano e os anteriores registraram um sem-número de mortes, incluindo crianças, velhos, criminosos e não criminosos. Portanto, nada barra a escalada criminosa. Nem prisões nem mortes. E, outra vez, o Estado vem a público com discurso e medidas paliativas, que talvez a mais ninguém enganam.

Todas as ações dos aparelhos de combate ao crime deveriam ser constantes. Nos campos da investigação, da inteligência e do policiamento ostensivo, deveriam ser planejadas, sincronizadas, duradouras. No entanto, passado o impacto dos episódios de intensa gravidade, retorna a rotina da quase inércia, da pasmaceira, do cruzar os braços.

Ademais, observa-se um injustificável desvio de funções. Eu fui secretário de Segurança Pública há mais de 30 anos, e assim já era. Policiais militares trabalhando em órgãos públicos, ao invés de estarem fazendo policiamento ostensivo. Os civis atuando no setor de segurança das empresas privadas. Estes pouco investigam e aqueles não vão às ruas, para evitar o crime.

A nova – que não é nova – cortina de fumaça lançada pelas autoridades para maquiar o problema foi anunciar novamente a colocação das Forças Armadas, desta feita, nos portos, aeroportos e fronteiras. Com esse anúncio, imaginam que estão iludindo a sociedade. Mas ilusão é pensar que iludem. A descrença é geral. Mesma descrença em relação à enganosa ideia da necessidade de armar a população, apregoada pelos que, na verdade, só desejam o crescimento dos índices de violência.

O aumento da criminalidade não se deu da noite para o dia. O crescimento da desigualdade e das carências sociais, a omissão estatal, o desinteresse das classes abastadas e a ineficiência das ações repressivas são alguns dos fatores que fizeram ferver o caldeirão do crime nos últimos 50 anos. A criminalidade no Brasil tornou-se um problema crônico, e não esporádico, emergencial. Está, há tempo, exigindo soluções efetivas, e não casuais e demagógicas.

A violência policial, por sua vez, é uma mancha no contexto do combate ao crime. Bandidos matam policiais e devem ser rigorosamente punidos. Os policiais devem e podem atuar com rigor para se proteger e proteger terceiros. Mas a polícia não pode instaurar a violência quando ela não foi instaurada pelos bandidos. Têm acontecido mortes de inocentes, incluindo crianças, por ações policiais tão criminosas quanto a dos criminosos. Atirar sem alvo certo, supondo que serão recebidos a tiro, ou matar pessoas já imobilizadas são episódios que têm tido uma constância assustadora. Tais ações não podem ser consideradas como operações contra a violência; constituem, sim, verdadeiras chacinas.

É preciso entender que a segurança é uma questão de Estado, e não de governo. Proteger a sociedade contra o crime e não a tornar vítima dos excessos repressivos; tornar permanentes as atividades de investigação e de inteligência; e dar visibilidade à polícia nas ruas, como forma de intimidação para os criminosos, são as condições mínimas para uma séria e correta política de segurança, em substituição a discursos e providências demagógicas e inócuas.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, o auror deste artigo, é Advogado. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 13.11.23

As instituições funcionam. Mas para quem?

A desigualdade social é precedida e perpetuada por uma desigualdade jurídica. Há um Estado efetivo para uma minoria de privilegiados e outro, precário, para uma maioria de marginalizados

Desde a Era Iluminista, os Estados nacionais foram reconfigurados pela sucessiva consolidação de três categorias de direitos: civis (como propriedade ou liberdade de expressão), políticos (de eleger e ser eleito) e sociais (como educação, saúde ou previdência). A Constituição de 88 consagrou essa evolução. Ao constituir a República como um Estado “Democrático de Direito”, ela estabelece que a lei é igual para todos e será definida e implementada pelo povo, por meio de seus representantes eleitos no Legislativo e Executivo, e interpretada pelo Judiciário, cujos representantes máximos nas cortes superiores são selecionados pelos representantes eleitos. Sobre os dois pilares da “democracia liberal”, o constituinte arquitetou o terceiro aspecto do Estado moderno: o “bem-estar social”.

Esse governo “do povo, pelo povo, para o povo, não perecerá na terra”, augurou Abraham Lincoln. Mas na última década ele tem se degradado em todo o mundo. Institutos como o V-Dem, o Economist Intelligence Unit, a Freedom House e o World Justice Project documentam a deterioração das instituições democráticas, das liberdades fundamentais e do Estado de Direito. A erosão das taxas de prosperidade e igualdade vem a reboque

O Brasil segue esse padrão, com uma agravante. Os direitos civis, políticos e sociais formalizados na Constituição estão se deteriorando antes de terem se consolidado. Incompleta, a cidadania brasileira está se degradando. O Estado é cindido em dois: um para uma minoria de privilegiados, outro para uma maioria de marginalizados. As elites do poder público e iniciativa privada gozam de todas as garantias, liberdades e benesses que o dinheiro pode comprar e o poder pode conferir. No outro extremo, há uma massa de degredados para os quais a Constituição é letra morta.

Esse “estado de coisas inconstitucional” é particularmente evidente na Justiça, em especial na Justiça penal. No ranking do Rule of Law Index do World Justice Project, que mede a percepção do Estado de Direito junto a acadêmicos, operadores do direito e lideranças civis, o Brasil ocupa a 81.ª posição entre 140 países. Na Justiça penal, está na 112.ª posição, com péssimas avaliações na investigação criminal (107.ª), sistema correcional (130.ª) e tempestividade e eficácia dos julgamentos (132.ª). O índice classifica nosso sistema prisional como o segundo menos imparcial do mundo, só à frente da Venezuela.

Judiciário e Ministério Público, a elite do serviço público, extraem do Estado todos os privilégios possíveis e imagináveis. No extremo oposto, o sistema prisional, uma terra arrasada de direitos, exprime a falência do Estado. Em tese, esse sistema deveria atender a três fins: proteção da sociedade, dissuasão dos aspirantes ao crime e ressocialização dos condenados. Na prática, ele subverte esses fins, transformando-se numa usina do crime.

A desigualdade social é precedida e perpetuada pela desigualdade jurídica. Compare-se, por exemplo, a experiência de dois cidadãos supostamente iguais perante a lei. O ministro da Suprema Corte Alexandre de Moraes e seus familiares, que alegam terem sido vítimas de agressão no aeroporto de Roma, foram admitidos como assistentes de acusação na fase de investigação, um exótico privilégio, e foram favorecidos pela imposição do sigilo às filmagens que comprovariam o delito. Diverso foi o caso, recentemente abordado no podcast Rádio Novelo Apresenta, do jovem ativista Pedro Henrique Santos Cruz, de Tucano, na Bahia. Frustrado após suas denúncias de abusos por policiais terem sido ignoradas pela Justiça, Pedro organizou uma série de protestos. Por anos foi hostilizado por policiais. Em 2018, três homens encapuzados invadiram sua casa e o executaram a tiros. Testemunhas acusam policiais. Apesar das mobilizações da família, o caso nunca foi devidamente investigado.

As instituições estão funcionando? Depende. A resposta em Tucano será uma; em Brasília, outra. A do cidadão Alexandre de Moraes será uma, a do cidadão Pedro Henrique não será dada, porque ele foi morto sob a negligência do Estado, se não por agentes do próprio Estado. Mas a resposta de sua família e de uma legião de jovens da periferia como ele será inequívoca: um categórico “não”.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 12.11.23

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Calor extremo: entenda como as altas temperaturas afetam o corpo e a saúde

Estresse térmico faz o organismo dar início a uma série de adaptações fisiológicas; previsão é de que o próximo ano será ainda mais quente

Calor intenso altera o funcionamento do organismo Foto: Adobe Stock

O verão no hemisfério sul ainda nem começou, mas o Brasil já vem enfrentando dias de calor intenso – e a tendência é piorar ainda mais, já que as previsões meteorológicas indicam temperaturas recordes nos próximos dias, com termômetros marcando cerca de 5º acima da média, e por um período prolongado. Estar exposto ao calor extremo associado ao tempo seco sem cuidados básicos pode causar alterações no organismo que trazem riscos à saúde, especialmente para crianças, idosos e pessoas com a saúde mais fragilizada. Por isso, todo cuidado é pouco.

O nosso corpo mantém uma temperatura interna em torno de 36 ºC. Quando somos expostos a um estresse térmico (no caso, altas temperaturas), o organismo reage e inicia uma série de adaptações fisiológicas para tentar regular a temperatura interna e resfriar. A primeira reação é eliminar o calor por meio do suor, que é um mecanismo natural Brasil terá onda de calor com temperaturas perto dos 40ºC: por que está tão quente este ano?

“O calor intenso pode ter impactos significativos no sistema cardiovascular, representando uma preocupação crescente à medida que as temperaturas globais continuam a aumentar devido às mudanças climáticas. Quando o termômetro sobe, nosso corpo enfrenta desafios para regular a temperatura interna, o que pode resultar em uma série de efeitos adversos no sistema cardiovascular”, disse o cardiologista Marcelo Franken, gerente de Cardiologia do Hospital Israelita Albert Einstein e diretor da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp).

O problema é que o excesso de suor, quando não acompanhado da hidratação oral adequada, pode levar a quadros de desidratação. Franken ressalta que a desidratação diminui o volume sanguíneo e, por sua vez, afeta a pressão arterial. A desidratação também torna o sangue mais espesso, aumentando o risco de formação de coágulos sanguíneos. Além disso, o estresse térmico coloca uma carga adicional sobre o coração, fazendo com que ele bombeie mais rápido para dissipar o calor do corpo.

Pessoas com condições cardíacas pré-existentes, como hipertensão arterial, doença coronariana, e insuficiência cardíaca estão em maior risco de complicações relacionadas ao calor intenso.

“As altas temperaturas podem desencadear ataques cardíacos e arritmias, pois o coração precisa trabalhar mais para manter a temperatura corporal sob controle. É essencial tomar precauções durante ondas de calor, como manter-se hidratado, evitar a exposição direta ao sol e buscar ambientes com ar-condicionado ou ventilação adequada”, recomenda Franken.

Risco de insolação

E os efeitos do calor no organismo não param por aí. Quando a temperatura está muito alta e a pessoa ainda está exposta ao sol, o corpo pode entrar num quadro de insolação, que é caracterizada pelo aumento da temperatura corporal, pele avermelhada e quente, pele seca, dor de cabeça, confusão, náuseas e até mesmo desmaios.

“Essa condição é potencialmente perigosa e requer atenção imediata, pois pode levar a danos graves ao organismo e, em casos extremos, risco de morte. É fundamental buscar abrigo à sombra, hidratar-se e resfriar o corpo em casos suspeitos de insolação”, orienta.

Os especialistas explicam que também tem ainda o reflexo do ar seco na saúde. Temperatura muito alta associada ao ar seco e poluído leva ao ressecamento das mucosas, especialmente do nariz e da boca. Entre os efeitos indesejados estão sangramento nasal, dificuldade para respirar, tosse e até mesmo crises asmáticas em pessoas predispostas.

Uma das principais recomendações durante ondas de calor é ter atenção especial à hidratação  Foto: Reuters

“Sempre que temos mudanças extremas de umidade do ar ou de temperatura, algumas questões respiratórias podem surgir por causa da alteração das mucosas. Por isso o ideal é tentar ficar em ambientes onde a umidade relativa do ar está adequada [usar um umidificador é uma opção] e utilizar soro fisiológico quando o tempo está muito quente e seco também ajuda a prevenir doenças respiratórias”, destacou a infectologista Emy Akiyama Gouveia, do Hospital Israelita Albert Einstein.

Há ainda a preocupação dos infectologistas com o aparecimento de doenças infecto-contagiosas emergentes, como a dengue, que começa a surgir onde normalmente não ocorria. “Tivemos surtos de dengue no sul da Europa em lugares que não imaginávamos. Com as mudanças por causa do desequilíbrio climático talvez vamos observar o aumento de algumas doenças que dependem de vetores”, sugere a infectologista.

Temperatura extrema e mortalidade

De acordo com uma pesquisa publicada no ano passado na revista Nature, as temperaturas extremas (frio e calor) foram responsáveis por quase 6% das mortes em cidades da América Latina. O estudo “Salud Urbana em América Latina” (Salurbal) teve a participação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade de São Paulo (USP) e analisou a relação entre dias quentes e frios com a mortalidade em 326 cidades de nove países latinos.

Para chegar aos resultados, os pesquisadores analisaram mais de 15 milhões de óbitos e compararam com as temperaturas ambientais diárias nas cidades pesquisadas.

Uma das conclusões é de que temperaturas extremas estavam relacionadas com a mortalidade por doenças cardiovasculares e respiratórias, especialmente entre idosos e crianças, que são o grupo mais vulnerável. Segundo a pesquisa, em dias muito quentes, o aumento de um grau Celsius na temperatura esteve relacionado ao aumento de 5,7% nas mortes. Ao mesmo tempo, cerca de 10% das mortes por infecções respiratórias foram atribuídas ao frio intenso.

A Organização Meteorológica Mundial (OMM) emitiu um comunicado na última quarta-feira (8) ressaltando que o fenômeno climático El Niño, atualmente em curso, deverá durar até pelo menos abril de 2024, influenciando os padrões climáticos e contribuindo para a elevar ainda mais as temperaturas em um ano que caminha para ser o mais quente já registrado – os meteorologistas afirmam também que o ano de 2024 pode ser ainda mais quente. O fenômeno atingiu força moderada em setembro deste ano e, provavelmente, atingirá um novo pico entre novembro e janeiro de 2024.

Segundo os meteorologistas, o El Niño ocorre em média a cada dois a sete anos e normalmente dura de 9 a 12 meses. É um padrão climático natural associado ao superaquecimento da superfície do oceano – o problema é que ele está acontecendo num contexto de clima que vem sendo alterado pelas atividades humanas.

Na cidade de São Paulo, as temperaturas devem passar dos 37ºC neste final de semana e chegar aos 40ºC no interior, segundo previsão do Climatempo. Na próxima semana o calor continua e aumenta ainda mais, com temperaturas superando os 40 graus no Tocantins, Bahia, Piauí e no Espírito Santo.

Como se proteger do calor?

É fundamental se proteger do calor e manter-se hidratado em dias de temperaturas muito altas. Entre as principais recomendações estão:

Beba bastante água e não a substitua por bebidas alcoólicas;

Faça refeições leves e frias mais vezes ao dia;

Mantenha a sua casa fresca, com janelas abertas;

Tome banhos mais frios;

Prefira ambientes arejados e evite aglomerações;

Proteja-se do sol com chapéu, óculos escuros, roupas leves e protetor solar;

Use soro fisiológico nos olhos e nas narinas;

Não faça exercícios físicos em horários com maior incidência de raios UV, das 11h às 17h.

Fernanda Bassetti, da Agência Einstein para O Estado de S. Paulo, em 10.11.23 

A delicada posição do Egito no conflito Israel-Hamas

Cairo tem que lidar com pressão popular pró-palestinos, apelos para abrir a fronteira com Gaza e temor de que terroristas entrem junto com refugiados.

Nos protestos pró-palestinos, os egípcios também gritaram slogans contra o atual governo no CairoFoto: MOHAMED ABD EL GHANY/REUTERS

O atual conflito entre Israel e o grupo radical islâmico Hamas em Gaza levou o Egito a uma situação delicada. A nação vizinha é o principal facilitador para a entrada de ajuda humanitária em Gaza, mas também traça uma linha vermelha quando se trata de acolher palestinos deslocados.

"O posicionamento do Cairo é cada vez mais permeado pelo alarmante e crescente número de mortes de civis, à medida que a invasão terrestre [em Gaza] prossegue, bem como pela pressão de Europa e EUA para abertura da passagem da fronteira de Rafah aos palestinos que desejam atravessá-la", disse à DW Michelle Pace, pesquisadora do think tank Chatham House, com sede em Londres, e professora da Universidade Roskilde, na Dinamarca.

O presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sisi, deixou claro que a passagem da fronteira de Rafah – a única para Gaza não controlada por Israel – não se tornará uma entrada para os palestinos vindos de Gaza. "O Egito confirma clara e estritamente que nunca aceitará o deslocamento de qualquer palestino para o território egípcio", disse.

Sisi repetiu essa afirmação de várias maneiras desde a eclosão do conflito, que começou após o brutal ataque terrorista do Hamas contra Israel, em 7 de outubro, que deixou mortos cerca de 1.400 israelenses.

"O Egito recorda muito bem o que aconteceu em 1948, quando após a Nakba [catástrofe em árabe], os palestinos que tinham sido forçados a abandonar suas casas e povoados não foram autorizados a regressar quando a guerra terminou", disse Pace. "O Egito acredita que esse modelo pode se repetir."

Ajuda humanitária está se acumulando na passagem fronteiriça de Rafah, no EgitoFoto: AMR ABDALLAH DALSH/REUTERS

"No entanto, os civis em Gaza têm o direito de procurar refúgio e só eles podem decidir como e quando exercer esse direito. O Egito é obrigado a permitir a entrada de civis, se assim o desejarem", afirmou à DW Timothy E. Kaldas, vice-director do Tahrir Institute for Middle East Policy, sediado em Washington.

"Dito isto, os parceiros de Israel devem deixar bem claro que os habitantes de Gaza têm o direito de regressar a Gaza quando as hostilidades terminarem, e os líderes de Israel devem ser avisados de que impedi-los de o fazer constituiria uma limpeza étnica", acrescentou Kaldas.

Potencial ameaça à segurança

"Outro argumento egípcio contra a permissão de entrada de pessoas é que provavelmente seria impossível separar os combatentes palestinos dos refugiados civis", disse Pace. "Se os grupos jihadistas palestinos estabelecerem ligações logísticas, ideológicas e operacionais com [homólogos] baseados no Sinai, o Egito teme que eles possam tentar lançar ataques contra alvos israelenses a partir do território egípcio, convidando Israel à retaliação e perturbando as suas relações com o Egito".

Sisi também expressou esta preocupação durante uma recente entrevista coletiva no Cairo. "O Sinai se tornaria uma base para operações terroristas contra Israel, e nós, no Egito, assumiríamos a responsabilidade por isso. A paz que criamos [em 1979, quando um tratado de paz com Israel foi assinado] escaparia de nossas mãos, tudo no contexto da eliminação da causa palestina", disse.

Kenneth Roth, ex-diretor executivo da Human Rights Watch e agora professor visitante na Universidade de Princeton, nos EUA, diz que Sisi também é "particularmente solidário com as tentativas de Israel de esmagar o Hamas porque ele próprio usou uma violência terrível para esmagar a Irmandade Muçulmana, espécie de primo mais pacífico do Hamas, incluindo o massacre de 817 manifestantes em 2013 na Praça Rabaa, no Cairo".

Sisi encorajou os egípcios a protestarem pela Palestina mas depois reprimiu quem lançou críticas a seu governoFoto: Ahmad Hassan/AFP/Getty Images

Repressão aos protestos

Este último mês de conflito também teve impacto na relação entre o governo autoritário egípcio e o povo do país. "As diferenças devido às dificuldades econômicas no país, também devido ao autoritarismo, diminuíram um pouco", segundo Nathan Brown, professor de ciência política e assuntos internacionais na Universidade George Washington e atual membro do Hamburg Institute for Advanced Study (HIAS), na Alemanha. "A atenção concentrou-se, em vez disso, na proteção das fronteiras nacionais", acrescentou.

Essa diminuição do descontentamento popular é favorável a Sisi, que provavelmente será reeleito nas próximas eleições presidenciais do Egito, que são amplamente avaliadas como sendo antidemocráticas.

O financiamento internacional em troca de assistência em Gaza também poderia ajudar a resolver a crise econômica em curso no Egito. A moeda local perdeu mais de metade do seu valor desde março de 2022, e as reservas de moeda estrangeira do Egito estão quase esgotadas. O conflito em Gaza também terá impacto no turismo, um pilar da economia egípcia.

Roth duvida que o conflito mantenha a população egípcia e o seu governo alinhados a longo prazo.

"À medida que a opinião pública passa da simpatia por Israel, após o horrível massacre de civis israelenses para o horror face ao número muito maior de civis palestinos que estão agora sendo mortos sob o bombardeamento israelense, serão inevitavelmente colocadas questões sobre a razão pela qual o governo egípcio continua a parceria com Israel", disse Roth à DW.

O governo egípcio já se prepara para eliminar qualquer dissidência pela raiz. Na semana passada, depois de manifestantes egípcios terem apelado à justiça e à liberdade durante comícios pró-palestinos sancionados pelo governo, as forças de segurança egípcias detiveram cerca de 70 pessoas no Cairo e em Alexandria. De acordo com um relatório recente da Human Rights Watch, 16 manifestantes foram acusados de "juntar-se a um grupo terrorista" e "cometer um ato terrorista".

Jennifer Holleis, a autora deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 09.11.23