quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Calor extremo pode se tornar o 'novo normal' no Brasil?

Em decorrência das altas temperaturas, 15 Estados brasileiros e o Distrito Federal estão sob alerta de "grande perigo", segundo diferentes agências de meteorologia.

Cientistas afirmam que ondas de calor extremo devem se tornar mais frequentes (Ag. Brasil)

A onda de calor, que pode persistir em algumas localidades durante toda a semana, deve levar a recordes históricos de temperatura em diversas cidades — há locais em que os termômetros podem marcar até 13 ºC a mais do que esperado para esta época do ano.

A sensação térmica também pode ultrapassar os 50 ºC em algumas cidades.

Mas o que explica o fenômeno? Uma conjunção de fatores — como o El Niño, a formação de um "domo de calor" e as mudanças climáticas — ajudam a entender o que está acontecendo agora no Brasil.

Estudos publicados recentemente também revelam que as ondas de calor do tipo estão se tornando cada vez mais comuns no país.

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que a atual onda de calor não configura um fenômeno isolado no Brasil: segundo um relatório do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), vinculado ao Ministério da Agricultura e Pecuária, a temperatura média bateu recordes no país nos últimos quatro meses.

O levantamento, publicado em 8 de novembro, usa dados das estações meteorológicas espalhadas por todo o território nacional.


Os resultados mostram que, entre julho e outubro de 2023, as temperaturas ficaram acima da média registrada para esses períodos em anos anteriores.


Em julho, por exemplo, a temperatura média era de 21,9 ºC. Mas, em 2023, esse número ficou em 23 ºC — um desvio de 1 ºC em relação ao que era esperado.


Esse desvio se repetiu em agosto (1,4 ºC), setembro (1,6 ºC) e outubro (1,2 ºC) — e, diante da onda de calor mais recente, deve manter-se acima da média histórica também em novembro.


"O cenário indica que o ano de 2023 será o mais quente desde da década de 1960", aponta o relatório do Inmet.


"Estes resultados corroboram as perspectivas encontradas por outros órgãos de meteorologia internacional, pois, segundo pesquisadores do Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus da União Europeia, é improvável que os dois últimos meses deste ano revertam este recorde, tendo em vista que a tendência é de altas temperaturas em todo o mundo até novembro", conclui o instituto.


E aqui vale lembrar que as ondas de calor não foram um problema exclusivo do Brasil nos últimos meses.


Um estudo divulgado pela organização Climate Central em 9/11 faz um balanço dos "12 meses mais quentes já registrados na História".


Segundo os autores, que avaliaram dados de 175 países (incluindo o Brasil), houve uma elevação média de 1,3 ºC nos quatro cantos do planeta.


"Durante todo esse período, 90% das pessoas (7,3 bilhões) experimentaram pelo menos 10 dias de temperaturas fortemente afetadas pelas alterações climáticas, e 73% (5,8 bilhões) passaram mais de um mês nessas condições", estima a pesquisa.


O texto ainda aponta que, entre as nações do G20 (o grupo que reúne as maiores economias do planeta), nove tiveram problemas com ondas de calor entre maio e outubro de 2023 — na lista, o Brasil aparece como o sétimo mais afetado, atrás de Arábia Saudita, México, Indonésia, Índia, Itália e Japão, e na frente de França e Turquia.


Bombeiros tentam controlar um foco de incêndio no Pantanal no dia 13 de novembro (Getty Images)

Mudanças históricas

Mas como essa situação de momento se compara com o passado? Temos de fato mais ondas de calor agora do que nas últimas décadas?

Segundo um levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a resposta é sim: o número de eventos climáticos extremos — como temperaturas muito altas, secas ou chuvas intensas — aumentou consideravelmente no Brasil de 1960 para cá.

Para fazer essa afirmação, os pesquisadores levantaram estatísticas meteorológicas de 1961 a 2020, que foram divididas em quatro grandes períodos: de 1961 a 1990, de 1991 a 2000, de 2001 a 2010 e de 2011 a 2020.

O primeiro dado que chama a atenção tem a ver com as "anomalias positivas de temperatura máxima". Entre 1991 e 2000, essas ondas de calor não ultrapassavam um limite de cerca de 1,5 °C em comparação com a média histórica.

Elas, porém, praticamente dobraram e atingiram 3 °C a mais em alguns locais — especialmente no Nordeste — entre 2011 e 2020.

"No período de referência, a média de temperatura máxima no Nordeste era de 30,7 °C e subiu, gradualmente, para 31,2 °C em 1991-2000, 31,6°C em 2001-2010 e 32,2 °C em 2011-2020", detalha o Inpe, órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Os autores também observaram mudanças significativas no regime de chuvas. O cenário é contrastante: houve uma queda na taxa média de precipitação (entre 10 e 40%) no Nordeste, em partes do Sudeste e no Brasil central.

Já no Sul e em partes dos Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, aconteceu o contrário: um aumento de 10 a 30% nas chuvas.

Outros dois dados permitem entender esse contexto. Entre 1961 e 1990, parte do Nordeste e do Brasil central tinham entre 80 a 85 dias consecutivos sem chuva por ano. Esse número subiu para 100 dias mais recentemente, entre 2011 e 2020.

Várias cidades brasileiras registraram temperaturas acima de 40 graus nos últimos dias (Getty Images)

Enquanto isso, no Sul, a precipitação máxima ocorrida em cinco dias ficava na casa dos 140 milímetros de água entre 1961 e 1990 — mais recentemente, a taxa subiu para 160 mm.

O número de dias com "anomalias de ondas de calor" também sofreu um salto dramático.

No período de referência (1961-1990), o número de dias com ondas de calor não passava de sete ao ano. "Para o período de 1991 a 2000, subiu para 20 dias; entre 2001 e 2010 atingiu 40 dias; e de 2011 a 2020, o número de dias com ondas de calor chegou a 52", revela o artigo.

Ou seja: em três décadas, houve um salto de sete vezes na quantidade de dias no ano em que os brasileiros vivem sob uma temperatura bem alta.

Vale destacar que a análise do Inpe vai até o 2020 — e, com isso, ainda não leva em conta os fenômenos de calor de 2023.

"O mais recente relatório do IPCC [o painel sobre mudanças climáticas das Nações Unidas] destacou que as mudanças climáticas estão impactando diversas regiões do mundo de maneiras distintas", destacou Lincoln Alves, pesquisador do Inpe e coordenador do estudo.

"Nossas análises revelam claramente que o Brasil já experimenta essas transformações, evidenciadas pelo aumento na frequência e na intensidade de eventos climáticos extremos em várias regiões desde 1961, que irão se agravar nas próximas décadas proporcionalmente ao aquecimento global”, complementou ele, em nota publicada no site da instituição.

Pessoas lotaram a praia de Ipanema no domingo (12/11), um dos primeiros dias da onda de calor mais recente (Getty Images)

O que explica esse cenário

Segundo especialistas e relatórios publicados, a onda de calor atual não pode ser explicada por um único fator. Ela é resultado de uma série de fenômenos e mudanças que, juntas, fazem a temperatura subir.

Em seu artigo, o Inmet chama a atenção para o El Niño, em que ocorre um aquecimento acima da média das águas do Oceano Pacífico nas proximidades da Linha do Equador (veja mais no infográfico abaixo).

Quando essa porção do mar fica mais quente, há uma elevação da temperatura em várias regiões do planeta, inclusive em partes do Brasil.

Mas, de acordo com o estudo da Climate Central, o El Niño "está apenas começando a aumentar as temperaturas e, com base nos padrões históricos, a maior parte do efeito do fenômeno será sentido no ano que vem".

"Com base nos registros, é altamente possível que os próximos 12 meses sejam ainda mais quentes", antevê a instituição.

El Nino

A geógrafa Karina Lima, doutoranda e pesquisadora de clima na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acrescenta que boa parte do território brasileiro se encontra agora sob uma espécie de "domo de calor".

"Nesse fenômeno, forma-se uma área de alta pressão atmosférica que permanece numa mesma região e aprisiona o ar quente", explica ela.

"Também há uma instabilidade de chuvas na periferia dessa massa de ar", complementa.

Mas será que esse cenário atual é um prenúncio do que virá pela frente?

Lima pondera que o El Niño turbina as temperaturas globais e favorece o aparecimento de ondas de calor.

"Tudo isso está conectado. Observamos aumento na frequência e na intensidade dos eventos extremos. Há muita energia e calor acumulado no nosso sistema", avalia a pesquisadora.

Por outro lado, a tendência é que o El Niño tenha um pico em 2024 — o que indica um verão bem quente pela frente. Depois, porém, o fenômeno que ocorre no Oceano Pacífico deve entrar numa fase neutra.

"É provável que nem todos os anos sejam tão intensos como 2023. Mas a tendência é que, independentemente do El Niño, continuemos a experimentar eventos extremos relacionados à temperatura ou às chuvas", projeta Lima.

Entre fenômenos globais e locais, não dá para ignorar aqui os efeitos das mudanças climáticas na frequência e na intensidade das ondas de calor.

O relatório da Climate Central avalia que os recordes de temperatura registrados nos últimos meses em várias partes do mundo "não surpreendem" e fazem parte da "tendência de aquecimento alimentada pela poluição de carbono".

"Enquanto a humanidade continuar a queimar carvão, petróleo e gás natural, as temperaturas continuarão a subir, e os impactos disso vão acelerar e se espalhar", alerta a entidade.

Para lidar com o problema — ou ao menos mitigar seus efeitos na economia e na saúde de bilhões de pessoas — especialistas apostam justamente na transição energética rumo a fontes menos poluentes e na preservação das florestas.

Os acordos políticos e diplomáticos que tentam viabilizar esse processo — discutidos anualmente nas cúpulas do clima organizadas pelas Nações Unidas — tentam assegurar que a subida dos termômetros pelos próximos anos não ultrapasse certos limites (como um aumento de até 1,5 °C em relação aos níveis pré-Revolução Industrial), para minimizar as consequências deletérias.

A ideia, por exemplo, envolve substituir os combustíveis fósseis — que geram os gases por trás do efeito estufa e do consequente aquecimento do planeta — por fontes de energia sustentáveis e renováveis.

Outro aspecto fundamental dessa equação está em reduzir drasticamente o desmatamento, especialmente de florestas tropicais como a Amazônia. Isso porque essas reservas contêm grandes quantidades de carbono e ajudam a frear a subida da temperatura global.

"Essa mitigação não é simples, mas precisa ser feita para conseguirmos ficar no melhor cenário possível. Isso exige cortes drásticos, mudanças na matriz energética e alterações estruturais na nossa sociedade", pontua a geógrafa.

"Cada décimo de grau a mais que evitarmos importa e faz toda a diferença, inclusive na ocorrência de eventos extremos."

Lima ainda explica que, além da mitigação, é necessário discutir também a adaptação de cidades e bairros para esses cenários de calor extremo.

"Nós não estamos preparados para a realidade de agora e para lidar com eventos de chuvas fortes ou calor intenso", observa ela.

"Precisaremos repensar as cidades, aumentar a vegetação em locais estratégicos, como os pontos de ônibus e os locais em que as pessoas ficam expostas por um tempo prolongado, investir no isolamento térmico das casas, pintar telhados com cores mais claras, garantir o acesso à água potável e ao protetor solar, fazer campanhas de conscientização, evitar exposições ao calor que não sejam absolutamente necessárias...", lista ela.

"Não damos o devido valor à urgência deste problema. As mudanças climáticas são uma questão transversal, que afeta todas as áreas da nossa vida, da segurança alimentar à saúde e a economia."

"E esse é o maior desafio da Humanidade", conclui ela.

André Biernath, de Londres para a BBC News Brasil, em 14.11.23

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Segurança é coisa séria

Outra vez, o Estado vem a público com discurso e medidas paliativas, que talvez a mais ninguém enganam

Há alguns problemas geradores de angústia e sofrimento que já se tornaram crônicos, quer pela sua antiguidade, quer pela ausência de perspectiva de serem solucionados. Um desses é o da segurança pública, que vem sendo tratado pelas autoridades de forma episódica, sempre após a ocorrência de algum evento relevante.

Nesse momento, as autoridades fazem promessas, apregoam soluções, levantam a voz, esbravejam, mas acaba-se percebendo que as falas não passam de bazófias, conversas fiadas, pura enganação.

Quanto ao fenômeno do crime, impressiona estarmos absolutamente sem um norte a ser seguido para minimizar o problema. Discute-se, elaboram-se planos, aumenta-se o rigor das leis, prende-se antecipadamente e mantêm-se presos milhares de cidadãos durante anos sem serem julgados. No entanto, paradoxalmente, a criminalidade aumenta dia a dia.

Há, no entanto, uma questão indiscutível: todas as ações tidas como de combate ao crime só são desenvolvidas após a sua ocorrência. Interfere-se nos efeitos do crime, mas suas causas nem sequer são detectadas. Ademais, essas condutas consideradas anticrimes colocam as autoridades reféns de uma pauta elaborada pelo próprio crime. Não há ações preventivas que atuem nos fatores desencadeadores do delito. Há uma acomodação às situações desencadeadoras do fenômeno e as ações somente ocorrem na forma de reação. O crime age e o Estado tenta reagir. Quem comanda as duas atividades é o criminoso.

As reações – as de agora e as de sempre – são de total e já conhecida ineficácia. São elas fruto de situações emergenciais e motivações emocionais. Infelizmente, o crime é permanente e a reação estatal é episódica. Agora mesmo, foram mortos médicos no Rio de Janeiro; lá mesmo, ônibus foram incendiados; no Guarujá e nos Estado da Bahia, pessoas foram mortas – criminosos ou não, não se sabe – em resposta à morte de policiais. Esses foram os mais recentes sanguinários acontecimentos. Este ano e os anteriores registraram um sem-número de mortes, incluindo crianças, velhos, criminosos e não criminosos. Portanto, nada barra a escalada criminosa. Nem prisões nem mortes. E, outra vez, o Estado vem a público com discurso e medidas paliativas, que talvez a mais ninguém enganam.

Todas as ações dos aparelhos de combate ao crime deveriam ser constantes. Nos campos da investigação, da inteligência e do policiamento ostensivo, deveriam ser planejadas, sincronizadas, duradouras. No entanto, passado o impacto dos episódios de intensa gravidade, retorna a rotina da quase inércia, da pasmaceira, do cruzar os braços.

Ademais, observa-se um injustificável desvio de funções. Eu fui secretário de Segurança Pública há mais de 30 anos, e assim já era. Policiais militares trabalhando em órgãos públicos, ao invés de estarem fazendo policiamento ostensivo. Os civis atuando no setor de segurança das empresas privadas. Estes pouco investigam e aqueles não vão às ruas, para evitar o crime.

A nova – que não é nova – cortina de fumaça lançada pelas autoridades para maquiar o problema foi anunciar novamente a colocação das Forças Armadas, desta feita, nos portos, aeroportos e fronteiras. Com esse anúncio, imaginam que estão iludindo a sociedade. Mas ilusão é pensar que iludem. A descrença é geral. Mesma descrença em relação à enganosa ideia da necessidade de armar a população, apregoada pelos que, na verdade, só desejam o crescimento dos índices de violência.

O aumento da criminalidade não se deu da noite para o dia. O crescimento da desigualdade e das carências sociais, a omissão estatal, o desinteresse das classes abastadas e a ineficiência das ações repressivas são alguns dos fatores que fizeram ferver o caldeirão do crime nos últimos 50 anos. A criminalidade no Brasil tornou-se um problema crônico, e não esporádico, emergencial. Está, há tempo, exigindo soluções efetivas, e não casuais e demagógicas.

A violência policial, por sua vez, é uma mancha no contexto do combate ao crime. Bandidos matam policiais e devem ser rigorosamente punidos. Os policiais devem e podem atuar com rigor para se proteger e proteger terceiros. Mas a polícia não pode instaurar a violência quando ela não foi instaurada pelos bandidos. Têm acontecido mortes de inocentes, incluindo crianças, por ações policiais tão criminosas quanto a dos criminosos. Atirar sem alvo certo, supondo que serão recebidos a tiro, ou matar pessoas já imobilizadas são episódios que têm tido uma constância assustadora. Tais ações não podem ser consideradas como operações contra a violência; constituem, sim, verdadeiras chacinas.

É preciso entender que a segurança é uma questão de Estado, e não de governo. Proteger a sociedade contra o crime e não a tornar vítima dos excessos repressivos; tornar permanentes as atividades de investigação e de inteligência; e dar visibilidade à polícia nas ruas, como forma de intimidação para os criminosos, são as condições mínimas para uma séria e correta política de segurança, em substituição a discursos e providências demagógicas e inócuas.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, o auror deste artigo, é Advogado. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 13.11.23

As instituições funcionam. Mas para quem?

A desigualdade social é precedida e perpetuada por uma desigualdade jurídica. Há um Estado efetivo para uma minoria de privilegiados e outro, precário, para uma maioria de marginalizados

Desde a Era Iluminista, os Estados nacionais foram reconfigurados pela sucessiva consolidação de três categorias de direitos: civis (como propriedade ou liberdade de expressão), políticos (de eleger e ser eleito) e sociais (como educação, saúde ou previdência). A Constituição de 88 consagrou essa evolução. Ao constituir a República como um Estado “Democrático de Direito”, ela estabelece que a lei é igual para todos e será definida e implementada pelo povo, por meio de seus representantes eleitos no Legislativo e Executivo, e interpretada pelo Judiciário, cujos representantes máximos nas cortes superiores são selecionados pelos representantes eleitos. Sobre os dois pilares da “democracia liberal”, o constituinte arquitetou o terceiro aspecto do Estado moderno: o “bem-estar social”.

Esse governo “do povo, pelo povo, para o povo, não perecerá na terra”, augurou Abraham Lincoln. Mas na última década ele tem se degradado em todo o mundo. Institutos como o V-Dem, o Economist Intelligence Unit, a Freedom House e o World Justice Project documentam a deterioração das instituições democráticas, das liberdades fundamentais e do Estado de Direito. A erosão das taxas de prosperidade e igualdade vem a reboque

O Brasil segue esse padrão, com uma agravante. Os direitos civis, políticos e sociais formalizados na Constituição estão se deteriorando antes de terem se consolidado. Incompleta, a cidadania brasileira está se degradando. O Estado é cindido em dois: um para uma minoria de privilegiados, outro para uma maioria de marginalizados. As elites do poder público e iniciativa privada gozam de todas as garantias, liberdades e benesses que o dinheiro pode comprar e o poder pode conferir. No outro extremo, há uma massa de degredados para os quais a Constituição é letra morta.

Esse “estado de coisas inconstitucional” é particularmente evidente na Justiça, em especial na Justiça penal. No ranking do Rule of Law Index do World Justice Project, que mede a percepção do Estado de Direito junto a acadêmicos, operadores do direito e lideranças civis, o Brasil ocupa a 81.ª posição entre 140 países. Na Justiça penal, está na 112.ª posição, com péssimas avaliações na investigação criminal (107.ª), sistema correcional (130.ª) e tempestividade e eficácia dos julgamentos (132.ª). O índice classifica nosso sistema prisional como o segundo menos imparcial do mundo, só à frente da Venezuela.

Judiciário e Ministério Público, a elite do serviço público, extraem do Estado todos os privilégios possíveis e imagináveis. No extremo oposto, o sistema prisional, uma terra arrasada de direitos, exprime a falência do Estado. Em tese, esse sistema deveria atender a três fins: proteção da sociedade, dissuasão dos aspirantes ao crime e ressocialização dos condenados. Na prática, ele subverte esses fins, transformando-se numa usina do crime.

A desigualdade social é precedida e perpetuada pela desigualdade jurídica. Compare-se, por exemplo, a experiência de dois cidadãos supostamente iguais perante a lei. O ministro da Suprema Corte Alexandre de Moraes e seus familiares, que alegam terem sido vítimas de agressão no aeroporto de Roma, foram admitidos como assistentes de acusação na fase de investigação, um exótico privilégio, e foram favorecidos pela imposição do sigilo às filmagens que comprovariam o delito. Diverso foi o caso, recentemente abordado no podcast Rádio Novelo Apresenta, do jovem ativista Pedro Henrique Santos Cruz, de Tucano, na Bahia. Frustrado após suas denúncias de abusos por policiais terem sido ignoradas pela Justiça, Pedro organizou uma série de protestos. Por anos foi hostilizado por policiais. Em 2018, três homens encapuzados invadiram sua casa e o executaram a tiros. Testemunhas acusam policiais. Apesar das mobilizações da família, o caso nunca foi devidamente investigado.

As instituições estão funcionando? Depende. A resposta em Tucano será uma; em Brasília, outra. A do cidadão Alexandre de Moraes será uma, a do cidadão Pedro Henrique não será dada, porque ele foi morto sob a negligência do Estado, se não por agentes do próprio Estado. Mas a resposta de sua família e de uma legião de jovens da periferia como ele será inequívoca: um categórico “não”.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 12.11.23

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Calor extremo: entenda como as altas temperaturas afetam o corpo e a saúde

Estresse térmico faz o organismo dar início a uma série de adaptações fisiológicas; previsão é de que o próximo ano será ainda mais quente

Calor intenso altera o funcionamento do organismo Foto: Adobe Stock

O verão no hemisfério sul ainda nem começou, mas o Brasil já vem enfrentando dias de calor intenso – e a tendência é piorar ainda mais, já que as previsões meteorológicas indicam temperaturas recordes nos próximos dias, com termômetros marcando cerca de 5º acima da média, e por um período prolongado. Estar exposto ao calor extremo associado ao tempo seco sem cuidados básicos pode causar alterações no organismo que trazem riscos à saúde, especialmente para crianças, idosos e pessoas com a saúde mais fragilizada. Por isso, todo cuidado é pouco.

O nosso corpo mantém uma temperatura interna em torno de 36 ºC. Quando somos expostos a um estresse térmico (no caso, altas temperaturas), o organismo reage e inicia uma série de adaptações fisiológicas para tentar regular a temperatura interna e resfriar. A primeira reação é eliminar o calor por meio do suor, que é um mecanismo natural Brasil terá onda de calor com temperaturas perto dos 40ºC: por que está tão quente este ano?

“O calor intenso pode ter impactos significativos no sistema cardiovascular, representando uma preocupação crescente à medida que as temperaturas globais continuam a aumentar devido às mudanças climáticas. Quando o termômetro sobe, nosso corpo enfrenta desafios para regular a temperatura interna, o que pode resultar em uma série de efeitos adversos no sistema cardiovascular”, disse o cardiologista Marcelo Franken, gerente de Cardiologia do Hospital Israelita Albert Einstein e diretor da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp).

O problema é que o excesso de suor, quando não acompanhado da hidratação oral adequada, pode levar a quadros de desidratação. Franken ressalta que a desidratação diminui o volume sanguíneo e, por sua vez, afeta a pressão arterial. A desidratação também torna o sangue mais espesso, aumentando o risco de formação de coágulos sanguíneos. Além disso, o estresse térmico coloca uma carga adicional sobre o coração, fazendo com que ele bombeie mais rápido para dissipar o calor do corpo.

Pessoas com condições cardíacas pré-existentes, como hipertensão arterial, doença coronariana, e insuficiência cardíaca estão em maior risco de complicações relacionadas ao calor intenso.

“As altas temperaturas podem desencadear ataques cardíacos e arritmias, pois o coração precisa trabalhar mais para manter a temperatura corporal sob controle. É essencial tomar precauções durante ondas de calor, como manter-se hidratado, evitar a exposição direta ao sol e buscar ambientes com ar-condicionado ou ventilação adequada”, recomenda Franken.

Risco de insolação

E os efeitos do calor no organismo não param por aí. Quando a temperatura está muito alta e a pessoa ainda está exposta ao sol, o corpo pode entrar num quadro de insolação, que é caracterizada pelo aumento da temperatura corporal, pele avermelhada e quente, pele seca, dor de cabeça, confusão, náuseas e até mesmo desmaios.

“Essa condição é potencialmente perigosa e requer atenção imediata, pois pode levar a danos graves ao organismo e, em casos extremos, risco de morte. É fundamental buscar abrigo à sombra, hidratar-se e resfriar o corpo em casos suspeitos de insolação”, orienta.

Os especialistas explicam que também tem ainda o reflexo do ar seco na saúde. Temperatura muito alta associada ao ar seco e poluído leva ao ressecamento das mucosas, especialmente do nariz e da boca. Entre os efeitos indesejados estão sangramento nasal, dificuldade para respirar, tosse e até mesmo crises asmáticas em pessoas predispostas.

Uma das principais recomendações durante ondas de calor é ter atenção especial à hidratação  Foto: Reuters

“Sempre que temos mudanças extremas de umidade do ar ou de temperatura, algumas questões respiratórias podem surgir por causa da alteração das mucosas. Por isso o ideal é tentar ficar em ambientes onde a umidade relativa do ar está adequada [usar um umidificador é uma opção] e utilizar soro fisiológico quando o tempo está muito quente e seco também ajuda a prevenir doenças respiratórias”, destacou a infectologista Emy Akiyama Gouveia, do Hospital Israelita Albert Einstein.

Há ainda a preocupação dos infectologistas com o aparecimento de doenças infecto-contagiosas emergentes, como a dengue, que começa a surgir onde normalmente não ocorria. “Tivemos surtos de dengue no sul da Europa em lugares que não imaginávamos. Com as mudanças por causa do desequilíbrio climático talvez vamos observar o aumento de algumas doenças que dependem de vetores”, sugere a infectologista.

Temperatura extrema e mortalidade

De acordo com uma pesquisa publicada no ano passado na revista Nature, as temperaturas extremas (frio e calor) foram responsáveis por quase 6% das mortes em cidades da América Latina. O estudo “Salud Urbana em América Latina” (Salurbal) teve a participação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade de São Paulo (USP) e analisou a relação entre dias quentes e frios com a mortalidade em 326 cidades de nove países latinos.

Para chegar aos resultados, os pesquisadores analisaram mais de 15 milhões de óbitos e compararam com as temperaturas ambientais diárias nas cidades pesquisadas.

Uma das conclusões é de que temperaturas extremas estavam relacionadas com a mortalidade por doenças cardiovasculares e respiratórias, especialmente entre idosos e crianças, que são o grupo mais vulnerável. Segundo a pesquisa, em dias muito quentes, o aumento de um grau Celsius na temperatura esteve relacionado ao aumento de 5,7% nas mortes. Ao mesmo tempo, cerca de 10% das mortes por infecções respiratórias foram atribuídas ao frio intenso.

A Organização Meteorológica Mundial (OMM) emitiu um comunicado na última quarta-feira (8) ressaltando que o fenômeno climático El Niño, atualmente em curso, deverá durar até pelo menos abril de 2024, influenciando os padrões climáticos e contribuindo para a elevar ainda mais as temperaturas em um ano que caminha para ser o mais quente já registrado – os meteorologistas afirmam também que o ano de 2024 pode ser ainda mais quente. O fenômeno atingiu força moderada em setembro deste ano e, provavelmente, atingirá um novo pico entre novembro e janeiro de 2024.

Segundo os meteorologistas, o El Niño ocorre em média a cada dois a sete anos e normalmente dura de 9 a 12 meses. É um padrão climático natural associado ao superaquecimento da superfície do oceano – o problema é que ele está acontecendo num contexto de clima que vem sendo alterado pelas atividades humanas.

Na cidade de São Paulo, as temperaturas devem passar dos 37ºC neste final de semana e chegar aos 40ºC no interior, segundo previsão do Climatempo. Na próxima semana o calor continua e aumenta ainda mais, com temperaturas superando os 40 graus no Tocantins, Bahia, Piauí e no Espírito Santo.

Como se proteger do calor?

É fundamental se proteger do calor e manter-se hidratado em dias de temperaturas muito altas. Entre as principais recomendações estão:

Beba bastante água e não a substitua por bebidas alcoólicas;

Faça refeições leves e frias mais vezes ao dia;

Mantenha a sua casa fresca, com janelas abertas;

Tome banhos mais frios;

Prefira ambientes arejados e evite aglomerações;

Proteja-se do sol com chapéu, óculos escuros, roupas leves e protetor solar;

Use soro fisiológico nos olhos e nas narinas;

Não faça exercícios físicos em horários com maior incidência de raios UV, das 11h às 17h.

Fernanda Bassetti, da Agência Einstein para O Estado de S. Paulo, em 10.11.23 

A delicada posição do Egito no conflito Israel-Hamas

Cairo tem que lidar com pressão popular pró-palestinos, apelos para abrir a fronteira com Gaza e temor de que terroristas entrem junto com refugiados.

Nos protestos pró-palestinos, os egípcios também gritaram slogans contra o atual governo no CairoFoto: MOHAMED ABD EL GHANY/REUTERS

O atual conflito entre Israel e o grupo radical islâmico Hamas em Gaza levou o Egito a uma situação delicada. A nação vizinha é o principal facilitador para a entrada de ajuda humanitária em Gaza, mas também traça uma linha vermelha quando se trata de acolher palestinos deslocados.

"O posicionamento do Cairo é cada vez mais permeado pelo alarmante e crescente número de mortes de civis, à medida que a invasão terrestre [em Gaza] prossegue, bem como pela pressão de Europa e EUA para abertura da passagem da fronteira de Rafah aos palestinos que desejam atravessá-la", disse à DW Michelle Pace, pesquisadora do think tank Chatham House, com sede em Londres, e professora da Universidade Roskilde, na Dinamarca.

O presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sisi, deixou claro que a passagem da fronteira de Rafah – a única para Gaza não controlada por Israel – não se tornará uma entrada para os palestinos vindos de Gaza. "O Egito confirma clara e estritamente que nunca aceitará o deslocamento de qualquer palestino para o território egípcio", disse.

Sisi repetiu essa afirmação de várias maneiras desde a eclosão do conflito, que começou após o brutal ataque terrorista do Hamas contra Israel, em 7 de outubro, que deixou mortos cerca de 1.400 israelenses.

"O Egito recorda muito bem o que aconteceu em 1948, quando após a Nakba [catástrofe em árabe], os palestinos que tinham sido forçados a abandonar suas casas e povoados não foram autorizados a regressar quando a guerra terminou", disse Pace. "O Egito acredita que esse modelo pode se repetir."

Ajuda humanitária está se acumulando na passagem fronteiriça de Rafah, no EgitoFoto: AMR ABDALLAH DALSH/REUTERS

"No entanto, os civis em Gaza têm o direito de procurar refúgio e só eles podem decidir como e quando exercer esse direito. O Egito é obrigado a permitir a entrada de civis, se assim o desejarem", afirmou à DW Timothy E. Kaldas, vice-director do Tahrir Institute for Middle East Policy, sediado em Washington.

"Dito isto, os parceiros de Israel devem deixar bem claro que os habitantes de Gaza têm o direito de regressar a Gaza quando as hostilidades terminarem, e os líderes de Israel devem ser avisados de que impedi-los de o fazer constituiria uma limpeza étnica", acrescentou Kaldas.

Potencial ameaça à segurança

"Outro argumento egípcio contra a permissão de entrada de pessoas é que provavelmente seria impossível separar os combatentes palestinos dos refugiados civis", disse Pace. "Se os grupos jihadistas palestinos estabelecerem ligações logísticas, ideológicas e operacionais com [homólogos] baseados no Sinai, o Egito teme que eles possam tentar lançar ataques contra alvos israelenses a partir do território egípcio, convidando Israel à retaliação e perturbando as suas relações com o Egito".

Sisi também expressou esta preocupação durante uma recente entrevista coletiva no Cairo. "O Sinai se tornaria uma base para operações terroristas contra Israel, e nós, no Egito, assumiríamos a responsabilidade por isso. A paz que criamos [em 1979, quando um tratado de paz com Israel foi assinado] escaparia de nossas mãos, tudo no contexto da eliminação da causa palestina", disse.

Kenneth Roth, ex-diretor executivo da Human Rights Watch e agora professor visitante na Universidade de Princeton, nos EUA, diz que Sisi também é "particularmente solidário com as tentativas de Israel de esmagar o Hamas porque ele próprio usou uma violência terrível para esmagar a Irmandade Muçulmana, espécie de primo mais pacífico do Hamas, incluindo o massacre de 817 manifestantes em 2013 na Praça Rabaa, no Cairo".

Sisi encorajou os egípcios a protestarem pela Palestina mas depois reprimiu quem lançou críticas a seu governoFoto: Ahmad Hassan/AFP/Getty Images

Repressão aos protestos

Este último mês de conflito também teve impacto na relação entre o governo autoritário egípcio e o povo do país. "As diferenças devido às dificuldades econômicas no país, também devido ao autoritarismo, diminuíram um pouco", segundo Nathan Brown, professor de ciência política e assuntos internacionais na Universidade George Washington e atual membro do Hamburg Institute for Advanced Study (HIAS), na Alemanha. "A atenção concentrou-se, em vez disso, na proteção das fronteiras nacionais", acrescentou.

Essa diminuição do descontentamento popular é favorável a Sisi, que provavelmente será reeleito nas próximas eleições presidenciais do Egito, que são amplamente avaliadas como sendo antidemocráticas.

O financiamento internacional em troca de assistência em Gaza também poderia ajudar a resolver a crise econômica em curso no Egito. A moeda local perdeu mais de metade do seu valor desde março de 2022, e as reservas de moeda estrangeira do Egito estão quase esgotadas. O conflito em Gaza também terá impacto no turismo, um pilar da economia egípcia.

Roth duvida que o conflito mantenha a população egípcia e o seu governo alinhados a longo prazo.

"À medida que a opinião pública passa da simpatia por Israel, após o horrível massacre de civis israelenses para o horror face ao número muito maior de civis palestinos que estão agora sendo mortos sob o bombardeamento israelense, serão inevitavelmente colocadas questões sobre a razão pela qual o governo egípcio continua a parceria com Israel", disse Roth à DW.

O governo egípcio já se prepara para eliminar qualquer dissidência pela raiz. Na semana passada, depois de manifestantes egípcios terem apelado à justiça e à liberdade durante comícios pró-palestinos sancionados pelo governo, as forças de segurança egípcias detiveram cerca de 70 pessoas no Cairo e em Alexandria. De acordo com um relatório recente da Human Rights Watch, 16 manifestantes foram acusados de "juntar-se a um grupo terrorista" e "cometer um ato terrorista".

Jennifer Holleis, a autora deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 09.11.23

Sarney diz que não apadrinha ninguém na disputa pela PGR

José Sarney tem dito que não tem nenhum nome de sua preferência na disputa pela Procuradoria-Geral da República (PGR).

O recado tem o objetivo de deixar claro que não é o padrinho político do subprocurador Luiz Augusto dos Santos Lima, ligação que tem sido atribuída ao ex-presidente.

A confusão ocorreu porque Sarney de fato ligou para Alexandre Padilha pedindo que o ministro recebesse o procurador. Mas foi um pedido de amigos do ex-presidente na PGR. (publicado originalmente por Metrópoles, de Brasília-DF)

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Lula sabota o país

Ao largar meta de déficit zero, presidente cria problemas e força alta dos juros

  1. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante encontro com a imprensa no Palácio do Planalto, em Brasília (DF) - Gabriela Biló/Folhapress

O ministro Fernando Haddad (Fazenda) tem trabalhado para conter o crescimento de déficit e dívida do governo. Ocupa-se de convencer o Congresso a aprovar aumentos de impostos e de evitar que os parlamentares explodam bombas que abram mais buracos no casco do navio fiscal. Além disso, tenta evitar que seus colegas de ministério contribuam para a detonação.

Haddad talvez não imaginasse que o próprio presidente da República disparasse um torpedo contra o projeto já não muito rigoroso de estabilização das contas públicas.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) parecia mais contido e baixara o tom e o número de declarações que, desde a eleição, contribuíram para a alta das taxas de juros. Nesta sexta (27), porém, decidiu perturbar seu governo e o país.

Em resumo, disse que sua gestão não chegará à meta de déficit primário zero em 2024, o que é opinião quase geral. Mas Lula afirmou que, entre outros motivos, a meta não será cumprida pois não haverá cortes "em investimentos e obras".

Para piorar o estrago e demonstrar seu desconhecimento do problema, disse ainda que "o mercado é ganancioso demais e fica cobrando uma meta que eles sabem que não vai ser cumprida".

Trata-se de fantasia e desinformação deliberada. Recusar mais déficit não é ganância; ganância com ganhos para os mais ricos haverá com crescimento do déficit. O governo federal terá de expandir a tomada de empréstimos a taxas elevadas —até mesmo por esse tipo de declaração do presidente.

Os parlamentares, indiferentes ao destino do país e certamente despreocupados com um fracasso do governo, têm proposto, pautado ou aprovado leis para aumentar a despesa ou reduzir a receita.

Colocam, ou pretendem colocar, na conta federal gastos com servidores estaduais. Prorrogam desonerações para empresas ou benefícios regionais. Querem novos tipos de emendas de pagamento obrigatório. A fala de Lula se junta a esse ímpeto parlamentar destrutivo.

O presidente parece se comportar como um prefeito desinformado ou um deputado paroquial, para quem governar é inaugurar obras, sem se importar com consequências. Ademais, ainda não parece ter aprendido o efeito pernicioso desse tipo de declaração: governo e país pagarão juros mais altos; a confiança econômica diminuirá.

De fato, fazer com que receita e despesa se equilibrem no ano que vem, o déficit zero, será difícil. Desprezar uma meta necessária e definida em projeto de lei, porém, cria e antecipa problemas.

Que fique claro: Lula não está propondo um programa econômico controverso, está sabotando o próprio governo. Além de danoso, é incompreensível.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 27.10.23 / editoriais@grupofolha.com.br

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

O plano de segurança do governo e os projetos do Congresso contra o STF: as montanhas pariram ratos

Na crise entre poderes, todos sobrevivem. Em tiroteios reais, quantos mais vão morrer?

Senado enfrenta o STF e aprova marco temporal para terras indígenas Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado / DIV

O nosso Brasil, tão varonil, vive duas guerras simultâneas. Uma, política, cheia de malícia, de Senado e Câmara contra o Supremo, Senado contra a Câmara, o Executivo fugindo das balas perdidas. Outra, sangrenta, que atinge crianças, famílias inteiras e médicos tomando cerveja na praia do Rio de Janeiro.

Na de Brasília, é “tudo junto, tudo misturado”, como diz um ministro do Supremo. No Congresso, uns reagem à condenação dos terroristas do 8/1, outros às pautas liberais e quem manda se aproveita para atrair todos eles. Detalhe: os dois projetos contra o Supremo foram aprovados rapidinho, mesmo o Senado todo sabendo que ambos vão parar no próprio Supremo e, portanto, não vão dar em nada. Ou seja, foi birra, recado.

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou em 42 segundos (42 segundos!) uma PEC que altera o regimento interno do Supremo sobre decisões monocráticas e pedidos de vista – já modificados, aliás, pela própria corte. Pode fazer sentido no mérito, mas é só implicância. Se for até o fim, é claro que vai ser julgado inconstitucional na corte, pela cláusula pétrea da independência dos poderes. Ponto.

O marco temporal das reservas indígenas foi votado no Senado dias depois do julgamento contrário no STF. Numa tarde, passou pela comissão, ganhou urgência e foi aprovado no plenário. O Supremo foi para um lado, o Senado, para outro. Se o presidente Lula sancionar o projeto do Congresso, o Supremo também vai derrubar. Ponto.

E vem por aí o projeto que dá poder ao Legislativo para derrubar decisões não unânimes de uma corte onde qualquer unanimidade é impossível com o ministro Nunes Marques. Curioso é o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, liderar a rebelião contra o Supremo. Por estar isolado em Minas? Sob o cabresto do senador Davi Alcolumbre? Por ter sido preterido para a corte?

O novo presidente do STF, Luís Roberto Barroso, é da paz, mas “quando dois não querem, dois não brigam” e quando ninguém quer a paz, não há paz. Pacheco, Alcolumbre, Arthur Lira e Centrão usam a pauta liberal do Supremo para conservadores e a extrema direita do Congresso. Lembrando que o Brasil é, majoritariamente, contra a descriminalização do aborto e do porte de pequenas quantidades de maconha, por exemplo.

O que o Brasil não aguenta mais são episódios como o assassinato dos médicos no Rio, que remete ao de Marielle e Anderson, e a chacina contra uma família de ciganos na Bahia, campeã em mortes criminosas. E o pacote contra o crime do ministro da Justiça, Flávio Dino, foi feito às pressas, para inglês ver. Assim, Congresso e governo federal, com projetos e planos que não dão em nada, agem como “a montanha que pariu um rato”. Na crise entre poderes, todos sobrevivem. Em tiroteios reais, quantos mais vão morrer?

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é Jornalista. Comentarista de politica no telejornal Em Pauta da Globo News. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.10.23

Somos a matéria de que são feitos os sonhos

Uma democracia moderna precisa, tanto na sociedade quanto no governo, de serenidade para enfrentar seus inúmeros desafios

Fernando Henrique Cardoso e Pedro Malan (sentado) lançam, no Governo do Presidente Itamar Franco, o Plano Real. Brusca freada  no galope da inflação então dominante

“Sonhei o sonho errado” escreveu Fernando Gabeira, então deputado federal eleito pelo PT, numa passagem do sereno discurso com que anunciou sua desfiliação do partido, no plenário da Câmara dos Deputados. Foi em outro outubro, 20 anos atrás.

A expressão teve chamada de primeira página nos principais jornais do País, que registraram a primeira explicação que deu Gabeira sobre o sonho errado: “Confiei que poderíamos fazer tudo aquilo que prometíamos rapidamente, num período de quatro anos ou imediatamente”. O que escreveu a seguir não mereceu tanta atenção: “Mas este sonho foi pior ainda: foi confiar que era possível transformar o Brasil a partir do Estado; foi não compreender que o Estado já perdeu o dinamismo, o qual agora se encontra na sociedade”.

Dois livros e um discurso foi o título do artigo que publiquei neste espaço em 9/11/2003. O discurso em questão era o de Gabeira; os livros, O Elogio da Serenidade, de Norberto Bobbio, e Insultos Impressos, de Isabel Lustosa. O primeiro é uma bela defesa dessa virtude tida como não muito política – “virtude fraca, mas não dos fracos”, no dizer de Bobbio. O segundo revisita os primeiros momentos de nossa imprensa, quando a “democratização do prelo” levou a surpreendentes níveis de violência o debate na forma impressa.

Naquele artigo de novembro de 2003 referi-me ao falso dilema subjacente ao discurso de Gabeira: “Estamos chegando ao final do primeiro ano do governo Lula. O aprendizado da sociedade tem sido extraordinário. Não menor tem sido o aprendizado do governo. Se conseguirmos, como parte desse processo de melhoria de qualidade do debate público informado, reduzir o peso relativo dos insultos impressos (em favor do conteúdo da discussão), valorizar mais a serenidade e a prudência-com-propósito como virtudes políticas e aprofundar a discussão sobre sonhar sonhos errados e sobre sua realização no mundo real ‘a partir do Estado’ ou ‘a partir da sociedade’ (um falso dilema), estaríamos contribuindo para continuar mudando, para melhor, um país difícil como o nosso. Ou, pelo menos, sonhando um sonho certo, o que inclui não ter ilusões sobre as dificuldades em realizá-lo”.

Falso o dilema porque é preciso tentar combinar o dinamismo de ambos, Estado e sociedade. Isso exige uma percepção de que não há que tentar fazer tudo “em quatro anos”, mas sim ter visão estratégica de longo prazo, consistente e comunicável, com clara definição de prioridades e avaliação dos inevitáveis trade-offs envolvidos, pensando nas próximas gerações, e não apenas nas próximas eleições.

O governo FHC definiu em 1998, no programa Avança Brasil, sua visão sobre o papel essencial do Estado: “O novo modelo, ao contrário do que alguns querem fazer crer, exige um Estado atuante e vigoroso. Por isso, o grande desafio contido no objetivo de promover o crescimento econômico sustentado, a geração de empregos e de oportunidades de renda consiste em recompor a capacidade estatal de formular políticas, construir estratégias e exercer suas novas atividades regulatórias, especialmente em relação às atividades transferidas para o setor privado. (...) não é mais possível desenvolver a economia no chamado regime autárquico, ou seja, isolada da competição e da convivência com produtos, tecnologias e capitais internacionais”.

Sigo julgando que deveria ser possível encontrar ampla convergência em torno dessa visão, evitando debates estéreis sobre o papel do Estado.

Três fenômenos, todos incompatíveis com um republicano Estado Democrático de Direito, maculam nosso passado: o messianismo salvacionista, o voluntarismo explícito e o autoritarismo exercido em nome do povo. Traços desses fenômenos seguirão vivos entre nós enquanto a sociedade – que é dinâmica, complexa, heterogênea e desigual – julgar que somente a partir do aparelho do Estado é possível realizar “grandes coisas” (Maquiavel) como, por exemplo, o desenvolvimento econômico e social sustentado.

O Brasil de hoje ostenta permanentes excessos de violência verbal, agora nas redes sociais, cada vez mais determinantes na luta política e social. Carece, em contraste, da virtude da serenidade – no debate político e social, por vezes no econômico. Uma democracia moderna precisa, tanto na sociedade quanto no governo, de serenidade para enfrentar seus inúmeros desafios. Trata-se de uma postura, uma atitude em relação aos outros e às coisas – aí incluídas as que se deseja transformar.

Sem usar a palavra serenidade, Bobbio certa vez definiu o que chamou de maior lição da sua vida: “Respeitar as ideias alheias, deter-se diante do segredo de cada consciência, compreender antes de discutir, discutir antes de condenar. E rejeitar todo tipo de fanatismo”. Sábia lição para países como o nosso, e muitos outros no mundo de hoje, que correm o risco de se enredar numa pobre e calcificada polarização política. Como se o Brasil, país de enormes complexidades – e não menores potencialidades – pudesse se dar ao luxo de incorrer numa enganosa e estéril escolha binária entre um lulopetismo e um antilulopetismo. Um desavisado nós contra eles. O Brasil – e seu povo – não merecem essa simplória e excludente redução.

Pedro S. Malan, o autor deste artigo, é economista. Foi Ministro da Fazenda no Governo FHC. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 08.10.23

Golpe?

O que houve no 8 de Janeiro foi uma espécie de estertor do bolsonarismo, com seus fiéis ainda acreditando numa narrativa ‘revolucionária’ evanescente

Para melhor compreendermos os eventos do dia 8 de janeiro, alguns açodadamente considerando tratar-se de uma tentativa de golpe, torna-se necessário analisarmos o papel dos militares nos últimos anos e meses. Nesse sentido, convém, preliminarmente, observarmos que não há a menor possibilidade de golpe sem intervenção militar e, em particular, do Exército. A história brasileira está repleta de exemplos desse tipo. Logo, impõe-se logicamente a seguinte conclusão: se não houve golpe, foi simplesmente porque o Alto Comando do Exército evitou que isso acontecesse. E isso ocorreu antes da posse do presidente Lula.

Se não soubermos fazer a distinção da instituição Exército em relação a alguns militares, principalmente da reserva, que agiram enquanto indivíduos numa colaboração estreita com o bolsonarismo, falharemos em abordar a questão central. Foram os militares constitucionalistas do Alto Comando, com destaque para os generais Tomás Paiva, Valério Stumpf, Richard Nunes, Guido Amin e Fernando Soares, entre outros, que disseram não às articulações que então se fizeram. Não compactuaram nem aceitaram a quebra do Estado de Direito, da democracia, permanecendo apegados aos seus princípios. Alguns sofreram, inclusive pessoalmente, com acusações caluniosas, considerados como “generais melancias”, verdes por fora, vermelhos por dentro. Familiares foram também objeto de acusações desse tipo nas redes sociais. No entanto, permaneceram firmes em suas convicções e não cederam.

A República muito lhes deve e isso deveria ser reconhecido. Não faz, assim, nenhum sentido empreender campanhas públicas contra os militares como se estes fossem “golpistas”. A tais pessoas falta bom senso. Que houve militares da reserva envolvidos nas depredações do dia 8 de janeiro significa tão somente que agiram enquanto pessoas, sem nenhuma representação institucional. Da mesma maneira, civis estiveram envolvidos. E todos devem ser investigados e, se for o caso, punidos na forma da lei. Ademais, caberia também determinar a responsabilidade do então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), escolha pessoal do presidente Lula, e a inércia da Força Nacional, subordinada ao Ministério da Justiça, que poderia ter sido efetivamente acionada, considerando a tensão institucional naquele momento.

Quando da violência daquele dia, a tentativa de golpe já havia sido abortada. O presidente eleito tinha assumido e estava em pleno exercício de suas funções. O resultado eleitoral tinha sido respeitado e a transição de um governo a outro, operada, embora o antigo presidente não tenha seguido a liturgia de passagem de poder. O que, sim, houve naquele momento foi uma espécie de estertor do bolsonarismo, com os seus fiéis ainda acreditando numa narrativa revolucionária evanescente. Foram iludidos e ludibriados. Os mentores sumiram de cena, apesar de sabedores de que o Exército não os seguiria. Foi simplesmente uma ópera-bufa. Portanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) deveria ter maior moderação na pena aplicada a esses participantes, por mais lamentáveis que sejam as suas condutas. Penas de 17 anos não guardam nenhuma proporção com suas ações e responsabilidades. Em bom Português, estamos observando uma encenação midiática para punir bagrinhos.

Carecem igualmente de sentido ações políticas em curso procurando modificar o artigo 142 da Constituição federal, como se este fosse permissivo em relação a uma intervenção dos militares como Poder Moderador. Não há nada lá escrito que enseje tal interpretação, salvo se formos enveredar para interpretações completamente arbitrárias, desprovidas de quaisquer fundamentos. Um golpe, por definição, é um ato de força e, por isso mesmo, prescinde de qualquer interpretação jurídica. É um ato de ruptura com a ordem constitucional e, enquanto tal, se institui como fonte de um novo tipo de direito, tido por revolucionário. Assim o entendeu o jurista Francisco Campos ao escrever o Ato Institucional número 1 a mando do então ministro da Guerra, Costa e Silva. Não precisou fazer uma interpretação da Constituição válida naquele momento, mas simplesmente lhe sobrepôs uma lei maior, considerada como “revolucionária”.

Um dos grandes eventos da história universal, a Revolução Francesa, de 1789, nasceu de uma ruptura constitucional, abolindo o arcabouço legal e institucional baseado na monarquia de direito divino dos reis. O destino do rei e de sua família foi a guilhotina, acionada segundo um tribunal revolucionário carente de qualquer base legal à luz da Constituição então vigente. Robespierre chegou a dizer que seria julgado pela História, como se a História fosse um tribunal. Trata-se tão somente de uma narrativa política que capturou mentes e corações, engendrando uma outra ordem constitucional, ancorada em novos princípios e valores, que veio a moldar boa parte das Constituições posteriores em todo o mundo. No momento da ruptura, não fizeram nenhuma interpretação da Constituição vigente, simplesmente clamaram contra a sua injustiça.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRS. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 09.10.23

Processo que pode levar Collor à prisão se aproxima do fim após manifestação da PGR

Ex-presidente foi condenado a oito anos de 10 meses de reclusão, mas ainda não há definição de quando começará a cumprir pena

O ex-senador Fernando Collor (PTB-AL) — Foto: Roque de Sá/Agência Senado

A Procuradoria-Geral da República (PGR) contestou na terça-feira um recurso apresentado pelo ex-presidente Fernando Collor contra a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de condená-lo a oito anos e 10 meses de prisão. O julgamento desse recurso é uma das últimas etapas para a conclusão do processo, o que permitiria o cumprimento da pena.

Após só achar R$ 14,97 em conta: Justiça manda bloquear bens da esposa de Collor para pagar dívida trabalhista

O julgamento de Collor e de outros dois réus foi concluído pelo STF no fim de maio. No dia 21 de setembro, foi publicado o acórdão do julgamento, com a íntegra dos votos. Na semana passada, os três réus apresentaram embargos de declaração, um tipo de recurso utilizado para esclarecer pontos da decisão. Com a manifestação da PGR, cabe agora ao relator do caso, Edson Fachin, liberar os recursos para julgamento.

Collor foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, por um esquema envolvendo a BR Distribuidora que foi investigado pela Operação Lava-Jato. Pedro Paulo Bergamaschi de Leoni Ramos, apontado como operador do esquema, foi condenado a quatro anos e um mês de prisão, e Luis Amorim, diretor executivo da Organização Arnon de Mello, conglomerado de mídia do ex-presidente, recebeu pena de três anos e 10 dias.

Nos embargos, os três questionam pontos do acórdão, como o de que ele não teria respondido a tese das defesas de que o processo foi baseado unicamente em delações premiadas. Além disso, também foi questiona a forma de definição das penas.

Em resposta, a PGR afirma que os réus querem "reabrir a discussão da causa, promover rediscussão de premissas fáticas e provas, além de atacar, por meio de via indevida, os fundamentos do acórdão condenatório", o que não seria a função dos embargos.

Em relação ao questionamento de que o acórdão não cita provas além de delações, a peça afirma que há o texto apresenta um "há robusto conjunto probatório indicando a existência dos crimes".

Daniel Gullino, de Brasília-DF para O Globo, em 04.10.23

O Senado entre a sensatez e a provocação

Se merecem elogios por barrar reformas sem sentido, senadores têm de parar de retaliar o STF

Plenário do Senado — Foto: Roque de Sá/Agência Senado

O Senado tem desempenhado papel fundamental ao cumprir sua missão constitucional de Casa revisora dos projetos recebidos da Câmara. Nos últimos dias, a atitude cautelosa dos senadores impediu o avanço de propostas que, se aprovadas na forma como queriam os deputados, teriam representado retrocesso para o país.

A primeira foi a minirreforma eleitoral, que alivia controles e punições a políticos e partidos. A segunda foi a PEC da Anistia, que, além de livrar as legendas e candidatos de punições da Justiça por irregularidades nas últimas eleições, cria um sistema de cotas nas vagas do Legislativo sem paralelo nas maiores democracias. A resistência do Senado em aprová-la a tempo de vigorar no pleito municipal do ano que vem levou a própria Câmara a adiar a votação na semana passada.

“São temas muito complexos para votar num tempo muito exíguo”, afirmou à GloboNews o senador Marcelo Castro (MDB-PI), relator da minirreforma. “Vamos com mais calma, mais devagar, com mais sensatez.” Castro sugeriu que, em vez de uma minirreforma, o Congresso aprove uma reforma mais duradoura, com base nos projetos de código eleitoral e de lei sobre inelegibilidades que já tramitam no Senado. É uma sugestão que, para empregar o termo do próprio Castro, traduz sensatez.

Pacheco já havia alertado STF de que poderia liberar ‘pauta bomba’

Sensatez também foi o que levou os senadores a rejeitar um projeto aprovado em 2021 na Câmara recriando as coligações em eleições proporcionais, expediente que favorece a pulverização de partidos no Legislativo e felizmente foi banido pela minirreforma eleitoral de 2017. E a mesma sensatez retarda a tramitação no Senado da esdrúxula proposta aprovada na Câmara criminalizando a “discriminação” de políticos.

Paradoxalmente, parcela dos senadores revela não partilhar dessa sensatez. Numa votação de apenas 42 segundos, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou um projeto que impõe limite a decisões individuais de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Proposta semelhante já havia fracassado em 2019 — e o próprio STF já adotou normas mais rígidas para as decisões monocráticas.

A iniciativa foi uma reação a julgamentos do Supremo que têm desagradado a parlamentares conservadores, em temas como o marco temporal para demarcação de terras indígenas, a descriminalização do porte de drogas ou as regras para o aborto legal. No caso do marco temporal, declarado inconstitucional pelo STF, o Senado aprovou projeto contrariando a tese no próprio dia da votação. Tramita também na Casa uma proposta descabida impondo mandatos a ministros do Supremo.

Todas essas são provocações sem sentido, que em nada contribuem para a harmonia entre os Poderes. Cada Poder tem seu papel, e a Constituição garante independência para que seja exercido na plenitude. Mas é fundamental que os atores saibam agir com comedimento, sobretudo num momento em que o país precisa recobrar a normalidade institucional. O Senado tem demonstrado conhecer seus deveres ao rever projetos da Câmara que exigem maior reflexão e mais debate entre os parlamentares. É essa sensatez que deveria prevalecer.

Editorial de O Globo, em 05.10.23

‘Afrontá-la, nunca’

A Constituição precisa ser real, e não peça abstrata para quem vive nas periferias urbanas

Ulysses Guimarães mostra o projeto da Constituição — Foto: Gustavo Miranda

Celebramos hoje os 35 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988. Uma oportunidade para a renovação dos compromissos do Estado e da sociedade brasileira com a democracia. A Assembleia Nacional Constituinte, convocada em 1987 como parte do processo de transição, aprovou uma Carta capaz de espelhar a nação que buscava o amanhecer da liberdade de um Brasil desenhado com todas as cores da aquarela.

Mesmo os segmentos políticos que apontaram insuficiências na Constituinte travaram embates fortes e fizeram críticas políticas a seus próprios limites, como no tema relacionado às Forças Armadas e segurança pública, sem jamais comprometer seu processo. Ainda é ela a melhor referência de abertura e transparência do Congresso e dos demais Poderes para com a nação. Resgatá-la e valorizá-la é reforçar que o caminho da unidade entre os democratas é irrenunciável.

Ainda assim, nossa Constituição, uma das mais avançadas do mundo, que tem como premissa a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito, já foi objeto de 131 emendas que demonstram nítida intenção reformadora dos constituintes derivados, mesmo antes da completa regulamentação e efetivação dos princípios nela consagrados.

A Carta Magna que entrou em vigor no Brasil, carregada de um sentido de responsabilidade do Estado, obteve atenção diversa à sua observância pelos governos, no período destes 35 anos, como ajustes fiscais que aprofundaram a desigualdade econômica e social. Registrar isso é destacar que a Constituição pode ser interpretada, mas não moldada pela autoridade de cada momento, por serem os governantes eleitos que juram respeitá-la, não o contrário.

A democracia deve cumprir a promessa de superação da desigualdade, da segregação, da dependência e do racismo estrutural que definem historicamente o Brasil. A Constituição precisa ser real, e não peça abstrata para quem vive nas periferias urbanas, para as mulheres em busca da equidade e respeito, para jovens negros vítimas de violência, para assegurar a existência dos povos indígenas, a cidadania aos LGBTQIA+ e a todos aqueles e aquelas que tantas vezes são tratados como cidadãos sem direitos.

É hora de construir uma cultura política democrática, em que exercer a cidadania vá além do voto. Estar informado, participar diretamente de decisões de interesse público, avaliar políticas públicas, acompanhar demandas, ser parte de comunidades e organizações, ser agente de ideias.

Num contexto de avanço de autoritarismo no mundo e de atentados à democracia, tais como os ocorridos no 8 de Janeiro, é preciso retomar o sentido originário da nossa Constituição, no mesmo espírito com que Ulysses Guimarães fez seu discurso na sessão de promulgação:

— Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.

Maria do Rosário, a autora deste artigo, é Deputada Federal (PT-RS). Publicado originalmente n'O Globo, em 05.10.23

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

O necessário constitucionalismo das FA

Cabe às Forças Armadas a consciência de que defender o Brasil não é ser facção política ou sinecura do Estado

A Nova República, resgatada nas campanhas das Diretas e pela Constituinte, deu na Constituição de 1988 e em seu artigo 142. Interpretado à esguelha, pôs as Forças Armadas (FA) como Poder Moderador, apto a arbitrar divergências entre os órgãos do poder, e susteve teorias golpistas, inspiradoras do 8 de Janeiro – em conflito com sua literalidade e afronta ao sistema constitucional de 1988.

As Forças Armadas, contudo, vivem momento alentador e buscam repetir o soldado constitucional – Caxias e Osório gloriosos –, para que elas não se desviem para o golpismo, outro lado de sua tradição.

A cultura brasileira carece de libertar-se do trauma dos golpes, em superação que passa pela depuração de conflitos existenciais. Isso para a equilibrada convivência democrática e a solução de nossas incertezas propendentes a um totalitarismo em que o apelo à força é a regra de solução para nossos entraves institucionais.

Pondere-se o Exército originar-se no militarismo português, com D. João VI, em 1808. E já em abril de 1821 promovendo golpe de Estado e obrigando o rei a jurar a Constituição espanhola, enquanto Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte de 1822 por golpe militar.

Cessadas as guerras da Independência em 1827, com a Batalha de Ituzaingó ou do Rosário, já em 1831 o Exército depõe Pedro I, que recebe do Major Frias a ordem do Brigadeiro Francisco Lima e Silva para apear-se do poder. Abdicou o trono a contragosto.

A desordem sucessiva à abdicação é contida por Feijó, que, para tanto, cria a Guarda Nacional. Força cívica militarizada, para confrontar a indisciplina militar que grassava no Brasil, desestruturando o Exército.

A História certificou que o golpe contra a monarquia fora movimento militar, e desde então e até a Proclamação da República o Exército é a força condestável do Império, com Osório e Caxias, políticos. Nunca moderadora, porque não pode moderar quem deva conflitar.

Quando Floriano Peixoto, em 1889, disse ao Conde D’Eu que não contivesse revoltosos pela artilharia, como fizera na Guerra do Paraguai, acrescentou que seus canhões não atirariam contra soldados brasileiros. O deputado Aristides Lobo, da última legislatura do Império, observou que o povo assistiu a esse golpe militar surpreso e bestificado, porque pensara fosse tudo aquilo uma parada militar, concluída no Campo de Santana, onde tropas do Exército professavam seus pronunciamentos políticos. A República foi, pois, um golpe militar.

Deodoro da Fonseca, monarquista, como seus familiares militares, estava, na República, como os Lima e Silva na Independência, a sustentá-la. Curiosamente, como o Major Frias, um militar, dera a carta de demissão a Pedro I, na abdicação, foi o Major Sólon, outro militar, quem deu dispensa a Pedro II, na República. Ambos os imperadores foram depostos pelo Exército, em golpes militares.

Após os republicanos civis fecharem com Floriano, segurando seus adversários na divisa de São Paulo com o Paraná, em 1894, os militares entregaram a Presidência a Prudente de Morais. O Exército parecia ter abandonado pronunciamentos políticos e concentrou-se em Canudos e no Contestado, contra jagunços, e a República foi civil.

Salvo a campanha civilista em que Rui Babosa foi derrotado pelo militarismo de Hermes da Fonseca, dos Fonseca de Deodoro, o Exército sufocou revoltas dos tenentes, em 1922, e reprimiu a Revolução de 1924, por eles desencadeada em São Paulo.

A partir daí, a ordem se rompe no Exército, que vai por seus dissidentes ser a alavanca propulsora da Revolução de 1930, destrutiva da ordem constitucional, colocando Getúlio Vargas no poder, por um golpe militar, e depondo Washington Luís.

Sucede 1934 e segue 1937, com o anticomunismo a inspirar as Forças Armadas, sustentáculo do Estado Novo, depois da imprudência de Prestes, que em 1935 ferira o Exército, em sua expressão corporativa de grupo profissional e a ver que a chamada Intentona Comunista de 1935 foi, mesmo, um golpe militar dentro do Exército.

Golpe, em 1945, contra Vargas, para depô-lo. Vargas voltou ao governo sob a égide da Constituição de 1946, é deposto pela Vila Militar e suicida-se, no Rio de Janeiro. O General Lott dá golpe, em 1955, para assegurar a posse de Juscelino Kubitschek. Após a renúncia de Jânio Quadros, o Exército, liderando forças de mar e ar, em 1964, altera a ordem constitucional, por golpe de Estado – sendo revolução ou golpe, na hipótese, mera questão semântica. O mais absurdo golpe deu-o a Junta Militar de 1969, outorgando uma Carta, a da emenda dita constitucional n.º 1. Nunca poderia ter acontecido.

É preciso que a sociedade brasileira fuja da patologia de correr às portas dos quartéis cada vez que estiver contrariada com os rumos do Brasil. Igualmente, às Forças Armadas cabe a consciência de que defender o Brasil não é ser facção política ou sinecura do Estado. Cabe-lhes ceder à ordem constituída, exatamente, pela Constituição. Isso pode ser passagem para a civilização.

Luiz Antonio Sampaio Gouveia, o autor deste artigo, é advogado. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 04.10.23

É hora de desacelerar

Cidades europeias têm seguido recomendação da OMS de limitar a 30 km/h a velocidade em vias com maior interação entre carros, pedestres e ciclistas

O atropelamento do ator Kayky Brito, no Rio de Janeiro, comoveu o Brasil. Sensibilizado, o prefeito Eduardo Paes anunciou que vai solicitar a redução do limite de velocidade na orla e em outros pontos da cidade. O anúncio deixou muitos indignados. Mas Paes está certo. Desacelerar as cidades é uma das formas mais efetivas de salvar vidas no trânsito e tem pouco impacto nos tempos de viagem.

A velocidade é um dos principais fatores de risco no trânsito: contribui tanto para a chance de um sinistro ocorrer quanto para sua gravidade. Uma pessoa atropelada por um carro a 30 km/h tem 90% de chance de sobreviver; a 60 km/h, menos de 5%. Por isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o limite de 30 km/h em vias com maior interação entre carros, pedestres e ciclistas.

Muitas cidades têm seguido à risca a recomendação. Nos últimos anos, o limite de 30 km/h passou a vigorar em Bruxelas inteira – à exceção de algumas arteriais –, em grande parte de Paris, em vias importantes de Berlim, e por aí Europa afora. Além do aumento da segurança, as cidades percebem melhora significativa na qualidade do ar.

A medida pode soar escandalosa para alguns e suscitar críticas de “aqui não é a Europa”. Mas as leis da Física não conhecem nacionalidade: as cidades brasileiras podem colher os benefícios de um trânsito menos acelerado.

Estima-se que ajustes pequenos, de 60 km/h para 50 km/h, reduzam em 1/3 os riscos de sinistros fatais. Quando São Paulo reduziu para 50 km/h a velocidade nas Marginais, em 2014 a média de sinistros caiu à metade e os casos com fatalidades caíram 35%. A redução de atropelamentos foi de 53%, e de fatalidades de pedestres, 48%.

Mitos da redução. Apesar dos benefícios evidentes, quando se fala em reduzir velocidades, o que se vê são reações instintivas a partir de crenças infundadas ou de uma ideia ilusória de infalibilidade. “Sou um ótimo motorista e a velocidade não afeta isso!” As leis da Física também não ligam para sua perícia na direção. A velocidades mais altas, qualquer motorista vai percorrer uma distância maior até reagir e, finalmente, parar o carro. A 50 km/h, são necessários 42 metros para frear completamente o carro. A 70 km/h, 62 metros.

Há, também, a pressa inerente aos nossos tempos: “Vou perder mais tempo ainda no trânsito!” Acredite, o impacto é irrisório. Campinas fez um teste e constatou que a redução de 60 km/h para 50 km/h numa avenida importante gerou um aumento médio nos tempos de viagem de míseros 12 segundos a cada quilômetro percorrido. A velocidades mais baixas, o trânsito flui melhor, com menos interrupções.

A abordagem do sistema seguro, melhor prática reconhecida para promoção da segurança viária, considera que humanos cometem erros, imprudências, atos de desatenção. E que humanos são frágeis e vulneráveis a impactos. A responsabilidade por evitar que essa combinação de características inatas resulte em mortes é de todos, incluindo o poder público. Ao projetar, construir e fiscalizar as vias, governos têm nas mãos a possibilidade de salvar milhares de vidas e estabelecer um novo normal – afinal, não precisamos normalizar as quase 34 mil vidas perdidas no trânsito brasileiro só em 2021.

Todos são responsáveis. A sociedade, os órgãos de trânsito e as campanhas de conscientização tendem a responsabilizar principalmente os pedestres e condutores. “Atravesse na faixa”, “respeite o sinal vermelho”, “não corra”. Quem trabalha com segurança viária deve saber que educação e conscientização são importantes, mas não resolvem a violência no trânsito em lugar nenhum – e não trarão redução significativa no vergonhoso índice de vidas perdidas no trânsito brasileiro.

O que tem um potencial tremendo, mas se vê pouco, são governos se comprometendo com fazer o que está ao seu alcance para evitar que falta de educação, de consciência ou de atenção resulte em sinistros e em vidas abreviadas ou comprometidas. A velocidade é o principal. É possível tornar o trânsito à prova de imprudências e à prova de mortes? Muitos especialistas, entre os quais me incluo, acreditam que sim.

Para a efetiva redução da velocidade praticada nas vias, pode ser necessário mais do que placas indicando “30 km/h”. A via comunica ao condutor. Tente perceber na próxima vez que dirigir: larguras amplas, pavimentos planos e caminhos retos incentivam velocidades maiores, enquanto em vias com curvas acentuadas costumamos desacelerar. O estreitamento do espaço para trafegar, lombadas ou pavimentos que provocam pequenas trepidações são algumas das medidas de que gestores podem lançar mão para acalmar o tráfego, e já são comuns em áreas escolares de cidades brasileiras.

A segunda Década de Ação pela Segurança no Trânsito da OMS tem a ambição de reduzir à metade as mortes no trânsito até 2030. Como se caminha para essa utopia no horizonte? Desacelerando as cidades e dando passagem às melhores práticas para salvar vidas no trânsito. Habituados a altas velocidades, gestores, tomadores de decisão e população precisam escolher entre a pressa e a vida.

Paula Santos, a autora deste artigo, é gerente de mobilidade urbana do WRI Brasil. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 04.10.23

Responsabilidade com a segurança pública

O tema é prioridade nacional, mas governo Lula o trata como se fosse mera questão política. Criação de uma pasta específica significaria insistir em olhar equivocado sobre o problema

A segurança pública é uma área especialmente sensível para a população. Ao mesmo tempo, sempre foi desprezada pelo PT, que, com sua visão enviesada e ideológica do problema, acha que a prevenção e o combate à criminalidade são sinônimos de truculência a serviço das elites nacionais, e não um assunto essencial para a vida de todos. Segundo a lógica petista, bastaria o Estado cuidar da educação e da saúde que a violência se resolveria num passe de mágica.

Diante desse histórico, é natural que haja especial pressão política para que o governo Lula cuide da segurança pública. Nas últimas semanas, o tema ganhou destaque em razão de situações especialmente graves na Bahia – com altíssimas taxas de letalidade policial – e no Rio de Janeiro – com extensas áreas dominadas por facções. Mas, verdade seja dita, a questão da segurança pública não é uma crise em alguns Estados. Ela afeta todo o País. Recente pesquisa do Instituto Atlas mostrou a segurança como a área com pior avaliação no governo Lula.

Nesse cenário de insatisfação por parte da população – e pressionado politicamente para apresentar algum resultado –, o ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou o programa de Enfrentamento às Organizações Criminosas, com a previsão de investimento de R$ 900 milhões ao longo dos próximos três anos.

Ainda que haja pontos positivos – como o incentivo à integração das polícias e às atividades de inteligência no combate aos grupos criminosos –, o programa é bastante genérico e não enfrenta as causas das crises. Pior: expressa uma visão de fundo equivocada, como se segurança pública fosse apenas uma questão de mais polícia (e como se a própria polícia não fosse, muitas vezes, parte do problema).

O País está cansado de respostas populistas na área de segurança pública, respostas essas que não enfrentam e ainda agravam o problema. Basta ver a questão do encarceramento massivo de jovens por tráfico de drogas, em processos com baixíssima qualidade investigativa. Prende-se muito, mas prende-se mal. O efeito é conhecido: o Estado oferece continuamente novos contingentes de mão de obra às organizações criminosas nos presídios.

Outra resposta populista, criticada por este jornal, foi a intervenção federal na área de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, durante o governo de Michel Temer (ver o editorial Uma intervenção injustificável, de 17/2/2018). Passados cinco anos e meio da medida, vê-se com nitidez seu completo fracasso, bancado com os recursos de toda a Federação.

Logo após a intervenção federal no Rio de Janeiro, o governo Temer criou, por meio de uma medida provisória, o Ministério Extraordinário da Segurança Pública, desmembrando-o da pasta da Justiça. Era a mesma compreensão populista acerca do problema, como se o que precisasse ser resolvido fosse uma questão política. Sob essa lógica, o decisivo era o governo aparentar preocupação com o tema.

Agora, uma vez mais surgem vozes pedindo a criação de um Ministério da Segurança Pública, como se a pasta pudesse representar, por si só, melhoria efetiva para a população. A segurança pública demanda políticas públicas responsáveis, implementadas e acompanhadas de forma coordenada com Estados e municípios ao longo do tempo. Basta de jogadas de marketing que invariavelmente insistem em ações espetaculosas e nem sequer tocam nas causas dos problemas.

Mais do que simples punição, segurança pública é prevenção, o que se relaciona diretamente com o cumprimento da lei e com o respeito ao Estado Democrático de Direito. O funcionamento das polícias, por exemplo, nunca é meramente operacional. Ele tem sempre forte dimensão institucional. Por isso, é muito recomendável que a segurança pública esteja sob a alçada do Ministério da Justiça.

As gravíssimas situações de crise atuais na segurança pública devem servir de alerta. Chega de populismo. É tempo de mudar a forma como o poder público enfrenta e previne a criminalidade. O tema demanda planejamento e responsabilidade.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de . Paulo, em 04.10.23

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Lula faz mandato intuitivo e cheio de vontades e não conseguiu pacificar o País

Lula vai para uma pausa forçada por razões de saúde, e desejamos que se recupere logo e bem da operação de artrose no quadril. Como vem fazendo cada vez mais, Janja zelosamente guardará o espaço à volta do presidente. Esse espaço não é meramente físico, e tem incluído também a quem o presidente ouve.

Janja cada vez mais tem guardado espaço no entorno do presidente e controlado quem pode falar com Lula Foto: Ricardo Stuckert/PR/Divulgação

Lula deixou para depois da intervenção cirúrgica algumas definições importantes e de grande alcance político, como a nomeação de ministro para o STF, um novo chefe do Ministério Público, os termos finais de um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia, os parâmetros da transição energética (exploração de petróleo na Amazonia), entre outros.

A demora em tomar decisões abrangentes tem sido uma característica importante de seu terceiro mandato. Uma delas encareceu substancialmente o “preço” político de governar. Trata-se do longuíssimo acerto com o centrão para distribuição dos pedaços da máquina pública e do orçamento, no qual Lula provavelmente jamais conseguirá saciar o apetite dessas forças políticas.

Outra característica relevante do atual mandato é a figura de um Lula mais “intuitivo” e cheio de “vontades”. A de gastar e expandir as despesas públicas, por exemplo, foi transformada em eixo central da política econômica. Assim como desfazer matérias importantes acertadas no Congresso – não importa recente advertência dura e explícita do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para os perigos dessa “vontade”.

A “credibilidade” e a “estabilidade” que Lula promete aos agentes econômicos têm sido recebidas por eles com a expectativa de juros futuros mais altos, e com a resignada certeza de que terão mais, e não menos, impostos pela frente. Além da teimosa postura de confrontar o governo com a questão fiscal, acentuada pela dúvida se as autoridades estariam outra vez seduzidas pela criatividade contábil no trato das contas.

A “vontade” de Lula em relação ao exterior está sendo realizada. Na ausência de uma definição de objetivos estratégicos (um problema brasileiro de longo prazo), a política externa acaba se transformando, nas palavras do professor José Guillon de Albuquerque, em “exercícios opinativos de livre escolha” por parte do presidente. Portanto, a ação externa é a agenda pessoal do chefe do Executivo.

No geral, se era mesmo uma “vontade” de Lula pacificar o País, até aqui ela não se cumpriu. Ao contrário: a divisão que saiu das urnas aprofundou-se, e não diminuiu. Tornou-se mais calcificada, geograficamente mais delimitada, socialmente mais perigosa (com contornos de raça, classe e religião) e politicamente mais intratável.

Talvez seja a vontade de Lula ver nessa divisão uma vantagem política nas próximas eleições

William Waack, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 28.09.23