quinta-feira, 28 de setembro de 2023

A pindaíba dos municípios

Pressionadas por gastos obrigatórios com saúde e educação, prefeituras clamam por mais repasses federais. Mas engordam suas folhas de pagamento em período pré-eleitoral

Prefeitos de mais de 4.000 cidades preparam uma marcha a Brasília em outubro para pressionar o governo Lula da Silva por maiores repasses federais. A choradeira nada tem de novidade, mas tem relevância. Expõe paradoxos ainda não superados ao longo dos 35 anos de vigência da Constituição Cidadã. A correta transferência de atribuições sociais aos municípios pela Carta de 1988 jamais encontrou respaldo em uma equação federalista que garantisse às prefeituras as receitas necessárias para a execução dessas e outras políticas essenciais aos cidadãos. Quem sofre com essa omissão é o munícipe.

Reportagem do Estadão, integrante da série Desigualdade – O Brasil tem jeito, expôs a dificuldade enfrentada pela maioria dos municípios para quitar sua própria folha de pagamento – não raro, sobrecarregada e vitaminada em períodos eleitorais. De janeiro a junho deste ano, o gasto com os 7 milhões de servidores públicos das 5.568 cidades do País totalizou R$ 208,5 bilhões. Os repasses federais, resultantes da partilha do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), cobriram 74,8% dessa conta.

Não há dúvida de que uma elevação casual dos repasses da União aos municípios apenas enxugaria gelo. Cobriria o déficit na folha de pagamento, que somente no primeiro trimestre deste ano cresceu mais de 16%, sem grandes chances de suprir a carência de investimentos urbanos nem de melhoria no atendimento básico de saúde e educação. Obviamente, em razão de interesses eleitorais, não se vislumbram cortes de servidores municipais.

A questão de fundo certamente está na equação dos repasses federais e do acesso à parcela devida do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) estadual, sobretudo pelo fato de que as obrigações constitucionais de prover os serviços de saúde e educação recaíram sobre os municípios desde 1988. Dados do Observatório de Informações Municipais (OIM) mostram que, de 1972 a 2022, os dispêndios orçamentários das prefeituras com saúde saltaram de 5,67% para 25,49%. No caso da educação, passaram de 14,82% para 26,76%. Os inevitáveis cortes recaíram, sobretudo, nos serviços urbanos, com queda de 27,41% para 9,89%.

A compressão do Orçamento pelos gastos com saúde e educação, entretanto, não é o único vetor da pindaíba das prefeituras desfalcadas de recursos até mesmo para essas áreas, além dos cruciais investimentos em saneamento básico e na infraestrutura urbana e rural. Igualmente grave é a incapacidade de os municípios construírem, ao longo desses 35 anos, estruturas arrecadadoras eficientes dos tributos que lhes competem. Nos mais pobres, é preciso considerar que a cobrança de IPTU é inviável; a do ISS, nula; e a do ITBI, surreal. Fato é que a maioria dos municípios que abrigavam mais de 50 mil habitantes de 2015 a 2019 não conseguiu coletar mais do que 10% do seu orçamento, segundo o OIM.

A situação de Araguainha (MT), pinçada com destaque pela reportagem, ilustra esse quadro. A prefeitura da cidade, onde vivem 1.010 brasileiros, emprega todos os trabalhadores formais da localidade, cujos salários consomem 64% dos repasses federais. Em contrapartida, cerca de 94,5% da população não tem acesso a esgoto tratado, a única escola está em ruínas, não há creche e falta asfalto nas ruas. É admirável haver candidatos à sua prefeitura.

Em parte, a reforma tributária poderá contribuir para elevar a receita da maioria dos municípios, ao garantir a arrecadação do novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) no destino do consumo, conforme estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Mas há que considerar seriamente a revisão das leis que regulamentaram a acertada decisão do constituinte de 1988 de garantir maior protagonismo aos municípios no federalismo brasileiro. A Carta, tal qual promulgada, é irretocável nesse quesito. Mas, a bem do cidadão, falta ser aplicada.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.09.23

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Bolsonaro e os generais calados

O golpe do capitão foi abafado pelo silêncio

Bolsonaristas invadem Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro — Foto: TON MOLINA / AFP

Bolsonaro, com meia dúzia de generais palacianos e algumas dúzias de oficiais da reserva, sonhou com um golpe. Tinha ingredientes de outros golpes, mas faltou-lhe o apoio de um tipo de general inescrutável, por calado.

É natural que se dê atenção aos generais que falam. Noves fora o fato de eles quase sempre estarem de pijama, ou no comando de mesas, é impossível ouvir quem não fala.

CPI dos Atos Golpistas: Heleno diz não ter 'condições' de falar sobre atos golpistas e chama de 'fantasia' delação de Cid

Como o golpe de 1964, o de Bolsonaro mobilizou alguns milhares de pessoas, mas faltou musculatura a essas manifestações. Quando ela aconteceu, no 8 de Janeiro, descambou para o vandalismo.

Como o de 1968, o golpe foi tramado no Planalto, com a simpatia do ministro da Justiça. A quartelada de Bolsonaro, desde o início, desafiava uma legítima manifestação eleitoral. Esse golpismo teve ajuda de oficiais que sopravam as brasas da contestação das urnas eletrônicas.

O golpe tinha os ingredientes, mas faltava-lhe um eixo. Faltou-lhe sobretudo a unidade rebelada. Em 1964, bem ou mal, o general Mourão Filho comandava uma Região Militar. Mourão desafiou um governo que havia estimulado a indisciplina militar. Bolsonaro desafiava um resultado eleitoral.

Golpes vitoriosos ganham adesões. Golpes fracassados caem no ridículo.

Em 1984, quando a candidatura de Tancredo Neves atropelou o governo do general João Batista Figueiredo e a candidatura de Paulo Maluf no Colégio Eleitoral, havia bolsões golpistas. Foram travados no Alto-Comando do Exército. Quem se lembra dos generais Ademar Costa Machado e Jorge de Sá Pinho? Calados, ajudaram a neutralizar os golpistas e, calados, passaram para a reserva.

Uma vinheta daquele tempo: no segundo semestre de 1984, com Tancredo virtualmente eleito, no Centro de Informações do Exército concebeu-se uma operação de propaganda mentirosa. Imprimiram-se cartazes com fundo vermelho, uma imagem de Tancredo, uma foice e martelo e a legenda “Chegaremos Lá”. Mobilizaram-se soldados do Comando Militar do Planalto (CMP), comandado pelo general Newton Cruz, um ícone da época.

Os soldados colavam os cartazes, chegou a polícia e os levou para uma delegacia. Apareceu um coronel do CMP e, com uma carteirada, soltou-os. O caso explodiu na imprensa, denunciando a bruxaria.

Com a palavra, o general Newton Cruz:

— Na reunião do Alto-Comando, pouco depois, o general comandante do Rio interpelou o ministro Walter Pires sobre o caso dos bruxos, dizendo que a imprensa estava insistindo muito no assunto. Então o Pires disse: “Gente do meu gabinete, não foi”. Eu estava na reunião e senti um frio na espinha. O chefe do CIE estava atrás dele. Se não tinham sido eles, então tinha sido eu.

Sobrou para Newton Cruz. Na reunião seguinte do Alto-Comando, ele foi preterido na promoção a general de Exército e passou para a reserva.

Bolsonaro foi eleito e governou esticando a corda das relações da sociedade com as Forças Armadas. Desperdiçou 30 anos de trabalho de chefes militares que recompuseram a relação das Forças. Antes dele, o Exército foi comandado pelos generais Enzo Peri e Gleuber Vieira. Nunca disseram uma palavra. Gleuber, por exemplo, viu de tudo e falou nada.

Durante toda a segunda metade do século passado, só João Goulart e Bolsonaro esticaram essa corda. Um foi deposto, o outro viu seu golpe virar baderna. Coisa dos generais calados.

Elio Gaspari, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Publicado originalmente n'O Globo, em 27.09.23

Jornalista e escritor

A ministra Anielle, sua assessora e a ‘mordomie’ no voo da FAB

Dupla exibiu postura de quem teria resolvido ‘curtir a vida’ com dinheiro público; MPF e TCU poderiam ensinar-lhes que a probidade administrativa é um dever de ‘todes’

Tricolor Afro do São Paulo; assessora de Anielle escreveu em rede social que time tinha 'Torcida branca que não canta' Foto: Reprodução

Aos 86 anos e com sua saúde debilitada, o papa Francisco deixou o Vaticano no domingo e se dirigiu ao Palazzo Madama, sede do Senado italiano, em Roma. Ali se postou em silêncio e rezou diante do caixão de um ateu e ex-comunista, que expressara a vontade de ter um enterro laico. Era Giorgio Napolitano, o único político a ser eleito duas vezes presidente da Itália.

Francisco é o papa da encíclica Fratelli Tutti (Todos irmãos). Ele afirmou: “Às vezes aqueles que dizem não crer podem viver a vontade de Deus melhor do que os crentes”. A gravidade do momento parecia reconciliar as duas grandes forças políticas que conduziram a Itália no pós-guerra: a Democracia Cristã e o Partido Comunista. Não é preciso saber que nem a racionalidade, nem a sociedade ou as normas e valores podem ter uma existência fora da linguagem para se compreender o alcance do gesto. A importância da autoridade também está no exemplo.

A República se alimenta deles e das leis. Seus funcionários deveriam desconhecer a vulgaridade e o deboche, facilmente identificáveis por aqueles que comparecem às urnas de dois em dois anos. Quando nem a ameaça de demissão serve de constrangimento para controlar a conduta do agente público, é porque a degradação se tornou normal. Para saber disso, não é necessário conhecer As Regras do Método Sociológico.

O mesmo vale para o comportamento de Marcelle Decothé, a chefe da assessoria especial da ministra Anielle Franco (Igualdade Racial). Torcedora do Flamengo, pegou uma carona em um avião da FAB para ir a um evento do ministério no Morumbi, no dia em que seu time e o São Paulo disputavam a Copa do Brasil. Ali publicou em uma rede social a seguinte mensagem: “Torcida branca que não canta, descendente de europeu safade.” Seria só uma pilhéria tola de uma flamenguista? E, portanto, perda de tempo lembrar que, do outro lado, havia a Tricolor Afro ou o Comando Feminino, agremiações presentes na curva sul do Morumbi? Seria um mero bate-boca de torcidas? Não. Não é só disso que se trata.

O problema da assessora que recebe R$ 15 mil dos cofres públicos por mês é o exemplo. As imagens dela e da ministra no conforto do avião e, depois, a caminho do estádio em um carro da PF em meio a postagens com provocações pueris exibem uma postura de quem teria resolvido “curtir a vida” com dinheiro público. O dicionário de linguagem não binária da dupla acaba de ganhar um novo vocábulo: mordomie. O MPF e o TCU poderiam ensinar-lhes que a probidade administrativa é um dever de todes.

Em tempo: só agora se soube que Napolitano não torcia pelo Napoli, mas para a Lazio.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 27.09.23.

A elite que envergonha o País

Para assumirmos as rédeas do Brasil e escantear a elite decadente e os populistas, precisamos nos unir em torno de uma agenda de país


O comportamento da elite intelectual e cultural é patético. Sua afinidade ideológica com a esquerda e sua subserviência às verbas públicas para financiar suas atividades profissionais destroem o pensamento crítico.

A verdadeira elite não tem nada que ver com poder, dinheiro ou privilégios. Como bem definiu Ortega y Gasset, elite “é sinônimo de vida dedicada, sempre disposta a superar a si mesma, a transcender do que já é para o que se propõe como dever e exigência”. A verdadeira elite se define pela “exigência e pelas obrigações – não pelos direitos”. Se usarmos a definição de Ortega y Gasset, concluiremos que a elite brasileira envergonha o País.

O comportamento da elite econômica é motivo de opróbrio. Dependente de subsídios, favores do governo e reserva de mercado, o centrão empresarial sempre corteja o governo do dia – não importa se o presidente é um populista de esquerda ou de direita. Se atuasse como verdadeira elite, não estaria dilapidando a reforma tributária com a defesa de seus interesses mesquinhos porque sempre acha que o seu setor é “estratégico” e merece tratamento especial. Assim, dinamita a reforma e corremos o risco de perpetuar a existência do manicômio tributário, cujo contencioso representa mais de 70% do PIB, ante 0,28% dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Deve-se muito a essas atitudes da elite a perda de competitividade e de produtividade que vem condenando o País ao baixo crescimento econômico nos últimos 40 anos.

O comportamento da elite política é igualmente vergonhoso. Enquanto os principais países emergentes abriram a economia, investiram na educação pública de qualidade e aumentaram a eficiência do Estado, o Brasil seguiu o caminho inverso. Manteve o País entre as economias mais fechadas do mundo, figura nos exames de avaliação internacional entre os piores sistemas educacionais do planeta e, graças à captura do Estado pelos interesses corporativistas, continua prestando serviço público de péssima qualidade e liderando os indicadores de insegurança jurídica. Triste retrato de um país onde as reformas institucionais são lentas, tímidas e insuficientes para colocar o Brasil no caminho do crescimento econômico sustentável, da democracia plena e de um país com regras previsíveis e confiáveis.

O comportamento da elite intelectual e cultural é patético. Sua afinidade ideológica com a esquerda e sua subserviência às verbas públicas para financiar suas atividades profissionais destroem o pensamento crítico. Sua condescendência com um presidente da República que afaga ditaduras na política externa, sabota os avanços institucionais – como o Marco do Saneamento, a reforma do ensino médio e a reforma trabalhista – e diz que o seu objetivo na Presidência é vingar-se do senador Sergio Moro é abominável. Seu silêncio sepulcral em relação à rápida erosão do Estado de Direito é vergonhoso.

O Brasil vive um clima de censura comparável apenas ao dos governos autoritários. Voltamos a conviver com violações de liberdades de pensamento e de expressão, ameaça de cassação de órgãos de imprensa, ingerência do Poder Judiciário na esfera do Legislativo e revisionismo histórico. A diferença é que, desta vez, tal arbitrariedade é exercida pelo Supremo Tribunal Federal, justamente o Poder que deveria zelar pelo Estado Democrático de Direito e pela Constituição. A decisão patética do ministro Dias Toffoli tratando os escândalos de corrupção desvendados pela Lava Jato como obras de ficção de procuradores, juízes e investigadores mal-intencionados é um acinte numa nação onde a institucionalização da corrupção vem corroendo a credibilidade das instituições e a confiança nas leis e na democracia.

Qual é a solução para assumirmos as rédeas do País e escantear a elite decadente e os populistas? Precisamos nos unir em torno de uma agenda de país. Essa agenda tem de contemplar a abertura econômica, a liderança do Brasil na economia de baixo carbono, a educação pública de qualidade e a defesa do Estado democrático que serve ao cidadão – e não aos interesses das corporações. Para cada um desses objetivos, temos de estabelecer metas concretas para atingirmos até 2030.

Na abertura econômica, precisamos dar um salto da vergonhosa 127.ª posição no Índice de Liberdade Econômica para a 30.ª posição (Heritage Foundation). No meio ambiente, o Brasil tem de ser a primeira nação do mundo entre as dez maiores economias a se tornar carbono neutro. Na educação, precisamos figurar entre os 20 melhores países no exame do Pisa. No quesito do Estado eficiente, são três objetivos: combater a corrupção e estar entre os 40 países menos corruptos do mundo (Corruption Perceptions Index), acabar com a extrema pobreza e combater a epidemia do crime, colocando o Brasil entre os dez países menos violentos do G20.

A Agenda Brasil 2030 tem como objetivo unir a sociedade civil em torno do resgate do Estado de Direito, da democracia, do crescimento econômico sustentável e da igualdade de oportunidade. Como disse John Kennedy, presidente dos Estados Unidos, “não pergunte o que o seu país pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer para o seu país”. A construção do Brasil que queremos vai depender das nossas escolhas, ações e atitudes.

Luiz Felipe D'Avila, o autor deste artigo, é Cientista político, autor do livro ‘10 Mandamentos – Do Brasil que Somos para o País de Queremos’, foi candidato à Presidência da República. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 27.09.23

Um deboche míope

A maioria dos brasileiros que estão hoje nos presídios não dispôs de uma defesa adequada. Isso é o que deve nos escandalizar

Não é possível que continuemos prendendo pessoas submetidas a defesas desqualificadas. Isso não é um reality show. Isso não é uma sessão de stand-up. São pessoas. São vidas. E está em jogo a efetividade de nossa democracia.

Surpreendeu-me a reação de deboche de parte do campo progressista com o equívoco de um advogado durante o segundo julgamento do 8 de Janeiro, confundindo O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, com O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry.

A esta altura, é mais do que evidente que os processos do 8 de Janeiro não têm nada de excepcionais quanto ao comportamento da Justiça. Ainda que possuam características próprias, eles são reflexo fidedigno do modo como o sistema penal funciona habitualmente. Inquéritos com investigação insuficiente, prisões preventivas mal fundamentadas, denúncias genéricas, defesas tecnicamente deficientes e sentenças desproporcionalmente pesadas não são exceções no dia a dia da Justiça.

É uma realidade conhecida há séculos – denunciada por nomes como Cesare Beccaria (1738-1794), Georg Rusche (1900-1950) e Otto Kirchheimer (1905-1965) –, mas fingimos não vê-la. Além de violar direitos, o sistema penal não cumpre suas funções declaradas. Ele é radicalmente perverso com o réu. Mesmo quando o caso – eis a triste constatação – é julgado pela mais alta Corte do País.

A batalha pelo efetivo direito de defesa não é, portanto, tema acessório. Mais do que ao deboche, o erro do advogado deve nos levar a refletir sobre a qualidade da defesa exercida habitualmente nos processos penais no Brasil.

É de justiça reconhecer o excelente trabalho da Defensoria Pública, que atua com abnegação, competência técnica e grande sentido prático, em condições muitas vezes adversas. Em suas várias esferas, a Defensoria Pública é motivo de orgulho. Sua tarefa, verdadeiramente hercúlea, é concretização cotidiana do Estado Democrático de Direito.

Mas isso não impede de constatar os muitos casos, muitíssimos casos, assistidos por advogados despreparados, em que não há uma defesa tecnicamente adequada. Se os julgamentos fossem transmitidos pela televisão, eles também seriam ocasião de deboche e ridicularização. Mas nada disso é motivo de deboche ou ridicularização. Há, diante dos nossos olhos, um abismo de cidadania. É preciso reconhecer a absoluta insuficiência da defesa de muitos réus. Não se pode fugir dos fatos: a grande maioria dos brasileiros que estão hoje nos presídios não dispôs de uma defesa adequada.

O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, mas grande parte dessas pessoas teve uma defesa frágil e deficiente, tal como a dos primeiros julgamentos do 8 de Janeiro. Isso é o que deve nos escandalizar. Não ignoremos os direitos das pessoas. Não tratemos os adversários políticos – quem está em campo ideológico diferente do nosso – como cidadãos de segunda categoria, detentores de menos direitos.

Somos míopes se vemos na falha do advogado uma questão a ser ridicularizada. Estamos em 2023 e ainda não aprendemos nada com o histórico do sistema penal. Continuamos achando que ele é capaz de resolver os problemas nacionais. O fetiche da prisão continua reinando absoluto, em todas as cores ideológicas.

Precisamos de um novo marco de cidadania, de um novo patamar de respeito aos direitos, de um novo compromisso com o direito de defesa. Gostemos ou não dos réus. Partilhemos ou não de suas ideias políticas.

Não é possível que continuemos prendendo pessoas submetidas a defesas desqualificadas. Isso não é um reality show. Isso não é uma sessão de stand-up. São pessoas. São vidas. E está em jogo a efetividade de nossa democracia.

Por que prendemos tanto e continuamos com índices altíssimos de criminalidade? Por que condenamos massivamente por tráfico de drogas – sem investigação, só em função do porte e da raça –, e os problemas não diminuem? Continuaremos rindo das pessoas sem acesso a advogados minimamente qualificados? É essa a nossa resposta aos ataques antidemocráticos? Debochando da defesa tecnicamente mal feita?

É tempo de um novo olhar, de uma nova sensibilidade, de uma nova compreensão. Ou seguiremos enredados nas mesmas disputas absurdas, nos mesmos círculos viciosos, no mesmo sistema que tortura e mata – mas de que reclamamos só quando atinge nossos amigos. A Operação Escudo, a mais letal depois do massacre do Carandiru, segue sendo aplaudida e justificada.

Repetida pelos ministros do Supremo nos julgamentos do 8 de Janeiro, a retórica a respeito da gravidade dos crimes julgados é exatamente a mesma que se ouve todos os dias nos tribunais do País, para limitar o alcance da presunção de inocência. Para ridicularizar o réu. Para constranger as testemunhas de defesa. Para tornar menos escandalosa – menos visível – a aplicação de penas disfuncionais e desproporcionais.

Em vez de despertar nossa arrogância – sobre isso, confira o artigo Arrogantes príncipes principiantes, de Eugênio Bucci (Estadão, 21/9/2023) –, o erro do advogado deve ser ocasião de repensar a qualidade e o currículo dos cursos jurídicos. Há muito a ser feito.

O 8 de Janeiro foi um evento único. Mas é também matéria corrente da vida nacional. Como nos lembrou o deboche com o advogado, o respeito ao regime democrático – e aos direitos a ele inerentes – é ainda uma grande utopia.

Nicolau Da Rocha Cavalcanti, o autor deste artigo, é Advogado e Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 27.09.23

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Além de super-ricos, governo precisa taxar empresas de médicos e advogados, defende Arminio Fraga

Enquanto parte da elite brasileira recebeu mal a intenção do governo de ampliar impostos sobre os super ricos, o economista Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, considera que as medidas propostas até o momento não são "nenhum absurdo" e não vão provocar uma fuga de capitais do país.

Armínio Fraga (Crédito: Edilson Rodrigues, Ag. Senado)

Em entrevista à BBC News Brasil, Fraga diz que é uma "vergonha" que ricos paguem menos impostos que pobres no Brasil – algo que reflete uma estrutura tributária muito pesada sobre o consumo e leve sobre rendas elevadas.

O governo enviou em agosto ao Congresso propostas para taxar fundos exclusivos e investimentos fora do país – medidas que afetarão, em especial, milionários.

Fundador da Gávea Investimentos, gestora que administra bilhões de reais, ele diz que as mudanças são corretas, já que esses fundos e recursos no exterior hoje são menos taxados que outros tipos de aplicação.

"Apenas o que está se fazendo é corrigir as alíquotas hiper baixas, que é bem diferente da introdução de alíquotas mais altas, sobretudo se está em consideração uma comparação internacional", afirmou.

Para Fraga, porém, há outras medidas necessárias para corrigir a desigualdade do sistema tributário, como a revisão de regimes especiais que permitem que empresas com faturamento elevado paguem poucos impostos, recurso usado por profissionais liberais de alta renda para serem menos taxados.

Aumentar os impostos sobre esse grupo não aparece ainda na agenda do governo e enfrenta resistência no Congresso.

Em 2021, a Câmara aprovou a volta da taxação de dividendos distribuídos por empresas a seus acionistas, mas isentou empresas do Simples Nacional e do lucro presumido com faturamento anual de até R$ 4,8 milhões. Depois, a proposta empacou no Senado.

"Esse aspecto (dos regimes especiais de tributação) afeta sobretudo aos profissionais liberais que têm sabido se representar bem nessa questão. Estamos falando de advogados, médicos, todos sempre muito influentes", critica.

"Acredito que em algum momento vai haver um fator, eu diria, ético, que vai constranger esse ímpeto lobista e esse assunto vai ser retificado. Seria natural que fosse num governo do PT", defende ainda.

Na entrevista, falou também sobre seus investimentos em reflorestamento com a empresa re.green. O setor aguarda o Congresso aprovar a regulamentação do mercado de crédito de carbono – para Fraga, é essencial que isso ocorra sem protecionismos.

"O que é fundamental é que esse mercado se comunique com o mercado internacional, porque hoje empresa aqui no Brasil vende seus créditos a uns US$ 20 a tonelada, e, na Europa, eles pagam US$ 100. Se não, vamos estar subsidiando empresas para poluir", ressalta.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Pesquisas do Datafolha mostram que o otimismo da população com a economia vem caindo ao longo do ano, enquanto pesquisa recente da Quaest revela queda da aprovação ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, entre agentes do mercado financeiro. Como está a sua avaliação?

Arminio Fraga - É muito difícil avaliar pequenos ciclos. Houve uma grande mudança a partir das eleições, o Brasil estava seguindo um caminho complicado em algumas áreas, sobretudo no contexto internacional, meio ambiente, a qualidade da nossa democracia, essas áreas estavam na berlinda e o Brasil sofreu. Eu penso que a partir das eleições houve uma certa distensão, as coisas se acalmaram, a despeito do 8 de janeiro, e começaram a andar.

No lado da economia, houve uma piora logo após as eleições, quando o presidente eleito não se comprometeu muito com a estabilidade macroeconômica, sobretudo com a questão fiscal. De lá pra cá, as coisas melhoraram e o arcabouço fiscal demonstra isso até, embora, na minha opinião, ele ainda seja insuficiente.

De fato, a área fiscal é um enorme desafio. De uns tempos pra cá, começou a ficar claro que não seria fácil sequer cumprir com as metas (para melhorar as contas públicas) que foram anunciadas, então isso talvez explique um miniciclo de (piora do) humor.

Além disso, uma excelente notícia foi o avançar da reforma tributária, eu me refiro aqui a reforma da criação do IVA, que será um grande avanço quando aprovado.

De resto, os sinais que emanam do PT são um pouco confusos. O que se vê ainda são posições divergentes dentro do partido, referências complicadas no âmbito da Previdência.

Falou-se das regras trabalhistas sem muita sutileza, (houve tentativa de) mexer no arcabouço jurídico do saneamento, que é uma grande vergonha nacional e precisa de capital privado. O uso das estatais, outra vez, referências a Petrobras, Eletrobras, e por aí vai.

Então, não é uma estratégia de desenvolvimento arrumada. Muitos elementos que sugerem que lições importantes do passado foram esquecidas, tanto boas quanto más.

BBC News Brasil - A pesquisa Quaest mostra uma desconfiança do mercado com a capacidade do governo de cumprir a promessa de zerar o rombo nas contas públicas. Além disso, a piora da avaliação pode ser uma reação à proposta de taxar os mais ricos, ou não seria uma conclusão adequada?

Armínio Fraga - Não muito. Primeiro, a ideia de zerar o déficit não é precisa, porque nós estamos falando de zerar o déficit primário (que não considera receitas e despesas financeiras do governo).

O déficit (nominal) vai continuar a correr solto por um bom tempo, e isso significa que o cenário mais provável é de crescimento da relação dívida/PIB. E, dado o tamanho da nossa dívida, o prêmio de risco que o Brasil comanda, essa ao meu ver é uma estratégia arriscada, ela não tem margem de segurança.

Quanto à tributação dos mais ricos, eu escrevi a respeito, na coluna publicada recentemente na Folha (de S.Paulo), justamente pra dizer que o que está se propondo não é passar para um regime fiscal ultra-progressivo — e talvez sim, nesse caso, assustasse a investidores, sobretudo tendo em vista os riscos, em geral, que o Brasil ainda apresenta —, mas sim eliminar o que eu considero como sendo subsídios (tributários).

Eu me referi a duas frentes (no artigo). A primeira tem a ver com a taxação da renda do capital e a segunda com a taxação da renda do trabalho.

No caso da renda do capital, existem mecanismos no Brasil que permitem um diferimento em aberto dos ganhos (adiamento sem limite do imposto) e, além disso, uma alíquota de imposto marginal baixa, bem menor que a alíquota do Imposto de Renda, que tem alíquota máxima de 27,5%.

Dentro do capítulo ainda do capital, também chamou atenção o tratamento de investimentos no exterior, e a proposta do governo iguala (a tributação de) rendimentos tanto dentro do Brasil quanto fora. Não me parece nenhum exagero, nenhum absurdo.

No que diz respeito à renda do trabalho, a coisa é também complicada e merece ser revista. Eu refiro-me aos regimes especiais do Imposto de Renda que permitem com que as pessoas façam as suas empresas pessoais e paguem um imposto de renda muito baixo também, o que não faz o menor sentido.

Então, essas regras também precisam ser revistas e, em ambos os casos (na tributação da renda de investimentos e do trabalho), o Brasil não é um país de alíquotas marginais altas.

Apenas o que está se fazendo é corrigir as alíquotas hiper baixas, que é bem diferente da introdução de alíquotas mais altas, sobretudo se está em consideração uma comparação internacional.

BBC News Brasil - No caso da renda do trabalho, o senhor se refere a regimes especiais como o Simples Nacional e do lucro presumido. Se por um lado vemos o governo buscando taxar os super-ricos, esse outro tema não parece ainda estar na agenda.

Armínio Fraga - Não está.

BBC News Brasil – Parece haver uma resistência a mexer nesses regimes especiais, tanto no governo, como no Congresso. Por que isso acontece?

Armínio Fraga - Esse aspecto afeta sobretudo aos profissionais liberais que têm sabido se representar bem nessa questão. Estamos falando de advogados, médicos, todos sempre muito influentes. Mas, enfim, eu acredito que em algum momento vai haver um fator, eu diria, ético, que vai constranger esse ímpeto lobista e esse assunto vai ser retificado.

É muito absurdo isso, em algum momento vai ter que acabar. Seria natural que fosse num governo do PT. No passado o PT, por alguma razão que eu desconheço, hesitou em apresentar essa proposta com peso. Me dizem que, por achar que ia ser difícil aprovar, resolveram não fazer.

Mas acho que teriam que ter feito. Hoje seria mais fácil se essa briga tivesse sido comprada lá atrás, mesmo que pra perder, para as pessoas começarem a pensar um pouco mais sobre o assunto e pra isso ficar mais arejado pro grande público.

BBC News Brasil – Críticos à proposta de taxar os mais ricos dizem que haverá fuga de capitais. Por que não vê esse risco?

Armínio Fraga - É claro que algum impacto pode ter, mas acredito que isso não seria um grande problema. O que define quais são esses prêmios que se paga pra reter a poupança aqui tem mais a ver com outros grandes temas da nação.

Grandes incertezas macroeconômicas, às vezes políticas, incertezas quanto às regras do jogo. Então, essa situação (fatores que afetam decisões de investimentos) tem que fazer parte de um Brasil mais próspero, mais previsível, mais justo.

Se essas coisas caminharem juntas, eu não vejo razão alguma para temer fuga de capital. Mas, mesmo que não mude nada (nos outros fatores que afetam os investimentos), sair de um baita subsídio para um imposto razoável, até razoável pra baixo, para padrões internacionais, não deveria também levar a uma fuga.

BBC News Brasil – Há um senso comum no Brasil de que os impostos são muito altos. Na verdade, os impostos são baixos para alguns segmentos?

Armínio Fraga - Eu diria que os 1% mais ricos pagam menos do que os 20% mais pobres. Por quê? Porque os pobres praticamente não poupam e o consumo, a despeito (da desoneração) de cestas básicas e tudo o mais, o consumo é taxado. E, aí quando se faz a conta, a carga tributária tem essa situação invertida aqui no Brasil, que é outra vergonha, vamos usar a palavra certa.

BBC News Brasil – Onde mais o governo poderia mexer para tornar a carga tributária mais equilibrada?

Armínio Fraga - Eu acho que essas são as principais: fazer uma faxina nos subsídios e descontos indevidos. Isso traria uma carga maior no imposto de renda e menor no imposto sobre consumo. Muito poderia ser feito também do lado do gasto. Em geral, quando o gasto é bem alocado, tende a ser mais eficaz, ele cria menos distorções na economia.

Isso parece papo de economista, mas não é. É importante. É uma área que não é muito bem entendida, mas dá pra traduzir para um português mais direto: um sistema de saúde que se pretende universal, gratuito, não pode funcionar com menos que 4% do PIB, não dá.

Se você olhar pra onde vai o gasto, o Brasil precisa passar por um enorme redirecionamento. Os subsídios, que nós discutimos, são uma parte grande, são aí uns 4% do PIB, pelo menos a metade deveria desaparecer. Depois, quando se somam dois grandes blocos que são a Previdência e a folha de pagamentos, sobretudo dos governos estaduais e municipais, no Brasil isso chega a quase 80% do gasto. Isso é um número totalmente fora da curva global, é um ponto que chama atenção.

Então, nesses dois blocos, num período, vamos supor, de dez anos, deveria ser possível passar isso de 80%, pra 70%, talvez 60%, que é onde a maioria dos países está. E isso traria espaço para se redirecionar os gastos de uma maneira socialmente mais justa.

BBC News Brasil – O senhor falou sobre o gasto alto com Previdência e pessoal, citando sobretudo Estados e municípios. No entanto, sabemos que os maiores salários estão no funcionalismo federal e no Judiciário, enquanto muitas categorias estaduais e municipais têm salário baixos. Como cortar esse gasto?

Armínio Fraga – É um ponto muito importante. Eu penso que essa reforma do RH do Estado tem que lidar com questões federativas bem complicadas, mas também com cada um dos três Poderes. Em geral, a gente pensa só nos executivos federal, estaduais e municipais, mas é preciso também, claro, olhar o Judiciário e o Legislativo nos três níveis.

E existe muito absurdo. Tudo isso precisa passar por um pente fino afiado nos próximos anos. O objetivo maior não é demitir gente, acho que as regras são claras. A Constituição permite se, quando for regulamentado, que alguns absurdos sejam coibidos. Inclusive, em algumas áreas importantes do governo, eu acho que as lideranças são muito mal pagas, isso dificulta a retenção dessas pessoas, e isso é um problema. A estrutura é muito horizontal.

Então, tem muito a se fazer nessa área e isso permitiria um redirecionamento do gasto também olhando algo que é bom tanto pro ponto de vista de justiça social, quanto do crescimento.

À medida que se trabalhe na igualdade de oportunidades aqui com boa saúde, boa educação e boa infraestrutura, frequentemente públicas, nós vamos ter, no fundo, dois coelhos com uma só cajadada, porque isso é pró-igualdade e pró-crescimento.

BBC News Brasil – Qual sua opinião sobre a volta da taxação de dividendos? O senhor foi contra no passado e mudou de opinião?

Armínio Fraga - Assim, primeiro é importante notar que o capital do Brasil é taxado, porque as empresas pagam, se não puderem apelar pros regimes especiais, pagam na margem 34%, que é um número, eu diria, bastante relevante. Esse modelo, por si só, me parecia razoável, desde que a taxação da renda do capital não fosse tão cheia de furos. Então, pra mim, era um bom sistema (taxar apenas as empresas, e não os dividendos). É simples.

Se nós olharmos pra um contexto global, aí o que se tem é uma tendência à redução do imposto corporativo (o que incide sobre o ganho das empresas) por razões de concorrência, uma corrida pra baixo das alíquotas, os países ficam oferecendo vantagens, e aí isso exigiria sim que a tributação dos dividendos (voltasse)...

Assim, em última instância, um desenho que jogue para a declaração do Imposto de Renda Pessoa Física todas essas rendas resolveria bem. Aí seria totalmente possível desenhar algo integrado, e eu creio que isso vá acontecer em algum momento, mas não é certo que ocorra e nem como.

BBC News Brasil – A Câmara chegou a aprovar no governo Bolsonaro a taxação de dividendos isentando as empresas do Simples Nacional e de parte das empresas do regime do lucro presumido. Depois empacou no Senado. Na sua avaliação, não faz sentido taxar dividendo e isentar esse grupo?

Armínio Fraga - A história do Simples nasceu lá atrás de uma característica comum da América Latina que é uma enorme informalidade dos negócios, que é um tremendo redutor de produtividade na economia. Então a ideia foi criar um sistema simples pra trazer essas empresas para a formalidade, mas agora já chegou a hora de dar mais um passo.

E, no meio dessa confusão, surgiram esses regimes especiais com limites muito altos (de faturamento isento), e isso virou uma brecha que agora tem que ser tapada.

BBC News Brasil – Ex-secretários da Receita, como Everardo Maciel e Jorge Rachid, são contra a taxação de dividendos porque haveria muita sonegação. Dizem que foi adotado esse modelo de só taxar as empresas porque seria mais simples de fiscalizar. Faz sentido?

Armínio Fraga - Eu considero ousado discordar dos dois, que são dois super especialistas, mas eu creio que nesse caso eu discordo. Os sistemas hoje são mais arrumados, mais simplificados, é tudo eletrônico, isso vai casar também com o IVA, quando surgir (o imposto único após a reforma tributária). Dá pra fazer.

BBC News Brasil – O Banco Central acaba de cortar novamente os juros e indicou que deve haver novo corte na próxima reunião. Vê espaço para uma Selic menor?

Armínio Fraga - O Banco Central agiu rápido nessa crise recente e ao meu ver ele está calibrando bem as coisas. Incomoda muito, a mim também, a todo mundo no Brasil, que as taxas sejam tão altas, mas aí eu acho que o Banco Central precisa de ajuda fiscal, e institucional também (para reduzir a Selic).

Ter um ambiente um pouco mais calmo, com menos incertezas, aí os prêmios de risco vão encolher e nós vamos ter um juros mais normal. É uma meta louvável (querer reduzir a Selic), mas ela precisa ser construída, ela não pode simplesmente ser decretada por uma pernada do Banco Central.

BBC News Brasil – O senhor é sócio da re.green, empresa fundada em 2021 para atuar com reflorestamento florestal e venda de crédito de carbono. Esse é um investimento movido por uma consciência ambiental, algo mais filantrópico, ou é algo que realmente pode dar retorno financeiro?

Armínio Fraga – De filantrópico, eu fundei dois institutos que estão indo de vento em popa. A re.green não fui eu que fundei, mas eu cheguei cedo e fiz parte da primeira capitalização maior (da empresa).

É uma empresa. A ideia que ela tenha resultados trabalhando como manda o figurino, dentro da lei, da ética, no espírito até, eu diria, dos nossos tempos. Mas ela é uma empresa. E é importante que seja assim, porque ela vai buscar as melhores formas de se restaurar florestas com biodiversidade e isso pode ser útil mesmo em circunstâncias em que isso não possa ser feito com lucro, mas isso traz a força do mercado da inovação.

Para esse espaço, nós temos colegas que são super especialistas, sobretudo na área geral de clima e na área também de restauração. Pessoas da PUC, da Esalq (Escola Superior de Agricultura da USP).

E essa empresa, portanto, além de ter lucro, espera-se a que vá ser uma geradora de externalidades positivas, na medida em que ela consiga inovar. A nossa meta é super ambiciosa, (reflorestar) um milhão de hectares. Ela já está funcionando e já estamos comprando terras. Eu estou adorando fazer parte dessa empresa.

BBC News Brasil – O Congresso está discutindo a regulamentação do mercado de crédito de carbono, e o governo fará em breve a primeira venda internacional de títulos de verdes. É possível pessoas comuns investirem nesse mercado, ou apenas grandes investidores?

Armínio Fraga - Normalmente, em um primeiro momento, é mais difícil ter acesso ao varejo, mas já tem gente preparando produtos e falando em vender crédito de carbono, que não é o que nós (da re.green) fazemos.

Então, acho que vai obedecer uma sequência que é bem conhecida em outros setores. Começa com empresas que não são listadas na bolsa, às vezes são pequenas, são empresas que acadêmicos fundam. E, aí com o tempo elas vão evoluindo e massificando. No início, falta tudo: padrões de certificação, padrões dos contratos, no caso de carbono, mas que não seria a única oportunidade (nesse mercado). Se a nossa empresa der certo, estamos trabalhando para isso, é possível que ela em algum momento abra o capital.

No primeiro momento, tudo é muito complexo, muito arriscado. Fica difícil ver uma ponta de varejo assim muito rápido. O (crédito de) carbono talvez, mas vai ser uma mercadoria como outra qualquer. Vai ser um investimento altamente especulativo.

BBC News Brasil – Não entendi. A re.green não atua na venda de crédito de carbono?

Armínio Fraga - Não, é que mercado de crédito de carbono no Brasil ainda é muito novo, ele ainda é um mercado informal. Então, são negociações bilaterais entre a re.green, que vende créditos para financiar a restauração, e as empresas, que compram para compensar as suas emissões tipicamente.

BBC News Brasil - O Congresso está justamente discutindo uma regulamentação, com apoio do governo. Qual sua avaliação sobre o que está sendo proposto?

Armínio Fraga - Já vem em discussão há algum tempo. Não evoluiu na Câmara de Deputados e está agora no Senado. Os detalhes estão sendo definidos, espero eu, nos próximos meses. O que é fundamental é que esse mercado se comunique com o mercado internacional, porque hoje empresa aqui no Brasil vende seus créditos a uns US$ 20 a tonelada, e, na Europa, eles pagam US$ 100.

Claro que vai ter muita empresa que é compradora aqui dentro e vai querer criar um protecionismo qualquer para elas comprarem mais barato, mas isso não seria bom. Em geral, esses protecionismos custaram muito caro ao longo da nossa história. O Brasil ficou para trás.

BBC News Brasil – Sem a regulamentação, sua empresa não consegue vender a US$ 100 dólares para o exterior?

Armínio Fraga - Não, não é a mesma coisa. Porque no momento, um carbono comprado aqui, por mais séria e bem estruturada que seja a nossa empresa, ou outras, elas não fazendo parte do ambiente regulado europeu isso não conta. Então, tem essa segregação e é do nosso interesse encerrar isso. Se não, nós vamos estar subsidiando empresas aqui dentro. Elas vão ser subsidiadas para poluir.

BBC News Brasil - Outro problema do setor é a regularização fundiária precária no país. Isso tem afetado a re.green?

Armínio Fraga - Sim, é um problema muito sério e limita bastante o escopo das nossas compras (de terras para reflorestar).

BBC News Brasil - O que precisa ser feito? Algum avanço regulatório, mais repressão à grilagem?

Armínio Fraga - É um pouco de tudo. Isso já vinha acontecendo, mas eu diria que nós estamos longe de ter essa questão resolvida. Tem terras do governo, tem invasores para tudo que é lado, tem vizinhanças mais ou menos, assim, simpáticas. É um quadro bem complexo. Aqui dentro, nós conhecemos bem o Brasil, temos uma vantagem (em relação a empresas estrangeiras) de procurar evitar entrar em situações, vamos dizer, não interessante, mas com o tempo a expectativa é de que isso melhore. Não é fácil, mas o Brasil tem uma história de evoluir nessa área.

Mariana Schreiber, de Brasília - DF, originalmente, para a BBC News Brasil, em 25.09.23

domingo, 24 de setembro de 2023

Para o PT, Justiça Eleitoral é amolação

No mundo dos sonhos petistas, os partidos deveriam ser livres para descumprir a legislação e dispor dos bilionários fundos públicos sem essa arrelia de ter de prestar contas ao TSE

A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, questionou a existência da Justiça Eleitoral durante uma sessão da comissão especial que analisa a chamada PEC da Anistia. Caso essa sem-vergonhice prospere, e nada indica o contrário, os partidos ficarão livres do pagamento de multas impostas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por descumprimento da legislação eleitoral vigente em 2022, em particular pela inobservância das cotas para candidaturas de mulheres e negros e do porcentual de distribuição do Fundo Eleitoral para esses dois segmentos da sociedade sub-representados no Congresso.

O grande tema, porém, não é o questionamento da líder petista. Os cidadãos e seus representantes na Câmara são livres para discutir, com civilidade e honestidade intelectual, se, de fato, faz sentido haver no País uma estrutura do Poder Judiciário dedicada às questões de natureza político-eleitoral ou se essa demanda poderia ser atendida pela Justiça comum. É um tema digno de debate. O problema é o que está por trás desse ímpeto da deputada Gleisi Hoffmann em voltar suas baterias contra o TSE e os Tribunais Regionais Eleitorais.

Segundo a dirigente petista, as decisões das Cortes Eleitorais “trazem a visão subjetiva da equipe técnica dos tribunais, que, sistematicamente, entra na vida dos partidos políticos, querendo dar orientação, interpretando a vontade dos dirigentes”. Tivesse saído da boca de um parlamentar bolsonarista há apenas alguns meses, a mesmíssima fala teria desencadeado uma feroz reação dos petistas. Entretanto, o aborrecimento com a Justiça Eleitoral faz com que petistas e bolsonaristas deem as mãos e caminhem lado a lado na defesa dos interesses particulares dos partidos.

Por “entrar na vida” das agremiações políticas ou lhes “dar orientação”, entenda-se simplesmente o dever da Justiça Eleitoral de exigir o cumprimento das leis e da Constituição, nada além disso. As palavras de Gleisi Hoffmann indicam que, no seu mundo dos sonhos, os partidos não deveriam estar submetidos a essa arrelia de, ora vejam, ter de respeitar a legislação em vigor e prestar contas pelo uso dos bilionários fundos públicos que abarrotam o caixa das legendas.

Com um misto de desfaçatez e descaso pelos recursos dos contribuintes, a sra. Hoffmann afirmou que a Justiça Eleitoral estaria sendo implacável com os partidos ao impor multas “impagáveis” – cerca de R$ 23 bilhões acumulados por todos os partidos entre 2018 e 2023. De acordo com o TSE, só em 2022, o PT recebeu R$ 500 milhões do Fundo Eleitoral e mais R$ 104 milhões referentes à sua cota de distribuição do Fundo Partidário.

Na condição de presidente do partido mais orgânico e bem estruturado do País, goste-se ou não do PT, a deputada Gleisi Hoffmann vocaliza um sentimento que decerto anima a grande maioria de seus colegas dirigentes partidários: a Justiça Eleitoral mais atrapalha do que ajuda. Raríssimos são os que não desejam todos os bônus advindos da criação de um partido político no País sem ter de arcar com os respectivos ônus. Eis mais um sinal do total descolamento entre a maioria das legendas com representação no Congresso e os grandes anseios da sociedade brasileira. Salvo raras exceções, os partidos estão cada vez mais afastados dos eleitores e mais fechados na defesa dos interesses particulares de seus líderes.

Idealmente, não deveria haver Justiça Eleitoral no País nem tampouco os fundos públicos que financiam a administração e as campanhas políticas dos partidos. Este jornal não se furtará a advertir, sempre que necessário, que os partidos são organizações privadas da sociedade e, como quaisquer outras dessa natureza, devem ser financiados exclusivamente por recursos privados. Mas, dado que não há no horizonte o mais tênue indício de que os fundos públicos que jorram dinheiro nas contas dos partidos terão fim, é indispensável que ao menos haja uma instituição capaz de controlar o manejo desses recursos – R$ 6 bilhões apenas em 2022. E hoje não há outra mais qualificada para isso do que a Justiça Eleitoral.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 24.09.23

María Corina Machado tem clara vantagem nas pesquisas na Venezuela um mês antes das primárias da oposição

As eleições, que serão realizadas no dia 22 de outubro, são objeto de um duro cerco institucional que incentiva deserções e gera incerteza

María Corina Machado em entrevista ao EL PAÍS via Zoom, em Caracas, no dia 6 de julho. (Crédito da Foto: Gaby Oraa)

Faltando um mês para as eleições primárias da oposição venezuelana – concordaram em escolher uma liderança unificada que possa ser apresentada como alternativa ao chavismo nas eleições presidenciais de 2024 – a direitista María Corina Machado aproveita todas as pesquisas de opinião para liderá- la . com conforto. A política conta com um percentual que oscila em torno de 40% de apoio, com tendência de alta, triplicando o de seu concorrente mais próximo, Henrique Capriles Radonski.

Como os demais candidatos, Machado realiza suas mensagens políticas sem acesso à televisão ou aos meios de comunicação de massa, lidando com atos periódicos de sabotagem. O crescimento da sua candidatura tem sido tão vertiginoso que os seus números sugerem que ele nem sequer teria de se preocupar em finalizar acordos unitários se a Venezuela organizasse consultas eleitorais verificáveis ​​com garantias.

“O crescimento de Machado é muito significativo”, afirma o consultor político Osvaldo Ramírez. “Tem vários motivos. Um contexto onde as pessoas se sentem desligadas da política e do partido do governo. As pessoas interpretam que poderá haver uma renovação da liderança da oposição. A liderança tradicional da Plataforma Unitária está a cobrar o seu preço aqui. Os esforços de María Corina para se diferenciar deles valeram a pena”, acrescenta.

Oito em cada dez venezuelanos, segundo Ramírez, querem mudanças políticas no país. Embora organizado e presente em todo o país, o chavismo é hoje um movimento em retrocesso. A estagnação económica deste ano colocou Nicolás Maduro num momento particularmente crítico de aceitação.

A fundadora do partido Vente Venezuela é recebida com veemência pelas vilas e cidades que visita, embora se saiba que está formalmente desqualificada para participar nas eleições presidenciais, tal como Capriles, graças a uma medida administrativa do Governo Chavista. Sem discutir os motivos ou a validade da inabilitação, Diosdado Cabello afirmou diversas vezes que será impossível a Machado se inscrever como candidato pela medida e afirma que “engana seus seguidores”.

O presidente do Conselho Nacional Eleitoral do país, Elvis Amoroso, autor das inabilitações, decidiu dar uma resposta tardia ao pedido de colaboração técnica feito pela Comissão Eleitoral Primária há dois meses à anterior directiva do Poder Eleitoral. A desqualificação de Machado e Capriles parece ser um critério inamovível no chavismo. Alguns partidos da oposição estão interessados ​​num acordo com a CNE. A resposta de Amoroso sugere que o chavismo está a manobrar com sucesso para dividir mais uma vez os seus adversários.

À medida que a liderança de Machado cresce, o cenário em que deveria ser legitimada, que é a própria organização primária, é objeto de um duro cerco político e institucional. Há muitas pessoas que temem que as eleições não possam ser realizadas. Todas as quartas-feiras, no seu programa de televisão, Diosdado Cabello, dirigente máximo do governista PSUV, intriga sobre as alegadas deficiências do evento e as divergências internas dos seus organizadores, prevendo que estes não serão organizados. Questionou a origem do financiamento das primárias e solicitou a investigação de José María Casal, presidente da Comissão Eleitoral.

Embora os candidatos continuem determinados, os prazos sejam cumpridos e os boletins eleitorais tenham até sido emitidos, o medo espalha-se. Alguns voluntários civis envolvidos no processo demitiram-se, alegando desculpas técnicas. Alguns centros de votação terão destinos complexos e estarão expostos aos ataques do chavismo ou às suas represálias legais. María Carolina Uzcátegui, principal membro da Comissão Eleitoral Primária, não só renunciou, mas agora realiza uma campanha insistente na qual afirma que as exigências logísticas não foram atendidas e que a consulta não é mais viável.

A Plataforma Unitária emitiu um comunicado no qual denuncia “o plano que Nicolás Maduro, através dos seus diferentes porta-vozes, empreendeu contra o direito do povo venezuelano de escolher o seu candidato unitário através de eleições democráticas”. Omar Barboza, de Nuevo Tiempo, secretário executivo da Plataforma, afirmou que existe um “plano perverso” orquestrado desde Miraflores, para enfraquecer vontades e “atrair porta-vozes” que desacreditam a eleição.

É muito óbvio que uma secção da oposição moderada tem uma oposição clara a Machado e estaria interessada em ver como ele a impede. Mais uma vez, proliferam rumores sobre soluções alternativas e fórmulas consensuais para chegar a um acordo sobre um candidato.

“A maioria do país vê as primárias com bons olhos e entende a sua importância, mas isso não significa que todos participarão”, afirma Félix Seijas, diretor do escritório Delphos. “A intenção de voto não é tão alta, e isso é normal, acontece com frequência neste tipo de eventos.” Seijas estima que 8% dos cadernos eleitorais – os mais comprometidos com a causa da mudança democrática – acabarão por participar no evento de 22 de outubro. A empresa de Osvaldo Ramírez calcula entre 12 e 14%.

“As primárias cumpriram a sua função de reconectar os partidos com os cidadãos, isso é fundamental, e María Corina Machado aproveitou muito bem esta circunstância”, afirma Eglée González Lobato, da Universidade Central da Venezuela. O analista destaca que este “mecanismo estratégico” coloca Machado numa contradição, já que no passado ele renegou tanto as negociações políticas como as consultas eleitorais. “Acho que ela tende a ficar isolada nesse contexto. Sua eventual vitória conspira muitas pessoas contra ele por causa de sua inflexibilidade.”

Alonso Moleiro, originalmente, de Caracas - Venezuela para O El País, em 24.09.23

O discurso foi bom. O discurso

O presidente pode falar em garantia dos territórios nacionais sem um reparo sequer à Rússia, notória invasora?

Lula discursa na ONU — Foto: AFP

O discurso do presidente Lula na Assembleia Geral da ONU foi sucesso de público e crítica. Como conseguiu?

Começa pela redação. Foi escrito por profissionais da diplomacia, que sabem colocar as palavras adequadas para agradar às plateias amigas e guardar neutralidade em relação às outras. Retórica, claro, mas a diplomacia se faz assim.

Não é preciso expor planos detalhados. Bastam intenções. E, sobretudo, não é o palco para brigas locais — aqui vai a grande diferença entre Lula e Bolsonaro. O ex-presidente comportou-se na mesma Assembleia Geral como se estivesse numa discussão de rua com desafetos. Lula não caiu nessa. Não improvisou, leu o discurso todo. Foi um alívio.

Mas não é apenas a comparação que favoreceu o presidente. A escolha dos temas caiu como uma luva. O que se discute hoje no mundo? Clima, crescimento econômico com mais igualdade, programas de resgate das populações vulneráveis, solução para conflitos regionais, desequilíbrios geopolíticos, governança global.

O discurso de Lula passeou por aí. À maneira diplomática: apontando o problema, indicando caminhos, reclamando dos outros, especialmente dos países ricos. Apareceram agendas alimentadas há décadas pela política externa brasileira, como a busca de um papel de equilíbrio entre as nações em desenvolvimento e as potências, econômicas e militares.

Muita gente por aqui entendeu que, assim, Lula se apresentou como liderança mundial – algo que ele busca ostensivamente. Aí fica mais difícil. Precisa ir além de um bom discurso. Precisa do exercício prático da liderança naqueles diversos assuntos, o que depende de como o presidente trata desses temas em seu próprio quintal.

Mudanças climáticas, por exemplo. O Brasil tem a Amazônia, um ativo e um enorme problema. Há um esforço de conter o desmatamento, mas não uma política de longo alcance.

O petróleo da Margem Equatorial. Os minérios enterrados em áreas amazônicas. Qual a política do governo? Explorar ou deixar tudo enterrado? Há visões totalmente opostas dentro do governo. E não se trata de questão local. O presidente não pode se apresentar ao mundo como campeão da energia renovável e, ao mesmo tempo, mandar explorar o petróleo da Foz do Amazonas.

Há até um argumento que tenta combinar as duas posições. Algo assim: precisamos do dinheiro do petróleo para usá-lo no financiamento de novas modalidades de energia. Muitos governantes pensam assim: sujar para limpar depois. Se descartada essa linha, resta outra questão: como promover a melhoria de vida das populações amazônicas? Moradia sustentável, renda, internet, escolas — como prover isso tudo? Se perguntarmos a Marina Silva, uma estrela na Assembleia da ONU, ela terá respostas. Mas nada, até agora pelo menos, garante que se tornarão políticas nacionais.

Parece mesmo que, no núcleo do governo, muita gente se dará por satisfeita com o controle do desmatamento e maior proteção aos povos indígenas. Mas, quando se olha para as políticas de desenvolvimento, tem muita coisa velha e geradora de carbono: refinarias de óleo e indústria automobilística. Há incentivos para aquela do motor a combustão, nada para os elétricos.

Geopolítica, agora. Lula até que disfarçou seu antiamericanismo endógeno, mas colocar o Sul global como um bloco? Não faz sentido. O presidente apresentou o Brics como modelo de nova organização mundial. Depois atacou as potências nucleares, cujo dinheiro aplicado em bombas é retirado de programas de desenvolvimento. Ora, três membros fundadores do Brics são nucleares, Rússia, China e Índia. Tudo bem?

Tem mais. O presidente pode falar em garantia dos territórios nacionais sem um reparo sequer à Rússia, notória invasora?

E democracia. O presidente se apresenta como o líder cuja eleição recuperou a democracia. Ok. Mas como pode, ao mesmo tempo, condenar os regimes arbitrários de direita e apoiar as notórias ditaduras ditas de esquerda?

A retórica tem limites.

 Carlos Alberto Sardenberg, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 23.09.23


A esquerda e os impostos

A política fiscal desse governo é fechar as contas pelo lado da receita, simples assim

Reforma tributária e política fiscal são coisas diferentes.

A reforma tem a ver com quantos e quais são os impostos, e sua mecânica e eficiência.

Não é fácil para uma coletividade (ainda mais a nossa, uma federação) organizar racionalmente algo que ninguém gosta. O nome da coisa é imposto, e não voluntário, conforme o velho clichê. O nosso sistema está atolado de distorções e precisa de reforma. Várias delas.

Nessa etapa, trata-se de racionalizar e simplificar os impostos sobre o consumo, uma empreitada que está se revelando mais gigantesca do que se esperava.

Todos concordam, não obstante, que a reforma é para ser neutra do ponto de vista da arrecadação, ou seja, não é para ajudar nem atrapalhar o equilíbrio nas contas públicas. Esse princípio está em linha com a ideia de que a reforma tributária não se confunde com o problema fiscal, assunto da esfera do Orçamento, e pertinente à sustentabilidade da dívida pública e ao tamanho do Estado.

As definições do governo sobre esses temas, ultracomplexos e de enorme carga político-ideológica, compõem o que os livros-texto normalmente designam como política fiscal.

Reforma tributária e política fiscal não se misturam sem se atrapalhar mutuamente.

Dito isso, vamos a um fato da vida: esse governo parece inclinado a resolver o problema fiscal brasileiro aumentando os impostos e não reduzindo o gasto público e o tamanho do Estado. É uma escolha.

É uma opção perfeitamente legítima de um governo eleito, e não há razão para pudores, como o do ministro que gagueja ao reafirmar que não vai aumentar os impostos, apenas “corrigir distorções”.

A política fiscal desse governo é fechar as contas pelo lado da receita, simples assim. E todos os especialistas que se debruçaram sobre o “arcabouço” tiveram essa mesma impressão. Não há mistério sobre isso.

Não acho que seja a melhor opção, tampouco que vá funcionar. Mas isso não passa da minha modesta e minúscula opinião.

Outro fato da vida: antes do Plano Real a inflação era de esquerda. Pois era como se fechava as contas naqueles tempos doidos, pintar papel para fazer políticas sociais que corrigiam parcialmente os males que a própria inflação criava. Enxugar gelo.

A esquerda era inflacionista e populista. Depois abraçou a heterodoxia, quando descobriu o congelamento de preços, e combateu a estabilização baseada em disciplina fiscal. Isso e mais um keynesianismo que vinha das empreiteiras produziu uma hiper.

Mas as coisas mudaram. A esquerda busca um plano para a economia. Enquanto procura, uma coisa é clara: fechar as contas pela esquerda hoje significa aumentar os impostos.

Acostume-se.

 Gustavo Franco, o autor deste artigo, é economista. Participou da feitura e implantação do Plano Real. Publicado originalmente n'O Globo, em 24.09.23

O retrocesso das Forças Armadas

Se os militares que tramaram um golpe forem realmente punidos, será a primeira vez que isto acontecerá na história do país

Desfile militar de 7 de setembro em Brasília no ano passado — Foto: Isac Nóbrega/PR

Na noite da quinta-feira, 21, quando o ministro da Defesa, José Múcio, chegou na casa do almirante Marcos Olsen, comandante da Marinha, era o fim de um dia inteiro administrando a tensão entre o governo e as Forças Armadas pela revelação de que o ex-presidente Bolsonaro havia se reunido com os três comandantes e discutido um golpe de estado. O brigadeiro Marcelo Damasceno, comandante da Aeronáutica, foi à tarde ao seu gabinete. Com o general Tomás Paiva, comandante do Exército, o ministro falou por telefone. O general estava na Amazônia. Dos três ouviu a mesma coisa que disse aos jornalistas que o procuraram: as Forças Armadas, como instituição, não entraram no projeto autoritário, e é preciso saber quem individualmente praticou quais crimes.

A informação trazida pela jornalista Bela Megale, de O GLOBO, e por Aguirre Talento do Uol, na quinta, esclarece muita coisa. As movimentações e falas golpistas de Bolsonaro foram públicas, a ambiguidade das Forças Armadas também. Mas o tenente- coronel Mauro Cid agregou um dado concreto: a informação de que os comandantes militares e o então presidente tramaram juntos a interrupção do processo constitucional. Uma fonte informa que juridicamente não há atenuantes.

—Essa reunião – parece que houve mais de uma – indica cometimento de crime, porque o tipo penal envolvido é 'tentativa de golpe'. Eles podem dizer que apenas cogitaram e que cogitar não é crime. Mas eles foram além, fizeram reunião e foi elaborada uma minuta do golpe, portanto é um ato preparatório. É crime.

O governo Lula encontrou nas Forças Armadas “um mar de indisciplina” ao assumir, segundo definição de uma das fontes que ouvi nos últimos dias. Prova disso foi o fato de que os comandantes do governo Bolsonaro não queriam se reunir com o ministro indicado José Múcio. O almirante Garnier, como me disse o próprio ministro, nunca aceitou se encontrar com ele. É ato de indisciplina de um oficial, na época, na ativa.

Todos os absurdos vistos no governo Bolsonaro – notas ameaçadoras das Forças Armadas, desfile de tanques convocado pela Marinha para o dia de votação do voto impresso no Congresso, militares da ativa atacando candidatos nas redes sociais – foram o resultado do trabalho cotidiano de Bolsonaro de quebrar princípios, contaminar os militares, envolvê-los. Eles se deixaram enredar porque quiseram. Suas lideranças decidiram ter proveito naquele governo e receberam poder e dinheiro. A instituição, como um todo, enfrenta a ressaca de um enorme retrocesso. As Forças Armadas voltam a ser vistas como golpistas.

Eles lamentam hoje estar sob o manto da suspeição, mas o fato é que foi escolha envolver-se nesse novelo do qual não sabem sair. O que eu ouvi nas apurações que fiz é que o atual comando quer que sejam punidos todos os que se envolveram nessa trama, mas precisam que o Judiciário individualize as condutas. “Quem tiver culpa será expulso das Forças Armadas”, disse uma fonte. Se isso de fato acontecer será um avanço, porque a História do Brasil é repleta de movimentos golpistas dos militares e não tem registro de punições.

O almirante Almir Garnier, que teria aderido à ideia do golpe, assumiu em abril de 2021, quando Bolsonaro demitiu o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, e todos os comandantes militares. Bolsonaro queria um ministro e comandantes mais submissos ao seu projeto autoritário. Conseguiu. Os escolhidos na época para as três Forças, general Paulo Sérgio Nogueira, brigadeiro Baptista Jr. e almirante Garnier, com maior ou menor intensidade, colaboraram para o ambiente de intimidação aos democratas que foi derrotado porque houve forte resistência das instituições e da sociedade. Não foi concessão. Não é correta a ideia de que eles “deixaram” a democracia permanecer. Ela é conquista do país.

O golpe de Bolsonaro se daria como? Intervenção direta no Tribunal Superior Eleitoral com afastamento dos ministros, quebra dos seus sigilos, anulação do resultado eleitoral. A Justiça Eleitoral seria a primeira vítima. É o que está escrito na minuta golpista. Por isso, é com espanto que se vê, no mesmo dia em que se revela essa reunião dos conspiradores em chefe, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, atacar a Justiça Eleitoral. No dia seguinte, ela disse ter sido mal compreendida. Suas palavras foram bem claras. Se o PT quer ser o estuário da luta democrática de todo o país, tem que pensar bem sobre que teses abraça.

Miriam Leitão, a autora deste artigo (Com Ana Carolina Diniz), é jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 24.09.23

Solidão

Soluções simples e baratas, como colocar bancos em corredores de blocos de apartamentos sociais, propiciam a prosa entre vizinhos

Pessoa sozinha em apartamento — Foto: Edilson Dantas

“All the lonely people/Where do they all come from?”, perguntava em 1961, com terna insistência, o refrão de “Eleanor Rigby”. Pois foi justamente uma chefe de governo britânica, a ultraconservadora Theresa May, que procurou responder à canção dos Beatles quase seis décadas depois. Para espanto e descrédito generalizado, em 2018 ela criou uma nova pasta — o Ministério da Solidão —, cujo nome oficial logo fez a festa em redes sociais e programas de humor.

— Isso soa a eufemismo vitoriano para gigolô — lançou o comediante Stephen Colbert.

— Poderia ser a criação literária de um José Saramago, Haruki Murakami ou Gabriel García Márquez — arriscou Carmen Graciela Díaz.

De lá para cá, a pasta já trocou de titular múltiplas vezes devido à óbvia dificuldade de pensar em estratégias de governo para um problema emocional e individual. Ainda assim, ao completar cinco anos de existência, o ministério já gerou filhotes no Japão e na Alemanha, criou demanda na Austrália e países escandinavos e integra definitivamente as preocupações do doutor Vivek Murthy, atual cirurgião-geral dos Estados Unidos, responsável pela saúde pública do país. Os argumentos de Murthy estão em recente relatório de 81 páginas: a solidão tem letalidade comparável à do cigarro para quem fuma 15 cigarros por dia e superior à do álcool pra quem consome seis doses diárias. Sem falar em possíveis desdobramentos numa série de doenças.

— Além de esmagar a alma, (...) a solidão quebra o coração, literal e figuradamente — resumiu o colunista do New York Times Nicholas Kristof.

Como as demais emoções, a solidão ou o sentimento de isolamento social são difíceis de mensurar. Em consequência, o êxito ou a inutilidade de intervenções destinadas a abrandá-los também são. A mera elaboração de um questionário capaz de captar o desalento íntimo de cidadãos já é complexa e exige dos recenseadores treinamento especial. Nesse quesito, o Office for National Statistics britânico (equivalente ao nosso IBGE) foi pioneiro, a ponto de captar o crescimento quase linear da solidão social entre jovens de 18 a 34 anos. Na Alemanha, é o inverso: o perigo ronda quem já ultrapassou a vida produtiva. O ambicioso programa interministerial A Connected Society, publicado com a criação do ministério de Theresa May, elencou mais de 50 estratégias para enfrentar a solidão nacional. Alocou fundos para pesquisa, contratou mais de mil funcionários públicos para conectar grupos comunitários, levou a Cruz Vermelha a instruir carteiros de todo o país a reportar sinais de isolamento social e muito mais.

Os resultados têm sido desiguais, claro. Soluções simples e baratas, como colocar bancos em corredores de blocos de apartamentos sociais, propiciam a prosa entre vizinhos. Abrir espaço, mesmo que mínimo, para pracinhas compartilhadas, instalar iluminação quente no lugar do branco hospitalar em estruturas públicas também. Médicos foram instruídos a prescrever atividades sociais, em vez de receitar remédios, e iniciativas locais receberam financiamento. Para a recente coroação do Rei Charles, o Ministério da Solidão organizou uma ação de voluntariado que fez sair da toca mais de 6 milhões de pessoas sem convívio social. Do outro lado do Atlântico, o cirurgião-geral adverte: se os Estados Unidos não tomarem medidas concretas, os que se sentem excluídos se retrairão ainda mais — e estarão mais zangados, mais doentes, mais à deriva. No Japão, onde uma conferência interministerial de emergência resultou dois anos atrás na criação do Ministério da Solidão e Isolamento, o enfrentamento da dor social é ainda mais difícil. Culturalmente enraizado na sociedade quase como virtude, o isolamento ainda é visto como algo estritamente pessoal, privado e de responsabilidade intransferível.

É de Julio Cortázar, na obra-prima “O jogo da amarelinha”, a descrição da “solidão absoluta que representa não contar sequer com a própria companhia, ter que entrar no cinema ou no prostíbulo ou na casa dos amigos ou numa profissão absorvente ou no matrimônio para estar pelo menos só-entre-os-demais”. É dela que devemos tentar arrancar quem está ao alcance de um esforço nosso. A sociedade como um todo agradece. Solidão não é solitude — a primeira corrói a alma, a outra, por opcional, pode ser linda.

Dorrit Harazim, a autora deste artigo, é jornalista e documentarista. Publicado originalmente n'O Globo, em 24.09.23

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Custo médio mensal dos tribunais com cada magistrado varia de R$ 37 mil a R$ 170 mil; veja o ranking por estado

A lista com os cinco vencimentos mais baixos traz Alagoas, Amazonas, Ceará, Amapá e Espírito Santo

A entrada do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) — Foto: Mirna de Moura/TJMG

O relatório "Justiça em números 2023", divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em setembro, evidencia a discrepância entre os valores pagos a magistrados de tribunais estaduais Brasil afora. De acordo com o documento, a remuneração média de juízes e desembargadores pode ser até cinco vezes maior na comparação entre as cortes.

A cifra mais alta é a do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), que paga pouco mais de R$ 170 mil para cada magistrado, em média. Na outra ponta, o menor montante se dá no TJ de Alagoas (TJ-AL), com cerca de R$ 37 mil pagos por mês aos operadores do Direito — na média, mais uma vez.

A lista com os cinco vencimentos médios mais baixos traz, além de Alagoas, as cortes de Amazonas, Ceará, Amapá e Espírito Santo (em ordem crescente, variando de R$ 37 mil a R$ 47 mil). No extremo oposto, os cinco tribunais estaduais que distribuem as melhores remunerações, a partir da maior, são: Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Goiás e Santa Catarina — os últimos quatro oscilando entre R$ 82 mil e R$ 83 mil mensais.

O documento elaborado pelo CNJ também mostra que cada juiz ou desembargador do país custa por mês, em média, R$ 69,8 mil aos seus respectivos tribunais. O montante equivale a 52 vezes o salário mínimo do país na atualidade, que é de R$ 1.320.

"É importante esclarecer que os valores incluem os pagamentos de remunerações, indenizações, encargos sociais, previdenciários, imposto de renda, despesas com viagens a serviço (passagens aéreas e diárias), o que não corresponde, portanto, aos salários", frisa o CNJ no documento. Por lei, o teto salarial da magistratura — e de servidores públicos em geral — equivale aos vencimentos de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), atualmente em R$ 41.650,92.

O mesmo relatório apontou que nenhum Tribunal de Justiça estadual do país tem sequer paridade de gênero — como o GLOBO mostrou nesta quarta-feira, os homens são maioria em todos, sem exceção. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) é o que tem maior presença feminina, com 48%, entre juízas do primeiro grau e desembargadoras. No Poder Judiciário, em geral, o percentual é de 38%, cerca de 6.853, entre todos os 18.035 magistrados.

Percepção dos magistrados

Outro levantamento do CNJ, o 2º Censo do Poder Judiciário, cujo relatório parcial foi publicado no site do órgão nesta terça-feira, aponta que 73,9% dos magistrados do país consideram que recebem remuneração abaixo da adequada. A pesquisa indica ainda que quatro em cada cinco juízes ou desembargadores brasileiros acreditam que têm um volume de trabalho maior do que o ideal.

Na pergunta sobre a "adequação da remuneração ao trabalho que executa", 39,6% dos entrevistados disseram "discordar totalmente" da premissa, enquanto outros 34,3% externaram somente discordância, totalizando 73,9%. Já os que "concordaram" ou "concordaram totalmente" foram 22% e 4,1%, respectivamente, ainda de acordo com o documento do CNJ.

A única área da magistratura na qual mais da metade dos integrantes acredita que os valores recebidos são suficientes foi na Justiça Militar — 51,7% de "concordo", e 13,8% de "concordo totalmente". No sentido oposto, a maior insatisfação deu-se na Justiça do Trabalho, com 60,7% de "discordo totalmente" e 29,2% de "discordo". Ou seja, nove em cada dez magistrados trabalhistas creem que deveriam ganhar mais.

Já no questionamento sobre a "a adequação do volume de trabalho à jornada regular de trabalho", 47,2% dos juízes e desembargadores discordaram totalmente da assertiva, e 32,5% discordaram, atingindo 79,7%. São 15,5% os que concordam e apenas 4,8% os que concordam totalmente.

Mais uma vez, a percepção mais positiva ocorre na Justiça Militar, onde somente 20,7% do que participaram da pesquisa acreditam, total ou parcialmente, que o volume de trabalho é inadequado. Neste caso, porém, o cenário é bem mais equilibrado nas outras esferas do Judiciário.

Publicado originalmente por O Globo, em 22.09.23

Ataque do PT ao TSE é cínico e oportunista

Justiça Eleitoral tem garantido a democracia e organizado os pleitos de forma exemplar

Plenário do Tribunal Superior Eleitoral — Foto: Alejandro Zambrana/TSE

Já era constrangedora a aliança pluripartidária — incluindo os rivais PT e PL — para chancelar a PEC da Anistia, que promove o maior perdão da História a partidos que tenham cometido toda sorte de irregularidade na última eleição. Pois agora, para desqualificar as multas aplicadas pela Justiça Eleitoral no estrito cumprimento da lei, o PT patrocina um ataque aos tribunais eleitorais, fiadores da lisura do último pleito e bastiões de resistência das instituições democráticas.

Antes, petistas se esmeravam em elogios ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pelo papel crítico na defesa das urnas eletrônicas e na realização de um pleito cujo resultado é inquestionável. Agora, em discurso na Câmara, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, chegou a questionar a própria existência da Justiça Eleitoral. “Não pode haver uma Justiça Eleitoral”, afirmou. “Isso já é um absurdo e custa três vezes mais do que o financiamento de campanha.” Não é uma declaração muito diferente das proferidas às vésperas das eleições por próceres bolsonaristas — à época criticados com razão pelo PT.

Em julho, depois que o TSE tornou o ex-presidente Jair Bolsonaro inelegível até 2030, sob acusação de usar o cargo para disseminar desinformação sobre as urnas eletrônicas, Gleisi se desdobrou em elogios. Afirmou que a decisão era “pedagógica” por impor limites ao extremismo bolsonarista. Quer dizer: quando a Justiça Eleitoral toma decisões que agradam ao PT, é incensada. Quando não, sofre ataques.

Gleisi sustenta que as multas fixadas pelos tribunais eleitorais são inexequíveis e representam apenas a visão subjetiva da equipe técnica, “que sistematicamente entra na vida dos partidos políticos, querendo dar orientação, interpretando a vontade de dirigentes, a vontade de candidatos”. Para ela, isso torna as legendas inviáveis. Mas não diz uma só palavra sobre o dever que cabe a todo partido: respeitar a lei eleitoral e as decisões da Justiça.

Não faz sentido acusar a Justiça Eleitoral de inviabilizar os partidos. As legendas foram agraciadas no ano passado com quase R$ 6 bilhões dos fundos eleitoral e partidário. Dinheiro, não custa lembrar, dos cofres públicos. Por isso é natural que se olhe para onde vai. E o que se tem visto é preocupante. A análise das equipes técnicas revelou o uso do dinheiro em churrascadas, construção de piscina, aluguel de frotas milionárias e por aí vai. Quem inviabiliza os partidos, portanto, são os próprios partidos, com seus descaminhos.

Ainda que sempre se deva prestar atenção ao custo dos tribunais, o mais relevante é o papel da Justiça Eleitoral na democracia. Não se pode esquecer o que ocorreu há menos de um ano, com ataques às urnas eletrônicas e ao sistema eleitoral. Com o decorrer das apurações, um dia se conhecerá a extensão da trama golpista que pôs em risco a democracia, desaguando no 8 de Janeiro. Já se sabe, porém, que a firmeza do TSE nos momentos críticos foi fundamental para o país resistir à tormenta.

Graças ao TSE e à Justiça, o Brasil tem combatido ataques à democracia com mais eficácia que os Estados Unidos, país que enfrentou ameaça similar. O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao ser diplomado, destacou a coragem do Supremo e do TSE, “que enfrentaram toda sorte de ameaças, ofensas e agressões para fazer valer a soberania do voto popular”.

Editorial d'O Globo, em 22.09.23

Defesa da democracia de ocasião

Ataque à Justiça Eleitoral por parte da presidente do PT mostra que apoio ao TSE só valeu contra o golpismo bolsonarista

Gleisi Hoffmann critica a Justiça Eleitoral durante sessão de comissão da Câmara — Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Faz pouco mais de um ano praticamente todos os políticos brasileiros, de petistas a bolsonaristas, se reuniram no majestoso auditório do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A inusual importância dada à posse de um presidente do TSE se devia às constantes investidas de Jair Bolsonaro, presente à mesa diretora da solenidade com cara de poucos amigos, contra a Justiça Eleitoral e contra o próprio processo eleitoral.

Na ocasião, Lula e Dilma Rousseff estavam na primeira fila, de frente para Alexandre de Moraes e Bolsonaro. Os demais caciques petistas, inclusive sua presidente, Gleisi Hoffmann, também estavam presentes e foram alguns dos mais efusivos em aplausos diante do duríssimo discurso de Moraes tendo Bolsonaro como destinatário.

Garantidas as eleições, com episódios dramáticos como a ação do presidente do TSE para desobstruir estradas diante de uma blitz ilegal promovida pela Polícia Rodoviária Federal no segundo turno, impedida a chicana golpista de Valdemar Costa Neto questionando a lisura apenas do segundo turno, com a aplicação de uma multa pesada de R$ 22 milhões por litigância de má-fé, e tornado Bolsonaro inelegível numa das muitas ações a respeito de seus ataques ao processo eleitoral, a mesma Gleisi Hoffmann vem a público para condenar as multas e a própria existência da Justiça Eleitoral.

Das duas uma: ou Gleisi e o partido que comanda foram hipócritas ao tecer loas ao TSE e a Moraes antes, ou são cínicos agora, uma vez debelada a ameaça golpista de Bolsonaro, ao entender que os mecanismos que serviram para punir o ex-presidente e seu partido devem ser desligados sob pena de atingir o próprio PT e as demais siglas.

Diante do que começa a aparecer das revelações da delação do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o papel firme da Justiça Eleitoral se mostra ainda mais fundamental para evitar o sucesso da intentona golpista. Vai se desenhando um quadro ainda mais sombrio, em que iniciativas que pareciam individuais, ou desconectadas umas das outras, se mostram como partes de um plano maior, arquitetado por Bolsonaro, para o qual foram convocados abertamente o Ministério da Justiça, suas instituições policiais e os comandantes das Forças Armadas.

Se o TSE não tivesse adotado uma postura firme, que começou na gestão de Luís Roberto Barroso à frente da Corte, seguiu-se no curto mandato de Edson Fachin e na decisiva passagem de Moraes, Bolsonaro teria tentado efetivamente colocar em xeque a própria realização das eleições ou melá-las depois.

Se Lula, seu governo e o seu partido querem defender a democracia de “aventureiros”, como fez o presidente na abertura da Assembleia Geral da ONU, investir com aleivosias contra a Justiça Eleitoral é um desserviço evidente.

Cabe a ela não apenas a já fundamental função de fiscalizar a aplicação do dinheiro público destinado aos partidos — o que explica a união de todos as grandes legendas, inclusive PL e PT de mãos dadas, contra sua atuação —, mas também, e sobretudo, zelar por uma sofisticada estrutura que permite a chegada das urnas eletrônicas — que se mostraram à prova de fraudes e de fake news — aos mais remotos locais do Brasil e a apuração em tempo recorde das eleições. O argumento de que ela só existe no Brasil, neste caso, fala a nosso favor. Um raro caso em que temos o que ensinar ao resto do mundo.

O avanço da PEC que anistia não apenas o mau uso de recursos dos fundos eleitoral e partidário, mas o descumprimento de regras mínimas adotadas nos últimos anos para assegurar maior representatividade política a grupos como mulheres e negros é um retrocesso vergonhoso patrocinado por Arthur Lira, Gleisi Hoffmann, Valdemar Costa Neto e demais grandes partidos.

Que a presidente do PT ainda encha a boca para achincalhar a instituição que assegura que a democracia ainda vigore no Brasil é sinal de que o apreço às instituições era conversa mole para o período eleitoral.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é jornalista. Escreve sobre os principais fatos da política, do Judiciário e da economia. ublicado originalmente n'O Globo, em 22.09.23

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Avança a sem-vergonhice

Ao aprovar a tal ‘minirreforma’ eleitoral, Câmara revela que não liga para o interesse público quando o que está em jogo são a manutenção de poder e o acesso a gordas fatias do Orçamento

A Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira passada o texto-base do Projeto de Lei (PL) 4438/23, parte de um conjunto de medidas legislativas que, sorrateiramente, tem sido chamado de “minirreforma” eleitoral. Que o leitor não se engane: nada há de “mini” nessa reforma. Trata-se de alterações significativas no Código Eleitoral, na Lei das Eleições e na Lei dos Partidos Políticos para beneficiar, única e exclusivamente, os atuais detentores de mandato eletivo e os partidos políticos.

O PL 4438/23, de autoria da deputada Danielle Cunha (União-RJ), é uma licença para que os partidos disponham de recursos públicos praticamente sem controle, pois enfraquece sobremaneira os mecanismos que obrigam as legendas a dar a devida destinação ao dinheiro dos Fundos Partidário e Eleitoral. Não bastasse isso, o projeto ainda dificulta o aumento da participação de segmentos sub-representados da sociedade, como mulheres e negros, na vida política e eleitoral do País. Em suma, um rematado retrocesso.

Como o carnaval, a Lavagem do Bonfim e as Festas Juninas, é tradição no País que projetos dessa natureza apareçam no radar dos parlamentares em anos pré-eleitorais. Algumas dessas mudanças na legislação eleitoral vieram para melhorar o sistema político, como são os casos do fim das coligações partidárias para eleições proporcionais e o estabelecimento de uma cláusula de desempenho, conhecida como “cláusula de barreira”, para acesso aos fundos públicos. Outras vieram para piorá-lo. Raríssimas, porém, foram tão aviltantes ao interesse público como o projeto ora aprovado pela Câmara.

Caso o Senado chancele a sem-vergonhice e o PL 4438/23 seja sancionado pelo presidente Lula da Silva até o dia 6 de outubro – como espera o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), interessado que as mudanças estejam em vigor nas eleições de 2024 –, estará instalado no País um verdadeiro vale-tudo eleitoral. É disso que se trata. Se a vida dos parlamentares e dos dirigentes partidários já era extremamente confortável no Brasil, haja vista que, mesmo sendo organizações privadas, os partidos são mimados com dinheiro farto e fácil dos contribuintes, com a tal “minirreforma” eleitoral os mandatários serão praticamente inimputáveis no que concerne à malversação de recursos dos fundos públicos, desrespeito às cotas de candidaturas de mulheres e negros e falhas na prestação de contas à Justiça Eleitoral, entre outros desvios.

O placar de votação (367 votos favoráveis e 86 contrários), além da aliança entre as principais legendas do governo (PT) e da oposição (PL) – só o Novo, o Podemos e o PSOL votaram contra a dita “minirreforma” –, não deixa dúvida de que, quando se trata da proteção de seus interesses classistas, parlamentares que não raro podem chegar às vias de fato nos embates na Câmara são capazes de deixar os escrúpulos de lado, dar as mãos e caminhar juntos na desfaçatez.

O relator do projeto, Rubens Pereira Júnior (PT-MA), jura de pés juntos que a aprovação do PL 4438/23 é “indispensável” para simplificar o processo de prestação de contas dos partidos à Justiça Eleitoral. Por tornar “mais simples”, entenda-se enfraquecer os principais instrumentos à disposição do Judiciário para fiscalizar a utilização dos recursos públicos que alimentam os bilionários fundos que irrigam as contas das legendas e que nem sequer deveriam existir. Entre as medidas aprovadas está, por exemplo, a autorização para doações por meio de Pix sem a obrigatoriedade de usar o CPF como chave, uma avenida para a lavagem de dinheiro. Outro absurdo é a possibilidade de subcontratação de fornecedores sem a necessidade de os partidos informarem à Justiça quem, de fato, recebeu o dinheiro, o que torna a compra de votos muito mais difícil de ser detectada.

Ao aprovar esse rol de anomalias – e outras estão a caminho, inclusive a chamada PEC da Anistia –, a Câmara revela que a ampla maioria dos deputados não dá a mínima para o interesse público quando o que está em jogo é a manutenção de poder e o acesso a gordas fatias do Orçamento.

Editorial / Notas & Informações, O estado de S. Paulo, em 15.09.23