sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Defesa da democracia de ocasião

Ataque à Justiça Eleitoral por parte da presidente do PT mostra que apoio ao TSE só valeu contra o golpismo bolsonarista

Gleisi Hoffmann critica a Justiça Eleitoral durante sessão de comissão da Câmara — Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Faz pouco mais de um ano praticamente todos os políticos brasileiros, de petistas a bolsonaristas, se reuniram no majestoso auditório do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A inusual importância dada à posse de um presidente do TSE se devia às constantes investidas de Jair Bolsonaro, presente à mesa diretora da solenidade com cara de poucos amigos, contra a Justiça Eleitoral e contra o próprio processo eleitoral.

Na ocasião, Lula e Dilma Rousseff estavam na primeira fila, de frente para Alexandre de Moraes e Bolsonaro. Os demais caciques petistas, inclusive sua presidente, Gleisi Hoffmann, também estavam presentes e foram alguns dos mais efusivos em aplausos diante do duríssimo discurso de Moraes tendo Bolsonaro como destinatário.

Garantidas as eleições, com episódios dramáticos como a ação do presidente do TSE para desobstruir estradas diante de uma blitz ilegal promovida pela Polícia Rodoviária Federal no segundo turno, impedida a chicana golpista de Valdemar Costa Neto questionando a lisura apenas do segundo turno, com a aplicação de uma multa pesada de R$ 22 milhões por litigância de má-fé, e tornado Bolsonaro inelegível numa das muitas ações a respeito de seus ataques ao processo eleitoral, a mesma Gleisi Hoffmann vem a público para condenar as multas e a própria existência da Justiça Eleitoral.

Das duas uma: ou Gleisi e o partido que comanda foram hipócritas ao tecer loas ao TSE e a Moraes antes, ou são cínicos agora, uma vez debelada a ameaça golpista de Bolsonaro, ao entender que os mecanismos que serviram para punir o ex-presidente e seu partido devem ser desligados sob pena de atingir o próprio PT e as demais siglas.

Diante do que começa a aparecer das revelações da delação do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o papel firme da Justiça Eleitoral se mostra ainda mais fundamental para evitar o sucesso da intentona golpista. Vai se desenhando um quadro ainda mais sombrio, em que iniciativas que pareciam individuais, ou desconectadas umas das outras, se mostram como partes de um plano maior, arquitetado por Bolsonaro, para o qual foram convocados abertamente o Ministério da Justiça, suas instituições policiais e os comandantes das Forças Armadas.

Se o TSE não tivesse adotado uma postura firme, que começou na gestão de Luís Roberto Barroso à frente da Corte, seguiu-se no curto mandato de Edson Fachin e na decisiva passagem de Moraes, Bolsonaro teria tentado efetivamente colocar em xeque a própria realização das eleições ou melá-las depois.

Se Lula, seu governo e o seu partido querem defender a democracia de “aventureiros”, como fez o presidente na abertura da Assembleia Geral da ONU, investir com aleivosias contra a Justiça Eleitoral é um desserviço evidente.

Cabe a ela não apenas a já fundamental função de fiscalizar a aplicação do dinheiro público destinado aos partidos — o que explica a união de todos as grandes legendas, inclusive PL e PT de mãos dadas, contra sua atuação —, mas também, e sobretudo, zelar por uma sofisticada estrutura que permite a chegada das urnas eletrônicas — que se mostraram à prova de fraudes e de fake news — aos mais remotos locais do Brasil e a apuração em tempo recorde das eleições. O argumento de que ela só existe no Brasil, neste caso, fala a nosso favor. Um raro caso em que temos o que ensinar ao resto do mundo.

O avanço da PEC que anistia não apenas o mau uso de recursos dos fundos eleitoral e partidário, mas o descumprimento de regras mínimas adotadas nos últimos anos para assegurar maior representatividade política a grupos como mulheres e negros é um retrocesso vergonhoso patrocinado por Arthur Lira, Gleisi Hoffmann, Valdemar Costa Neto e demais grandes partidos.

Que a presidente do PT ainda encha a boca para achincalhar a instituição que assegura que a democracia ainda vigore no Brasil é sinal de que o apreço às instituições era conversa mole para o período eleitoral.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é jornalista. Escreve sobre os principais fatos da política, do Judiciário e da economia. ublicado originalmente n'O Globo, em 22.09.23

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Avança a sem-vergonhice

Ao aprovar a tal ‘minirreforma’ eleitoral, Câmara revela que não liga para o interesse público quando o que está em jogo são a manutenção de poder e o acesso a gordas fatias do Orçamento

A Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira passada o texto-base do Projeto de Lei (PL) 4438/23, parte de um conjunto de medidas legislativas que, sorrateiramente, tem sido chamado de “minirreforma” eleitoral. Que o leitor não se engane: nada há de “mini” nessa reforma. Trata-se de alterações significativas no Código Eleitoral, na Lei das Eleições e na Lei dos Partidos Políticos para beneficiar, única e exclusivamente, os atuais detentores de mandato eletivo e os partidos políticos.

O PL 4438/23, de autoria da deputada Danielle Cunha (União-RJ), é uma licença para que os partidos disponham de recursos públicos praticamente sem controle, pois enfraquece sobremaneira os mecanismos que obrigam as legendas a dar a devida destinação ao dinheiro dos Fundos Partidário e Eleitoral. Não bastasse isso, o projeto ainda dificulta o aumento da participação de segmentos sub-representados da sociedade, como mulheres e negros, na vida política e eleitoral do País. Em suma, um rematado retrocesso.

Como o carnaval, a Lavagem do Bonfim e as Festas Juninas, é tradição no País que projetos dessa natureza apareçam no radar dos parlamentares em anos pré-eleitorais. Algumas dessas mudanças na legislação eleitoral vieram para melhorar o sistema político, como são os casos do fim das coligações partidárias para eleições proporcionais e o estabelecimento de uma cláusula de desempenho, conhecida como “cláusula de barreira”, para acesso aos fundos públicos. Outras vieram para piorá-lo. Raríssimas, porém, foram tão aviltantes ao interesse público como o projeto ora aprovado pela Câmara.

Caso o Senado chancele a sem-vergonhice e o PL 4438/23 seja sancionado pelo presidente Lula da Silva até o dia 6 de outubro – como espera o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), interessado que as mudanças estejam em vigor nas eleições de 2024 –, estará instalado no País um verdadeiro vale-tudo eleitoral. É disso que se trata. Se a vida dos parlamentares e dos dirigentes partidários já era extremamente confortável no Brasil, haja vista que, mesmo sendo organizações privadas, os partidos são mimados com dinheiro farto e fácil dos contribuintes, com a tal “minirreforma” eleitoral os mandatários serão praticamente inimputáveis no que concerne à malversação de recursos dos fundos públicos, desrespeito às cotas de candidaturas de mulheres e negros e falhas na prestação de contas à Justiça Eleitoral, entre outros desvios.

O placar de votação (367 votos favoráveis e 86 contrários), além da aliança entre as principais legendas do governo (PT) e da oposição (PL) – só o Novo, o Podemos e o PSOL votaram contra a dita “minirreforma” –, não deixa dúvida de que, quando se trata da proteção de seus interesses classistas, parlamentares que não raro podem chegar às vias de fato nos embates na Câmara são capazes de deixar os escrúpulos de lado, dar as mãos e caminhar juntos na desfaçatez.

O relator do projeto, Rubens Pereira Júnior (PT-MA), jura de pés juntos que a aprovação do PL 4438/23 é “indispensável” para simplificar o processo de prestação de contas dos partidos à Justiça Eleitoral. Por tornar “mais simples”, entenda-se enfraquecer os principais instrumentos à disposição do Judiciário para fiscalizar a utilização dos recursos públicos que alimentam os bilionários fundos que irrigam as contas das legendas e que nem sequer deveriam existir. Entre as medidas aprovadas está, por exemplo, a autorização para doações por meio de Pix sem a obrigatoriedade de usar o CPF como chave, uma avenida para a lavagem de dinheiro. Outro absurdo é a possibilidade de subcontratação de fornecedores sem a necessidade de os partidos informarem à Justiça quem, de fato, recebeu o dinheiro, o que torna a compra de votos muito mais difícil de ser detectada.

Ao aprovar esse rol de anomalias – e outras estão a caminho, inclusive a chamada PEC da Anistia –, a Câmara revela que a ampla maioria dos deputados não dá a mínima para o interesse público quando o que está em jogo é a manutenção de poder e o acesso a gordas fatias do Orçamento.

Editorial / Notas & Informações, O estado de S. Paulo, em 15.09.23

A democracia da América Latina, na voz de cinco mulheres no poder

No Dia da Democracia, as mulheres da região que alcançaram altos cargos na política e na justiça respondem sobre a saúde do sistema e os desafios que enfrentam

Carolina Giraldo, Patrícia Mercado, Norma Piña, Erika Hilton e Silvia Lospennato.

Esta sexta-feira marca o Dia da Democracia e cinco mulheres que alcançaram papéis poderosos na política e na justiça na Argentina, no Brasil, na Colômbia e no México respondem aos líderes da América Latina sobre como protegê-la e os desafios que enfrentam como mulheres. As questões eram as mesmas para todos eles, em torno da crise da democracia e de qual delas pode ser construída.

Como definiria o estado da democracia no seu país e qual é o principal desafio que as mulheres enfrentam?

Norma Piña, presidente da Suprema Corte de Justiça do México:

- A democracia e a igualdade são vividas todos os dias. É neste sentido que surgem desafios específicos para as mulheres. Quando pensamos no patriarcado, podemos encontrar uma semelhança com os ataques à democracia que sofre a nossa região: ambos souberam se adaptar às mudanças sociais para preservar o poder nas mãos de poucos. Infelizmente, a perpetuação da desigualdade conseguiu estabelecer-se sem maiores questionamentos na nossa vida quotidiana.

Um Estado onde as mulheres continuam a viver com medo, enfrentando todos os dias a violência que coloca as suas vidas em risco ou acaba com elas; onde continuam a recair sobre elas papéis e estereótipos que invisibilizam o papel fundamental da sua participação na vida quotidiana, como ocorre com o cuidado, sem o qual a sociedade não existiria e que é desempenhado principalmente pelas mulheres. Um Estado em que o piso não é igualitário para as mulheres, pois cada passo e conquista em direção à igualdade nos custa desproporcional ou desnecessariamente. Um Estado como este não pode apresentar-se nem acreditar-se democrático.

Nesse sentido, a Suprema Corte de Justiça do México decidiu que, para garantir o acesso efetivo à justiça para mulheres, meninas e adolescentes, esta deve ser sempre julgada desde uma perspectiva de gênero , ou seja, partindo do reconhecimento dos impactos diferenciados em cada caso. que uma mulher pode estar vivenciando, pelo fato de ser uma. A justiça sem uma perspectiva de género não pode ser chamada de justiça. A democracia, quando persistem a desigualdade e a violência baseada no género, não pode ser chamada de democracia. A violência contra as mulheres e a desigualdade de género são antónimos de um Estado democrático e do Estado de direito. Bem desse jeito.

A ministra presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Norma Piña, em novembro de 2022.


Carolina Giraldo, deputada colombiana e presidente da Comissão para a Igualdade da Mulher:

- Devemos construir uma democracia mais igualitária. Mais mulheres significa mais democracia, porque enfatizamos uma agenda de oportunidades, saúde pública, cuidados ambientais e não discriminação. Embora o número de mulheres na política e de pessoas diversas tenha aumentado, ainda vemos uma lacuna significativa nos cargos de tomada de decisão, tradicionalmente liderados por homens. Uma democracia com maior equidade permitiria a transformação social e uma mudança nas políticas públicas.

É muito importante que, ao chegarmos a estes espaços, a participação seja substantiva e não uma simulação em que tentam continuar a cancelar as nossas vozes. Isto significa enfrentar uma das raízes mais fortes e falsas do sistema patriarcal: que os homens – e apenas certos tipos de homens – são os únicos que podem tomar decisões e ocupar o espaço público.

Para as mulheres, o desafio da violência baseada no género persiste. Os números de feminicídios e violência sexual são alarmantes. Outro desafio para as mulheres e as pessoas LGBTIQ+, particularmente para aquelas que participam na política, é deixar de ser considerado uma quota de género e exigir o desenvolvimento de estratégias que promovam a participação política e a entrada na vida pública das mulheres e das pessoas LGBTIQ+. Na Colômbia existe uma “cota de gênero” nas empresas públicas de 30%. O país avançou no sentido da paridade em espaços como os conselhos de administração, mas a paridade ainda não foi alcançada na construção de listas de empresas públicas.

Carolina Giraldo.

Patricia Mercado, senadora do México pelo Movimento Cidadão e ex-candidata à Presidência do seu país em 2006. 

- O maior problema que as democracias da América Latina enfrentam é a profunda desigualdade. Este desencanto de milhões de pessoas é aproveitado por certos líderes para atacar e desmantelar as instituições democráticas. É por isso que teríamos de dar prioridade à construção de Estados-providência que garantam a prometida igualdade de oportunidades.

A democracia não terminou de se consolidar no México. Governos divididos têm sido uma experiência positiva para gerar acordos nas diferenças. Por exemplo, as reformas político-eleitorais foram adoptadas por consenso geral nos últimos 27 anos, pelo menos. Neste momento, há uma pausa neste processo de consolidação democrática, pois abundam as ações contra a divisão de poderes, contra órgãos autónomos e contra a separação entre função pública e vida partidária.

Patricia Mercado, em 13 de junho de 2022 em Toluca (Estado do México).

Erika Hilton, legisladora transexual brasileira. 

- É um dos dois primeiros na história do seu país. O Brasil passou por uma crise democrática significativa e desafiadora nos últimos quatro anos, com inúmeras tentativas de ruptura com o Estado democrático de direito, notadamente a tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro de 2023.

Agora conseguimos, com a eleição do presidente Lula, deter o processo de deterioração democrática que estava em curso com Jair Bolsonaro, mas mudar esse rumo depois de tantos ataques e propaganda ideológica antidemocrática é um longo caminho a percorrer.

Para as maiorias sociais minoritárias, como mulheres, LGBTQI+, negros, indígenas, a batalha é ainda mais árdua, uma vez que a democracia nunca chegou plenamente para essas populações, vítimas de violência, preconceitos e ausência de políticas públicas. Acredito que os nossos desafios são precisamente quebrar este ciclo histórico de marginalização obrigatória, falta de direitos básicos e alcançar a realização da nossa cidadania. Aumentar a nossa representação política é essencial, mas a organização popular será a chave para lutar na opinião pública em defesa dos nossos direitos.

Silvia Lospennato, representante nacional da Argentina no interbloco Juntos pela Mudança. Na Argentina celebraremos nos próximos meses 40 anos de democracia, um longo período de estabilidade política e de respeito irrestrito pelos direitos humanos. Uma estabilidade política que não foi acompanhada pelo mesmo nível de estabilidade económica porque nestes 40 anos atravessamos grandes crises económicas com as suas consequências sociais que deterioraram a qualidade de vida de milhões de argentinos. No entanto, mesmo nos momentos mais críticos, as instituições democráticas foram fundamentais para processar as crises no quadro da Constituição Nacional.

Também nestes anos houve enormes avanços em termos de reconhecimento dos direitos das mulheres e das diversidades, que são fruto desse pacto democrático. Muitos destes direitos foram garantidos através de leis que não só tiveram um amplo consenso no momento da sua promulgação, mas também foram acompanhadas por políticas públicas para garantir o acesso a esses direitos. Atualmente, a crise económica e social que atravessa a Argentina aumentou os níveis de insatisfação com a democracia. É isso que reflectem os inquéritos, especialmente entre os jovens, e é claro que nos preocupa. Contudo, estou otimista quanto à resiliência do nosso pacto democrático para persistir na defesa de todos os direitos conquistados nestes anos.

O que é necessário para melhorar a representação e a participação das mulheres e das pessoas LGBTIQ+ nos espaços de poder?

Norma Piña: 

- Uma das conquistas mais representativas do movimento de mulheres e pessoas LGBTIQ+ é ocupar cargos de poder. O caminho foi longo, mas os resultados gerais foram bons. No México, a paridade foi construída desde 1997 e só em 2019 é que, a nível constitucional, alcançamos a chamada “paridade em tudo”. Por sua vez, até às eleições de 2021, os partidos políticos tinham de garantir candidaturas de pessoas LGBTIQ+, entre outros grupos historicamente discriminados, como os indígenas, os afrodescendentes e as pessoas com deficiência.

Contudo, a realidade social ainda não consegue acompanhar o que as leis estabelecem. Embora haja cada vez mais mulheres e pessoas LGBTIQ+ em posições de poder, o progresso tem sido lento e requer muita vontade política, cidadãos e consciência para que se torne uma realidade. Podemos ver a paridade no Congresso e até espaços importantes ocupados por mulheres, como o Ministério do Interior e o Ministério das Relações Exteriores – Ministérios do Interior e das Relações Exteriores, respectivamente – mas a transversalidade em todos os espaços continua a ser percebida como distante.

Vejamos o caso da própria Suprema Corte do México. Em quase 200 anos de existência, apenas 14 mulheres foram ministras, e só em 2023 é que este Supremo Tribunal teve a sua primeira mulher presidente. É claro que isso não foi repentino. Fui juiz e depois magistrado. E em 2015, quase 20 anos depois de iniciar a minha carreira judicial, fui eleita ministra do Supremo Tribunal de Justiça da Nação, numa lista que foi decidida que deveria ser composta exclusivamente por mulheres. Hoje temos a maior presença de mulheres na Corte em toda a sua história: 4 dos seus 11 membros. Mas ainda temos um longo caminho a percorrer para alcançar a paridade.

Carolina Giraldo. No caso de diversas pessoas, as eleições legislativas de março de 2022 marcaram um marco crucial na história da participação política das pessoas LGBTI+ na Colômbia. Atualmente, no Congresso da República há sete parlamentares abertamente diversos. Este é um facto histórico num país onde a discriminação ainda é evidente e ceifa vidas, e numa instituição onde os debates sobre os direitos da população LGBTI+ têm sido tradicionalmente evitados.

Precisamos que o sistema educativo responda às exigências da paridade de género. Embora as quotas de género tenham sido uma estratégia que visa aumentar a representação das mulheres na política, elas não são suficientes por si só. Os Estados devem acrescentar espaços de discussão e reconhecimento da diversidade para eliminar práticas que geram discriminação e impedem que mulheres e pessoas diversas tenham acesso a posições de influência.

Os partidos políticos e o Estado devem promover muito mais escolas de participação política e formação para mulheres, bem como garantir que as campanhas políticas sejam financiadas numa perspectiva de equidade de género.

Patrícia Mercado: 

Embora tenhamos conseguido instituir a paridade, que aponta para a igualdade de participação entre mulheres e homens, a discriminação ainda persiste. As regras de promoção e promoção dentro dos partidos são claras. As mulheres que entram na política frequentemente não têm as redes de contactos e alianças que os homens têm, e também enfrentam situações de violência baseada no género que impedem o seu desenvolvimento político.

É necessário estabelecer que o Estado é responsável pelo cuidado das pessoas dependentes. Entretanto, não alcançaremos níveis igualitários e equitativos de inserção laboral e participação política. Para as pessoas LGBTIQ+, houve avanços nas diretrizes do instituto eleitoral para ações afirmativas em candidaturas. Isso deve continuar e se tornar lei.

Érika Hilton: 

-Vários fatores, mas um bom começo é os partidos políticos realmente investirem nesses candidatos com apoio financeiro, jurídico, político, visibilidade, e não usarem apenas mulheres, negros, indígenas e pessoas LGBTQI+ como tokens, numa fachada representativa e diversificada , quando o poder político continua concentrado nas mãos de homens brancos ricos, herdeiros de décadas de domínio político em todo o mundo.

Erika Hilton, moradora de São Paulo, durante entrevista em 19 de novembro de 2020.

Sílvia Lospennato:- 

Temos garantidos direitos formais e, no caso das mulheres, uma lei de paridade que garante a igualdade de participação em cargos públicos eletivos e nos partidos políticos. Temos também quotas para o financiamento dos partidos políticos que devem ser aplicadas às mulheres. Contudo, o aumento da participação das mulheres em cargos parlamentares não tem a mesma correlação nos cargos executivos onde governadores e prefeitos continuam a ser quase uma exceção.

O mesmo acontece com outros espaços de poder, como o acesso a conselhos de empresas públicas ou a cargos de chefia no Judiciário. Na verdade, na Argentina temos um Supremo Tribunal de Justiça sem mulheres. Isto mostra que os sistemas de quotas continuam a ser uma ferramenta necessária, pelo menos a curto prazo, para garantir a participação das mulheres nos espaços de tomada de decisão. Mas o poder não é exercido apenas na esfera pública; Devemos também continuar lutando para quebrar os tetos de vidro do mercado de trabalho, acompanhados de políticas públicas e também de uma mudança cultural no setor privado para acompanhar as trajetórias das mulheres.

Silvia Lospennato, representante nacional da Argentina.

Catalina Oquendo, de Bogotá - Colômbia para o EL PAÍS, em 15.09.23

Sempre é possível fazer melhor

Todos os finais de temporada Guardiola analisa suas equipes e resolve o que deve ser mantido e o que deve ser mudado

Guardiola é perfeccionista — Foto: Paul ELLIS / AFP

No centrinho de Vieil Antibes, no Sul da França, existe uma livraria chamada Antibes Books, especializada em livros sobre a região e seus grandes personagens. O diferencial dessa pequena livraria francesa é que todos os livros que ela vende foram escritos em inglês ou traduzidos para o idioma de Oscar Wilde. Outro dia comprei nessa livraria, que eu considero uma joalheria, o livro “French Riviera and its artists”, do escritor australiano John Baxter.

O livro analisa a pintura de Cézanne e Renoir, comenta os visuais que inspiraram Matisse, as cores que mudaram o trabalho de Chagall, os lugares onde Picasso viveu suas maiores paixões, o estilo de vida que influenciou a literatura de F. Scott Fitzgerald, a constante preocupação estética de Coco Chanel e o surgimento de Brigitte Bardot.

Além dessas figuras notáveis, outros grandes nomes fazem parte do livro, todos com enorme talento, grande capacidade de trabalho e a crença de que sempre dá para fazer melhor. Bom exemplo disso é um famoso diálogo de Oscar Wilde.

— Como foi sua manhã, senhor Wilde?

— Exaustiva — respondeu ele. — O tempo todo revisando meu novo poema.

— E o resultado?

— Muito importante — disse Wilde. — Tirei uma vírgula.

— Mas só isso?

— De jeito nenhum. Depois de uma reflexão mais amadurecida sobre a questão, eu a coloquei de volta.

A verdade é que sempre dá para fazer melhor, em qualquer tempo e em qualquer área.

No final do século XIX, os móveis escolares eram de madeira, as salas de aula eram escuras, e o leiaute dos ambientes exigia que os alunos ficassem virados para o professor. Existia a tradicional separação entre meninos e meninas.

A partir dos anos 1920, arquitetos como Walter Gropius passaram a voltar sua atenção para projetos de escolas. Elas começaram a se caracterizar por ter mais descontração, ar fresco, luz do dia e espaços integrados para aprendizado externo. Prova de que dava para fazer melhor.

No dia 4 de setembro de 1922, foi fundada na Inglaterra a SS Cars Limited, que, em 1945, por causa dos nazistas, mudou seu nome para Jaguar. Nesses quase 80 anos de atuação, essa empresa produziu um dos mais tradicionais automóveis do planeta, sem nuncater perdido de vista a ideia de que dava para fazer melhor. Tanto que agora, em 2023, a Jaguar já anunciou que, a partir de 2030, todos os seus carros serão elétricos, o que é fundamental para o futuro da humanidade.

No ano de 1987, a chef Ruth Rogers e sua sócia Rose Gray montaram o restaurante River Café. Naquela época, Londres ainda não era a capital mundial da gastronomia que se tornou hoje, mas o River, com sua magnífica comida, num ambiente projetado pelo marido de Ruth, o consagrado arquiteto Richard Rogers, foi imediatamente um sucesso.

Parecia que não dava para fazer melhor, mas dava. Pouco tempo depois da inauguração, Ruth resolveu que seu restaurante teria diferentes cardápios a cada estação: primavera, verão, outono e inverno. A ideia deu tão certo que permanece até hoje.

Desde 2008, Pepe Guardiola acumula vitórias, mas jamais se acomoda. Todos os finais de temporada analisa suas equipes e resolve o que deve ser mantido e o que deve ser mudado. Guardiola escolhe sempre futebolistas que atuem bem em mais de uma posição, porque prefere trabalhar com elencos curtos. Acredita que, com menos gente e de maior talento, dá para fazer melhor.

Nos anos 1990, a W/Brasil era a agência de publicidade que ganhava a maioria dos clientes e a maioria dos prêmios, porque tinha os melhores profissionais. Mas, se surgisse algum jovem fora de série no mercado, nós contratávamos mesmo sem precisar. Sabíamos que, com esse reforço, dava para fazer ainda melhor.

Desde 1959, o Ronnie Scott’s é um clube de jazz perfeito. Está para Londres como o Village Vanguard para Nova York. Apresenta os melhores músicos e vive sempre lotado. Teoricamente, não tem o que melhorar, mas acaba de comunicar aos seus integrantes que comprou um órgão Hammond B3, instrumento preferido dos ouvidos absolutos. Comprou esse órgão por um motivo simples: até aquilo que já é perfeito pode ser aperfeiçoado.

Pense nisso toda vez que for fazer alguma coisa.

 Washington Olivetto, o autor deste artigo, é Publicitário. Publicado n'O Globo, em 11.09.23

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Saiba quem é Daniela Teixeira, advogada do DF indicada por Lula ao STJ

Advogada deve ser a primeira brasiliense a integrar a Corte; ela tem o apoio do PT e já discutiu com o ex-presidente Jair Bolsonaro no plenário da Câmara

Daniela Teixeira foi indicada pelo presidente Lula para vaga no STJ Foto: Reprodução/Instagram

Indicada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nesta terça-feira, 29, para uma vaga no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a advogada Daniela Teixeira, de 51 anos, teve o apoio de petistas próximos ao presidente para garantir a preferência dele. Candidata mais votada para integrar a lista sêxtupla definida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Daniela já era a favorita para assumir o posto, que foi aberto após a aposentadoria do ministro Felix Fischer.

Ela ocupará no STJ uma cadeira da Ordem. Na instituição, foi vice-presidente da seccional do Distrito Federal entre os anos de 2016 e 2019. Atualmente, é integrante do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e conselheira do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Nascida no Distrito Federal, Daniela Teixeira será, se nomeada, a primeira brasiliense a integrar a Corte.

Ela passará por sabatina na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado. Se aprovada pela CCJ e pelo plenário da Casa, será nomeada e empossada como ministra.

Daniela Teixeira é graduada em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), tem especialização em Direito Econômico e Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), e é mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

Em 2013, foi condecorada no grau de comendadora da Ordem do Mérito Dom Bosco pelo Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT-10). Em 2016, recebeu a Medalha do Mérito Eleitoral do Distrito Federal pelo Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal (TRE-DF), devido à experiência com julgamentos eleitorais. No ano de 2017, recebeu o Diploma Mulher-Cidadã Carlota Pereira de Queirós, destinado a agraciar mulheres que tenham contribuído para o pleno exercício da cidadania, na defesa dos direitos da mulher e em questões do gênero.

Um dos motivos da premiação pelo Congresso foi por conta de uma lei de sua autoria aprovada em 2016, que modificou o Código de Processo Civil e o Estatuto da Advocacia para garantir direitos às advogadas grávidas e mães. A nova legislação dispensou gestantes e lactantes de passarem em aparelhos de raio-x na entrada dos fóruns e tribunais. Um dos problemas relatados pelas advogadas grávidas era o risco que provocavam para os bebês com a exposição excessiva à radiação, pois chegam a fazer a inspeção 30 vezes por semana. A revista passou a ser manual.

Advogada militante desde 1996, Daniela Teixeira é integrante do Grupo Prerrogativas, que reúne advogados e surgiu para defender os direitos dos profissionais em relação às decisões classificadas por eles como arbitrárias na Operação Lava Jato e da atuação do ex-juiz e atual senador Sérgio Moro (União-PR).

Indicada ao TSE, ela não teve a nomeação de Bolsonaro

Em 2019, Teixeira figurou a lista tríplice para vaga de ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em uma votação feita por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Mesmo sendo a favorita para assumir o cargo, com o apoio da ministra do STF Rosa Weber, ela não foi nomeada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que preferiu o nome do atual ministro Carlos Velloso Filho.

A sua relação com o ex-presidente é turbulenta. Em 2016, ela discutiu com Bolsonaro no Congresso, quando ele ainda era deputado federal. O bate-boca ocorreu em audiência pública para discutir a cultura do estupro. Daniela Teixeira disse que os criminosos deveriam ser punidos, independentemente de quem fosse, inclusive “um deputado que é réu numa ação já recebida no STF”.

Bolsonaro rebateu fora dos microfones e gritou: “Aponta o nome dele”. Teixeira respondeu: “É o senhor, Jair Bolsonaro, réu no inquérito já admitido pelo STF”. A resposta da advogada provocou tumulto, com Bolsonaro exigindo direito de resposta para a deputada Maria do Rosário (PT-RS), que presidia a sessão. Alguns deputados tiveram que segurar Bolsonaro, e Maria Rosário pediu à segurança que se dirigisse ao local. A advogada saiu da Câmara sob escolta.

O caso citado por Bolsonaro foi por conta da abertura de um inquérito pelo STF para apurar uma suposta prática dos delitos de incitação ao crime de estupro e injúria contra a deputada Maria do Rosário em 2014. Em um discurso no Plenário da Câmara, o ex-presidente disse que Rosário “não merecia ser estuprada”.

Em junho deste ano, o ministro Dias Toffoli remeteu os processos do STF ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF), após Bolsonaro deixar o cargo de presidente. Em julho, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) pediu o arquivamento da ação, por prescrição, o que foi atendido pela Justiça da capital federal.

Gabriel de Sousa para O Estado de S. Paulo, em 29.08.23, às 18h45

A nova pedalada moral de Lula

Ao distorcer o conteúdo de decisão judicial para reeditar a historieta do golpe, Lula ofende o Congresso e o Judiciário – e alimenta a ideia de que só é democrático o que lhe agrada

O presidente Lula acha que o Brasil deve desculpas e reparações a Dilma Rousseff. Em entrevista durante sua passagem por Angola, referindo-se à decisão do Tribunal Regional da 1.ª Região (TRF-1) de arquivar uma ação de improbidade pelas “pedaladas fiscais”, Lula disse: “A Justiça Federal absolveu a companheira Dilma da acusação da pedalada”. A afirmação do presidente petista é mais uma tentativa de desinformar e confundir os brasileiros. O TRF-1 nem sequer avaliou o mérito da acusação, tampouco desautorizou a sentença do Congresso que condenou Dilma Rousseff por crime de responsabilidade em função das pedaladas fiscais.

A decisão do TRF-1 foi proferida em ação de improbidade administrativa proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) contra Dilma e integrantes de seu governo por valerem-se “dos altos cargos que ocupavam na direção do governo federal para maquiar as estatísticas fiscais com evidente propósito de melhorar a percepção da performance governamental e ocultar uma crise fiscal e econômica iminente, ao tempo em que comprometiam ainda mais a saúde financeira do Estado”. A acusação baseia-se em irregularidades identificadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que depois, por unanimidade, reprovou o governo, determinando que 17 autoridades explicassem as práticas ilegais.

Como se sabe, o pedido de impeachment contra Dilma Rousseff refere-se a esses mesmos fatos, em particular à edição de três decretos de crédito suplementar sem autorização do Congresso e ao atraso nos repasses de recursos do Tesouro a bancos públicos para o pagamento de programas sociais. Autorizada sua abertura pela Câmara, o processo foi julgado pelo Senado, que condenou Dilma Rousseff por crime de responsabilidade.

Em 2022, a ação de improbidade foi arquivada pelo juízo de primeira instância. Ele não contestou a decisão do Congresso, antes reconheceu que a presidente Dilma já havia sido condenada por aqueles mesmos fatos no âmbito do processo de impeachment. Não cabia, portanto, uma dupla responsabilização, agora por meio da Lei de Improbidade Administrativa.

“Houve uma extinção da ação, sem resolução do mérito”, disse ao Estado a advogada Vera Chemim, mestre em Direito Público Administrativo pela Fundação Getulio Vargas. “Não é uma questão de inocentar, e sim de caráter formal e processual.” A decisão do TRF-1 simplesmente rejeitou o recurso do MPF que havia questionado o arquivamento em primeira instância.

Em vez de respeitar os fatos, Lula e o PT querem, no entanto, confundir a população, dando a entender que a Justiça teria declarado agora que as pedaladas fiscais não existiram. No conto petista, a decisão do TRF-1 seria a grande prova do golpe. “Entendo que cabe um projeto de resolução nesse sentido com base na decisão do TRF-1, que deixa claro que o impeachment foi uma grande farsa, que a história das pedaladas foi uma armação, literalmente um golpe”, disse a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, ao jornal Folha de S.Paulo. “O Brasil deve desculpas à presidente Dilma, porque ela foi cassada de forma leviana”, afirmou Lula.

A rigor, essa tentativa de distorção de uma decisão judicial por parte do PT é uma agressão às instituições democráticas. No processo de impeachment de Dilma Rousseff, não houve nenhum golpe. O Congresso aplicou a Constituição e as leis do País. E justamente porque foi uma condenação perfeitamente válida, a Justiça reconheceu agora que não cabia instaurar um novo processo pelos mesmos fatos.

Em vez de acolherem o conteúdo da decisão do TRF-1, Lula e seu partido preferem fabricar desinformação. E essa manobra não consiste meramente na invenção de uma versão irreal dos fatos, o que por si só é muito grave: afinal, Lula está usando um cargo público para distorcer a compreensão por parte da população de uma decisão da Justiça. Com a reedição da historieta do golpe, Lula e o PT desautorizam uma vez mais o exercício de uma atribuição constitucional do Congresso. Alimentam, assim, a equivocada ideia de que só é democrático o que lhes agrada. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 29.08.23

O custo da democracia – o Poder Legislativo

O momento exige responsabilidade fiscal. É hora de lutarmos por maior eficiência nos gastos públicos. Que tal começarmos pelo Poder Legislativo?

É grande o poder legislativo brasileiro. São 513 deputados federais, 81 senadores, 1.059 deputados estaduais e 58.208 vereadores. É poderoso o Poder Legislativo, especialmente o federal. Só de emendas parlamentares foram empenhados, em 2022, R$ 25,4 bilhões. É caro o Poder Legislativo. Considerados a União, os Estados e os municípios, o custo anual é de cerca de R$ 40 bilhões; destes R$ 13 bilhões correspondem ao Congresso Nacional.

Os partidos políticos têm acesso a dois fundos – o Fundo Partidário (oficialmente Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos) e o Fundo Eleitoral (oficialmente Fundo Especial de Financiamento de Campanha). O Fundo Partidário foi criado em 1995 e custa cerca de R$ 400 milhões anuais ao contribuinte. O Fundo Eleitoral, criado em 2017 e mais generoso, é dividido entre os partidos políticos: foram cerca de R$ 5,4 bilhões em 2022.

O orçamento do Congresso Nacional o torna o segundo mais caro do mundo, atrás apenas do norte-americano. O custo do Congresso Nacional dos outros países representa 1/3, ou menos, do brasileiro. Uma das razões é o portentoso contingente que assessora os parlamentares: são quase 14 mil funcionários na Câmara dos Deputados e 6 mil no Senado Federal.

As emendas parlamentares, mecanismo legítimo de captura por senadores e deputados de demandas da população, pedem uma profunda revisão, em razão da falta de critérios técnicos na sua seleção e da absoluta falta de transparência em sua aplicação. São emendas individuais, de bancada, de comissões e de relator. Em 2022 foram 6.101 emendas; as individuais e de bancada (que somam 58% do total, em valor) são de aplicação impositiva, ou seja, o Poder Executivo não pode exercer qualquer limitação à sua implementação.

O Brasil é, também, um dos poucos países que dispõem de uma Justiça Eleitoral apartada, que custa R$ 10 bilhões por ano.

É pacífica a relevância do Poder Legislativo na democracia brasileira. É reconhecida a eficiência da nossa Justiça Eleitoral. Mas será que o custo total do sistema se justifica? Será que é possível fazer o mesmo por menos, destinando a fins mais nobres – como educação, saúde, ciência e tecnologia, investimentos sociais – parte desses recursos? É razoável que se destinem tantos recursos, via emendas parlamentares, a projetos muitas vezes sem méritos e com riscos de destinação espúria e corrupção?

É razoável a forma de distribuição dos assentos da Câmara dos Deputados – proporcional à população, mas com um mínimo de 8 cadeiras para os Estados menores e um teto de 70 cadeiras para o maior Estado? Será que todos se dão conta de que Estados como Acre, Amapá e Roraima, com populações entre 630 mil e 830 mil habitantes, elegem um deputado federal para cada 80 mil habitantes, enquanto os paulistas elegem um deputado federal para cada 630 mil habitantes?

O próprio sistema eleitoral brasileiro poderia ser mais equilibrado – em termos de distribuição das cadeiras pelos Estados –, assegurando um vínculo continuado entre representado e representante; algo na direção de um sistema distrital misto, há muito recomendado por especialistas. Não há, aqui, um julgamento de valor da representação popular nos nossos Parlamentos, mas tão somente um alerta quanto às possibilidades de melhoria da relação custo/benefício da atual estrutura. A reforma política avançou muito na gestão Rodrigo Maia; falta, ainda, acabar com as coligações em eleições majoritárias.

Mais do que nunca, a harmonia entre os Poderes brasileiros (Executivo, Legislativo e Judiciário) se faz necessária, depois dos anos recentes de ataques políticos e eleitoreiros que afetaram essas relações de maneira perigosa. A percepção da melhoria nesta área já parece estar traduzida na recente revisão da nota do Brasil feita pela agência de classificação de risco Fitch, sugerindo o arrefecimento das relações políticas e as aprovações – ainda que parciais até agora – da reforma tributária e do arcabouço fiscal como pontos positivos ao País.

Ainda não voltamos a ser grau de investimento – ou seja, o Brasil ter o selo de “bom pagador” e ver seus custos de crédito, por exemplo, reduzidos –, mas estamos a apenas dois degraus de alcançar novamente essa posição, que perdemos no final de 2015. Não que a tarefa seja fácil, muito menos tranquila, mas é praticamente consenso quais são os pontos que precisam ser atacados de forma incisiva. Reduzir e otimizar gastos públicos é, certamente, um deles.

O momento exige responsabilidade fiscal que garanta a estabilidade macroeconômica, essencial para o desenvolvimento, o que demanda que o Estado revisite com determinação os seus custos, enfrentando áreas que têm permanecido intocadas por décadas e que parecem agir com indiferença às necessidades do País.

É hora de estes assuntos entrarem de maneira mais forte no debate nacional. É hora de lutarmos por maior eficiência nos gastos públicos. Que tal começarmos pelo Poder Legislativo? 

Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski, os autores dete artigo, são empresários. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.08.23

A ‘neutralidade’ do Poder Judiciário é realista?

A noção adequada ao atual estágio do conhecimento que pode ser ‘exigida’ do Poder Judiciário é que seja ‘imparcial’

A ideia de jurisdição, como atualmente se concebe, tem raiz no século 18 e decorre, principalmente, da amplamente difundida teoria da separação dos poderes de Montesquieu, segundo a qual, grosso modo, dos três tipos de poder existentes nos Estados caberia ao Judiciário “julgar os crimes e as querelas entre particulares”, restando para o Legislativo e o Executivo a criação das leis e a garantia da paz, respectivamente.

Sob a premissa de que somente o poder é capaz de limitar o poder, sustentava o célebre filósofo francês que o poder em causa serviria para a limitação dos demais, devendo aplicar as leis elaboradas pelo Legislativo, com a participação do Executivo, mas sem subordinação a eles, haja vista tal autonomia ser indispensável para a liberdade individual, na medida em que, “se estivesse unido ao Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador”, e, “se estivesse unido ao Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor”.

Desde sua gênese, portanto, ao mesmo tempo que se pretende a sua independência, espera-se de seu exercício um agir limitado pelo texto da lei (que advém de outro Poder) e neutro, fruto do conhecimento da época, de predomínio da razão moderna. Daí a ideia de um juiz “boca da lei” e a associação entre jurisdição e neutralidade.

Passados mais de três séculos de evolução do conhecimento, com um avanço considerável da compreensão da complexidade da mente humana, tal neutralidade do homem racional não mais se sustenta cientificamente, emergindo a falibilidade da razão humana como princípio, dentre outros fatores, ante as influências da razão pela emoção e da subjetividade individual pelo contexto social.

Resulta desse progresso – no que aqui interessa – a substituição de tal neutralidade da jurisdição pela noção de imparcialidade, construção jurídica voltada à manutenção da legitimidade jurisdicional, que com a anterior não se confunde, ainda que não raras vezes se observe a confusão, inclusive por seus próprios representantes.

A partir da nova noção, ao invés da utópica expectativa de que um juiz se possa desvencilhar das suas experiências passadas, suas preferências ideológicas, etc., para exercer a judicatura, aceita-se que, como ser humano comum, jamais conseguirá afastar a sua subjetividade para julgar um processo, sendo tal constatação o simples reconhecimento da sua condição humana. Afinal, seja por ser fruto do contexto social em que habita, seja por possuir um sistema psíquico complexo, cujo consciente representa somente um dos processos, invariavelmente seu pensar e agir serão reflexos de tais fatores, tal como de qualquer pessoa, insista-se, comum.

Não à toa, Cesare Beccaria, para citar também um célebre jurista, preocupava-se tanto com a interpretação do “espírito da lei” pelos juízes, já que tal corresponderá “à boa ou má lógica do juiz, e isso dependerá de sua boa ou má digestão, da violência de seus interesses, (...) das relações com o acusado e todas aquelas pequenas circunstâncias que alteram a aparência de cada objeto, na flutuante mente humana”, o que inclusive explica vermos “o destino de um cidadão alterado várias vezes ao passar por diferentes tribunais e sua vida ser vítima de falsas ideias ou do mau humor do juiz, que confunde a legítima interpretação das leis com o vago resultado de toda aquela confusa série de noções que lhe move a mente”.

Não sendo, por certo, o juiz exceção aos demais seres humanos nem possuindo qualquer dom de se desvincular de suas experiências passadas e preconceitos, é inevitável que sua atuação seja dirigida por sua visão de mundo e dos fenômenos que nele acontecem, de modo que qualquer ato judicial, em maior ou menor grau, refletirá o olhar particular do seu responsável, jamais neutro.

Consequentemente, fatalmente irrealista a expectativa de neutralidade da atividade jurisdicional, devendo-se adotar, nesse lugar, o critério da imparcialidade, limite possível aos prejuízos que a subjetividade individual pode impor ao seu exercício.

É essa a noção adequada ao atual estágio do conhecimento que pode ser exigida do Poder Judiciário. Que seja imparcial. Que, reconhecendo as idiossincrasias de seus representantes, compreenda que seu exercício somente atenderá a tal requisito de validade se levado a efeito de forma desinteressada (alheia) aos interesses das partes, mas comprometida com a apreciação de suas versões, proporcionando sempre igualdade de tratamento e oportunidades aos envolvidos, para que nenhuma parte seja beneficiada em detrimento da outra, mesmo involuntariamente.

Eis as condições de imparcialidade para a atividade jurisdicional, que inclusive permitem identificar envolvimentos indevidos do juiz em situações nas quais sua subjetividade será o critério preponderante na condução dos seus atos. Como nos lembra Francesco Carnelutti, “a justiça humana não pode ser mais do que uma justiça parcial; (...) Tudo o que se pode fazer é tentar diminuir essa parcialidade”. 

Ruiz Ritter, o autor deste artigo, é advogado criminalista, doutorando e mestre em ciências criminais pela PUC-RS. Autor do livro "Imparcialidade no Processo Penal - Reflexões a Partir da Teoria da Dissonância Cognitiva". / e-mail: ruiz@ritterlinhares.com.br. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.08.23

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Freio de arrumação militar

Malgrado a platitude, ordem do general Tomás para despolitizar o Exército é muito bem-vinda por relembrar aos militares seu papel e suas responsabilidades à luz da Constituição

Uma ordem burocrática do comandante do Exército não despertaria atenção não estivessem as Forças Armadas tão contaminadas pelo vírus do golpismo inoculado pelo bolsonarismo. Nesse sentido, é muito bem-vinda a Ordem Fragmentária n.º 1/2023, que o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva fez publicar no Boletim do Exército no dia 18 passado. A ordem reitera à sociedade o compromisso do comandante de afastar o Exército da nefasta polarização política, movimento estimulado com esmero por Jair Bolsonaro desde antes de o mau militar chegar à Presidência. Passa da hora de virar essa triste página da história republicana

É péssimo para o País conviver com suas Forças Armadas abaladas por uma crise de confiança. É ocioso elaborar a respeito da centralidade do papel dos militares na defesa do interesse nacional em múltiplas frentes – sendo a de batalha a mais distante da realidade brasileira. E esse papel, é evidente, só pode ser bem exercido quando não pairam dúvidas sobre o Exército, a Marinha e a Aeronáutica quanto à sua credibilidade institucional e ao profissionalismo de seus integrantes. Noutras palavras: quando não se observa na atuação dos militares qualquer desvio de suas atribuições constitucionais.

A crise, contudo, aí está e não há como negá-la; como também é inescapável a conclusão de que alguns dos responsáveis pelo desgaste do prestígio das Três Armas perante a sociedade nos últimos anos envergam ou envergaram a mesma farda que passaram a desonrar por uma escolha livre e consciente de se afastar dos ditames da Constituição para se imiscuir na política. Se, por um lado, a ordem do general Tomás nada traz de novo, por outro, serve como uma espécie de “freio de arrumação”, vale dizer, é um lembrete à tropa dos papéis e responsabilidades dos militares no Estado Democrático de Direito à luz da Lei Maior.

No documento, entre outras providências, o comandante do Exército reafirma que a Força “é uma instituição de Estado, apartidária, coesa, integrada à sociedade e em permanente estado de prontidão”. Nada diferente, como se vê, do que diz a Constituição e do que dissera o próprio general Tomás em janeiro, quando, à frente do Comando Militar do Sudeste, ordenou que seus subordinados respeitassem o resultado da eleição passada. Em outras palavras, tratava-se de lembrar que este país não é uma republiqueta de bananas.

Lida friamente, a ordem do general Tomás é uma reafirmação de que a vida castrense em nada toca a política, própria da vida civil. São como água e óleo. O documento, pois, não passa de uma compilação de determinações que seriam desnecessárias e soariam apenas como as platitudes que são não fosse o momento delicado por que passam as Forças Armadas, em especial o Exército, como decorrência da ligação antirrepublicana de alguns militares, inclusive da ativa, ao bolsonarismo e das graves suspeitas que recaem sobre eles na preparação e execução dos atos golpistas do 8 de Janeiro e no suposto esquema de venda ilegal de joias da União no exterior.

Porém, justamente pelo desassombro com que se comportaram esses maus militares que, em nome de um desqualificado como Bolsonaro, expuseram a risco não só suas biografias, como a reputação institucional das Forças Armadas, certas obviedades precisam ser ditas – e, sobretudo, por quem as têm dito.

Há poucos dias, durante um seminário promovido pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara sobre os limites constitucionais à atuação dos militares, o general da reserva Sérgio Etchegoyen se uniu ao comandante do Exército na defesa do afastamento de servidores de carreiras de Estado, inclusive militares, caso queiram participar de eleições. De fato, as coisas não se misturam, pois não pode haver uma névoa de suspeição sobre quem exerce funções típicas de Estado de que suas motivações funcionais possam ser outras além do interesse público.

A sociedade só perde a confiança nas instituições quando os cidadãos percebem que seus membros se desvirtuam de seus desígnios originários. Logo, o resgate dessa confiança passa, necessariamente, pelo retorno dessas instituições aos trilhos das leis e da Constituição. Nada há de mistério.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 23.08.23

terça-feira, 22 de agosto de 2023

A tirania da mediocridade

A busca da eficiência e de resultados com visão de futuro, com uma nova liderança política e uma burocracia mais competente, é do que o Brasil precisa

Poucos pensam e discutem o Brasil acima de preocupações político-partidárias e de interesses pessoais. Não se trata de criticar a ação do governo de turno e de outros que o precederam. Hoje, na prática, o País está sem projeto de nação, que defina os rumos da economia; sem estratégia nacional de segurança, que defina o lugar do Brasil no mundo em rápida e profunda transformação; sem uma clara definição de objetivos modernos para a educação que dê base para a inovação e o desenvolvimento tecnológico; e sem saber como equacionar seus problemas sociais e ambientais no médio e no longo prazos.

Com forte influência populista, o País está dividido ideologicamente e politicamente. Ao não ousar, vê seu crescimento reduzido, as desigualdades aumentando, a violência crescendo, a base industrial se deteriorando e as vulnerabilidades econômicas, comerciais, sociais, militares e de defesa aumentarem. A segurança jurídica está abalada por decisões contraditórias e a competitividade da economia, paralisada pela ineficiência da burocracia e do tamanho do Estado.

A mediocridade da discussão e das ações burocráticas em grande parte explica esta situação de falta de perspectiva do País. A polarização política e a intolerância deixam a burocracia semiparalisada, com receio de assumir decisões que possam ser vistas como partidárias e que poderiam gerar consequência políticas ou mesmo jurídicas contrárias. 

A sociedade civil está sem liderança para propor a revisão de políticas institucionais de desenvolvimento e reforma política de interesse do País, e sem força para propor uma nova relação entre civis e militares, desgastados pelos envolvimentos recentes, para virar a página da histórica interferência militar na política. 

Os empresários, sobretudo no setor industrial, estão sem projetos e se acomodam aos governos de turno para defender seus interesses setoriais. O sistema político-partidário é disfuncional pelo número de partidos, sem uma clara ideologia, atuando na defesa de seus próprios interesses econômicos, comerciais e patrimoniais. 

O Congresso Nacional tem avançado o exame e a aprovação de algumas reformas, mas a percepção é de que, sem programas claros na defesa dos interesses maiores do País, fica enredado na discussão menor de privilégios e muitos de seus representantes aparecem envolvidos com corrupção. 

O Judiciário sofre desgaste com a judicialização de questões que o Legislativo e o Executivo não conseguem resolver. Em muitos casos, decisões são tomadas com forte viés político, alterando substancialmente decisões anteriores, ensejando a visão de que a política menor, e não a Constituição, prevalece em suas decisões.

Num mundo em que o conhecimento está na base das grandes mudanças, com os desafios da aplicação da Inteligência Artificial, o País não consegue superar as deficiências do sistema educacional. As escolas e universidades, com honrosas exceções, não respondem às necessidades dos novos tempos. Os recursos públicos são mal administrados e o Brasil está muito baixo nos índices internacionais.

As ONGs e os think tanks, com uma visão setorial em suas atuações, examinam e atuam com competência nas matérias que discutem, mas em raros casos têm força e poder para influir na definição de políticas públicas que possam ser avaliadas e tenham um sentido e uma visão de médio e longo prazos.

Nessa breve análise, que não pretende esgotar o assunto, mas chamar a atenção para as armadilhas de que a sociedade foi vítima, em todas as áreas mencionadas, o que se destaca, lamentavelmente, é o triunfo da mediocridade.

A mediocridade da classe dirigente historicamente refletida na incapacidade de aproveitar as potencialidades do Brasil para deixar de ser um país do futuro e transformá-lo numa força global, como ocorreu em Cingapura e na China.

Para superar essa situação, em que a mediocridade prevalece – inclusive pelo despreparo, pelo nepotismo, apadrinhamento, formas disfarçadas de corrupção, nas nomeações para o serviço público e para as filiações partidárias –, o Brasil teria de dar força à meritocracia, para buscar a eficiência e resultado nas políticas em todas as áreas. O termo meritocracia é um neologismo inventado nos anos 1950 pelo sociólogo britânico Michael Young. No romance The Rise of the Meritocracy (O surgimento da meritocracia), Young descreve uma sociedade em que os melhores e mais aptos detêm o poder. Ao morrer, em 2002, Young estava decepcionado com a vida pública estratificada na Inglaterra, mas tinha esperança na terceira via de Tony Blair.

O valor do mérito é atacado hoje no Brasil todos os dias e em todos os lugares: vejam como se desenvolve a carreira na classe política e o nivelamento por baixo, por muitos anos, nos principais setores do serviço público. Para muitos dos que o desprezam, o mérito seria uma vitrine enganosa, que dissimula mal a sobrevivência das elites. Os que atacam a meritocracia, com hipocrisia e cinismo, são os principais responsáveis pelos seus desvios.

A busca da eficiência e de resultados com visão de futuro, com uma nova liderança política e uma burocracia mais competente, é do que o Brasil precisa. O setor privado fará sua parte.

Abaixo a tirania da mediocridade.

Rubens Barbosa, o autor deste artigo, é Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e ex-embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004). Membro da Academia Paulista de Letras. Escreve mensalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de S. Paulo. Publicado originbalmente em 22.08.23


Democracia lotérica

Trocar eleições por sorteio para cargos públicos protegeria sistema de personalidades perigosas

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Sessão de posse dos deputados federais eleitos na Câmara, em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress - Folhapress

Vamos acabar com as eleições? Calma, a ideia não é minha, mas de Adam Grant, que não é exatamente um golpista de quatro costados, mas um acadêmico, interessado em aprimorar a democracia. Ele expôs essa ideia em artigo que acaba de ser publicado no New York Times.

Grant é um psicólogo organizacional e, se há algo que psicólogos organizacionais temem, é a chamada tríade sombria, o nome dado à conjunção de altos teores de narcisismo, psicopatia e maquiavelismo numa mesma personalidade. Essa combinação é característica de líderes autoritários e bem mais comum entre políticos do que na população geral. Uma das razões para isso é que portadores da tríade tendem a ter ambição política e a ser bons manipuladores, o que lhes dá vantagem nas urnas.

O ponto de Grant é que é possível afastar a tríade mantendo-se nas quatro linhas da democracia. É só trocar as eleições, que geram essa seleção adversa, pelo sorteio, prática cujo pedigree democrático remonta à Atenas pós-Clístenes, na qual vários cargos públicos eram preenchidos por loteria. Há um resquício disso no instituto do júri, ainda presente em democracias modernas. O interessante no texto de Grant é como ele tenta desmontar as objeções que imediatamente nos vêm à mente.

Um exemplo? Ele cita trabalhos de Alexander Haslam que mostram que grupos tendem a tomar decisões melhores quando conduzidos por indivíduos escolhidos ao acaso do que por eleitos ou selecionados com base em testes de liderança. Ele admite, porém, que seria necessário submeter os "sorteáveis" a uma prova de conhecimentos básicos.

Ele também cita, e isso para mim é novidade, uma série de experimentos com democracia lotérica que estão em curso em países como Canadá, Holanda, França, Alemanha e Reino Unido.

O argumento central de Grant, com o qual concordo, é que às vezes a prioridade da democracia deve ser proteger-se da exposição a personalidades perigosas.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo, autor de "Pensando bem..." Publicado originalmente em 22.08.23

A volta da obrigatoriedade do imposto sindical no Brasil pode ser um gol a favor da ultradireita de Bolsonaro

A velha esquerda às vezes parece não ter entendido que o mundo está em trabalho de parto de algo novo.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante reunião com membros do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, em 29 de janeiro de 2022. (Foto - Crédito: Carla Carniel, Reuters)

A notícia da volta ao imposto sindical compulsório, que havia sido abolido em 2017 e que inclusive pretende ser três vezes maior do que então, pode acabar sendo um gol a favor do bolsonarismo ultraliberal que prega uma política com menos e menos estado.

É verdade que já em 2017 a eliminação da obrigatoriedade do imposto de um dia de trabalho para os cofres dos sindicatos foi um nó na garganta do sindicalista Lula, hoje presidente do país pela terceira vez. Daí a polêmica questão ressurgir agora com o aval do ex-sindicalista.

O problema é que nos últimos seis anos o mundo e o Brasil mudaram radicalmente e qualquer retorno ao passado implica o perigo de uma regressão democrática. Não é talvez por causa do bolsonarismo no Brasil que um possível governo de Milei na Argentina de cunho ultraliberal, inimigos do Estado, possa colocar em crise os velhos esquemas da esquerda clássica, a começar pelo sindicato.

A surpresa do ressurgimento neste momento de mudanças radicais no mundo do trabalho e, portanto, da crise dos sindicatos clássicos do passado, de um imposto obrigatório dos trabalhadores para os cofres sindicais, gera apreensão.

E não se trata mais de esquerda e direita, termos cada vez mais desgastados, mas das mudanças de época que o mundo vive e que a esquerda tradicional, a dos velhos e fortes sindicatos setoriais, tem dificuldade de entender e digerir.

Hoje os políticos que vêm da esquerda trabalhista do passado não podem ignorar que vivemos uma das maiores revoluções justamente no mundo do trabalho. A crise de dezenas de empregos consagrados do passado não é mais uma hipótese, mas uma realidade. Foram profissões que constituíram o cerne dos sindicatos clássicos e que hoje sofrem uma profunda transformação, ao mesmo tempo que vão surgindo novas profissões, ainda sem definição própria e sem apoio do Estado.

Assim, em vez de ressuscitar os antigos sindicatos que protegiam profissões que conferiam segurança e privilégios, o que os políticos e governantes precisam de compreender hoje é que aqueles que precisam de atenção especial são aquele rosário de novas profissões em formação abandonadas à sua sorte sem sindicatos que as protejam.

É verdade que Lula e seu partido, o PT, nasceram e se forjaram nas lutas sindicais no seio das grandes fábricas e que os sindicatos eram então a sua maior proteção. Eram sindicatos nascidos no seio da esquerda que ofereciam segurança aos trabalhadores. Hoje, pelo contrário, o denominador comum dos novos empregos é a insegurança para os quais não existem sindicatos que os protejam e são abandonados à sua sorte.

Assim, a notícia do ressurgimento do antigo imposto sindical sobre trabalhadores permanentes, de alguma forma privilegiados, começa a preocupar, pois pode se tornar uma arma nas mãos do ultraliberal Bolsonaro, que proclama a morte do Estado e a política de proteção aos que sabem triunfar, deixando na vala os mais fracos que, segundo o referido ultraliberalismo, deveriam ser abandonados à própria sorte.

A última palavra sobre a ideia de ressuscitar o antigo imposto sindical obrigatório caberá agora ao Congresso, que foi quem o anulou em 2017 em meio a grande polêmica. Ao que tudo indica, não será fácil para o novo governo Lula voltar ao passado sindical porque não tem a maioria parlamentar que tenta conquistar palmo a palmo e à custa de entregar ministérios até para partidos abertamente bolsonaristas .

A polêmica em curso sobre o renascimento do antigo imposto sindical expõe a luta interna no novo governo Lula da velha guarda de seu PT. É a velha esquerda que às vezes parece não ter entendido que o mundo vive algo novo, inclusive no mundo do trabalho, e que se voltou ao poder foi graças às forças do centro que o sustentavam e que foram eles que lhe garantiram a vitória, ainda que por um punhado de votos, contra o raivoso e golpista Bolsonaro .

Lula começou bem sua nova aventura de governo, já alcançando 60% de consenso nacional e sangrando o Bolsonaro mais raivoso. A tentativa de reviver o antigo imposto sindical obrigatório não parece a melhor forma de demonstrar que ele entendeu que seu terceiro governo deve isso não apenas à força de seu partido, hoje em crise como toda a esquerda, mas ao apoio que teve de um centro democrático. Este centro foi o escudo contra a avalanche não só ultraliberal, mas também do golpe de Bolsonaro como revelam as investigações em andamento, os 17 processos judiciais contra ele, sua inabilitação política por oito anos, a possibilidade de impedi-lo de fugir para o exterior e uma não impossível. encarceramento nos próximos dias.

A política externa frenética de Lula , tentando colocar o Brasil no centro das atenções do mundo, deve ser aplaudida após o apagão de Bolsonaro que ofuscou a força real do quinto maior país do mundo. O que ele não pode esquecer ou deixar apenas nas mãos dos ex-colegas de sindicato é que o mundo, a começar pelo local de trabalho, sofre dores de parto e exige novas soluções para os imponderáveis ​​que o assolam.

Juan Arias, o autor deste artigo, é jornalista - correspondente do EL PAÍS no Brasil. Publicado originalmente em 22.08.23

Candidatura de Trump à Presidência dos EUA poderá ser questionada na Justiça

 Até a semana passada, o ex-presidente Donald Trump tinha muitas preocupações com os quatro processos criminais que responde na Justiça, mas nenhuma preocupação com a própria candidatura à Presidência dos Estados Unidos. 

Donald Trump pode ter de enfrentar batalha jurídica por candidatura à Presidência

Afinal, não há nada na Constituição americana que proíba um prisioneiro de se candidatar ao cargo. As únicas exigências constitucionais são as de que o candidato seja nascido nos EUA; tenha pelo menos 35 anos de idade; e seja residente no país nos últimos 14 anos.

Mas, então, um estudo de dois professores de Direito — William Baude, da Universidade de Chicago, e Michael Stokes Paulsen, da Universidade de St. Thomas — colocou a candidatura de Trump em 2024 na corda-bamba.

O estudo tem peso porque os dois professores são conservadores-republicanos, como Trump, e membros da poderosa Federalist Society, a organização que indicou os três últimos ministros escolhidos para a Suprema Corte. Eles afirmam, no trabalho de 126 páginas, que Trump é inelegível, com base na Seção 3 da 14ª Emenda da Constituição dos EUA, que diz: "Nenhuma pessoa poderá ser senador ou deputado, eleitor do presidente e vice-presidente ou ocupar qualquer cargo civil ou militar nos Estados Unidos ou em qualquer estado se, tendo previamente prestado juramento (...) de apoiar a Constituição (do país), tiver se envolvido em uma insurreição ou rebelião contra os Estados Unidos ou tenha dado ajuda ou conforto a inimigos do mesmo".

A questão a ser julgada é se Trump se envolveu em insurreição contra os Estados Unidos no episódio da invasão do Congresso, em 6 de janeiro de 2021, para tentar impedir a certificação pelos congressistas da vitória de Joe Biden nas eleições de 2020 — e por tudo o que aconteceu antes e depois da invasão.

Os democratas e uma parcela considerável dos republicanos acreditam que Trump promoveu a invasão do Congresso ao convocar seus eleitores fiéis para irem a Washington, D.C., e ao lhes pedir para marchar para o Capitólio e "lutar pra valer" ("fight like hell") para impedir a certificação da vitória de Biden.

Para os dois professores, isso caracteriza envolvimento em insurreição. Eles acrescentam que Trump tentou alterar a contagem de votos por fraude e intimidação, tentou convencer autoridades dos estados a nomear delegados para o Colégio Eleitoral a seu favor, pressionou o vice-presidente a violar a Constituição e ficou calado por horas durante a invasão do Congresso, antes de pedir aos invasores para irem para casa.

Antes disso, ele propagou a "Grande Mentira" — a de que ganhou as eleições por uma larga margem, mas não levou porque elas foram fraudadas. A defesa dele, nesse caso, é a de que seu discurso é protegido pela liberdade de expressão.

Para o professor de Direito Steven Calabresi, da Universidade de Yale e um dos fundadores da Federalist Society, as autoridades eleitorais dos estados — ou qualquer um com a responsabilidade de decidir quem é legalmente qualificado para ocupar cargo público — devem entender que Trump é inelegível e deixar seu nome fora da cédula de votação.

Se não o fizerem, poderão ser processadas por eleitores ou organizações. Se o fizerem, serão processadas por Trump. E isso vai disparar batalhas judiciais em cortes estaduais e federais, que vão aterrizar, finalmente, na Suprema Corte dos EUA. Os processos vão tramitar em regime de urgência e o tribunal não poderá evitar a responsabilidade de decidir a constitucionalidade da remoção de um candidato da cédula de votação.

A Seção 3 da 14ª Emenda da Constituição prevê que o Congresso pode reverter a inelegibilidade de candidatos acusados de insurreição contra o país por dois terços dos votos dos deputados e senadores. Com o Congresso dividido ao meio entre democratas e republicanos (com muitos republicanos contra Trump), isso nunca vai acontecer.

Nem todos os republicanos consultados pelos jornais acreditam que a análise dos dois professores é indiscutível. Para eles, uma insurreição no sentido coloquial ou político não é a mesma coisa de uma insurreição no sentido "constitucionalmente vinculante".

Segundo o Congressional Research Service, a lei sobre insurreição descreve uma situação em que "é impraticável executar as leis dos Estados Unidos em qualquer estado pelo curso normal dos procedimentos judiciais". Portanto, caberá à Suprema Corte decidir se Trump é ou não inelegível por violar um dispositivo constitucional. Com informações adicionais de New York Times, Washington Post, HaffPost e Newsweek.

João Ozorio de Melo, o autor desta matéria, é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos. Publicado originalmente em 21.08.23

Navio cargueiro 'movido a vento' estreia em viagem ao Brasil

Cargueiros movidos a energia eólica podem ajudar indústria a caminhar em direção a um futuro mais verde

Um navio de carga equipado com velas especiais gigantes movidas a vento partiu em sua viagem inaugural. (Crédito Cargill)

A empresa de transporte marítimo Cargill, que fretou a embarcação, diz esperar que a tecnologia ajude a indústria a caminhar em direção a um futuro mais verde.

O uso das grandes velas (ou "asas") WindWings, de design britânico, visa a reduzir o consumo de combustível e, portanto, a pegada de carbono do transporte marítimo.

Estima-se que a indústria seja responsável por cerca de 2,1% das emissões globais de dióxido de carbono (CO2).

A primeira jornada do navio Pyxis Ocean será da China para o Brasil — e servirá como o primeiro teste da tecnologia no mundo real.

Dobradas quando o navio está no porto, as velas são abertas depois da embarcação zarpar. Elas têm 37,5 metros de altura e são construídas com o mesmo material das turbinas eólicas, o que as torna mais duráveis.

Permitir que uma embarcação seja levada pelo vento, em vez de depender apenas de seu motor, pode reduzir as emissões de um navio de carga em até 30%.

Jan Dieleman, presidente da Cargill Ocean Transportation, disse que a indústria está em uma "jornada para descarbonizar".

Ele admite não haver uma "bala de prata", mas disse que essa tecnologia demonstra a rapidez com que as coisas estão mudando.

"Cinco, seis anos atrás, se você perguntasse às pessoas sobre descarbonização, elas diriam 'bem, vai ser muito difícil, não vejo isso acontecendo tão cedo'", disse ele à BBC.

“Cinco anos depois, acho que a narrativa mudou completamente e todos estão realmente convencidos de que precisam fazer sua parte. O desafio para todos é um pouco entender como fazer isso acontecer."

"É por isso que assumimos o desafio de ser uma das maiores empresas a assumir parte do risco, experimentar coisas e levar o setor adiante."

Montagem sendo executada em um estaleiro na China (Crédito: Cargill)

O Pyxis Ocean vai demorar cerca de seis semanas para chegar ao Brasil, seu destino final.

A tecnologia usada na embarcação foi desenvolvida pela empresa britânica BAR Technologies, que surgiu da equipe do velejador britânico Ben Ainslie na Copa América de 2017, uma competição chamada por muitos de "Fórmula 1 dos mares".

"Este é um dos projetos mais lentos que já fizemos, mas sem dúvida com o maior impacto para o planeta", disse à BBC o chefe da equipe, John Cooper, que trabalhava para a McLaren, da Fórmula 1.

Ele acredita que esta viagem marcará uma virada para a indústria marítima.

"Prevejo que até 2025 metade dos novos navios serão encomendados com propulsão eólica", disse ele.

"A razão pela qual estou tão confiante é a economia - uma tonelada e meia de combustível por dia. Com quatro 'asas' em uma embarcação, são seis toneladas de combustível economizadas, ou seja, 20 toneladas de CO2 economizadas. Por dia. Os números são enormes."

A inovação veio do Reino Unido, mas as "asas" (WindWings) são fabricadas na China. Cooper diz que a falta de apoio do governo para reduzir o custo do aço importado impede a empresa de fabricá-lo aqui.

"É uma pena, eu adoraria construir no Reino Unido", disse ele à BBC.

'Mergulhar de cabeça'

Especialistas dizem que a energia eólica para embarcações é uma área promissora, já que a indústria naval tenta reduzir os estimados 837 milhões de toneladas de CO2 que produz a cada ano.

Em julho, a indústria concordou em zerar a emissão de gases que aquecem o planeta "por volta de 2050" — uma promessa que os críticos disseram ser capenga.

"A energia eólica pode fazer uma grande diferença", diz Simon Bullock, pesquisador de navegação no Tyndall Centre, na Universidade de Manchester.

Ele disse que novos combustíveis mais limpos levarão tempo para surgir, "então temos que mergulhar de cabeça em medidas operacionais em navios existentes, como modernizar embarcações com velas, pipas e rotores".

"Em última análise, vamos precisar de combustíveis de carbono zero em todos os navios, mas, até lá, é urgente tornar cada viagem o mais eficiente possível. Velocidades mais lentas também são uma parte crítica da solução", disse ele à BBC.

Stephen Gordon, diretor administrativo da empresa de dados marítimos Clarksons Research, concorda que as tecnologias relacionadas ao vento estão "ganhando força".

“O número de navios que usam essa tecnologia dobrou nos últimos 12 meses”, disse.

"No entanto, a referência para esse dado é baixa. Na frota de transporte marítimo internacional e na carteira de pedidos de mais de 110.000 embarcações, temos registros de menos de 100 com tecnologia assistida pelo vento hoje."

Mesmo que esse número aumente drasticamente, a tecnologia eólica pode não ser adequada para todas as embarcações, por exemplo, onde as velas interferem no descarregamento de contêineres.

“A indústria naval ainda não tem um caminho claro para a descarbonização e, dada a escala, o desafio e a diversidade da frota naval mundial, é improvável que haja uma solução única para a indústria a curto ou médio prazo”, analisa Gordon.

John Cooper, da BAR Technologies, é mais otimista, porém, dizendo que o futuro das asas eólicas é "muito promissor".

Ele também admite certa satisfação com a ideia da indústria voltar às origens.

"Os engenheiros sempre odeiam, mas eu sempre digo que é uma volta para o futuro", disse ele. "A invenção dos grandes motores de combustão destruiu as rotas comerciais e marítimas e agora vamos tentar reverter essa tendência."

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 21.08.23

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Um golpe fora do lugar

 Os dados rocambolescos e a incompetência de golpistas não podem ser usados como atenuantes

Depoimento do hacker Walter Delgatti Neto, na CPMI do Dia 08 de Janeiro — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

Na minha idade, é impossível falar de golpe de Estado no Brasil e se desvencilhar da memória. Ouço isso desde garoto. Quando comecei a trabalhar no Rio, conheci um repórter veterano chamado Redento Júnior. Ele cobria a Aeronáutica e estava sempre esperando algo: Aragarças, Jacareacanga, movimentos em que um grupo aterrissava na selva amazônica para derrubar o governo.

Era até um pouco romântico. Vi o capitão Lameirão andando pelas ruas de Juiz de Fora, carregava a memória de rebeliões fracassadas. Em 1961, aos 20 anos, no Rio, acompanhei eletrizado o sequestro do transatlântico Santa Maria pelo capitão português Henrique Galvão e pelo general Humberto Delgado. Era uma ação espetacular contra a ditadura salazarista.

Em 1964, cobri com uma dor no coração o golpe que derrubou Goulart. Entrevistei o general Mourão e me vinguei no primeiro parágrafo da matéria: o comandante da marcha militar contra o Rio sofreu um enfarte depois de andar alguns quilômetros em Copacabana.

Quando vejo o depoimento do hacker Walter Delgatti, observo como era correta a presunção de que havia um golpe em curso. Escrevi sobre isso no 8 de Janeiro. Mencionei a senha “festa da Selma” e, para mim, as invasões eram apenas um passo. A expectativa dos invasores era a entrada em cena ds Forças Armadas. O hacker de Araraquara, assim como o ET de Varginha, se entrelaça na minha imaginação. As cidades médias brasileiras não param de nos surpreender.

Por meio de Octavio Guedes, fiquei sabendo da ideia maluca de levar uma urna eletrônica para o palanque, digitar, diante do público, o número de Bolsonaro para aparecer o de Lula. Os adeptos do Mito gritariam: Caramuru. Escrevo assim porque vejo dessa maneira. Mas não significa que subestime os fatos. Tenho afirmado que golpes de Estado fracassados são precisamente os que dão cadeia para seus autores. Em caso de êxito, os democratas é que são presos.

Os dados rocambolescos e a incompetência de golpistas não podem ser usados como atenuantes. O lado mais preocupante de tudo foi a participação de militares. A comissão que investigaria as urnas usou o hacker de Araraquara como consultor. Estamos num momento da História em que as guerras são também cibernéticas. Imagine se fôssemos colhidos numa delas.

Aliás, Bolsonaro conseguiu, de uma certa forma, comprometer o prestígio das Forças Armadas. O episódio das joias, o mais reluzente, acabou envolvendo também um general. Ele aparece no reflexo de uma caixa que continha uma palmeira folheada a ouro. Isso talvez possa ser usado como atenuante . O general é primário: não percebeu sua imagem refletida na tampa da caixa.

Outro dia, dei um depoimento sobre a história do telefone celular. Está numa exposição do Museu do Amanhã. Falei da importância política e do potencial produtivo desse novo instrumento. Não me alonguei sobre o impacto que teve na fotografia. Milhões de pessoas passaram a fotografar, sobretudo a tirar selfies. Festas, encontros, viagens — tudo resulta em selfie. Algumas pessoas morreram fazendo selfie em lugares perigosos.

O general não fez uma selfie. O general fez um id. Na verdade, self, id e superego são categorias da psicanálise. O id é o inconsciente sobre o qual não temos controle. Está sempre nos traindo.

Enfim, sou favorável a que se faça justiça e tudo mais. Mas não estou conseguindo levar a sério todo o tempo o que se passou. É muito tosco. Os golpes de antigamente eram mais bem urdidos ou mesmo mais arrojados. Ou será que o tempo passou tão célere que não percebi que a própria ideia de um golpe é algo fora de lugar, que sempre parecerá ridiculo? Não é exatamente assim. A verdade é que a técnica do golpe de Estado se modernizou, e os golpistas brasileiros ainda não se atualizaram.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, jornalista e escritor, é colunista de O Globo. Publicado originalmente em 21.08.23