quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Vida digna para os mais idosos

Alta do número de idosos em planos de saúde, constatada pela ANS, ameaça o modelo de negócios e cria pressão sobre o SUS; é dever do País cuidar da dignidade dessa população

A população brasileira está envelhecendo, como mostrou o Censo 2022. Essa transição demográfica impõe dois desafios ao País. Primeiro, é preciso aproveitar a última janela do chamado bônus demográfico com vistas ao aumento da produtividade da população economicamente ativa, condição indispensável para que o Brasil escape da sina de ser um eterno país de renda média. Segundo, Estado e iniciativa privada precisam se estruturar o quanto antes para garantir que essa população cada vez mais velha tenha uma vida digna – o que significa, entre outras precondições, ter acesso a serviços de saúde de qualidade, sejam públicos ou privados.

A pedido deste jornal, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) fez um levantamento que revelou que o número de jovens (20 a 39 anos) que utilizam planos de saúde no País caiu 7,6% entre 2013 e 2023, enquanto o de idosos (60 anos ou mais) cresceu 32,6% no mesmo período. Entre estes, houve um aumento de 41,9% dos usuários na faixa de 70 a 74 anos e de 39,5% na faixa de 80 anos ou mais. Some-se a isso o salto no número nos pedidos de reembolso, como também mostrou o Estadão, e se vê que não há como as empresas manterem suas contas no azul sem aumentar as mensalidades dos planos de saúde.

Se a transformação no perfil etário dos usuários de planos de saúde e as fraudes representam enorme risco para o equilíbrio financeiro das empresas, ainda maispreo cu pan teéo transbordamento desse desarranjo econômico empresarial para a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) num futuro muito próximo. Além de estar há décadas subfinanciado e de ter sido submetido a seu maior teste de estresse durante a pandemia de covid-19, o SUS está na iminência de ter de suportar um aumento significativo na demanda por seus serviços.

É consensual entre os especialistas do setor de saúde suplementar o diagnóstico segundo o qual, a serem mantidas as condições atuais, não tardará até que os planos de saúde sejam considerados “artigos de luxo” para os idosos no Brasil. A bem da verdade, ter um plano de saúde já é algo inalcançável para a esmagadora maioria da população. Basta dizer que 8 em cada 10 brasileiros acorrem ao SUS hoje quando precisam de atendimento médico, dos procedimentos mais simples aos mais complexos. A tendência é esse número aumentar no curto prazo.

Historicamente, os beneficiários mais jovens, em geral mais saudáveis, sempre contribuíram para o equilíbrio financeiro das empresas de saúde suplementar. Os mais idosos, por sua vez, quando precisam de atendimento médico, não raro demandam serviços mais complexos – portanto, mais caros. Não é preciso ser um ás da contabilidade para perceber que esse modelo de negócios está com os dias contados. Cada vez mais idosos, sem condições financeiras para arcar com a mensalidade de planos de saúde cada vez mais caros, baterão às portas do SUS em busca de atendimentos cada vez mais especializados e onerosos.

Diante desse cenário desafiador, é fundamental que a sociedade, por meio de seus representantes, reflita sobre o papel do SUS como viabilizador de um imperativo constitucional: o acesso à saúde. É o caso de lembrar que o legislador constituinte tratou a saúde como “um direito de todos e um dever do Estado”. Olhar com o devido cuidado para as necessidades do SUS é, antes de tudo, cumprir o que determina a Constituição. Houve tentativas no Congresso de repensar o modelo de financiamento e dotar o SUS, um patrimônio nacional, de condições materiais e humanas para seguir prestando serviços relevantíssimos à sociedade. Esse movimento, infelizmente, parece ter sido deixado para trás.

O envelhecimento da população não deve ser encarado como um estorvo. É antes algo a ser celebrado. Entretanto, para aproveitar plenamente os benefícios desse processo, é essencial que o Estado, a iniciativa privada e a sociedade em geral atuem de forma conjunta, buscando soluções que garantam uma assistência digna e de qualidade aos idosos. O desafio é grande, mas com um compromisso coletivo, o País tem todas as condições de construir um futuro mais saudável e inclusivo para todos. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.08.23

Como agem os cupins da República

O suposto esquema de venda de joias da União por auxiliares de Bolsonaro não surpreende; ao contrário, é perfeitamente compatível com o espírito antirrepublicano do bolsonarismo



Caiu a máscara

Deveria ser perturbadora, por si só, a suspeita de que um esquema de venda de joias e outros artigos valiosos da União foi operado durante e pouco depois do mandato de um presidente da República. Entretanto, sendo o presidente o sr. Jair Bolsonaro, essa gatunice, caso venha a ser confirmada pelas investigações da Polícia Federal (PF) ora em andamento, não causa espanto, pois é perfeitamente compatível com o espírito antirrepublicano do bolsonarismo.

A rigor, o bolsonarismo nunca teve a ver com política, na acepção clássica do termo. Aliás, são noções antitéticas. Por princípio, o bolsonarismo sempre esteve orientado pela exclusão de tudo e de todos que lhe sejam diversos, jamais pelo diálogo e pela concertação de interesses. É possível que os bolsonaristas nem sequer concebam a mera ideia de “interesse público”, comprometidos que estão com a defesa inarredável dos interesses particulares do líder de um clã – que em certos aspectos lembra as organizações mafiosas.

Ora, para todos os que se movem na esfera pública imbuídos desse espírito, o vezo patrimonialista, que está na essência do bolsonarismo, decerto nem é percebido como tal. A apropriação de recursos do Estado soa, para esses analfabetos cívicos, como algo mais que aceitável – soa natural.

A ascensão de alguém como Bolsonaro à Presidência levou ao paroxismo a ideia segundo a qual, uma vez legitimado pela vontade popular manifestada nas urnas, a um governante seria dado tomar posse do aparato do Estado para dele fazer o uso que melhor lhe convier. Assim, a partir de sua chegada ao topo da carreira política, Bolsonaro passou a ser visto – e a agir – como uma espécie de mentor dos cupins da República, sendo ele mesmo um desses cupins, e dos mais vorazes de que se tem notícia ao longo de quase 134 anos de história republicana.

Bolsonaro olhou para o Estado brasileiro e viu um apêndice de sua família. Usou-o ao longo da vida, em benefício próprio ou de seus familiares e aliados, de acordo com as possibilidades que cada cargo público lhe proporcionava à época. O caso da suposta venda ilegal de joias da União seria apenas mais uma amostra desse inacreditável uso da estrutura pública para conduzir negócios particulares.

Por mais estarrecedores que sejam para grande parte dos cidadãos os indícios de corrupção, lavagem de dinheiro e peculato tornados públicos até o momento, para alguém como Bolsonaro, que tratou as Forças Armadas como se fossem “suas”, ordenou a troca de agentes da PF em investigações sensíveis para ele e fez da Polícia Rodoviária Federal sua guarda pretoriana, só para citar alguns exemplos, tratar-se-ia de algo absolutamente previsível. Essa mixórdia, afinal, é a marca indelével de seu governo. Todas as ações oficiais e extraoficiais de Bolsonaro na Presidência, e mesmo antes disso, concorreram para o uso desabrido da máquina pública para o atendimento de necessidades pessoais.

A chegada de Bolsonaro à Presidência parece ter sido a senha para que os inimigos do pacto constitucional e do Estado Democrático de Direito se sentissem livres para dispor da estrutura estatal como bem entendessem, comportando-se como se as referências éticas e cívicas da República tivessem sido substituídas por um código de conduta do submundo.

A mentira e o desrespeito pela coisa pública se tornaram valores positivos – e é espantoso que tantos militares, alguns com destacada carreira e ainda na ativa, tenham se deixado enredar por esse movimento que, em tudo, é a negação dos ideais das Forças Armadas.

O bolsonarismo legitimou a ação dos parasitas que se refestelam com recursos do Estado, um bando de desqualificados que jamais teriam espaço em qualquer governo minimamente decente. O caso das joias, se não é o mais grave da terrível passagem de Bolsonaro pelo poder, é talvez o mais significativo: segundo as investigações, mobilizou-se o aparato estatal, de funcionários ao avião presidencial, para passar nos cobres um punhado de presentes que Bolsonaro ganhou na condição de presidente e que não lhe pertenciam. Coisa de gente imoral. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.08.23

Paixão era considerada doença na Idade Média, e médico de reis indicava os sintomas e tratamentos; veja lista

Visto de forma negativa, era comum associar sentimento ao desconforto físico e problemas de raciocínio; entre as terapias estão: dormir, conversar, passear ou ter relações sexuais

Paixão era considerada doença na Idade Média, e médico de reis indicava sintomas e tratamentos — Foto: Ford Madox Brown

Ao longo da história, o amor aparece como um dos motores que impulsionou a humanidade — mas também costuma ser considerado um mistério, e passou por transformações. Na Idade Média, por exemplo, este sentimento não era concebido como é hoje: ao invés de ser algo doce ou romântico, ele era visto como algo perigoso, que desviava as pessoas de seus deveres e responsabilidades.

Este aspecto é evidenciado pelas histórias de época, que ilustram como os apaixonados se rendiam ao desejo e provocavam tragédias épicas, além de dilemas morais. Desde Romeu e Julieta até Tristão e Isolda, a maioria das lendas medievais imortalizou a intensidade dos sentimentos amorosos, mas também trouxe à tona as consequências devastadoras de se entregar sem reservas ao amor passional.

Socialmente, acreditava-se que aqueles que se deixavam levar por seus impulsos amorosos eram vítimas de uma aflição da alma, chamada de “amor louco” ou “heroico”. Acreditava-se que os amantes eram possuídos por uma força sobrenatural que os privava de sua racionalidade e os levava a uma emoção desenfreada que desafiava as normas sociais estabelecidas. Como resultado, a paixão era vista como algo a ser condenado e temido, pois ameaçava a estabilidade e a ordem.

De acordo com um escrito da Universidade Autônoma de Barcelona, Arnau de Vilanova, renomado médico de reis e papas da Idade Média, entendia o amor heróico — nome dado na medicina medieval à doença da paixão amorosa — como uma deformação de eros, o “amor-paixão” em grego. Os escritos de Arnau indicam que, naquela época, o apaixonado se submetia à pessoa amada como um vassalo faria com o seu senhor.

Ao contrário de outros autores ou personalidades relevantes da época, Vilanova se destacava por considerar o amor heroico como um sintoma, mais do que uma doença. Segundo ele, a paixão era consequência de um erro de julgamento. Este equívoco provocava um “calor excessivo” gerado pela antecipação do prazer que o indivíduo sentia em relação ao objeto de seu amor. Para o médico, os sintomas da paixão amorosa eram:

Exaustão;

Enfraquecimento do corpo;

Palidez;

Insônia;

Falta de apetite;

Tristeza na ausência da pessoa amada;

Alegria na proximidade dela.

Em seu tratado, Arnau de Vilanova informava, também, que o tratamento médico consistia em: mostrar os defeitos da pessoa amada ou distrair-se do pensamento com atividades agradáveis, como dormir, conversar com amigos, passear pela natureza, ouvir música ou ter relações sexuais com jovens e, acima de tudo, viajar — sendo quanto mais longe, melhor.

A 'doença dos sentidos'

Além disso, a maioria dos Padres da Igreja se baseava em teorias da paixão propostas pelos filósofos e médicos gregos e latinos. Eles também consideravam o amor apaixonado como algo desordenado e perigoso, capaz de levar à loucura e desviar o indivíduo da virtude, classificando assim a paixão como uma “doença dos sentidos” que corrompia a alma.

Conforme indicado no ensaio científico “O ‘amor que dizem heróico’ ou aegritudo amoris”, de Maria Eugenia Lacarra Lanz (ou Eukene Lacarra Lanz), crítica literária e medievalista, o texto que teve maior influência no conhecimento da “doença de amor” foi o “Viaticum”, de Constantino, o Africano — figura proeminente da Escola de Salerno (a primeira escola médica medieval) do século XI.

O texto, que foi amplamente difundido, servia como um manual dirigido a viajantes sem acesso a cuidados médicos. Nele, havia um capítulo sobre esta “doença”. Constantino afirmava que o eros era uma enfermidade cerebral relacionada ao desejo, e que causava uma alteração nos pensamentos. Assim como Galeno — médico, cirurgião e filósofo grego no Império Romano —, ele a localizava no cérebro, e não no coração.

Para ele, a falta de controle emocional era atribuída às tristezas e choros dos apaixonados. Além disso, a obsessão pelo amado dificultava a compreensão de tudo o que não estava relacionado ao amor e àquela pessoa desejada. “O amor romântico/paixão é uma motivação ou um estado orientado a um objetivo que leva a emoções ou sensações como euforia ou ansiedade em quem tem esse desejo”, conclui um estudo publicado no Journal of Neurophysiology.

A pesquisa reconhece a evidência científica sobre a neurociência do amor, que indica que neurotransmissores como a dopamina, adrenalina e serotonina no cérebro causam sintomas físicos experimentados quando se está apaixonado. Segundo Sandra Magirena, médica e sexóloga clínica, o passar do tempo e o surgimento de movimentos sociais questionaram visões de mundo dos antepassados.

— Os laços amorosos foram evoluindo e se modificando ao longo da história da humanidade, dependendo muito dos contextos socioculturais. É comum confundir o que é o amor como um sentimento e o que é a sexualidade. Daí surgem os equívocos, que é o que acredito ter ocorrido na época medieval — afirmou ela, ressaltando que na época havia uma dominação do masculino e, portanto, a noção do prazer, ligada ao feminino, não existia ou tinha aprovação.

A sexóloga destacou, também, que “não se deve confundir amor com emoções tóxicas”, pois estas últimas desencadeiam dependência emocional e relacionamentos dependentes. Para ela, o amor “puro” é “a emoção mais perfeita que os humanos têm, e é a única que pode ser livremente manifestada e expressa com toda a sua intensidade”: “Não é doentio, pelo contrário. O amor cura”.

Victoria Vera Ziccardi, a autora deste artigo, é articulista do La Nacion — Buenos Aires. Publicado no Brasil por O GLOBO, em '6.08.23


16/08/2023 04h00  Atualizado 16/08/2023

Millôr Fernandes foi comentarista mordaz da política brasileira

"Livre como um táxi", humorista criticou poderosos, desafiou a censura e deixou lições para o jornalismo

O jornalista Millôr Fernandes em seu ateliê, em Ipanema — Foto: Leonardo Aversa / 21-09-1994

‘Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira para matar.’ O aviso é de Millôr Fernandes, o autoproclamado guru do Méier. Mas vá perguntar aos poderosos que viveram a desventura de entrar em sua mira.

Millôr faria cem anos hoje. A imprensa gosta de efemérides e já celebrou seu talento como frasista, desenhista, dramaturgo, tradutor e poeta. Faltou lembrar o comentarista mordaz da política brasileira.

Prefeitos, governadores, deputados: ninguém escapava ao risco de uma pedrada. “Política é a mais antiga das profissões”, dizia.

Suas tiradas revelam um espírito insubmisso a qualquer regime: “As principais formas de governo são as ruins e as muito piores”; “A diferença entre a galinha e o político é que o político cacareja e não bota o ovo”; “Todo governante se compõe de 3% de Lincoln e 97% de Pinochet”.

Era perda de tempo tentar enquadrá-lo em caixinhas ideológicas. “A definição mais próxima que você pode dar de mim é de anarquista”, disse, numa rara entrevista na TV.

Millôr tinha predileção por zombar dos inquilinos do Planalto. Enquanto os mortais escreviam longos artigos, ele fulminava presidentes com uma só frase. Sobre Collor: “Deu ao povo uma coroa de espinhos e ainda ficou com os 30 dinheiros”. Sobre FH: “Fernando Henrique Cardoso acha que essas são as três palavras mais bonitas do mundo”. Sobre Lula: “A ignorância lhe subiu à cabeça”.

Quando Sarney assumiu no lugar de Tancredo, o guru resumiu o sentimento nacional com duas palavras: “Fomos bigodeados”.

Na ditadura, Millôr debochou dos militares e fundiu a cuca dos censores. “Quem é de oposição é porque não é de muito falar”, ironizou, em 1973. Em outros momentos, ele não conseguiu driblar a tesoura. Sua revista Pif-Paf, lançada um mês depois do golpe de 1964, sobreviveu por apenas oito edições.

Todo jornalista já ouviu sua máxima “Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. O guru também deixou outras lições sobre o ofício. Uma delas: “Em política, o que te dizem nunca é tão importante quanto o que você ouve sem querer”.

Sua independência era inegociável. Para preservá-la, evitava se enturmar e até atender ligações de poderosos. Millôr morreu em 2012, fiel ao lema que bolou para O Pasquim: “Livre como um táxi”.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é comentarista de política n'O GLOBO. Publicado originalmente em 16.08.23

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Queda de braço

Por ter “poder demais”, a Câmara pretende impor ao governo suas vontades.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, durante sessão — Foto: Foto: Cristiano Mariz/09-11-2021

O cancelamento da reunião que os líderes partidários teriam na casa do presidente da Câmara para discutir a votação do arcabouço fiscal só confirma que Arthur Lira preside a Casa com mão de ferro e tem, mesmo, muito poder, como comentara o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Lira teria ficado irritado com o comentário e mostrou sua força adiando uma discussão de tema fundamental para o governo federal.

Haddad havia dito que a Câmara não podia usar o poder que tem para humilhar o Executivo e o Senado, referindo-se ao fato de a palavra final sobre o assunto agora estar com a Câmara, depois de votações nas duas Casas. A Câmara está “com um poder que nunca vi na minha vida”, disse Haddad em podcast do jornalista Reinaldo Azevedo divulgado ontem.

Tem razão o ministro da Fazenda e, justamente por ter “poder demais”, a Câmara pretende impor ao governo suas vontades. Quer aumentar o fundo eleitoral, já escandalosamente alto — cerca de R$ 5 bilhões — e que também as emendas de comissões, no valor de R$ 7,5 bilhões, sejam impositivas, como outras emendas. Mas quer também controlar o ritmo dos repasses, impedindo que o governo controle o fluxo de acordo com suas necessidades.

Com a dispersão dos partidos políticos, e o aumento do poder do Congresso em relação ao Orçamento, o presidencialismo de coalizão deixou de ter eficácia, pois funcionava justamente pela capacidade do governo de distribuir verbas de acordo com seus interesses, e não os dos parlamentares. Uma das questões mais delicadas da negociação política é a compatibilização do tempo dos parlamentares com o dos governantes.

No Brasil, até recentemente os governantes determinavam o tempo dos políticos, consequência de um hiperpresidencialismo de fato que vigorava. O máximo que o governo admitia era pagar a lealdade de um parlamentar, ou de seu partido, com cargos e nomeações. Mais adiante, com o mensalão e o petrolão, passou a fazer parte dos acordos a participação em esquemas corruptos, mascarados com objetivos políticos supostamente maiores, como financiamentos de campanhas políticas.

Com o controle que ganhou no governo Bolsonaro, que simplesmente delegou ao Congresso a execução do Orçamento, passamos a ter na prática um tipo de parlamentarismo, cujo ápice foi o orçamento secreto, que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional, para alívio do então presidente eleito, Lula. A fragmentação partidária, que as cláusulas de barreira e o fim das coligações proporcionais estão lentamente coibindo, impede que os governos, sejam eles de que ideologia forem, tenham uma maioria parlamentar estável.

A maioria será sempre teórica, e o governo tem de fechar os olhos para dissidências da base aliada. Na atual situação, com um governo enfraquecido em disputa com políticos que tentam se fortalecer confrontando-o, tudo é possível. Até o governo ganhar, mas pagando um preço muito maior que em tempos ditos normais. É o que está acontecendo agora nas votações fundamentais para o governo, como arcabouço fiscal, reforma tributária e outros temas delicados.

A relação com a Câmara, quando ela tem um presidente como Arthur Lira, como já teve Eduardo Cunha, sempre será delicada para os governantes. Quando, adicionada a essa dificuldade prática, temos, como hoje, e como no governo Dilma, uma dissonância ideológica, todo cuidado é pouco. Lula é um líder popular, diferentemente de Dilma, mas, em seu terceiro mandato, já não tem o brilho político que hipnotizou até líderes mundiais como Barack Obama.

Precisa primeiro mostrar serviço na recuperação da economia e, cada vez que se desvia da rota para tomar atitudes já vistas que deram errado, mais problemas tem com o Congresso e com o mercado financeiro, que ora vibra com boas perspectivas, ora teme seus arroubos populistas.

Merval Pereira, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Presidente da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 15.08.23

Novo PAC é como voltar o relógio em 20 anos

Com um novo programa, Lula quer estimular a economia. A proteção da Amazônia, do meio ambiente e do clima são irrelevantes. O governo parece não ter aprendido nada com os erros dos PACs anteriores, opina Alexander Busch na Deustche Welle Brasil.

Lula apresentou o Novo PAC Desenvolvimento e Sustentabilidade em cerimônia no Rio de JaneiroFoto: Tomaz Silva/Agência Brasil

No início da semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi celebrado como o salvador da Amazônia na cúpula em Belém . Dois dias depois, com o mesmo barulho, apresentou um programa para a economia, o chamado Novo PAC Desenvolvimento e Sustentabilidade.

Mas nele, as questões ambientais quase não desempenham papel. Muito pelo contrário: há vários projetos no programa que são diametralmente opostos ao que Lula anunciou no início da semana.

Um dos itens de maior destaque são os investimentos em petróleo e gás sob o guarda-chuva da estatal Petrobras . Também está prevista a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas, cuja autorização o Ibama acaba de recusar.

O pacote também inclui a continuação da construção da usina nuclear Angra 3 , iniciada há 40 anos. Do Mato Grosso, a ferrovia Ferrogrão deve ligar áreas de cultivo de soja através da Amazônia até portos na região Norte. O traçado passa por reservas indígenas é bastante controverso – e não apenas entre os ambientalistas.

São todos projetos que terão um preço alto, porque, literalmente, "poluem" a matriz energética do Brasil. E, por outro lado, aumenta o risco de que a floresta seja destruída ainda mais rapidamente. Com o Novo PAC, o novo papel de Lula como principal líder na proteção do meio ambiente do Sul Global fica enfraquecido.

Repetição de erros

Mas não é só isso: há um grande perigo de que se repitam erros ocorridos desde o início do PAC 1, em 2007, no primeiro governo Lula, e do PAC 2, executado pelo governo Dilma Rousseff, a partir de 2011 

Acima de tudo, isso significa os grandes escândalos de corrupção que vieram ao público a partir de 2014: além da Petrobras, como empreiteiras do Brasil estiveram particularmente envolvidos.

Funcionava assim: a Petrobras financiava os projetos. As construtoras, como a Odebrecht, os executavam – e repassavam parte de sua renda de volta aos políticos que aprovavam os projetos.

Este foi um ciclo lucrativo para os envolvidos, que custou muitos bilhões ao Estado, mas fez muito pouco para o país em termos de infraestrutura. Enormes somas de dinheiro foram gastas em projetos completamente irrealistas.

Alguns dos projetos envolvidos em corrupção massiva agora estão prestes a recomeçar: como a expansão da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, que já custou bilhões nos governos anteriores do PT. Ou a Transnordestina, a ligação do interior do Nordeste aos portos da região. Angra 3 também não produziu um watt de eletricidade, mesmo depois de muitos bilhões terem vazado em canais obscuros.

"Os PACs 1 e 2 não foram bem-sucedidos", criticou Claudio Frischtak, presidente da consultoria Inter.B e com uma década de atuação no Banco Mundial. "Na verdade, foram programas muito problemáticos."

Provas impressionantes do fracasso são dois projetos emblemáticos no Rio de Janeiro: os grandes estaleiros que deveriam ser usados ​​para a construção de plataformas de petróleo e petroleiros para a Petrobras estão todos falidos. E os teleféricos, que deveriam ligar vários pontos da cidade, como o Complexo do Alemão ao centro do Rio, não funcionam mais.

Conclusão: como o Novo PAC nada mais é do que uma cópia de seus dois antecessores, dificilmente resolverá os grandes problemas do Brasil em infraestrutura, habitação e saneamento.

É mais provável que um ciclo com muitos participantes interessados ​​comece novamente.

Há mais de 30 anos, o jornalista Alexander Busch, o autor deste artigo,  é correspondente da América Latina do grupo editorial Handelsblatt e do jornal Neue Zürcher Zeitung . Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política na Colônia e em Buenos Aires. Quando não está viajando pela região, fica baseado em Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 15.08.23

Tentativa de aumentar fundo eleitoral é constrangedora para o Parlamento

Defensores do aumento não estão satisfeitos nem com R$ 4,9 bilhões aprovados em 2022 e querem mais

O Congresso Nacional — Foto Pedro França/Agência Senado

Não tem cabimento a movimentação de parlamentares para aumentar o fundo eleitoral, que financia as campanhas políticas. O Congresso articula mudança na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) com o objetivo de elevar os recursos, contrariando a expectativa do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de manter em 2024 os mesmos R$ 4,9 bilhões de 2022. Defensores do aumento falam em subir o valor para R$ 5,7 bilhões, mesma quantia aprovada pelo Congresso em 2021 e vetada pelo então presidente Jair Bolsonaro. Na ocasião, a manutenção dos gastos em R$ 2,1 bilhões (valor de 2018 corrigido pela inflação) teria sido mais que suficiente.

O fundo eleitoral surgiu em 2015, depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucionais as doações feitas por empresas para campanhas políticas. A decisão ocorreu em meio à sucessão de escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava-Jato envolvendo contribuições por caixa dois. A intenção do Judiciário era moralizar as campanhas eleitorais, mas os políticos descobriram outras formas de desvirtuá-las.

Os argumentos para defender a gastança eleitoral são os mais estapafúrdios. Sustenta-se que o fundo atual é insuficiente para os partidos divulgarem todos os seus candidatos num país de dimensões continentais. “É preciso chegar a um valor que seja compatível com o tamanho do Brasil e das eleições”, diz o relator da LDO, deputado Danilo Forte (União-CE). Se o fundo eleitoral fosse realmente insuficiente para realizar as campanhas políticas, não sobraria dinheiro para fazer churrascadas, construir piscinas, comprar talheres e taças de vinho, alugar frotas de carros milionárias e outros descalabros perpetrados com recursos públicos destinados às eleições.

Evidentemente, nem todos os candidatos ou partidos fazem mau uso dos recursos. Em tese, o fundo é importante para proporcionar equilíbrio na disputa. As prestações de contas claudicantes ao TSE mostram, porém, que na prática não funciona assim. O controle sobre os recursos é cada vez mais frágil. Não por culpa da Justiça Eleitoral. Mas porque as maracutaias detectadas nas análises das contas partidárias tendem a ficar impunes. Há sempre uma movimentação do Congresso para perdoá-las. Agora mesmo, quando parlamentares pressionam pelo aumento do fundo eleitoral, tramita no Congresso uma PEC que concede a maior anistia da História recente aos partidos.

Há também quem defenda, como o presidente do Republicanos, deputado Marcos Pereira, que o fundo seja corrigido ao menos pela inflação. Seria uma medida razoável, desde que a base adotada fosse o ano de 2020, quando a despesa somou R$ 2 bilhões, mas não os R$ 4,9 bilhões de 2022. No Brasil de “dimensões continentais”, falta dinheiro para atender às necessidades mais básicas. O governo anunciou bloqueio de R$ 1,5 bilhão no Orçamento deste ano (metade em saúde e educação), porque a estimativa de gasto superou o teto. Diante disso, deveria causar constrangimento aos parlamentares reivindicar o aumento do fundo eleitoral.

Editorial de O GLOBO, em 15.08.23

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Malandragem: a origem

Terra sem regra e rei? De modo algum! Terra com muitas leis e muitos mandões. Tantos tribunais, legalidades e códigos que, querendo ou não, somos todos legais-ilegais – ou seja: formidáveis malandros. 

Fui dos poucos (seguindo a trilha pioneiramente aberta por Antonio Candido) a estudar o malandro (por meio de Pedro Malasartes) e a tentar caracterizar sociologicamente a malandragem – esse estilo de navegação social guiado por uma ética dúplice, conforme sugeri em 1979, em Carnavais, Malandros e Heróis.

Não é tarefa simples realizar isso no Brasil porque herdamos hierarquias ao lado de uma relativa obediência a regras. O inferior obedece à lei e ao superior que a canibaliza, como decreta o nosso personalismo. Em outras palavras, quem administra, comanda, governa leis, regras e normas, com elas se confunde e possui o paradoxal direito de não as obedecer, precisamente porque elas fazem parte de sua pessoa.

Esse vínculo do “mandão” ou do “chefe” com a regra é o fundamento das realezas, nas quais o rei era o centro absoluto do poder, que não tinha lugar sem a sua pessoa. Pertenciam ao rei o direito e o poder de mandar. Sua palavra era lei e não podemos esquecer que o Brasil a recebeu – e foi desenhado por um rei e uma corte que saíram do seu local de origem (Portugal), realizando um movimento singular do centro para a periferia colonial, num gesto único na história europeia.

Conta a anedota que Napoleão teria dito que d. João VI (o fujão) teria sido o único monarca europeu que o enganou. De minha parte eu diria que dom João VI inventou a malandragem quando largou, mas não abandonou, o seu reino. Nesse extraordinário movimento, ele ficou “entre reinos”. Ou, para ser mais preciso, ele criou o que Victor Turner chamou de liminaridade e, com isso, instituiu uma ética dúplice, pois fez nascer num só reino duas nobrezas, elites, capitais e – é óbvio – muita ambiguidade. Nesse caso, a lealdade não poderia ser territorial e institucional, mas pessoal.

Seria leviano sugerir que dom João engendrou a malandragem e, com ela, o personalismo que administra a vida de todos nós. Pois quem é capaz de não nomear leais companheiros muito mais valiosos do que protocolos?

Uma das consequências dessa institucionalização de escolher sempre os dois – ou seja: a lei e o amigo, Lisboa e o Rio de Janeiro, a República e a aristocracia sem o império, tem como resultado viver debaixo da sombra de uma densa imprecisão. O formidável meio-termo da terceira margem do rio, como especulou Guimarães Rosa. Pressionados por uma ética dúplice, perseveramos sendo marxistas católicos, espíritas bíblicos, católicos umbandistas, socialistas capitalistas e fascistas anárquicos. Não temos culpa, mas se formos descobertos temos vergonha...

Roberto DaMatta, o autor deste artigo, é antropólogo, escritor e autor de "Carnavais, Malandros e Heróis". Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 09.08.23 

Rússia aprisiona milhares de civis ucranianos no limbo

Pelo menos 4.000 pessoas capturadas durante a invasão permanecem em cativeiro, sem paradeiro conhecido, assistência jurídica, causa aberta ou possibilidade de troca como prisioneiros de guerra. Entre eles, o espanhol García Calatayud, de 75 anos,

A prisão IK-2, em Pokrov, 85 quilômetros a leste de Moscou, em uma imagem de fevereiro de 2021. (Foto de Kirill Zarubin - AP)

Um dos buracos negros da invasão da Ucrânia encerra milhares de civis em prisões secretas russas, sem acusações, sem direitos, quase sem identidade. Em um limbo que viola o direito internacional do começo ao fim. Um desses internos se chama Igor Steblevski. Sua história é chocante. É contada por seu filho, Roman, de 38 anos. Ele faz isso devagar, sério, cético e incrédulo. Steblevski, seu pai, morava em Hostomel com a esposa, cerca de 30 quilômetros a noroeste de Kiev, a capital ucraniana. Foi por aí que as tropas russas entraram em 24 de fevereiro de 2022. Quase um mês depois, em 22 de março, a esposa de Steblevski, Lyudmila Shevchenko, foi atingida por um morteiro enquanto estava na cozinha. Ele tinha então 62 anos e ela 54. Ele tentou fazer com que os militares russos o ajudassem a levá-la a um hospital em um carro blindado. Foi aí que começou o confinamento de Steblevski. Apenas algumas semanas atrás, Roman viu uma imagem dele novamente. Ele apareceu com o cabelo raspado em um site russo não oficial que relatou seu cativeiro.

O Centro para as Liberdades Civis (CLC), galardoado no ano passado com o Prémio Nobel da Paz , conseguiu documentar a detenção em prisões russas de 4.000 civis ucranianos, presos desde o início da ofensiva russa. Eles estimam que o número pode ser muito maior. O comissário ucraniano para os direitos humanos, Dmitro Lubinets, estima esse número em 20.000.

Igor Steblevski, civil ucraniano detido na Rússia, antes do início da guerra e durante seu cativeiro

O caminho para este buraco negro começa com a prisão de um cidadão ucraniano pelos militares russos durante a ocupação. Ele é frequentemente acusado de colocar suas operações em risco. Ele é enviado para um "campo de filtragem", um centro onde é revistado e interrogado. De lá é transferido para uma prisão russa, normalmente pela vizinha Bielo-Rússia, principalmente no caso daqueles que, como Steblevski, foram detidos no centro do país. E a chave é lançada. Eles entram em um limbo de guerra.

A primeira grande dificuldade para as famílias dos detidos é saber se e onde vivem. Roman tentou de tudo desde que parou de se comunicar com seu pai. Este engenheiro de formação, responsável por uma empresa vidreira em Vishneve, a sudoeste de Kiev, zona que os russos não atingiam, lembra que falava com ele uma vez por semana. "Os atiradores", diz ele de seu escritório, "atiram naqueles que viram com telefones celulares". Agora ele mostra em seu celular as fotos dos estragos que o morteiro que atingiu Shevchenko causou na casa de Hostomel, um terceiro andar em uma área residencial.

Ele entrou em contato com os vizinhos, com voluntários do município; Ele vasculhou as redes, denunciou o desaparecimento aos órgãos de busca, ONGs e polícia. Ela levou 10 dias para reconstituir o que aconteceu, que seu pai tentou ajudar seu companheiro, que eles se separaram quando ela ficou gravemente ferida e nunca mais se viram. Roman prefere não continuar com a história de Shevchenko por respeito à mãe, que é muito idosa e ainda aguarda notícias.

Durante semanas, ele continuou perguntando. Ele se moveu para ver se algum dos soltos tinha visto seu pai. Assim foi. Até duas pessoas que foram liberadas. “Um deles me deu detalhes sobre meu pai que eu só poderia saber se tivesse compartilhado uma cela com ele”, acrescenta. Eles disseram a ele que haviam conhecido Steblevski em uma prisão russa em Bryansk, cerca de 380 quilômetros a sudoeste de Moscou. Nessa mesma prisão é onde o CLC acredita, segundo seus dados, que o pai de Roman tenha estado em algum momento. Agora não sabem o paradeiro dele. Essa prisão foi reformada e os presos, possivelmente, transferidos.

Mikhailo Savva, um doutor em Ciências Políticas de 54 anos de origem russa, sabe como é uma dessas prisões. Ele passou oito meses na prisão de Krasnodar por defender os direitos humanos. E isso na Rússia tem punição. Hoje refugiado na Ucrânia desde 2015, Savva é membro do Conselho de Especialistas da CLC. Ele afirma que o que eles fazem para obter informações sobre esses presos e trabalhar para sua libertação é pressionar seus advogados em território russo, espremer a lei, respeitar esse marco legal e suas brechas e entrar. "A Rússia não pode negar a existência dos direitos humanos e aproveitamos essa lacuna." Ele diz isso de outra maneira: "Eles têm que ter medo de nós, medo de torturar."

Um valenciano, preso por colocar em risco a segurança da Rússia

Um exemplo para entender isso é o do espanhol Mariano García Calatayud , de 75 anos. “Enviamos 50 solicitações, literalmente, e só atenderam uma. Foi o Ministério Público da Crimeia [península ucraniana sob ocupação], em abril passado”. A resposta dizia que García Calatayud foi detido por colocar em risco a segurança da Rússia. Este valenciano, do município de Carlet, trabalhava há oito anos na província de Kherson ajudando crianças deslocadas pela guerra no leste iniciada em 2014. Em março de 2022 participou de uma manifestação contra a ocupação russa que lhe custou o prender prisão.

Conforme relata Savva, a autoridade tributária russa afirma que continua com as investigações. “O direito internacional não prevê que algo assim dure um ano e meio”, diz. Mas ao prisioneiro espanhol acontece a mesma coisa que aos demais. “Se a investigação terminasse e houvesse um caso aberto”, continua Savva, “ele teria o direito de ter um advogado para auxiliá-lo lá”. E não é o que acontece. Novamente, limbo: nem são prisioneiros de guerra, nem estão detidos sob firme acusação. Muitos acreditam que são simplesmente reféns da guerra do Kremlin.

Mariano García Calatayud, em imagem cedida por À Punt NTC

García Calatayud está em uma prisão de Simferópol construída no outono passado. Não porque o Ministério Público russo disse isso, mas porque ex-reclusos daquela prisão deram provas disso. Dizem que é alguém que fala espanhol, que fala muito alto, xinga muito… “Também disseram”, continua Savva, “que ele tem cicatrizes, hematomas, que poderiam ter batido nele… aos 75 anos ”. O CLC sustenta que a pressão da Espanha contribuiria para a causa. O Ministério das Relações Exteriores da Espanha afirmou ao saber da prisão de García Calatayud que está acompanhando o caso e está em contato com a família.

Savva, este especialista na área, tem o mesmo sentimento que Roman Steblevski expressa após meses de busca por seu pai. “Não diria que é mais difícil encontrar um civil do que um militar”, afirma o especialista do CLC, “mas é mais difícil libertá-los” – este centro conta ainda com 340 casos de civis libertados. O governo ucraniano está trabalhando no centro de coordenação para o tratamento de prisioneiros de guerra, sob o comando do general Kirilo Budanov, chefe da inteligência militar. Esta segunda-feira, o centro anunciou a libertação de mais 22 cidadãos ucranianos. Eram militares e se beneficiavam de um intercâmbio com a Rússia . Além disso, sempre com o zelo de sua missão, a Cruz Vermelha colabora nessas tarefas.

Carta da Rússia

Em novembro de 2022, Roman finalmente recebeu uma carta do Ministério do Interior da Rússia informando que seu pai estava realmente preso. "Eles me dizem", diz ele enquanto mostra a carta em seu celular, "que meu pai está detido por resistir à operação militar especial [na Ucrânia], que ele está em território russo e que sua saúde é satisfatória". Roman não está muito convencido disso, porque teve problemas cardíacos e eles podem voltar.

-Como você está?

“Eu achava que era uma pessoa forte e resiliente, mas estou começando a ter problemas de saúde.

"Como você acha que seu pai vai ser?"

―Ele é uma pessoa muito forte e inteligente, não acho que ele faça nada estúpido.

Oscar Gutiérrez, o autor desta reportagem, é Jornalista da seção Internacional do EL PAÍS desde 2011. É especialista em questões relacionadas ao terrorismo e conflito jihadista. Ele coordena as informações sobre o continente africano e está sempre de olho no Oriente Médio. É formado em Jornalismo e mestre em Relações Internacionais. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 09.08.23

Declaração final da Cúpula da Amazônia frustra expectativas

Documento assinado pelos líderes dos países amazônicos não inclui desmatamento zero e exclui veto a exploração de combustíveis fósseis, embora agrida o controle para integração regional e defesa do bioma.

A Cúpula da Amazônia surgiu de uma iniciativa do governo brasileiro e inclui países da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA)Foto: Eraldo Peres/AP Photo/picture aliança

Os líderes dos oito países que participaram da Cúpula da Amazônia não conseguiram chegar a um consenso sobre a exploração de petróleo  na região, apesar dos intensos debates nos últimos dias sobre a questão e a forte pressão dos setores da sociedade civil.

O texto final não incluía uma proposta defendida por algumas das lideranças, que desejavam vetar a exploração de combustíveis fósseis na Amazônia. O documento menciona apenas o início de um diálogo entre os Estados sobre a sustentabilidade de setores como a mineração e hidrocarbonetos.

A chamada Declaração de Belém, divulgada nesta terça-feira (08/08), ressalta o objetivo comum de evitar o "ponto de não retorno da floresta amazônica", o que significa limitar o desmatamento em até 20% do bioma, de modo a impedir um processo irreversível de desertificação.

Os países concordaram em criar uma Aliança Amazônica de Combate ao Desmatamento a partir das metas nacionais, com o fortalecimento da aplicação das legislações florestais.

O documento, no entanto, não menciona metas ou prazos para a conservação florestal. A meta de desmatamento zero, defendida pelo Brasil e pela Colômbia, foi mencionada no preâmbulo da declaração apenas como "um ideal a ser alcançado".

Petro critica "conflito ético" e manda recado a Lula

Durante a cúpula, o presidente da Colômbia, Gustavo Petro , fez um forte discurso pelo fim da exploração do petróleo na Amazônia  e criticou a falta de um consenso em torno de soluções para os problemas ambientais com base na ciência.

O colombiano argumentou que a Declaração de Belém deveria sinalizar com clareza o compromisso dos países de pôr fim à exploração dos combustíveis fósseis no bioma, o que acabou não caindo.

Petro criticou o distanciamento entre a classe política e os movimentos sociais, e disse haver um "enorme conflito ético, sobretudo por forças progressistas, que deveriam estar ao lado da ciência".

"A direita têm um fácil escape, que é o negacionismo. Negam a ciência. Para os progressistas, é muito difícil. Gera então outro tipo de negacionismo: falar em transições", criticou Petro. O termo "transição" é utilizado em todo o mundo justificando a continuidade da exploração dos combustíveis fósseis em meio a um processo transicional para investimentos em fontes renováveis ​​de energia.

Indígenas protestam durante a Cúpula da Amazônia em BelémFoto: Paulo Santos/AP Photo/picture aliança

A fala foi recebida como um recado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva , após o Brasil não apoiar a inclusão da exigência do fim da exploração de petróleo na Amazônia no texto final da declaração.

"Os desacordos às vezes nos permitem algumas propostas novas também", disse Petro. "A política não consegue se descolar dos interesses médicos que derivam do capital fóssil. Por isso a ciência se desespera, porque ela não está vinculada a esses interesses tanto quanto a política", observou.

"Cada vez mais o movimento social se junta com a ciência e a política cada vez mais está presa na retórica". Segundo afirmou, esta seria a razão do fracasso das Conferências do Clima da ONU.

Petro descreveu a exploração de petróleo na Amazônia como um "contrassenso" e pediu que fossem tomadas decisões para pôr fim a essa prática "sem sentido". "Não vamos colocar na declaração, mas vamos tomar decisões", destacou.

Brasil dividido sobre veto ao petróleo

Mais cedo, Lula chegou a falar em uma "transição ecológica", que disse ser uma oportunidade para a Amazônia deixar de ser fornecedora de matérias-primas para o mundo. Seu governo, porém, demonstrou estar dividido sobre a exploração de petróleo no bioma amazônico.

O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, defendeu que a Petrobras  possa fazer pesquisas para avaliar a viabilidade de petróleo na foz do rio Amazonas .

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva , por sua vez, condenou o que chamou de "atitudes erráticas" e disse que zerar o desmatamento não será suficiente para garantir a sobrevivência da Amazônia, mas sim, o fim do uso de combustíveis fósseis .

A Cúpula da Amazônia surgiu de uma iniciativa do governo brasileiro. O objetivo principal era fortalecer a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), o único mecanismo internacional com sede no Brasil criado para promover o desenvolvimento sustentável na região.

Destaques da declaração final

A Declaração de Belém inclui ainda a criação do Centro de Cooperação Policial Internacional, com sede em Manaus, no intuito de viabilizar a integração das polícias dos oito países.

O texto também prevê a criação de um painel técnico científico da Amazônia, nos moldes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), e do Observatório Regional Amazônico, a ser instalado na estrutura da OTCA, para o compartilhamento de informações em tempo real entre os países.

Os líderes concordaram em estabelecer um Sistema Integrado de Controle de Tráfego Aéreo para o combate ao narcotráfico e outros crimes na região amazônica, além da criação de negociação financeira de fomento do desenvolvimento sustentável, com destaque para a Coalizão Verde, que reúne os bancos de desenvolvimento da região.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 09.08.23

terça-feira, 8 de agosto de 2023

O País é um só

Zema acerta quando aponta a sub-representação política do Sudeste, mas isso não é motivo para fomentar rixas. Grande bem para todos, a Federação deve ser preservada e fortalecida

A entrevista do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), ao Estadão, anunciando um consórcio dos governos estaduais das Regiões Sul e Sudeste para atuação política coordenada, suscitou reações fortes. O governador da Paraíba e presidente do Consórcio Nordeste, João Azevêdo (PSB), classificou de infeliz a declaração de Zema. “Estamos em um processo de reconstrução e aí vem alguém e faz uma declaração dessa”, disse Azevêdo. Nas redes sociais, o ministro da Justiça, Flávio Dino, afirmou que a extrema direita estaria “fomentando divisões regionais”.

Segundo o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), o Consórcio Sul-Sudeste está inspirado no que foi feito no Nordeste. “Nunca achamos que os Estados do Norte e Nordeste haviam se unido contra os demais Estados. Ao contrário: a união deles em torno de pautas de seus interesses serviu de inspiração para que, finalmente, possamos fazer o mesmo, nos unirmos em torno do que é pauta comum e importante aos Estados do Sul e Sudeste”, disse Leite.

À parte das polêmicas políticas, das quais cada lado tenta tirar proveito, o fato é que a entrevista de Romeu Zema joga luzes sobre um problema que não é de hoje: a sub-representação política dos Estados mais populosos na Câmara dos Deputados. De um total de 513 cadeiras, o Estado de São Paulo tem 70, numa evidente desproporção em relação ao tamanho de sua população.

Essa sub-representação tem origem na própria Constituição. Apesar de definir que a distribuição de cadeiras na Câmara dos Deputados deva ser proporcional à população, o texto constitucional estabelece que nenhuma unidade da Federação terá “menos de oito ou mais de setenta deputados”. As diferenças no tamanho da população de cada Estado são mais amplas do que o intervalo entre oito e setenta.

Ao criticar essa sub-representação, o governador de Minas Gerais também responsabilizou os próprios Estados do Sul e do Sudeste pela ausência de um peso político adequado. “Outras Regiões do Brasil, com Estados muito menores em termos de economia e população, se unem e conseguem votar e aprovar uma série de projetos em Brasília. E nós, que representamos 56% dos brasileiros, mas que sempre ficamos cada um por si, olhando só o seu quintal, perdemos”, avaliou.

A articulação política é elemento essencial de toda democracia. E não cabe recriminar, como se fosse algo negativo ou mesmo antidemocrático, essa nova organização dos Estados das Regiões Sul e Sudeste na defesa de seus interesses políticos. O que não pode haver, pois afrontaria os valores e os fins da Constituição, é uma articulação para nutrir conflitos ou fomentar divisões regionais. Ou que difundisse a ideia de que cada Estado deve atuar exclusivamente na defesa de seus interesses imediatos, indiferente à situação das outras unidades federativas. O País é um só.

A Constituição é expressa em seu art. 3.º. Um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é “reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Ou seja, uma das razões que fundamentam a existência e o funcionamento do Estado brasileiro é a diminuição das desigualdades entre as diferentes unidades da Federação. Ora, esse processo só é possível se os Estados com melhores condições contribuírem de forma efetiva com aqueles em piores condições, sem nenhum tipo de preconceito, sem nenhuma reclamação. De fato, se existe uma Federação, um problema do Nordeste é também um problema do Sudeste, e vice-versa. Há esferas de competência, mas isso não significa indiferença, desprezo ou alheamento.

Como reconheceu o governador de Minas Gerais, há também pobreza no Sul e no Sudeste. “Nós também precisamos de ações sociais”, disse. É simplista e muito equivocada a ideia de que o problema do País estaria lá no Nordeste, enquanto aqui estariam as soluções. O pertencimento à Federação, mesmo com todos os ônus e limitações correspondentes, é um grande bem para todos os Estados. No fim, todos saem ganhando. Articulação política sim; divisão, rixa ou sentimento de superioridade não.

Editorial \ Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 08.08.23

O exemplo Bukele

Ou as democracias percebem que não lhes basta existir e mostrar seu magnífico perfil helênico, ou os Bukeles deste mundo vão ficar com quase tudo

O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, anuncia que concorrerá à reeleição em El Salvador. (Getty Images)

Não gostamos de saber, muito menos de dizer: sempre chega um momento em que o povo ama seus ditadores. Ou, dito de outra forma: é muito difícil se tornar um ditador se você não conseguiu que uma parte significativa do seu povo depositasse grandes expectativas em você. Depois tentamos esquecê-la, porque a memória nos humilha, mas é fácil saber que a barbárie do general Videla ou do general Pinochet ou do generalíssimo Franco ou do cabo Hitler foi reclamada por milhões, que levaram anos para deixar de vivê-la – ou nunca o fizeram. .

Esses milhões os amavam, em sua maioria, porque eles assumiam tarefas que achavam necessárias e que os governos cumpridores da lei não faziam: acabar com um guerrilheiro ou dois, acabar com todos os defensores dos trabalhadores ateus vermelhos, acabar com os judeus do mundo. , essas coisas. O Sr. Nayib Bukele, o jovem presidente de El Salvador, está nesse momento.

O contexto é muito claro: neste momento o mundo – boa parte do mundo – acredita que os políticos são inúteis. Ou pior: que servem para enriquecer, gozar do seu poder, fornicar outra coisa, enganar milhões com mentiras e promessas que nunca pensam concretizar. Os políticos são geralmente vistos como um mal necessário – e mais e mais pessoas estão se perguntando por que eles eram necessários. A democracia é definida como um sistema de impedimentos, onde os pactos e arranjos entre os favorecidos perpetuam os problemas reais. Nesse cenário que está chegando ao fundo do poço, surge um homem – digamos, por exemplo, em El Salvador – que faz o que duas ou três décadas de políticas não conseguiram. Ou, pior: o que os políticos dessas duas ou três décadas agravaram ao indizível.

El Salvador esteve por muito tempo submetido ao poder brutal de dois grandes grupos empresariais armados, organizados para obter o máximo benefício econômico a qualquer custo – sequestro, assassinato, extorsão, tráfico –, que eles chamam de maras ou bandos ou gangues. Seus governos tentaram limitar esse poder com vários métodos – repressão mais ou menos legal, vários pactos – e não conseguiram. E de repente esse homem aparece e consegue. Seu sistema é radical: impõe a violência ilimitada do Estado, constrói prisões gigantescas, detém cerca de 80.000 pessoas em poucos meses sem procurar provas de que são culpados, acumula a maior proporção de prisioneiros por habitante do mundo, exibe cruelmente as condições cruéis em que são empilhados, julga-os em julgamentos pré-arranjados - e , em Em poucas semanas, as ruas de seu país voltam a ser transitáveis ​​e milhões de pessoas que viviam com medo das gangues retomam vidas mais “normais”.

Muitos de nós estamos indignados, com razão: transformou El Salvador em uma sociedade de vigilância, onde seu governo pode reprimir quem quiser como bem entender, sob o pretexto de que poderia pertencer – ou “apoiar” – essas gangues. É intolerável, mas ele atingiu seu objetivo e milhões o agradecem e o apoiam.

Nayib Bukele agora tem um nível de aprovação que poucos presidentes tiveram: depois de quatro anos à frente de um dos países mais pobres do hemisfério, estima-se que ele tenha entre 80 e 90 por cento de entusiasmo. E, claro, pretende ser reeleito ainda que a Constituição do seu país não o permita, porque tantos assim o querem – e que tenha cada vez mais poderes, pois redundam no "bem geral -ser." E, claro, políticos que prometem políticas semelhantes e cidadãos que as pedem aparecem em outros países da região: o bukelismo avança.

Bukele se tornou um problema e um exemplo. As democracias não poderiam obter esses resultados sem quebrar suas próprias leis? Em geral, eles não têm. Então, quanto tempo eles podem sobreviver se não resolverem os problemas realmente urgentes? Em certos países pode ser violência, fome ou marginalização ou inflação em outros. Até quando poderão manter seu prestígio, a ilusão de sua necessidade, se não os remediarem? Quanto menos soluções as democracias alcançarem, mais sociedades reivindicarão personagens como Nayib Bukele. O perigo, na verdade, não é Bukele e El Salvador; somos todo o resto e nossas impotências. Com todo respeito aos ancestrais fundadores: já existem várias gerações de americanos que acreditam que a democracia é um meio, não um fim. Se esse meio não serve para chegar ao fim, procuram outros meios - porque, em última instância,

O que nos opomos a eles, o que discutimos? Que este método autoritário põe em risco todos os cidadãos, que qualquer um pode ser preso e principalmente quem se opõe ao Governo? É assim, sem dúvida – e é terrível – mas a maioria dos cidadãos imagina que isso não pode acontecer com eles porque eles não interferem, que o que eles querem é viver em paz e que com as gangues eles não podiam e agora eles fazem. E sim, é necessário denunciar os Bukeles quando avançam sobre as liberdades que deveríamos ter – mas é inútil. Essas liberdades devem ser usadas para resolver os problemas urgentes dos cidadãos – e não para cantar sobre sua indiscutível beleza. Ou as democracias percebem que não lhes basta existir e mostrar seu magnífico perfil helênico, ou os Bukeles deste mundo vão ficar com quase tudo.

Agora: importa começar agora. Talvez ainda tenhamos algum tempo – mas a palavra-chave é ainda.

Martin Caparros, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 08.08.23

domingo, 6 de agosto de 2023

A recessão democrática na América Latina

Ao constatar a precária percepção de benefício do Estado de Direito entre os cidadãos da região, a pesquisa Latinobarómetro expõe o risco de avanço do populismo e da via autoritária

Passadas quatro décadas de gradual reforço das instituições e do Estado Democrático de Direito na América Latina, soa no mínimo preocupante o fato de a região atravessar mais de dez anos de “recessão democrática”. A constatação apoia-se nos resultados de pesquisa realizada neste ano em 17 países pelo Latinobarómetro, organização sediada em Santiago, Chile. Não há conforto ao nos inteirarmos que menos da metade (48%) dos latino-americanos consideram a democracia como modelo preferível à via autoritária, apoiada por 17% – ou que, para 28%, pouco importa o regime político do país. O quadro traz grave alerta sobre a vulnerabilidade da região ao populismo e à ascensão de regimes autocráticos.

A base de dados do Latinobarómetro mostra ter havido melhores momentos para a democracia na região, como no início da década passada, quando a preferência por esse regime alcançava 63%. Desde então, segundo a organização, a percepção sobre seus benefícios foi desgastada por crises econômicas, escândalos de corrupção, demandas não atendidas pelos governos e fragilidade do sistema partidário. O estudo A recessão democrática da América Latina atribui boa parte desse descalabro à omissão das elites diante da erosão das instituições e de pressões pela mudança nas regras do jogo – ou a sua atuação intensa em prol desses resultados. Essa visão, obviamente, deve ser considerada, mas está longe de esgotar todos os alvos de responsabilização.

Expressiva é a insatisfação com a democracia, apontada por 69% das 19.205 pessoas consultadas. É certo que houve recuo de três pontos porcentuais nesse universo desde 2018, quando atingiu o recorde de 72%. Mas a magnitude dos insatisfeitos não dá margem para nenhum alento. Sinal menos ruim surge na aversão de 61% a golpes militares – 63% no Brasil. Novamente, não é possível ser otimista quando a pesquisa também mostra que 54% dos latinoamericanos não se importariam com um governo não democrático, desde que resolvesse os problemas nacionais

A preocupação cresce ao se observar o menor engajamento dos jovens na democracia. “Quanto menor a idade, mais autoritários são”, diz o estudo, ao alertar para a diluição dos valores democráticos entre os cidadãos que, na América Latina, enfrentam maiores taxas de desemprego e menores perspectivas de futuro. O apoio às instituições que sustentam o Estado de Direito é declarado por 43% dos latino-americanos de 16 a 25 anos. Nessa faixa, que não chegou a viver o período ditatorial, a opção autoritária tem a preferência de 20%.

No Brasil, a pesquisa foi realizada logo depois dos ataques às sedes dos Três Poderes por uma horda que defendia um golpe militar para derrubar o governo eleito de Lula da Silva. A preferência pelo Estado de Direito mantevese em 46%, pouco abaixo da média regional, e escalou seis pontos porcentuais em relação ao nível de 2020. Os dados indicam que a percepção foi mais afetada pelos quatro anos de investidas do governo de Jair Bolsonaro contra as instituições do que pelos eventos do 8 de Janeiro.

A opção pela via autoritária cresceu dois pontos porcentuais, para 13% – curiosamente, o mesmo que na Venezuela. O total de brasileiros indiferentes caiu seis pontos, para 30%, um porcentual nada confortável. A pesquisa, porém, traz outro dado preocupante: 43% dos brasileiros concordam com a possibilidade de o governo controlar os meios de comunicação – ou seja, romper um princípio basilar da Constituição.

O estudo do Latinobarómetro de 2023 teve o cuidado de não mergulhar na análise dos regimes ditatoriais da América Latina, embora tenha havido pesquisa na Venezuela. Nicarágua e Cuba foram evitados. Para a organização, o governo de Nayib Bukele, presidente de El Salvador, já rompeu a integridade democrática.

A escolha do termo “recessão”, mais afeito ao léxico econômico, está em linha com o déficit de percepção dos benefícios da democracia por parte expressiva da cidadania. Nada pode ser mais perturbador para a América Latina que as vozes populistas e os desmandos autoritários. É preciso, mais do que nunca, zelar pelo futuro das instituições.

Editorial \ Notas e Informações, O Estado d S. Paulo, em 06.08.23

sábado, 5 de agosto de 2023

Não é normal por ter sido sempre assim

A chantagem só será desfeita ao se colocar nos trilhos as relações entre Legislativo e Executivo, fundadas na cooperação na execução de plano de governo, e não na compra disfarçada de votos

O governo Lula conseguiu, na mesma semana, aprovar na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) modificativa de parte do sistema tributário e, também, que a determinação de empate no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) fosse favorável à União, e não ao contribuinte, redundando em aumento considerável da arrecadação.

O apoio da Câmara dos Deputados decorreu da liberação de mais de R$ 5 bilhões para pagamento das emendas parlamentares, que estavam represadas, enviando aos municípios numerário para obras e serviços definidos genericamente, indicando-se apenas destinarse ao atendimento da saúde, ou da educação, ou de obra viária. Os deputados, dessa maneira, demonstram prestígio e angariam créditos em seus redutos eleitorais, valendo a troca do voto pelo empreendimento conquistado na busca de reeleição.

A adesão dos parlamentares a projetos de emenda constitucional e de lei não se deu, portanto, para parcela considerável, por espírito público. Pesaram na decisão a liberação da verba de emenda parlamentar propiciadora da reeleição em 2026 e a promessa da nomeação de apaniguados dos partidos para cargos distribuidores de benefícios. É exemplo o compromisso de concessão da direção da Caixa Econômica Federal, que libera financiamentos do programa Minha Casa Minha Vida, e da Funasa, responsável pela execução do saneamento básico em pequenas cidades. A direção de ambas permite angariar votos.

Novamente, trata-se o público como se privado fosse. Gilberto Freyre apontou como elemento definidor da unidade nacional a estrutura patriarcal de nossa sociedade, que permitiu reunir o diverso e o contraditório sob um mesmo teto, graças a um denominador comum, um traço uniforme no comportamento do estamento governamental ao longo do tempo: a falta de distinção entre o público e o privado.

Esta supremacia dos interesses particulares sobre o interesse geral foi, para Gilberto Freyre, ostensiva na formação brasileira. Os poucos que dirigem o País não o fazem em favor da maioria. No Estado patrimonialista, que ainda remanesce, “a minoria exerce o governo em nome próprio” e o exercita não em prol da Nação, mas segundo sua conveniência. Assim, discórdias são superadas por meio de verbas, de loteamento de cargos e honrarias.

Ausente a dimensão do bem comum, o desfazimento de eventuais conflitos pode ser facilmente alcançado pela conciliação dos interesses, mediante a satisfação do maior número de correligionários, em acordo tácito entre os “donos do poder”, o que pereniza a desigualdade e a exclusão social.

Para Sérgio Buarque de Holanda, a “cordialidade” é característica essencial da brasilidade – para muitos, no sentido de composição entre setores divergentes da elite, que jamais levam a ferro e fogo as disputas, de forma a não comprometer o sistema de poder. Esta semana, reabriu-se o Congresso Nacional e a dança dos interesses voltou à baila.

Dois alicerces do sistema político não ajudam a governabilidade: 1) o sistema eleitoral proporcional, facilitador da guerra entre membros do mesmo partido, disputando cada um por si; 2) o sistema presidencialista, desenhado na Constituição, que criou o Executivo forte, graças à adoção de medidas provisórias, garantidoras do processo legislativo sem o Congresso, mas instaurou um presidente fraco, sujeito a todas as chantagens, por falta de fidelidade dos parlamentares a um programa de governo. O apoio é conquistado no varejo pelo atendimento a reivindicações individuais.

Assim, o Congresso é desmedidamente forte por não ter qualquer responsabilidade e nem ser sancionado com dissolução. Arthur Lira atua como um primeiro-ministro sem risco de moção de censura.

Há que reconhecer ser esta estrutura política uma facilitadora da corrupção de toda espécie, de que são exemplos recentes o mensalão e o petrolão, cuja realidade a farsa da narrativa negacionista não desfaz.

O malefício que contamina nossa política não está apenas no clientelismo, mas no corporativismo, a ver que a Câmara dos Deputados não se divide em partidos, mas em bancadas, reunidos os deputados de acordo com sua prioridade ideológica, ou seja, a bancada da bala, a da Bíblia, a do boi.

Enquanto não houver reforma política, será assim. Fundamental, portanto, instalar-se o sistema eleitoral distrital misto, que fortalece e dá conteúdo aos partidos políticos, permitindo às circunscrições representação no Parlamento, para se criar “o gosto pelo bem comum”.

Por fim, é de todo conveniente o sistema semipresidencialista, com instituição de governo em responsabilidade conjunta do Executivo e da Câmara dos Deputados, podendo esta, em crise de governabilidade, vir a ser dissolvida. A chantagem só será desfeita ao se colocar nos trilhos as relações entre Legislativo e Executivo, fundadas na cooperação na execução de plano de governo, e não na compra disfarçada de votos.

Do contrário, só resta recorrer à cegueira deliberada, fazendo de conta que é normal a extorsão dos parlamentares sobre o Executivo, por ter sido sempre assim. 

Miguel Reale Junior, o autor deste artigo, Advogado, é Professor Titular Sênior da Facudade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Foi Ministro da Justiça. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.08.23.

A iniciativa da Ucrânia de uma ampla coalizão de paz obtém sucesso com a participação da China nas negociações de Jeddah

Enviados de cerca de 40 países se reúnem neste fim de semana na cidade saudita em torno do roteiro de 10 pontos elaborado por Zelenski para alcançar uma saída da guerra

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky durante uma visita a Donetsk.

A Ucrânia não está apenas avançando – mesmo que seja pedaço por pedaço de terra – na frente de guerra no sul e no leste do país. Também o faz agora na batalha diplomática. A China, grande aliada da Rússia, anunciou nesta sexta-feira que o diplomata Li Hui, representante especial para assuntos eurasianos, viajará neste fim de semana à cidade saudita de Jeddah para participar das negociações sobre o plano de paz proposto pelo presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky . O chanceler ucraniano, Dmitro Kuleba, em declarações à Interfax-Ucrânia, saudou a ajuda de Pequim: "A notícia de que a China está enviando Li Hui para Jeddah é um grande passo adiante".

A delegação de Pequim junta-se assim a cerca de 40 outras delegações diplomáticas - entre elas, enviadas pelos Estados Unidos e países da UE - que, através de altos funcionários, se sentarão à mesa para tentar chegar a uma posição com base na paz de 10 pontos plano que Zelenski apresentou em novembro do ano passado, e com o qual trabalha desde então nas trincheiras políticas.

O objetivo de Kiev é estender a coalizão de países aliados para além do Ocidente e também reunir o chamado Sul Global, para o qual é essencial a assistência ao encontro de países como China, Índia, Brasil ou África do Sul. A aceitação por parte de Pequim do convite de Kiev é, no entanto, o grande impulso ao roteiro ucraniano.

"A China está disposta a trabalhar com a comunidade internacional", disse o porta-voz estrangeiro chinês, Wang Wenbin, em um comunicado, "para continuar a desempenhar um papel construtivo na promoção de uma solução política para a crise na Ucrânia". Li Hui, ex-embaixador em Moscou, é o diplomata escolhido pelo presidente chinês, Xi Jinping, para negociar com os governos da Ucrânia e da Rússia, com quem mantém canais de comunicação abertos. No final de maio, Li percorreu várias capitais europeias, nas quais também pôde se encontrar com o presidente Zelensky em Kiev e, em Moscou, com o chanceler russo, Sergei Lavrov. Entre as conclusões a que Li chegou após essa missão está a de que nenhum dos contendores estava disposto a sentar-se para falar sobre a paz .

Algumas semanas depois, no final de junho, uma primeira reunião sobre o processo de paz foi realizada em Copenhague. Esta foi a tentativa mais ambiciosa de promover o diálogo até agora, contando com a presença de enviados de, entre outros, UE, Estados Unidos, Brasil, África do Sul, Índia e Turquia - as mesmas delegações que deverão ir a Jeddah - . Fora alguns avanços, aquela reunião não contou com a participação da China, apesar do convite enviado por Kiev.

Na mesa de Jeddah estarão os 10 pontos traçados por Zelenski como plano de paz . Como prato principal, o mais espinhoso: Kiev exige a retirada das tropas russas de todo o seu território e a restauração da soberania e integração ucraniana. Além disso, Zelensky inclui em sua proposta a proteção do abastecimento de alimentos e energia, a segurança nuclear e a libertação de todos os prisioneiros, bem como a criação de um tribunal para julgar os crimes de guerra russos.

Os participantes da cidade saudita, muitos deles membros do Sul Global, devem passar parte das conversas falando sobre o bloqueio das exportações de grãos pelo Mar Negro após a retirada da Rússia do acordo de grãos. O governo ucraniano denunciou que os últimos bombardeios de Moscou contra a infraestrutura agrícola causaram a perda de mais de 40.000 toneladas de seus silos, que se destinavam aos países do sul.

Rússia relógios

"Na Arábia Saudita", disse o conselheiro do governo ucraniano Mikhailo Podoliak na sexta-feira, "os alicerces de uma nova arquitetura política global estão sendo lançados". "Essa arquitetura não terá mais a 'subjetividade agressiva da Federação Russa', que causou instabilidades importantes nos últimos 15 a 20 anos", acrescentou o assessor de Zelensky.

A Rússia não foi convidada para a reunião de Jeddah, assim como não foi convidada para a reunião de Copenhague. No entanto, Moscou indicou que continuará a reunião realizada sob os auspícios da Arábia Saudita. “Resta ver quais objetivos são definidos e como os organizadores realmente planejam falar”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, na segunda-feira. "Dissemos repetidamente que qualquer tentativa de contribuir de alguma forma para um acordo pacífico merece uma avaliação positiva", acrescentou.

Com exceção da Rússia, a expectativa é que os demais países do bloco BRICS, que inclui Brasil, Índia, China e África do Sul, enviem seus delegados ao país árabe neste fim de semana para falar sobre a paz na Ucrânia. Esse grupo, com influência crescente, tornou-se uma das novas bandeiras de Moscou diante das sanções ocidentais. A adesão da Índia às negociações de paz, também aliada do Kremlin e boa cliente do comércio de petróleo bruto da Rússia, também parece positiva para Kiev. E ainda mais se levarmos em conta que Nova Délhi presidirá a próxima reunião do G-20 em setembro.

Os BRICS realizarão sua próxima cúpula entre os dias 22 e 24 de agosto em Joanesburgo, à qual não comparecerá o presidente russo, Vladimir Putin, contra quem pesa um mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional de Haia .

leste e sul da frente

Prestes a iniciar as negociações, a batalha continua na linha de frente. Quase 18 meses depois de Putin ter ordenado às suas forças militares a invasão do país vizinho, o exército ucraniano tenta avançar pelos flancos leste e sul da frente na contra-ofensiva lançada no final de maio. Conforme relatado em seus últimos relatórios pelo centro de análise Institute for the Study of War (ISW), com sede em Washington, os militares ucranianos concentraram seu ataque em três pontos no sudeste do país: Berdiansk, Melitopol e Bakhmut.

Enquanto isso, Moscou resiste e mantém bombardeios constantes contra áreas fora de seu controle, como nas províncias de Kharkov e Kherson ― dois ataques em 72 horas contra o mesmo hospital ―, bem como o assédio de seus drones na capital ucraniana, Kiev.

Zelenski estimou nesta quinta-feira em 1.961 dispositivos não tripulados Shahed, fabricados no Irã, lançados por Moscou contra o território ucraniano. "Um número significativo deles foi abatido", observou o presidente ucraniano em sua conta no Telegram, "mas infelizmente não todos". De fato, as defesas antiaéreas reduziram significativamente o alcance desses drones, embora Zelenski tenha aproveitado sua declaração para pedir a seus diplomatas que trabalhem mais para conseguir mais sistemas de defesa antiaérea.

Segundo os últimos números registrados pelo Escritório de Direitos Humanos da ONU, 9.369 pessoas perderam a vida e outras 16.646 ficaram feridas desde o início da invasão, em 24 de fevereiro de 2022.

Oscar Gutiérrez, o autor desta reportagem, enviado especial à Ucrânia, é Jornalista da seção Internacional do EL PAÍS desde 2011. É especialista em questões relacionadas ao terrorismo e conflito jihadista. Ele coordena as informações sobre o continente africano e está sempre de olho no Oriente Médio. É formado em Jornalismo e mestre em Relações Internacionais. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 04.08.23

O que fazer com a Rússia?

Durante anos, a União Europeia manteve uma política em relação a Moscou que pode, na melhor das hipóteses, ser descartada como inábil. A Letônia é um laboratório para aprender

Uma faixa de protesto contra Vladimir Putin foi desfraldada no centro de Riga em fevereiro passado para marcar o primeiro aniversário do início da invasão da Ucrânia pela Rússia. (ANDREY RUDAKOV (BLOOMBERG)

Ainda não é hora de falar de paz com a Rússia. A agressão não dá sinais de parar . A entrega à força dos territórios ucranianos ocupados agora não trará paz à Ucrânia, mas sim uma trégua que não sabemos como terminaria, porque serviria, seguramente, apenas para reforçar as posições do regime russo. Precisamos de outra Rússia para conversar. E precisamos de outras estratégias.

Durante anos, a União Europeia teve uma política em relação à Rússia que, na melhor das hipóteses, pode ser descartada como pouco qualificada. Por um lado, aceitando empedernidamente o rumo cada vez mais autoritário e imperialista de Vladimir Putin, pensando que tudo aconteceria quando ele percebesse as vantagens —econômicas— de cooperar com a Europa. Sem impor limites às agressões, mais que com boca pequena. Por outro lado, humilhando os russos – tanto adversários quanto o mundo putinista – por não saberem como interagir com a Rússia, deixando às vezes a política voltada para o Oriente nas mãos de políticos cheios de preconceitos anti-russos. E, sobretudo, sem ser capaz de oferecer uma alternativa europeia forte, clara e vinculativa que teria atraído tanto a Rússia como a Ucrânia para um conceito de segurança e cooperação. Sim, ao mesmo tempo. Isso poderia ter sido feito.a crise de Maidan foi extraordinariamente desajeitada . Mas deveria ter começado muito antes. E foi dito. Esteja avisado. Mas a política diária se arrastava demais.

Reconheço que é difícil unir direções tão divergentes de política externa. Mas pelo menos teria sido possível o desenho de um espaço que permitisse vencer as relutâncias russas, evitando a sensação de isolamento, que reforçou o regime vezes sem conta. Talvez a última possibilidade disso fosse, já escrevi sobre isso no EL PAÍS naquela época, durante a crise bielorrussa de 2020.

Quando um assunto dá muito o que falar, leia tudo o que tem a ser dito.

O que podemos fazer agora? Estamos claramente cientes de que a Ucrânia deve ser apoiada até o fim. Esta é a única chance para o regime russo mudar. Mas isto não é o suficiente. Também não é uma boa ideia deixar os Estados Unidos penetrar cada vez mais no desenho das políticas europeias para o Oriente. Seus interesses são muito diferentes dos nossos, mesmo em alguns aspectos até incompatíveis. Com os Estados Unidos, devemos ter unidade na construção das defesas militares europeias. Mas não na base do quadro político que os sustenta. Esse é, e deve ser, o nosso negócio. E você tem que encontrar alternativas.

Ultimamente tenho passado algum tempo em Riga, capital da Letônia. Aqui a guerra na Ucrânia está presente em todos os lugares - embora eu admita que foi há pouco menos de um ano. Há bandeiras ucranianas por toda parte, nos cafés há cofrinhos para arrecadar ajuda humanitária, também há —também em menor número— refugiados.

A Letônia é um lugar muito especial.Pelo menos um terço da população fala russo em suas vidas diárias. Em Riga, é possível entrar em quase qualquer café ou loja e fazer o pedido diretamente em russo. Muito provavelmente, você será respondido diretamente nesse idioma. Isso é algo que não é tão óbvio quanto parece: a Letônia tem uma longa história de domínio russo, mas até depois da Segunda Guerra Mundial a língua de prestígio era o alemão - os alemães bálticos, que fundaram Riga, foram a elite por séculos — e o da população em geral, o letão, uma língua não eslava. Durante o breve período de independência entre 1920 e 1940, o letão tornou-se a língua oficial, mas a reconquista soviética -aqui percebida como russa- após a guerra levou à imposição do russo como língua da Administração. Com a industrialização, Centenas de milhares de pessoas de outras partes da União Soviética imigraram para a Letônia, e a língua russa tornou-se dominante, pelo menos nas cidades. Durante os mais de 40 anos de controle soviético, a luta dos letões para preservar a língua foi incessante.

Quando a URSS desmoronou, algo em que os letões, como os outros bálticos, participaram ativamente, a população de língua russa — aquela que usava o russo como língua cotidiana — talvez surpreendentemente tenha apoiado a independência do país. E é que o movimento pela independência, que teve raízes muito diversas, soube desdobrar-se como busca da democracia, da prosperidade e de um “retorno” à Europa. Os milhares de russos étnicos na Letônia, mas também muitos outros russófonos não russos - ucranianos, bielorrussos... - entenderam que uma Letônia integrada à Europa e respeitando os direitos humanos poderia ser muito mais benéfica para eles e seus filhos do que uma Rússia renascida que , no fundo, ninguém confiava. Nesse sentido, eles se mostraram certos.

As relações entre as duas comunidades não têm sido fáceis nos últimos anos. Os nacionalistas letões — ao contrário das promessas da época da luta comum contra a ditadura soviética — tendiam a reduzir os direitos dos russófonos. Uma lei desproporcional concedeu a cidadania apenas aos cidadãos da Letônia antes de 1940 ou a seus descendentes, privando centenas de milhares de pessoas, mesmo aquelas que já nasceram no país. Embora a pressão da União Europeia tenha conseguido uma revisão da lei, os obstáculos impostos levaram a que ainda hoje existam milhares de não cidadãos.(assim chamado). Isso se juntou ao canto da sereia da propaganda do regime de Putin. A verdadeira discriminação levou pessoas que antes não se sentiam “russas”, descobrindo repentinamente que a Federação Russa se tornou sua defensora, oferecendo-lhes passaporte, orgulho, resistência contra a opressão. A discriminação levou à consolidação de uma diferença étnica que não deveria existir.

Com o tempo, os nacionalistas russos conseguiram prosperar nas margens, valendo-se de queixas reais, mas também de uma agitação populista facilitada pelo fato de que as gerações russófonas mais velhas aprendem principalmente por meio da comunicação de massa controlada por Putin. A Letônia não conseguiu integrar boa parte dessa minoria em seu espaço de mídia – provavelmente devido à sua insistência em não usar o idioma russo. É interessante que o partido majoritário há muito tempo – mas que não conseguiu formar um governo – tenha sido uma formação, o Harmonia, considerado “russo”. De fato, há anos a capital tem – como agora – prefeitos “russos”, eleitos em eleições livres.

No entanto, falo com jovens letões. Alguns deles são russófonos, outros são filhos de casamentos mistos. Todo mundo sabe que é letão. E europeus.

A eclosão da agressão direta contra a Ucrânia tornou as coisas difíceis para os nacionalistas pró-Rússia. Os nacionalistas letões agora os olham com olhos piores, se possível. Mas também a situação representa um desafio para a minoria de língua russa. Além das afinidades culturais ou linguísticas, além dos sentimentos de ressentimento. Como enfrentar a polaridade dos laços que os unem ao mundo russo sem deixar de ser europeus? Algumas formações da minoria russa reiteraram uma visão: construir uma Letônia com base na cidadania, direitos cívicos, patriotismo constitucional, aceitação da língua letã, mas liberdade linguística para falantes de russo, sem preconceito ou discriminação. E se eles levantarem isso para a Letônia, também terão que pensar no que fazer com a Rússia. Para eles, parece não haver outra possibilidade senão uma mudança de regime. Faça com que seus parentes ou conhecidos na Rússia percebam a situação real. Não se isole do mundo.

Isto é muito difícil. Para isso são necessárias muitas coisas: não ceder um centímetro de terra ucraniana, mas levar a sério os temores russos e oferecer soluções concretas — sim, já, hoje, durante a guerra. Dar uma guinada em sentido europeísta, reforçando nossos interesses acima dos da atual beligerante América, atolada em sua já longa crise política. Aumente — massivamente — informações para a Rússia em russo. Fazer compreender que só a defesa dos direitos e liberdades cívicas garante a soberania nacional e a prosperidade mútua. Reforçar e recuperar a ideia europeia na Rússia. Para isso, a Letônia é um laboratório para aprender.

Conseguir isso requer muito esforço, ideias claras. Mas acima de tudo uma coisa: um propósito e uma visão da Europa. Não é por acaso que os nacional-populistas de direita e de esquerda olham com bons olhos para a Rússia de Putin. Acabar com a Europa é seu objetivo comum.

José María Faraldo, o autor deste artigo, é historiador, autor de "Contra Hitler e Stalin" (Aliança). Publicado originalmente no EL PAÍS, em 28.07.23