sexta-feira, 4 de agosto de 2023

A roupa nova do hacker

Tem algo de pequeno, de tacanho, nesse arco dos últimos dez anos da política brasileira

Hacker de araque passou a perna em Zambelli e expôs o ridículo da política brasileira

Gente como Nelson Rodrigues ou Dias Gomes faz falta, sabe? Eles tinham essa habilidade de olhar para aquilo que há de ridículo, na vida brasileira, e ressaltar. Sublinhar, nos expor. Esse personagem que não vai embora da vida pública, o hacker de Araraquara, talvez fosse apresentado de forma muito diferente por um ou por outro. Mas ambos mostrariam o que devia estar evidente. Tem algo de pequeno, de tacanho, em essência de ridículo nesse arco dos últimos dez anos da política brasileira.

Não temos mais um Nelson ou um Dias porque não seria possível com os humores correntes.

Hoje, tudo é muito sério, tudo muito grave, tudo precisa ser denunciado. Ninguém é ridículo. As pessoas podem ser violentas, criminosas, intolerantes, racistas, misóginas, até fascistas. Mas nunca são ridículas. A ridiculez nunca é perigosa. É quando o menino grita que o rei está nu que aquilo muito grave se mostra pelo que realmente é. Não grave, pois ridículo.

Nada envolvendo o hacker de Araraquara tem como ser grave. Porque ele não é um hacker. É um estelionatário que aprendeu uns truques na internet. Walter Delgatti tentou acessar mensagens de meia República. Conseguiu fazer isso num só caso, o do então procurador Deltan Dallagnol. Conseguiu porque o procurador responsável pelo caso mais delicado da história da Nova República foi irresponsável. Jamais ocorreu a Deltan que ele deveria se preocupar com segurança digital. Um hacker de meia tigela foi lá e pegou tudo, precisando apenas saber seu número de telefone.

O fato de que, a partir daí, mostrou-se que na Lava Jato havia conluio entre juiz e Ministério Público só acentua o ridículo. Deltan, Bíblia numa mão, PowerPoint na outra e todo o moralismo do planeta sobre os ombros, foi completamente irresponsável. Ter sido exposto por um hacker de araque sublinha o ridículo. Afinal, ilumina a frouxidão dos métodos.

Se a Polícia Federal estiver certa e a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) tiver pedido não só que ele quebrasse a urna eletrônica, como atacasse ministros do Supremo, violando a segurança digital de seus servidores, será um espanto. Quer dizer que Zambelli e outros, dentro do bolsonarismo, olharam para Delgatti e realmente o confundiram com um hacker. O sujeito deve ter cobrado um bom dinheiro para fazer o que não seria capaz de entregar. Porque, diferentemente do Telegram do procurador, a urna eletrônica é séria e emitir mandado de busca ou de prisão, como queria a deputada, não é coisa para amadores.

Zambelli, como Dallagnol, não é séria. Como Bolsonaro não é sério. O vigarista do interior passou a perna neles todos. Isso diz tanto sobre um Brasil que se acha sério demais.

Pedro Dória, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 04.08.23. (E-mail: coluna@pedrodoria.com.br; Twitter: @pedrodoria JORNALISTA)

Bolsonarismo de manual

O caso da deputada Carla Zambelli é exemplar da mentalidade essencialmente golpista dessa turma

Não diz grande coisa o número de votos que elegeram a sra. Carla Zambelli para a Câmara, porque São Paulo já votou em massa numa rinoceronte há algumas décadas. Mas a referida senhora não é tão desimportante quanto parece. Afinal, se alguém encarna fielmente o ethos bolsonarista, algo que pode ser descrito, de forma sucinta, como uma busca incessante pela instabilidade do País pela via da mentira, da desinformação e do golpismo, é ela.

A cassação de seu mandato, portanto, é ação profilática que se impõe à Casa de representação política da sociedade. A sra. Zambelli é um corpo estranho na democracia, razão pela qual deve ser expelida por seus pares por meio do mecanismo criado pela própria democracia para se proteger de ameaças como ela.

Porém, mais importante para o País do que o destino político – ou jurídico – da sra. Zambelli é entender como ela representa a mentalidade do bolsonarismo. Nesse sentido, a operação deflagrada pela Polícia Federal há poucos dias contra a parlamentar e um desqualificado a ela associado não poderia ser mais elucidativa.

A sra. Zambelli é suspeita de ter contratado Walter Delgatti Neto para “hackear” a urna eletrônica. Por trás dessas ações insidiosas estaria o intuito de “provar” a estapafúrdia tese de Jair Bolsonaro segundo a qual o sistema eleitoral brasileiro estaria sujeito a fraudes.

Evidentemente, a trama golpista foi um fiasco. Como o próprio “hacker” admitiu aos policiais depois de ser preso, a urna eletrônica é inexpugnável, pois, como a Justiça Eleitoral já cansou de explicar, o aparelho não está conectado à internet.

Diante desse revés eminentemente técnico – o único capaz de parar bolsonaristas como a sra. Zambelli, pois barreiras morais há muito já foram obliteradas –, a deputada, então, teria pedido ao tal “hacker” para que “invadisse” o celular do ministro Alexandre de Moraes, a fim de bisbilhotar mensagens que pudessem desaboná-lo e, assim, minar sua credibilidade e isenção como membro do Supremo e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, além de instalar no País o caos em que vicejam esses inimigos da democracia.

Ainda que apenas metade dessa história seja verdadeira, ela basta para servir de exemplo do manual clássico do bolsonarismo. Uma das regras não escritas desse movimento, se assim pode ser chamado, é jamais se dar por vencido quando uma tentativa de abalar a paz social ou subverter a ordem democrática der errado.

Incapaz de operar dentro das regras do jogo democrático, o bolsonarismo apenas se serve de seus instrumentos, tal como um parasita, para minar suas forças. Seus representantes, a começar por Bolsonaro, claro, jamais se ocuparam de projetos sérios para o País. Suas ações são conduzidas, já dissemos, sob o signo de Tânatos, o deus da morte na mitologia grega, não raro flertando com a delinquência.

A política, como meio civilizado de concertação em torno dos muitos interesses da sociedade, há de ser saneada pela vida constitucional. Isso passa pelo expurgo de políticos que não vivem bem sob a luz das liberdades democráticas.l

Editorial d'O Estado de S. Paulo, em 04.08.23

Por que existem tão poucos partidos dispostos a ser oposição no Brasil?

Com o objetivo de atingir uma maioria numérica confortável no Legislativo, suficiente para aprovar reformas constitucionais, o presidente Lula convidou mais dois partidos para sua coalizão: PP e Republicanos. Vale salientar que esses partidos do Centrão eram, até recentemente, leais fiadores do governo de Jair Bolsonaro no Congresso.

Se as negociações se confirmarem, serão agora 16 partidos, além dos 14 (PT, PV, PCdoB, MDB, PSB, PSD, PDT, Rede, PSOL, União Brasil, Podemos, Avante, Solidariedade e PROS), que farão parte da coalizão do governo Lula 3.

Será a coalizão com o maior número de siglas e ideologicamente mais heterogênea da história do presidencialismo multipartidário brasileiro. Nessa salada partidária, tem legendas de extrema esquerda, de centro e de direita. A fonte de agregação não é ideológica nem programática, mas fundamentalmente busca pela sobrevivência.

Os únicos partidos que, até o momento, ficaram de fora da supercoalizão governista de Lula 3 foram PL, Novo, PSC, Patriota e a federação PSDBCidadania. Por que existem tão poucos partidos dispostos a ser oposição no Brasil?

Ser oposição não é para qualquer um. Seus legisladores têm de estar preparados, pelo período que durar essa condição, para “comer o pão que o diabo amassou”. Terão menos acesso a recursos de poder e financeiros controlados e alocados de forma discricionária pelo governo. Tais recursos serão primordialmente direcionados para os partidos aliados como uma espécie de bônus de ser governo.

Isso tornará os partidos de oposição menos competitivos no curto prazo e com mais dificuldades para sobreviver eleitoralmente. Por outro lado, pode ser também interpretado como um investimento. Por exemplo, o PT jogou o jogo de oposição de forma consistente por mais de 20 anos: desde sua fundação, em 1980, até 2003, quando finalmente ocupou a Presidência pela primeira vez. O investimento parece ter valido a pena, afinal já vão no 5.º mandato presidencial.

No presidencialismo multipartidário brasileiro, só tem incentivo para ser oposição o partido que tem ambições e condições de lançar um candidato competitivo à Presidência nas próximas eleições. Do contrário, vale muito mais a pena aceitar a oferta do presidente de plantão. Todos os incentivos, portanto, são para ser governo e não oposição.

Ainda não há certeza se essa supercoalizão de Lula 3 vai funcionar de forma coesa e disciplinada e se vai ser estável e sustentável ao longo do governo. De qualquer forma, o jogo do presidencialismo multipartidário voltou ao “business as usual”.l

Carlos Pereira, o autor deste artigo, é cientista político. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 04.08.23

quarta-feira, 19 de julho de 2023

O perigoso encanto da indignação

Se o Brasil for apenas o país da indignação, ele continuará a ser exatamente isto: um país com muitos motivos para indignar-se

Por suas desigualdades, preconceitos, privilégios, incertezas e injustiças, o Brasil oferece muitíssimas ocasiões de indignação. E, verdade seja dita, nós sabemos aproveitar as oportunidades. Não temos receio de expor nossa revolta e perplexidade diante dos variados absurdos que testemunhamos frequentemente.

A proficiência brasileira na indignação é refletida em expressões famosas, que fazem parte de nossa identidade nacional. O Brasil não é para amadores. No Brasil, até o passado é incerto.

Podemos ser sinceros? Indignar-se é muito bom. Quando nos indignamos, sentimo-nos valentes, corajosos, despertos, responsáveis, comprometidos com o interesse público, não ingênuos, não manipulados. De alguma forma, indignar-se é colocar-se num lugar superior. Significa dizer: nesta situação, eu faria diferente. Se tivesse poder, se ocupasse aquele cargo, eu atuaria de modo muito melhor, mais digno, mais assertivo. A mensagem é unívoca. Se dependesse de mim, o Brasil seria bem melhor.

Mas a indignação é sentimento complexo, não é só superioridade. Com frequência, ela também representa o reconhecimento de que não fomos capazes de vislumbrar sentido em determinada situação. É o absurdo – o fato sem sentido – o que nos indigna. Certamente, isso diz muito sobre o que suscitou nossa indignação, mas também sobre nossa própria percepção. Parece-nos impossível que aquilo seja de determinada maneira e, por isso, nos indignamos. A indignação pode, portanto, representar certo desconhecimento sobre o tema em questão.

Eis um primeiro ponto que gostaria de destacar. Se diariamente mais coisas nos indignam – por exemplo, no Congresso, no Supremo Tribunal Federal, na Presidência da República –, isso pode ser sintoma da situação do País, como também pode sinalizar nossa dificuldade de entender muitos temas. Podemos nos indignar com assuntos de que temos inteiro domínio, mas o fato é que, quanto menos compreendemos, mais assuntos são capazes de despertar nossa indignação.

No mundo da advocacia – especialmente na esfera do contencioso –, é muito comum a reação de indignação. Pelo tempo que os processos demoram. Pelas petições que a outra parte escreve. Pelas decisões que os juízes proferem. Muitas sentenças parecem-nos absurdas, desconectadas dos fatos e à revelia da lei.

São muitas as decisões judiciais que afrontam profundamente nossa percepção do que deveria ser a Justiça, mas – e aqui está um segundo ponto a ser destacado – só com indignação não se faz um recurso. A mera revolta é incapaz de expor o erro contido na sentença que nos parece absurda. É preciso identificar as causas que levaram o juiz àquela decisão. É preciso entender os argumentos e os motivos que moldaram a compreensão do magistrado. Por mais absurda que seja, a decisão judicial tem de se tornar absolutamente compreensível aos nossos olhos. Só assim será possível refutar bem os seus erros.

A mesma dinâmica aplica-se aos outros campos da vida pública, também ao político. A indignação é necessária, mas é insuficiente por si só para transformar a realidade. Ela pode ser uma boa e justa reação inicial, mas é um engano satisfazer-se com ela. É necessário ir além. A indignação é uma resposta emocional e, para detectar as causas da situação revoltante, a reflexão é imprescindível.

Trata-se de um dos grandes desafios contemporâneos. Temos muitos espaços para expressar indignação. As redes sociais são especialmente propícias para isso. No entanto, há carência de âmbitos de reflexão, onde sejamos incentivados não somente a julgar, a condenar e a lacrar, mas a entender os processos, as dinâmicas, as perspectivas.

Às vezes, o ponto de vista inicial já é um empecilho. Ver de cara o outro lado político-ideológico como um completo absurdo é dificultar, ou mesmo impedir, a compreensão sobre os fatores que o tornam socialmente relevante ou eleitoralmente competitivo, por exemplo. Nesse sentido, um ambiente cultural que estimula aprioristicamente a indignação prejudica a reflexão, diminuindo paradoxalmente as possibilidades de transformação e de melhora.

O jornalismo tem papel fundamental, como espaço de compreensão qualificada do tempo presente, sem cair na mera incitação à indignação. Infelizmente, não raro, o que se vê é a busca pelo engajamento a partir do escândalo. O jornalismo de denúncia é importante, mas, se se contentasse com a denúncia, contribuiria para manter as coisas como estão. Um bom jornal leva-nos a ver mais coisas – mais aspectos e mais perspectivas – do que, a princípio, gostaríamos de ver. A realidade é mais rica do que as cores binárias de nossa cólera.

Se o Brasil for apenas o país da indignação, ele continuará a ser exatamente isto: um país com muitos motivos para indignar-se. A realidade que nos revolta deve conduzir também à reflexão, ao estudo, ao diálogo. Só assim poderemos ter um diagnóstico maduro e realista dos problemas que tanto nos incomodam para, de fato, enfrentá-los. A indignação, faísca genuinamente humana, deve desencadear soluções, e não apenas nos ruborizar.

Nicolau Da Rocha Cavalcanti, o autor deste artigo, é Advogado e Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 19.07.23

Russos em fuga da guerra na Ucrânia

Na Rússia, cada vez mais homens escapam para outros países, temendo ter que matar e morrer por ordem de Putin. Mesmo no exterior, porém, impressiona e cárcere os ameaçam. A Deutsche Welle entrevistou dois dos milhares de desertores.

Treinar para o front muitas vezes se resume a atirar uma vez (Foto: AP/dpa/imagem aliança)

De roupa discreta, capuz abaixado, o jovem russo olha em torno de si. Ele tem medo de ser descoberto, um sentimento com que vive há alguns meses na capital da Geórgia, Tiblíssi. Por isso evite divulgar seu nome real, pedindo para ser chamado Nikita.

Até fevereiro, ele frequentava a universidade em Moscou. Como não é incomum no país, tinha um contrato com as Forças Armadas: o Ministério da Defesa pagava por seu estudo e garantia a vaga na casa de estudantes. Em contrapartida, ele se comprometeu a servir o Exército, após concluídos os estudos.

"Na época assinei o contrato por burrice. Várias coisas não estavam claras para mim. Pensei: 'OK, vou perder três anos no Exército, em compensação saio com o meu curso superior."

Ao receber a ordem de convocação, Nikita quis dar baixa no serviço militar, mas a instituição rejeitou seu pedido e recebeu um acordo: "Eles me transferiram para um departamento de liderança, onde eu ajudaria o comandante com a papelada. Aí em setembro me deram um outro posto: eu observei com tecnologia militar para repelir o inimigo, no caso de uma ofensiva."

Compreendendo que poderia ser enviado para a Ucrânia a qualquer momento, o rapaz decidiu deixar o país e fugir para a vizinha Geórgia. "Eu não queria ir para a guerra. Desertar era a minha única chance."

Ele está consciente dos riscos, "que vou ter que me esconder da Rússia pelo resto da vida, que não vou poder voltar nunca mais": "Não tenho medo de morrer ou de acabar na prisão. Mas simplesmente não quero ter que matar ninguém" , justifica-se.

Russos refugiados aguardam para se registrar como imigrantes no Cazaquistão (Foto: Madija Torebaewa/DW)

Uma loteria chamada guerra

Nikita não é um caso isolado: ativistas dos direitos humanos registram mais de mil processos por suposta deserção, mas o número real dos desertores deve ser bem mais elevado, relata Grigory Swerdlin, da Idite Lesom, uma ONG russa – cujo nome pode ser traduzido como "Se manda" – que ajuda objetos do serviço militar a escaparem para o estrangeiro.

Alguns temem a mobilização, outros já estavam na frente de combate e não querem mais lutar, explica Swerdlin: "Escutamos muitos relatos sobre o caos que impera no front. Às vezes ninguém sabe onde os comandantes estão. Outros contam que foram simplesmente depositados em campo aberto, sem qualquer noção nem comando. Quer dizer: ninguém ensina nada aos recrutas, o treinamento é só atirar uma vez com metralhadora."

Principalmente no terceiro trimestre de 2022, quando a mobilização começou, vários recrutas informados nas redes sociais como irregularidades nos campos de treinamento e no front. Algo que Igor Sandzhiev conhece em primeira mão.

O operário russo de 46 anos, que vive atualmente em Uralsk, no oeste do Cazaquistão, faz questão de divulgar seu nome verdadeiro, pois quer que sua história seja conhecida. Tudo começou quando foi convocado pelo Exército, supostamente para uma conferência de seus dados pessoais.

Ao comparar na repartição, no entanto, Sandzhiev foi imediatamente listado: na mesma noite deveria se apresentar num campo de treinamento das Forças Armadas, algumas semanas mais tarde já estaria no front. Sentindo-se como preso numa armadilha, fugir fugir.

"Para mim, era uma questão de tudo ou nada. Pensei: 'Ou eu vou para a prisão por vários anos por ter abandonado o destacamento, ou morro em alguma parte da Ucrânia. Prefiro ir preso, não quero correr risco, não quero jogar nessa loteria chamando guerra que o presidente Putin está promovendo.'"

Recrutas se deslocam de trem na região de Volgogrado (Foto: dpa/AP/picture Alliance)

Serviço militar como tábua de salvação financeira

Uma loteria mortal: segundo informações (não verificáveis) da mídia, a invasão do país vizinho já custou as vidas de dezenas de milhares de russos. Muitos mobilizados pelo decreto do presidente Vladimir Putin em 2022 eram pais de família; muitos contavam com soldos generosos, sobretudo os homens das regiões mais pobres.

Sandzhiev, que é natural da República da Calmúquia, no sul da Rússia, confirma esse fato: "As nossas possibilidades financeiras são limitadas, os tratamentos não são pagos. Ir para a guerra é para muitos a única possibilidade de dar um reforço no orçamento: um tem uma filha prestes a ir para a universidade, outro assumiu uma hipoteca, um terceiro está precisando de um carro."

O Cazaquistão já é seu segundo refúgio: primeiro ele acadêmico para Belarus , mas foi apanhado pela polícia e enviado de volta para o campo de treinamento perto de Volgogrado. Escapou uma segunda vez, agora para Uralsk, onde entrou com um pedido de asilo. Mas foi recusado por não preencher os requisitos: segundo a sentença.

Além disso, o operário foi condenado a seis meses em liberdade condicional por travessia ilegal de fronteira. Apresentou recurso, que foi indeferido. Agora ele está ameaçado de deportação para a Rússia.

"Para mim, vai ser prisão ou guerra"

Denis Zhivago, vice-diretor da Agência Internacional de Direitos Humanos do Cazaquistão, afirma que não se trata de um caso isolado: mais de 20 russos aguardam o exame de seus requerimentos de asilo.

"Esses indivíduos não atravessam a fronteira clandestinamente, eles estão no Cazaquistão de forma totalmente legal, mas alguns são procurados [na Rússia], sobre outros pesam restrições de deslocamento. Eles procuram outros meios de chegar a países terceiros."

Igor Sandzhiev não se ilude quanto ao próprio futuro: "O que me espera é ou prisão ou a guerra na Ucrânia. Agora mesmo, a mídia estatal está comunicando aos russos que falta pessoal no front, e que os homens habilitados devem ir lutar."

Quanto ao jovem Nikita, além de seu futuro na Geórgia ser incerto, ele não se sente seguro no país, "não porque as pessoas aqui sejam ruínas, ou coisa assim": "Os georgianos não me tratam mal, como um russo. Mas aqui eu continuo tendo medo do Estado russo. Às vezes tenho pesadelos em que o meu antigo chefe bate à porta e diz: 'Vem comigo, eu te consegui.'"

Apesar de tudo, Igor e Nikita querem tentar permanecer no exterior – enquanto podem.

Mirko Fuchs, o autor deste texto, é jornalista. Publicado originalmente pela Deutsche Welle Brasil, em 19.07.23

terça-feira, 18 de julho de 2023

PF faz buscas em residência de casal suspeito de hostilizar Alexandre de Moraes no Aeroporto de Roma

Por ordem da ministra Rosa Weber, do Supremo, agentes federais vasculharam endereços de Santa Bárbara D’Oeste, no interior de São Paulo, e também o carro do casal Andréia e Roberto Mantovani, no pátio da Delegacia de Piracicaba

Andreia Mantovani, Alex Zanatta Bignotto e Roberto Mantovani Filho no aeroporto Internacional de Guarulhos em São Paulo Foto: Reprodução TV Globo

A Polícia Federal cumpriu nesta terça-feira, 18, mandados de busca e apreensão em dois endereços ligados aos suspeitos de terem hostilizado o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e seus familiares no Aeroporto de Roma, na Itália. As ordens foram autorizadas pela presidente da Corte máxima, ministra Rosa Weber.

As diligências foram cumpridas em Santa Bárbara d’Oeste no bojo do inquérito sobre supostos crimes de injúria, perseguição e desacato. Os alvos principais da investigação são Andréia Mantovani e Roberto Mantovani Filho.

Eles prestaram depoimento nesta terça, 18. Enquanto o casal era ouvido pelos investigadores, agentes da Delegacia da PF em Piracicaba, vizinha à Santa Bárbara D’Oeste, vasculharam o carro dos Mantovani, estacionado no pátio.

A corporação já pediu as imagens do aeroporto de Roma para abastecer as apurações. As gravações foram solicitadas via cooperação internacional, com apoio da Diretoria Executiva da PF. A expectativa é a de que sejam fornecidas ainda nesta semana e sejam usadas para confrontar a versão dos suspeitos sobre o ocorrido.

Como mostrou o Estadão, o inquérito deve se debruçar sobre possíveis crimes contra a honra de Alexandre de Moraes, eventual lesão corporal e até tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. Os crimes podem ser investigados e punidos no Brasil em razão do chamado princípio da extraterritorialidade.

Segundo PF, Andréia Mantovani xingou o ministro de ‘bandido e comprado’. Na sequência, o marido dela, o empresário Roberto Mantovani Filho, reforçou os xingamentos e chegou a agredir fisicamente o filho do ministro, um advogado de 27 anos. Além disso, Alex Zanatta Bignotto, genro de Roberto, teria disparado palavras de baixo calão contra a família do ministro. Ele depôs à PF na manhã deste domingo, 16.

Em meio à confusão, uma pessoa próxima ao ministro Alexandre de Moraes fotografou os supostos agressores. Os registros chegaram à Polícia Federal em São Paulo, que abordou grupo de suspeitos no aeroporto de Guarulhos.

O Estado de S. Paulo - Blog do Fausto Macedo / Por Pepita Ortega e Isabella Alonso Panho, em 18/07/2023 | 16h45 / Atualização: 18/07/2023 | 18h40

segunda-feira, 10 de julho de 2023

A direita civilizada não é uma utopia

A votação da PEC 45 revelou o contraste entre os verdadeiros liberais e os conservadores de fancaria. A concertação de interesses em bases civilizadas, alinhadas à Constituição, move o País


Tarcísio de Freitas, Governador de S. Paulo, lidera o coro dos desafinados da truculência de Jair Bolsonaro

A histórica aprovação da reforma tributária pela Câmara mostrou quão longe o Brasil pode avançar quando forças políticas adversárias são capazes de superar divergências para debater, civilizada e democraticamente, projetos de interesse de toda a sociedade. Foi exemplar, nesse sentido, o diálogo republicano estabelecido entre o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e parlamentares de diferentes afiliações ideológico-partidárias a fim de destravar as negociações que, ao fim e ao cabo, levaram à construção dos termos finais da reforma.

A votação confortável da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45, com mais de 370 votos favoráveis nos dois turnos, revelou, ainda, que uma direita civilizada, liberal e propositiva – a direita que este jornal tanto tem conclamado a se organizar e se distanciar de qualquer associação com essa extrema direita selvagem encabeçada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro – não é uma utopia. Ela existe e, como se viu, mostrou seu grande valor para a construção democrática de consensos em prol do País. Nos dias que antecederam a votação da PEC 45, ficou evidente o contraste entre os verdadeiros liberais democratas e os conservadores de fancaria.

Imbuído da missão de conciliar o apoio a uma proposta de interesse nacional e a defesa dos interesses de São Paulo, Tarcísio foi a Brasília para negociar ajustes nos termos da reforma tributária com membros do governo federal e do Congresso. Foi o que bastou para ser hostilizado por Bolsonaro e pela malta que ainda o acompanha no PL. Para os bolsonaristas, Tarcísio cometeu o pecado mortal de fazer a boa política, vale dizer, a política que produz bons resultados para o País, independentemente de eventuais concessões programáticas ou ideológicas que possam ser feitas com vistas ao interesse público.

Não surpreendem, portanto, os apupos ao governador paulista, não só humilhado pela bancada do PL, como jogado por Bolsonaro aos cães das redes sociais, numa tentativa patética do ex-presidente de demonstrar um poder que, hoje, só existe na sua imaginação. Essa direita raivosa e destrutiva privilegia a polarização, a intolerância e a recusa ao diálogo como instrumentos de ação política. Nada tem a oferecer ao País, como restou demonstrado.

A direita selvagem é infensa à cooperação com adversários. Não reconhece a necessidade de concertações políticas nem é capaz de firmar compromissos para impulsionar o desenvolvimento do País. Os verdadeiros conservadores, ao contrário, como genuínos democratas que são, são plenamente capazes de sentar-se à mesa com adversários políticos para discutir reformas do Estado por meio da negociação democrática, não da ruptura. Foi o que se viu na aprovação da PEC 45. É dessa direita que o País precisa e, como se viu, deu um passo à frente para reafirmar sua importância para o desenvolvimento do País.

Mas, paralisados pela ideia de fazer uma oposição irracional ao governo do petista Lula da Silva, os bolsonaristas ditos “liberais” não têm esse alcance. Tanto que tiveram de ouvir o óbvio do governador de São Paulo. A Bolsonaro e à bancada do PL, Tarcísio teve de relembrar que “a direita não pode perder a narrativa de ser favorável a uma reforma tributária” – e por razões óbvias: uma reforma que modernize o sistema tributário, reduzindo a capacidade do Estado de infernizar a vida dos empreendedores, obviamente deve ser apoiada e liderada por quem se diz liberal.

Como mostraram as bem-sucedidas negociações para a aprovação da PEC 45, o Brasil só tem a ganhar quando adversários políticos se dispõem a debater projetos de interesse nacional de forma madura e civilizada.

A sociedade tem muito a refletir a partir da aprovação da reforma tributária, uma conquista de todos; não de um governo, de um partido ou de indivíduos. Dessa compreensão advirá a constatação de que o melhor interesse público, perene, sempre se sobrepõe às disputas político-ideológicas de ocasião; e a concertação de interesses em bases civilizadas, alinhadas à Constituição, é o que move o País.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 10.07.23

sábado, 8 de julho de 2023

O presidente que acreditou na força de sua milícia e acabou sozinho no mato

Na História do Brasil, quem confundiu a força de fiéis seguidores com o poder do Estado ou minimizou a negociação política terminou fora do jogo

Artur Bernardes, presidente do Brasil entre 1922 e 1926; fora do poder, convocou seus seguidores a se insurgirem e foi facilmente derrotado pela tropa legal. (Foto: ARQUIVO NACIONAL)

Presidentes que pregam a intolerância, desqualificam adversários e rejeitam o diálogo costumam pagar um preço alto mais tarde. A faixa presidencial e, sobretudo, o séquito de bajuladores podem inebriar chefes do Executivo, levá-los a acreditar que o poder não é efêmero. Fora do cargo, restam para eles a decepção, a mágoa e o sentimento de traição.

Muitos são os casos de governantes que abusaram de práticas autoritárias e depois não conseguiram se manter no jogo político. Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Hermes da Fonseca foram os primeiros nomes dessa tradição tão antiga quanto à República.

Houve o caso de um ex-presidente que chegou a imaginar que sua milícia era capaz de derrotar até a força do Estado. Ao assumir o poder em 1922, o mineiro Artur Bernardes, do Partido Republicano Mineiro, já pegou o País em estado de sítio, mas aumentou o ambiente de violência. Mandou prender adversários, bombardeou São Paulo para atacar opositores e buscou a aprovação da censura contra jornalistas. O Brasil virou um pária. O país se afastou da Liga das Nações.

Em 1926, o paulista Washington Luiz foi eleito presidente. Bernardes, então, foi para Minas reorganizar sua ala no PRM – e sua milícia. Quatro anos depois, a aliança entre oligarquias políticas de Minas, do Rio Grande do Sul e da Paraíba levaria Getúlio ao poder, após um golpe.

Quando a oligarquia de São Paulo se revoltou contra Getúlio, em 1932, os mineiros ficaram a favor do presidente. Mas Artur Bernardes, na época senador, era quase um outsider na política mineira e decidiu enfrentar o governo central. O apoio de Bernardes aos paulistas tinha características de guerra pessoal, ainda que ele levantasse a mesma bandeira dos revoltosos do Estado vizinho. Aliás, esteve na trincheira oposta a dos paulistas nos conflitos de 1924 e 1930, sempre do lado legal - era presidente no primeiro e senador no segundo.

Em 1932, ele transformou sua casa em Viçosa num bunker contra as tropas de Getúlio e do interventor de Minas, Olegário Maciel. O ex-presidente reuniu prefeitos e fazendeiros e organizou uma campanha de recrutamento e compra de armas, fardas e alimentos. Agricultores pobres que nunca calçaram um sapato colocaram os pés dentro de pesadas botinas. Mulheres se reuniram nas ruas dos povoados em mutirões de costura de fardas. O clima era de festa.

O governo mineiro temia que os bernardistas tomassem Belo Horizonte. Mas Olegário Maciel tinha a caneta de governador e a polícia. O Judiciário não se envolveu na querela que só interessava ao ex-presidente. Os chefes políticos locais também não quiseram entrar nessa briga que não era deles. Os fazendeiros ligados a Bernardes, por sua vez, tinham dívidas com bancos federais e estaduais e precisavam pensar na lavoura do ano seguinte.

No Rio, a imprensa não esquecera os anos de terror do governo Bernardes e pediu uma caçada sem tréguas à “jagunçada”. Viçosa foi cercada pela tropa oficial. Os milicianos se renderam, um a um. Num confronto direto 20 deles morreram. Os bernardistas presos foram colocados num vagão de trem, em Viçosa, e levados à capital federal.

Artur Bernardes viu que não tinha força o suficiente para reagir à máquina repressiva do Estado que antes dominara. Também percebeu a necessidade de articulações amplas para enfrentar governo não eleito - era o caso - ou eleito. Mesmo revoluções e quarteladas dependiam de negociações.

Os mais próximos do ex-presidente foram rendidos ou fugiram. Sozinho, ele começou a passar uma noite em cada fazenda, na tentativa de escapar.

Passados alguns dias, o governo enviou a Viçosa uma equipe de investigadores para caçar o ex-presidente. Os agentes chegaram a uma fazenda de um bernardista radical. Pressionados, o fazendeiro e seus filhos contaram que Bernardes dormira na casa e, pela manhã, seguira no rumo de uma choupana na mata, depois do canavial.

Os agentes encontraram um homem pálido, exausto, com roupas rasgadas e um revólver Colt na cintura. Artur Bernardes não reagiu à prisão, mas pediu que não fosse levado escoltado a Belo Horizonte e pudesse passar três dias em Viçosa. Ao fazer um terceiro pedido, ouviu que não era mais uma “autoridade maior”. Ali, era apenas um chefe miliciano. Também foi embarcado num trem para o Rio, onde amargou a prisão na Ilha das Cobras, local onde havia trancafiado seus adversários. Finalmente foi mandado para o exílio em Portugal, para alívio de muitos bernardistas. Anos depois, retornou ao Brasil e moderou o discurso. Afinal, tinha filho disposto a disputar eleição.

Alguém poderá lembrar uma exceção: Getúlio Vargas comandou uma ditadura sangrenta, de 1937 a 1945. Após sofrer um golpe, se recolheu num primeiro momento em sua fazenda em São Borja, no Rio Grande do Sul, mas depois de quatro anos voltou ao Palácio do Catete, pelo voto. Não quis saber quem estava no governo nem de armas. Se preocupou apenas em fazer alianças políticas e discursos em defesa do bem-estar e da industrialização.

O líder trabalhista, porém, cairia mais tarde no canto da milícia. Em seu governo democrático, a partir de 1951, pôs capatazes de sua fazenda na sua segurança pessoal. Os homens se envolveram em denúncias de corrupção e, num atentado contra Carlos Lacerda, mataram o tenente Rubens Vaz, que acompanhava o jornalista. A guarda presidencial alimentou uma crise que resultou no fim do mandato e da vida do chefe. A tensão econômica e política era mais forte que a milícia.

Na História do Brasil, quem confundiu a força de uma legião de fiéis seguidores, armados ou dispostos a tudo, com o poder do Estado ou minimizou a negociação política se deu mal.

Leonencio Nossa, o autor deste artigo, é editor de materias especiais d'O Estado de S. Paulo, mestre em história e política, autor dos livros "As guerras da independencia do Brasil", "Roberto Marinho, o poder está no ar". Escreve aos sábados. Publicado originalmente em 08.07.23

Ligeiramente democrático

Com Bolsonaro inelegível e a terceira via em extinção, Lula parece cada vez mais empenhado em liderar a oposição a si mesmo

Maduro chega ao Palácio do Planalto e é recebido pelo presidente Lula (Brenno Carvalho/Agência O Globo)

Em 1985, ano da redemocratização, a banda O Espírito da Coisa fez sucesso com uma canção em que a personagem anunciava:

— Mamãe, eu acho que estou/Ligeiramente grávida.

Cinco anos antes, Kleiton e Kledir já tinham flexibilizado a virgindade:

— A mãe da moça me garantiu/É virgem, só que morou no Rio.

Fecundação, ruptura do hímen e — sabemos agora — democracia, tudo é relativo. Absoluto, só o 0 K (-273,16 °C) ou o desprezo do presidente Lula por sua história e pela inteligência de quem, por três vezes, o elegeu presidente.

Seu conceito de democracia anti-Denorex (que não parece, mas é) ou democracia feijoada (que tem tudo de porco, mas não é porco) veio para justificar o apoio à ditadura de Nicolás Maduro, que promove a maior tragédia humanitária da América do Sul. Isso enquanto metade do Brasil ainda respira aliviada por ter se livrado dos arroubos autoritários de Bolsonaro, e outra metade acha que agora é que a democracia corre mais riscos.

Estando Bolsonaro inelegível e a terceira via em via de extinção (só o Ibama na causa!), Lula parece cada vez mais empenhado em ser o líder da oposição a si mesmo. Com tanta coisa a fazer por aqui, atravessou o Equador para ir escorregar em casca de banana na Ucrânia. Em vez de criar um Ministério da Compliance e garantir que fraudes não voltem a prosperar, insiste que elas não ocorreram — seja nos estádios da Copa de 2014, seja na Petrobras (só falta dizer que a Odebrecht se dedicava à filantropia). E afirma ter orgulho de ser chamado de comunista (os camaradas Stálin, Mao, Pol Pot, Ceausescu, Hoxha e Fidel agradecem a deferência).

Lula não está sozinho no elogio da democracia líquida. A China (do massacre da Praça da Paz Celestial, da ocupação do Tibete, do controle da informação, da perseguição aos uigures) se diz uma “ditadura democrática do povo”. A Rússia de 1917 seria uma “ditadura democrática operário-camponesa”, segundo Lênin. A finada Alemanha Oriental (da Stasi, do muro) se chamava, oficialmente, República Democrática Alemã. A Coreia do Norte, propriedade privada da dinastia Kim, atende por República Popular Democrática da Coreia. No “Índice da democracia” da Economist, a República Democrática do Congo ocupa a 162ª posição entre 167 países (o Brasil, com sua “democracia imperfeita”, é o 51º).

Mas há momentos em que Lula dá uma folga à fantasia. É quando tuíta que, “se o Brasil tivesse continuado com o ritmo de crescimento que tínhamos quando deixei a Presidência, poderíamos ser a 4ª economia do mundo” (à frente, portanto, de Alemanha, Reino Unido, França, Índia e Itália). É a primeira vez que faz uma crítica tão direta a sua sucessora, hoje presidenta do Banco do Brics.

Se o conceito de democracia é relativo, por que não seria também o de ditadura? Será que Bolsonaro e seus “patriotas” não tinham em mente apenas uma pós-democracia, à sua maneira? Afinal, não lutavam contra a “ditadura da toga”, e seu maior bicho-papão não era a “ditadura do proletariado”?

Lula parece querer que acreditemos que a Venezuela esteja ligeiramente democrática. (Eleição fraudada não deixa de ser eleição, né?) E que o regime que tem em mente para o Brasil não seja o preconizado pelo Foro de São Paulo, mas democracia pura — só que morou em Caracas.

Eduardo Affonso, o autor deste artigo, é arquiteto e cronista. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 08.07.23

sexta-feira, 7 de julho de 2023

O que ainda pesa contra Bolsonaro na Justiça

Declarado inelegível pelo TSE, ex-presidente enfrenta acusações que envolvem desde incitação a um golpe de Estado a genocídio dos povos indígenas e apologia ao estupro.

Bolsonaro é alvo de 15 ações no TSE e cinco inquéritos que tramitam no STFFoto: Evaristo Sa/AFP

Após o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) declarar Jair Bolsonaro inelegível por abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação, o ex-presidente ainda enfrenta uma ampla lista de acusações em diferentes esferas judiciais, relacionadas a diversos supostos crimes atribuídos ao seu comportamento e decisões que tomou como chefe de Estado.

A seguir, a DW reuniu algumas das principais acusações e possíveis reveses judiciais que Bolsonaro pode enfrentar.

TCU pode aumentar inelegibilidade

Segundo a decisão do TSE na semana passada, o prazo de oito anos em que o ex-presidente ficará inelegível começa a contar a partir das eleições de 2022, o que significa que Bolsonaro só poderá voltar a disputar eleições em 2030. Há, no entanto, a possibilidade de que o Tribunal de Contas da União (TCU) estenda a inelegibilidade.

O Ministério Público encaminhou ao TCU uma representação pedindo que a Corte apure o dano causado aos cofres públicos pela reunião com embaixadores que motivou a condenação no TSE. No encontro, realizado em julho de 2022 no Palácio da Alvorada e transmitido na íntegra pela TV Brasil, que é pública, Bolsonaro fez uma série de acusações mentirosas e sem provas contra o sistema eleitoral brasileiro.

O subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, Lucas Rocha Furtado, pediu a apuração de "dano ao erário decorrente do abuso de poder político e do uso indevido dos meios de comunicação, especialmente por meio de canal público, por parte do ex-presidente da República Jair Bolsonaro, no contexto da decisão tomada pelo TSE quanto à inelegibilidade".

Em vez das eleições de 2022, uma eventual condenação pelo TCU determinaria como data de início da inelegibilidade o momento do fim da ação ou trânsito em julgado. Dependendo do momento da decisão, a inelegibilidade poderia ser estendida também para as eleições de 2030 e até para as de 2032.

Segundo a Folha de S.Paulo, nos bastidores do TCU é visto como improvável que o tribunal não condene o ex-presidente.

Outras 15 ações no TSE

No TSE, Bolsonaro é alvo de 15 ações além da que já foi julgada e que ainda podem resultar em consequências para o ex-presidente na esfera eleitoral.

Entre os temas a serem analisados pelo TSE está a concessão de benefícios sociais no contexto da eleição presidencial de 2022. Entre o primeiro e o segundo turno, o governo incluiu milhares de famílias no Auxílio Brasil e no auxílio gás, liberou empréstimo consignado para beneficiários do programa e criou financiamento com FGTS futuro, entre outras medidas.

O TSE também deve se debruçar sobre o suposto desvio de finalidade de eventos oficiais como a comemoração dos 200 anos da Independência, a viagem a Londres para o funeral da rainha Elizabeth 2ª e o discurso de Bolsonaro na Assembleia-Geral da ONU para obter vantagens eleitorais.

Há ainda, entre outras, ações relativas a supostos atos de campanha realizados por Bolsonaro em prédios públicos como o Palácio do Planalto. 

8 de Janeiro

Na esfera criminal, Bolsonaro foi incluído no rol de investigados em inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) que apura a responsabilidade pelos atos antidemocráticos do 8 de Janeiro. O inquérito 4.921, que apura a invasão das sedes dos Três Poderes, é considerado o que pode ter as consequências mais graves para o ex-presidente.

Bolsonaro entrou no rol de investigados a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR). O pedido foi assinado por membros do Ministério Público Federal, e não pelo procurador-geral Augusto Aras, que foi nomeado ao cargo pelo ex-presidente.

Na visão do grupo de procuradores, Bolsonaro fez incitação pública à prática de crime ao postar vídeo no dia 10 de janeiro questionando a regularidade das eleições presidenciais de 2022. A postagem foi apagada no dia 11 de janeiro. Em depoimento prestado à Polícia Federal em abril, Bolsonaro alegou ter publicado o conteúdo por engano, quando estava sob efeito de medicamentos.

Para os procuradores, apesar de o vídeo ter sido postado depois dos atos golpistas, é preciso apurar a eventual conexão probatória com o ocorrido e investigar atos relacionados do ex-presidente antes do 8 de Janeiro.

Há uma série de outros inquéritos no STF para apurar as responsabilidades pelos ataques e atos de violência do 8 de Janeiro que podem eventualmente vir a abarcar condutas de Bolsonaro.

Milícias digitais, pandemia, interferência na PF

O ex-presidente ainda é alvo de cinco inquéritos que tramitam no Supremo, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, que ainda não decidiu se os enviará à primeira instância. 

Além do inquérito sobre o 8 de Janeiro, Bolsonaro é investigado em inquéritos do STF que apuram vazamento de dados de investigação sigilosa da PF sobre ataque cibernético ao Tribunal Superior Eleitoral, associação falsa entre a vacina contra a covid-19 e o risco de contrair o vírus da aids, tentativa de interferência indevida na PF e vínculo com organizações para difusão de fake news sobre o processo eleitoral (milícias digitais e atos antidemocráticos).

No âmbito do inquérito das milícias digitais, o STF autorizou a PF a investigar a introdução de dados falsos de vacinação em sistemas do Ministério da Saúde para gerar comprovantes falsos de imunização para Bolsonaro, sua filha Laura e para seu ex-ajudante de ordens tenente-coronel Mauro Cid Barbosa. De acordo com o jornal O Globo, a investigação, que pode implicar Bolsonaro, tramita de forma sigilosa e ainda não foi formalizada como inquérito.

A gestão do ex-presidente durante a pandemia também pode vir a ser objeto de condenações. Ele pode ser investigado no âmbito da Justiça Federal (sem prerrogativa de foro) pelos crimes referentes a omissão, emprego irregular de verbas orçamentárias e charlatanismo no combate à pandemia de covid-19, conforme apontou o relatório final da CPI da Pandemia.

Apologia ao estupro

Como Bolsonaro não tem mais foro privilegiado, o ministro Dias Toffoli, do STF, encaminhou em junho deste ano para instâncias judiciais inferiores duas ações em que o ex-presidente é réu desde 2016. Trata-se dos processos por apologia ao estupro e injúria contra a deputada Maria do Rosário (PT-RS), a qual Bolsonaro disse que não merecia ser estuprada por ser "muito feia".


A tramitação das duas ações havia sido interrompida durante o mandato presidencial. O crime de incitação prevê de três a seis meses e o de injúria de um a seis meses de detenção.

Joias sauditas

Desde março deste ano, a Polícia Federal (PF) investiga se houve crime no caso envolvendo joias recebidas pelo então presidente Bolsonaro da Arábia Saudita. Seu governo teria tentado trazer ao Brasil de forma ilegal joias inicialmente avaliadas em cerca de R$ 16,5 milhões - valor que foi posteriormente corrigido pela própria Receita Federal para R$ 5 milhões.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, pediu à PF que o caso fosse investigado, afirmando que os fatos revelados pela imprensa "podem configurar crimes contra a administração pública".

Sete de Setembro, vacina sem licitação

No início deste ano, a ministra Cármen Lúcia, do STF, determinou o envio de oito pedidos de investigação contra Bolsonaro para serem avaliados pela primeira instância do Judiciário. A maioria diz respeito à atuação o ex-presidente no ato em 7 de setembro de 2022 no qual ele repetiu sua retórica antidemocrática e afirmou que não acataria decisões do STF.

Os ministros Edson Fachin e Luiz Fux também enviaram outros dois pedidos de investigação de Bolsonaro à primeira instância. Um é uma queixa-crime do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), por difamação – Bolsonaro disse que o parlamentar negociou compras de vacina sem licitação. Outro é uma queixa-crime da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) contra Bolsonaro, por injúria, e diz respeito aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.

Genocídio indígena

A eventual responsabilidade de Bolsonaro e de ações de seu governo pela tragédia yanomami também está sob apuração. A pedido do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, a Procuradoria-Geral da República, o Ministério Público Militar, o Ministério da Justiça e a Polícia Federal (PF) apuram se agentes do governo Bolsonaro e o então presidente teriam praticado crimes de genocídio e delitos ambientais que colocaram sob ameaça a vida, saúde a segurança diversas comunidades de povos originários.

Na petição 9.585, que tramita em sigilo no STF, Barroso determinou que sejam coletados documentos relacionados ao quadro de "absoluta insegurança dos povos indígenas envolvidos, bem como a ocorrência de ação ou omissão, parcial ou total, por parte de autoridades federais, agravando tal situação", e que possam apontar eventual conivência do governo federal com o garimpo ilegal em áreas indígenas.

Denúncias em Haia

No total, tramitam no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, seis denúncias contra Bolsonaro. A primeira foi protocolada em novembro de 2019, pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, por "crimes contra a humanidade" e "incitação ao genocídio dos povos indígenas". O coletivo lista 33 medidas adotadas na administração Bolsonaro que teriam facilitado o genocídio de indígenas.

A segunda denúncia é de abril de 2020, apresentada ao TPI pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, que busca responsabilizar Bolsonaro por "atitudes absolutamente irresponsáveis” na gestão da pandemia de covid-19 e pede que ele seja enquadrado em crime contra a humanidade por expor a vida de cidadãos brasileiros.

Também em 2020, o PDT apresentou outra denúncia contra Bolsonaro ao TPI, acusando-o de crime contra humanidade por contrariar determinações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e adotar uma postura negacionista que agravou a curva de óbitos e infectados no país.

A quarta denúncia também aborda o genocídio indígena e foi apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). O governo Bolsonaro é acusado de tomar ações deliberadas para exterminar etnias indígenas, com aval ao garimpo ilegal e total negligência à saúde indígena.

Até o Movimento Brasil Livre, cujos integrantes chegaram a apoiar Bolsonaro, recorreu a Haia no final de 2021, pedindo que ele seja julgado pelo crime de genocídio por causa das ações na pandemia. Essa foi a quinta denúncia.

A última delas foi protocolada em maio passado, por entidades internacionais – Deutsche Umwelthilfe, Avaaz, Bourdon & Associates e AllRise –, que aponta uma suposta responsabilidade de Bolsonaro pelo aumento do desmatamento na Amazônia, elevação da emissão de CO2 no planeta e do número de incêndios na floresta.

O TPI atua em casos relacionados a quatro crimes: genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade (crimes ocorridos contra a população civil num contexto sistemático) e crime de agressão (o ato de usar a força armada contra outro Estado). Mas é um tribunal subsidiário, que atua somente caso as instituições nacionais não julguem potenciais acusações sobre esses crimes.

lf (DW, ots)

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 05.07.23

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Agora Bolsonaro tem que ir para a cadeia

Para o Brasil se curar de anos de ódio, a suspensão de oito anos deve ser apenas a primeira punição para o ex-presidente

Jair Bolosnaro, ao desembarcar no aeroporto de Brasília no dia 30 de junho. (Associated Press / Lapresse)

Só um país tão carente de justiça como o Brasil pode comemorar que Jair Bolsonaro está incapacitado até 2030 . O ex-presidente foi condenado na última sexta-feira por ter atacado o sistema eleitoral brasileiro em reunião com embaixadores estrangeiros em julho de 2022, quando buscava se perpetuar no poder. É pouco para um extremista de direita que, nos quatro anos em que governou o Brasil, executou um plano para disseminar o vírus da covid-19 e obter a “imunidade de rebanho” que, segundo epidemiologistas, foi responsável pela maior parte das infecções .mais de 700.000 mortes.Entre 2019 e 2022, Bolsonaro atacou vacinas, incentivou a invasão criminosa de terras indígenas, acelerou a destruição da Amazônia, lançou ataques contra instituições, tentou destruir a credibilidade das urnas eletrônicas e incentivou golpes de estado. Ficar oito anos fora da disputa eleitoral é pouco, muito pouco, para tantos crimes. Mas Bolsonaro é um monstro humano, fruto da impunidade, e para as instituições da democracia que tanto minou puni-lo por seus atos pela primeira vez é um marco histórico.

Bolsonaro começou sua carreira criminosa planejando explodir bombas em quartéis em 1987, como medida para pressionar por melhores salários para a força. A Justiça Militar o absolveu em processo vergonhoso, mas ele teve que deixar as Forças Armadas e iniciou a carreira de político profissional: passou quase três décadas como parlamentar defendendo os assassinatos cometidos pela ditadura empresarial-militar (1964-1985). e atacando negros, indígenas, mulheres e LGBT, até chegar à presidência. O capitão reformado tornou-se a síntese de um país em que agentes do Estado sequestraram, torturaram e assassinaram centenas de civis e mais de 8.000 indígenas e nunca foram punidos, ao contrário do que aconteceu em países vizinhos como a Argentina, que conseguiu colocar os generais em prisão e restaurar a dignidade da nação. Bolsonaro sempre acreditou que poderia dizer e fazer qualquer coisa e que nada lhe aconteceria. Ele acreditou porque era verdade. Até o histórico dia 30 de junho de 2023, quando foi punido pela primeira vez.

Agora o Brasil é governado pela terceira vez por Luiz Inácio Lula da Silva,mas a marca dos crimes de Bolsonaro é carregada por todos os brasileiros. Hoje somos um país de gente mais triste, de gente de luto, de gente com mais vontade de matar. Qualquer pretexto serve para que surtos de violência ocorram nas ruas, no trânsito, em espaços públicos. Os brasileiros não viveram uma pandemia como o resto do mundo, mas sim uma pandemia em que o presidente usou a máquina estatal para fazer o vírus matar mais rápido. Ninguém passa quatro anos refém de um tarado sem ser transformado pela experiência da submissão. Hoje os brasileiros odeiam os brasileiros, ódio é o ar que se respira no Brasil. Bolsonaro pode ter perdido as eleições e agora – temporariamente – o direito de concorrer novamente. Mas seu projeto de ódio continua ativo, por isso, mesmo perdendo as eleições, ele ganhou.

O que vai determinar a derrota do que ele representa e que vai muito além do indivíduo Bolsonaro é quanta justiça a democracia brasileira conseguirá. Se esta for a única punição para um criminoso de Estado, o Brasil assassino, racista, xenófobo, misógino, homofóbico, anti-indígena e negador do clima ficará ainda mais forte. Se esta for apenas a primeira e mais branda sanção, com muitas outras a seguir, o Brasil terá uma chance de se reconstruir. Colocar Bolsonaro na cadeia por genocídio tem que se tornar o objetivo de todo brasileiro que ainda consegue manter alguma sanidade em um país profundamente enojado pelo exercício do ódio.

Eliane Brum, a autora deste artigo é jornalista. Publicado originalmente no El País, em 05.07.23

'Posição de Lula sobre Venezuela é inadmissível a esta altura do jogo’, diz María Corina Machado, líder opositora inabilitada, ao GLOBO

Líder opositora inabilitada para ocupar cargos públicos por 15 anos afirma que o Brasil pode contribuir para uma transição pacífica na Venezuela, 'mas não botando panos quentes'


María Corina Machado, em Mérida, na Venezuela / Divulgação

Por Janaína Figueiredo — Buenos Aires

Um dia depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter evitado comentar sua inabilitação na semana passada na Venezuela, a líder opositora María Corina Machado, em campanha para se tornar candidata nas eleições presidenciais de 2024 (as primárias são em 22 de outubro deste ano), assegurou ao GLOBO que a atitude do presidente brasileiro prejudica a credibilidade do Brasil para eventualmente atuar como facilitador no processo de negociação entre Maduro e a oposição.

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María Corina foi inabilitada por 15 anos por supostas irregularidades durante seu mandato como deputada e já anunciou que apelará da decisão dentro e fora do país. Ela já recebeu o apoio dos EUA, Reino Unido, Canadá, Chile, União Europeia e mais de 30 ex-presidentes da região.

– Pediria [a Lula] que acompanhe as primárias como um exercício pacífico de canalização das tensões que existem na Venezuela… caso contrário, sua tentativa de ser relevante neste processo será um fracasso monumental – frisou María Corina.

Veja abaixo os principais trechos da entrevista concedida com exclusividade ao GLOBO:

A senhora esperava o apoio contundente dos presidentes do Paraguai e Uruguai no âmbito de uma cúpula de presidentes do Mercosul? Que reação espera, agora, do Brasil de Lula?

Não me surpreendeu porque, tanto Mario Abdo Benítez quanto Luis Lacalle Pou, foram consequentes defensores da democracia na região, em particular da luta pela liberdade da Venezuela. Ambas declarações tiveram enorme impacto internacional e também dentro da Venezuela. Acho que confirma que essa suposta inabilitação contra mim, que é absolutamente inconstitucional, absurda e que viola todas as leis de meu país, foi um grande erro do chavismo e de Maduro. O desespero não é bom conselheiro, e o que estamos vendo é um efeito bumerangue. Agora as primárias [da oposição] são um clamor e um desafio ao regime. As pessoas dizem 'eu habilito Maria Corina com meu voto'. Pessoas que tinham dúvidas sobre participar, agora estão decididas. Virou épica. Na comunidade internacional, a reação foi incrível. Houve um pronunciamento do Parlamento europeu, Nações Unidas, Canadá, Estados Unidos, França, União Europeia, várias chancelarias, o presidente Gustavo Petro da Colômbia, mais de 30 ex-presidentes. Gerou-se uma onda expansiva, que continua crescendo.

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Lula é o único presidente de peso da região que não se pronunciou?

Sim. Lula foi insistente em seu desejo de acompanhar um processo de transição democrática por meio de eleições limpas, transparentes e competitivas em 2024, mas na cúpula do Mercosul disse que não estava devidamente informado, imagino que a esta altura já o estará. Dada sua proximidade e amizade com Maduro, para os venezuelanos e para todos os democratas do mundo, deve ficar clara qual é a posição de Lula sobre essa aberração que cometeu Maduro.

O que a senhora sente quando o presidente brasileiro fala em narrativas, em não isolar Maduro ou em que o conceito de democracia é relativo, quando é perguntado sobre Venezuela?

Me preocupa muito, não apenas pela Venezuela. A influência do Brasil na região e fora dela é indiscutível. Mas também me preocupa pelo Brasil, porque não pode existir uma visão de dois pesos duas medidas. Ou seja, o que não aceitariam para o Brasil, não podem pretender impor à Venezuela. Sejam por razões de afinidade ideológica ou projetos em comum, a posição de Lula é inadmissível a esta altura do jogo, com 25% da sociedade venezuelana espalhados pelo mundo, milhares no Brasil; com uma investigação sobre crimes de lesa-Humanidade avançando no Tribunal Penal Internacional; quando existem acusações bem documentadas na Justiça internacional sobre corrupção, narcotráfico, lavagem de dólares e financiamento do terrorismo; Maduro é tóxico. Acho que o governo brasileiro pode contribuir de maneira significativa para uma transição pacífica na Venezuela, mas não botando panos quentes e justificando os crimes de Maduro. Assim, o Brasil perde autoridade moral frente aos demais atores democráticos para se tornar um interlocutor confiável. Não pode demonstrar esse nível de suposta ignorância.

Contexto: Presos políticos, execuções, torturas e fome, a realidade da Venezuela de Maduro

O governo Lula diz que quer contribuir para que a Venezuela tenha eleições competitivas em 2024. Sua inabilitação mostra que isso é pouco provável? A pressão da comunidade internacional é chave?

Efetivamente, o chavismo não está disposto hoje a fazer concessões substantivas. O governo percebeu que está emergindo um movimento popular, que vamos ganhar as primárias e que as primárias despertaram entusiasmo e esperança, inclusive nas bases do chavismo. Uma das coisas que mais me impactaram nos últimos tempos, em comícios com milhares de pessoas, é a presença de muitas pessoas vinculadas ao chavismo. Pessoas que recebem bonos, caixas de comida, que estão desencantadas. Os mecanismos de controle social se diluíram, e as pessoas me dizem que não funcionam mais com base a ameaças. São pessoas que já perderam tudo, cujos filhos saíram do país. Isso é muito poderoso, e o regime sabe e não está disposto a ceder em coisas que poderiam levá-los a perder o poder, por exemplo, disputar uma eleição comigo. O paradoxo é que, agora, ninguém na comunidade internacional poderá atuar com ingenuidade.

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Falta mais de um ano para a eleição presidencial...

Faltam 18 meses, e isso na Venezuela é uma eternidade. Sexta-feira passada anunciaram minha suposta inabilitação e hoje temos outro país. O erro cometido foi bom para a reorganização da estratégia da oposição sobre a comunidade internacional, incluindo o Brasil, para conseguir esse processo competitivo.

A senhora está conversando com lideranças políticas da região?

Sim, claro que sim, mas não posso revelar nomes.

Está prevista uma conversa virtual com senadores brasileiros, convocada pelo senador Sergio Moro. A senhora tem interesse em conversar com representes do Executivo?

Certamente, gostaria de poder explicar pessoalmente ao presidente Lula o que está acontecendo em meu país, e minha situação. Nenhum representante do governo brasileiro se comunicou comigo. Tivemos pronunciamentos dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, França, Chile, Colômbia. Um pronunciamento do Brasil favoreceria uma eventual posição do governo de Lula como facilitador de um processo na Venezuela. O fato de o Brasil não se pronunciar afeta a confiança de setores no país.

Se a senhora encontrasse com Lula, o que diria ao presidente brasileiro?

Diria a Lula que, se quer que uma de suas conquistas de seu terceiro governo seja contribuir para superar o enorme conflito que existe na Venezuela, e facilitar uma reinstitucionalização democrática, deve entender que este é o momento de atuar. Lula deve entender que o regime cometeu um grave erro, deve dizer isso a Maduro. Pediria que acompanhe as primárias como exercício pacífico de canalização das tensões que existem na Venezuela. Assim se fortaleceria como interlocutor, com Maduro e com a sociedade venezuelana. Caso contrário, acho que sua tentativa de ser relevante neste processo será um fracasso monumental.

A senhora não participou de nenhuma negociação com o regime, nem do autoproclamado governo interino de Juan Guaidó. Por que agora diz que negociaria com Maduro?

Nosso fim é uma transição democrática. Houve momentos em que os protestos e denúncias eram mais eficientes. Nunca estive contra a negociação per se, mas sim contra negociações para manter um status quo. A falha esteve em não entender que não existiam incentivos reais para que o regime fizesse concessões. Essas negociações botaram panos quentes [na situação de autoritarismo] e deram tempo a Maduro. Agora estamos num cenário inédito, porque o regime tem uma enorme fraqueza em suas bases. Já roubaram tudo, agora temos enfrentamentos entre grupos mafiosos, e surgem riscos. Depois de todos os golpes e frustrações, temos aprendizados. Ir a uma negociação depois das primárias, com o respaldo do povo, é nossa oportunidade. Os que hoje estão na negociação não representam ninguém. Sobre o governo de Guaidó, o respaldei no começo, mas nunca fui parte dele e considero que foram cometidos erros, sobretudo de liderança.

Por que os venezuelanos deveriam acreditar que agora será diferente e a oposição conseguirá alcançar seus objetivos e, sobretudo, estar unida?

Tivemos um aprendizado brutal, de conquistas, fracassos e traições. Para muitos, esta é nossa última oportunidade. As pessoas me dizem que mais seis anos e vão morrer. Os jovens me dizem que não querem ir embora do país. Sobre a união da oposição, tivemos diferentes momentos. Quando tivemos um caminho genuíno, estivemos unidos. Mas houve grandes decepções. Por outro lado, esses tipos de regimes não têm escrúpulos, penetram, cooptam e destroem pessoas boas. Nós queremos unir a sociedade, não as cúpulas dos partidos. O chavismo buscou nos dividir, e a derrocada chavista voltou a nos unir. Até o Partido Comunista se pronunciou contra minha inabilitação. Esta é uma luta entre o bem e o mal. Temos de abrir os braços e reconhecer que todos erramos.

Publicado originalmente n'O Globo, em 05/07/2023 16h38  Atualizado 05/07/2023

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Os limites do Judiciário

Os chamados litígios estruturais podem e devem, sim, ser ajuizados, desde que neles se encontrem justos limites

Pode o Poder Judiciário alterar ou impor políticas públicas no País?

Por meio dos chamados litígios estruturais, essa questão já tem sido enfrentada pelos tribunais. O objetivo desses processos é obter uma reforma estrutural num ente ou instituição para restabelecer um direito fundamental e implantar ou corrigir uma política pública, como nos litígios decorrentes de grandes danos ecológicos (por exemplo, o rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais).

De um lado, os reparos ambientais de enorme vulto e extrema complexidade desafiam as regras do processo civil tradicional, mas, de outro lado, despertam a dúvida: como poderia o Judiciário impor ao Estado providências fora das políticas públicas em vigor ou, mais ainda, fora dos limites orçamentários?

Pode ou não o juiz se imiscuir nessas questões? Investido para aplicar a Constituição e as leis, o juiz tem ou não legitimidade para criar ou alterar, do jeito que bem queira, as políticas públicas do País?

Os chamados litígios estruturais podem e devem, sim, ser ajuizados, desde que neles se encontrem justos limites, pois não cabe ao Judiciário administrar no lugar do administrador nem legislar no lugar do legislador. Identificando-se omissão ou desvio do ente público em tema de direitos fundamentais de caráter social, admite-se seja determinada a correção ou a implantação de políticas públicas. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem exigido três requisitos para viabilizar a incursão judicial no campo dos litígios estruturais (RE n.º 440.028-SP):

a política pública reclamada deve ter natureza constitucional;

é necessária correlação entre a política pública reclamada e os direitos fundamentais; e

deve-se provar a omissão ou a prestação deficiente pela administração pública sem justificativa razoável.

Embora se devam flexibilizar os rigores processuais nos litígios estruturais e valorizar soluções consensuais com a participação das comunidades lesadas, em primeiro lugar o juiz tem de ater-se ao que foi pedido pelas partes, não podendo decidir fora daí.

Além disso, é preciso dizer que, por piores que sejam os membros do Poder Executivo e do Poder Legislativo – e muitas vezes o são –, o povo, titular da soberania, pode questionar suas políticas públicas e pô-los na rua de quatro em quatro anos. Mas, no tocante aos juízes, tudo o que se faça contra eles ou suas decisões depende deles mesmos. Por isso, o impeachment de membros do Judiciário é mais teoria do que prática, e, por sua vez, o controle do Conselho Nacional de Justiça tem caráter apenas administrativo, e não jurisdicional.

Não podemos deixar de impor limites à atuação do Judiciário, pois é o Poder menos democrático e menos sujeito a controle que temos, e já tem dado mostras de que, quando quer desviar-se, desvia-se sem emenda, como nossa maior Corte quando julga fora dos limites de sua competência constitucional.

É possível usar o processo estrutural para questionar políticas públicas, sim, mas com cuidados e limites, pois não se pode dar carta branca ao Judiciário, haja vista que, num suposto papel proativo, ele já vem tomando liberdades inaceitáveis, como no inquérito das fake news, que corre há anos, de ofício e sob sigilo (inquérito n.º 4.781/19-STF); está investigando diretamente, processando e mandando prender mesmo pessoas não sujeitas a foro constitucional por prerrogativa de função; está admitindo acordos de colaboração premiada tomados por órgãos outros que não o titular privativo da ação penal pública; está cassando decisão de indulto que a Constituição pôs na competência exclusiva do chefe do Executivo; fora dos casos autorizados pela Constituição, está criando normas abstratas que são verdadeiras leis materiais. Viola-se, assim, a separação de Poderes, descura-se a investidura democrática e põe-se a perder a imparcialidade dos magistrados e a segurança do sistema.

Em nosso sistema republicano, em tese todos os Poderes deveriam controlar-se reciprocamente, mas na prática o Judiciário controla os demais e não é por eles efetivamente controlado, pois, embora em teoria possível, jamais tivemos impeachment de magistrados do mais alto tribunal.

Não basta dizer que o processo estrutural é realidade com a qual temos de conviver e, com isso, tacitamente aceitar que o Judiciário faça o que bem queira, impondo ou alterando políticas públicas a seu talante. Não se trata apenas de questão acadêmica discutir a separação de Poderes. Basta ver as sucessivas decisões judiciais que invadem o campo da discricionariedade administrativa – e aqui, por óbvio, não estou falando das legítimas decisões que cassam atos administrativos ilegais. Estou falando, sim, do erro em substituir o juízo de conveniência do administrador pelo do juiz, em matérias que a Constituição e as leis deram discricionariedade ao administrador, que foi eleito para tomar essas decisões.

Não podemos aceitar um Judiciário como Poder deslegitimado e incontrolável, o que não se coaduna com os princípios democráticos e republicanos.

Hugo Nigro Mazzilli, o autor deste artigo, é advogado. Publicado originalmente, como colunista convidado, n'O Estado de S. Paulo, em 05.07.23

TSE cassa o ‘HC de Lula’, que agora será julgado pelo que fala e faz

Presidente não tem mais o conforto de ver Bolsonaro no seu retrovisor após seu adversário ficar inelegível por 8 anos


Lula recebeu o ditador Nicolás Maduro em Brasília, no dia 29 de maio; um mês depois, petista diz que conceito de democracia é relativo Foto: Wilton Junior/Estadão

O cientista político Francisco Weffort dizia que a democracia era o seu sonho, a sua ilusão, mas que ela tinha algo de realidade. “Não é pura loucura da minha parte.” O Brasil vivia os anos de Jair Bolsonaro na Presidência. Weffort, que ajudara a fundar o PT e depois se distanciara do partido, via na democracia uma espécie de destino. Mas sabia que ela era frágil. “Moralistas políticos têm tratado disso. O problema não é quem faz o mal, mas a preguiça de quem faz o bem e não se mexe.”

Luiz Inácio Lula da Silva devia ler a obra do ex-companheiro. E prestar atenção ao espírito do tempo. Ele muda. E, às vezes, na velocidade com que um ex-presidente é condenado por uma Corte de Justiça. Na semana passada, foi a vez de Bolsonaro, o homem que acusavam de conspirar contra a democracia. O político que ia dar um jeito no STF, que tinha muita saliva – mas se revelou sem pólvora – tornou-se inelegível. E, assim, o fantasma que rondava o Planalto já não assusta mais.

Lula recebeu o ditador Nicolás Maduro em Brasília, no dia 29 de maio; um mês depois, petista diz que conceito de democracia é relativo

Lula recebeu o ditador Nicolás Maduro em Brasília, no dia 29 de maio; um mês depois, petista diz que conceito de democracia é relativo Foto: Wilton Junior/Estadão

Lula, que deixou o cárcere após a reviravolta de seu caso no Supremo, era, para muitos personagens da República, a opção viável para conter o capitão que contaminara as Forças Armadas de tal forma que o País chegou a assistir a um desfile de carros de combate no dia da rejeição da PEC do voto impresso. Até agora, muitos não indagavam quais seriam os arcana imperii de Lula ou quem seria o seu coronel Cid. Com Bolsonaro condenado pelo TSE, isso mudou.

Quando comparou o ditador Daniel Ortega a Angela Merkel, em 2021, Lula passou vergonha, mas não despertou as mesmas reações públicas de repúdio como agora, ao dizer que o conceito de democracia era relativo, ao tratar das eleições na Venezuela.

Exemplo disso foi a manifestação do ministro do STF Gilmar Mendes, figura importante na reviravolta da vida de Lula. Gilmar mantivera o silêncio em sua conta no Twitter não só sobre o episódio de 2021, mas também quando o petista equiparara o papel da Ucrânia ao da Rússia no conflito europeu, igualando a vítima ao seu agressor.

Já no dia 2, após Lula negar à democracia o valor universal, que faz dela um fundamento ético da ação na esfera pública, o ministro reagiu: “A Constituição de 1988 exige que não sejamos tolerantes com aqueles que pregam a sua destruição; e também demanda que não seja tripudiada a memória daqueles que morreram lutando pela democracia de hoje”.

Em tempos de democracia vigilante – como defendia Weffort – e militante, Lula deve estar atento à manifestação de Gilmar. Ela tem muitos significados. E um deles é este: o petista será julgado, a partir de agora, pelo que fala e faz. Não tem mais o conforto de ver Bolsonaro no retrovisor: seu HC foi cassado.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é colunista d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 04.07.23

04/07/2023 | 21h00

O eleitor não é um ‘bom juiz’ de governantes

Um presidencialismo multipartidário funcional requer uma Justiça forte

‘Eleitor, de fato, faz um julgamento: mas é um julgamento fundamentalmente político’; ex-presidente Jair Bolsonaro está inelegível por 8 anos Foto: WILTON JUNIOR

Após a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro pelo crime eleitoral de “prática ilegal de abuso de poder político” e torná-lo inelegível por oito anos, levantaram-se dúvidas sobre quem de fato deveria tomar essa decisão.

Foi alegado que, em vez do TSE, seria mais apropriado que o eleitor fosse o “juiz” do ex-presidente. Afinal de contas, em uma democracia o “verdadeiro soberano” é o eleitor e não o Judiciário.

O próprio presidente Lula, quando estava sendo julgado pelos crimes de “corrupção passiva e lavagem de dinheiro” na operação Lava Jato pelo ex-juiz e agora senador Sérgio Moro, disse: “Eu não quero ser apenas julgado pela Justiça. Quero antes ser julgado pelo povo brasileiro”.

‘Eleitor, de fato, faz um julgamento: mas é um julgamento fundamentalmente político’; ex-presidente Jair Bolsonaro está inelegível por 8 anos

O eleitor, entretanto, não é juiz criminal nem tampouco de ilícitos eleitorais. Assim como a reeleição de um governante supostamente criminoso não pode ser interpretada como uma absolvição dos seus crimes, sua eventual derrota eleitoral também não pode ser interpretada como uma condenação. Concretamente, assim como a eleição do presidente Lula em 2022 não foi uma absolvição do eleitor pelos seus crimes pregressos, a derrota do ex-presidente Bolsonaro não foi uma condenação pelos seus crimes de ameaças às instituições democráticas.

O eleitor, de fato, faz um julgamento; mas é um julgamento fundamentalmente político e retrospectivo da performance do governante. Se avalia positivamente seu governo, tende a reelegê-lo ou a eleger quem ele indica para ser seu sucessor. Por outro lado, se faz uma avaliação negativa da sua performance, o eleitor tende a considerar alternativas.

É natural que informações, evidências e processos criminais possam influenciar na avaliação que o eleitor faz da performance do governante e, consequentemente, interfiram na sua decisão de voto. Por exemplo, em artigo em colaboração com Marcus Melo e Carlos Maurício Figueiredo, mostramos que decisões de Tribunais de Contas Estaduais (TCEs) no sentido de rejeitar as contas de prefeituras de cidades brasileiras em ano eleitoral diminuem as chances de reeleição de seus prefeitos em cerca de 19%.

Entretanto, em artigo complementar com Marcus Melo, mostramos que quando controlamos pelo gasto da prefeitura em políticas públicas, o impacto negativo da decisão do TCE de rejeitar as constas da prefeitura na reeleição do prefeito simplesmente desaparece. Ou seja, embora eleitores sejam capazes de responsabilizar governantes por eventuais maus comportamentos, esses resultados sugerem que nem sempre o fazem ao ponto de puni-los eleitoralmente.

Além da oferta de políticas públicas, vários outros aspectos interferem no cálculo que o eleitor faz na sua decisão de voto que podem atenuar o impacto de maus comportamentos de governantes e/ou aumentar a tolerância do eleitor a comportamentos desviantes. Não raro, mesmo eleitores informados podem preferir “absolver” eleitoralmente um mau governante por afinidades ideológicas, identidades partidárias e/ou conexões afetivas com seu líder.

Daí porque democracias competitivas, especialmente com um presidente constitucionalmente poderoso, como é o caso do brasileiro, não podem prescindir de um sistema de justiça forte e independente capaz de impor perdas judiciais e eleitorais a governantes que venham a apresentar comportamentos desviantes. Ainda que o Judiciário possa agir motivado politicamente, de forma excessiva e/ou hiperbólica, vale a pena correr esse risco do que deixar esse julgamento a cargo do eleitor.

Carlos Pereira, o autor deste artigo, é cientista politico. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.07.23

terça-feira, 4 de julho de 2023

A distância segura entre juiz e seus parentes

Ação de associação de magistrados contra lei que tira juiz de casos cuja parte seja defendida por escritório de parente seu serve só aos interesses desses advogados; cabe ao STF rejeitá-la

O Supremo Tribunal Federal (STF) começou há alguns dias a julgar uma ação que pode liberar magistrados de todo o País para julgar casos em que as partes sejam clientes de escritórios de cônjuges, parceiros e parentes. A ação, movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), pede que seja derrubado um trecho do Código de Processo Civil (CPC) que prevê impedimento nesses casos.

É peculiar que a AMB se insurja contra uma regra que protege a imparcialidade do juiz. Com a ação, essa entidade não está defendendo os juízes, e sim os interesses dos advogados que são parentes de juízes, de desembargadores e de ministros. Tudo isso em detrimento da autoridade e da isenção da magistratura.

O julgamento da ação da AMB foi suspenso por um pedido de vista do ministro Luiz Fux. Até o momento, há dois votos pela constitucionalidade do impedimento e um contrário. Segundo o ministro Gilmar Mendes, que votou pela procedência da ação, a imparcialidade do juiz já estaria resguardada por outras hipóteses de impedimento.

Não há como deixar de notar que, toda vez que o Congresso coloca de fato o dedo na ferida – no caso, identificando a causa da falta de isenção da magistratura e definindo um remédio para o problema –, surge a reação dizendo que a norma é desnecessária ou repetitiva. Na verdade, a ação da AMB só desvela o grande acerto da regra do CPC.

O CPC (Lei 13.105, de 2015) regulamenta o processo judicial civil e estabelece as regras de competência, os deveres de cada parte no processo, os procedimentos para a produção de provas e também as hipóteses de impedimento e de suspeição dos juízes. Sobre esse último tópico, o Congresso determinou que o juiz está impedido de julgar um processo “em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório” (art. 144, VIII).

Foi um avanço importante, que veio proteger a imparcialidade do juiz. Não é uma regra contra os magistrados nem faz uma presunção negativa sobre a atividade jurisdicional. Trata-se apenas do reconhecimento elementar de que, para preservar a isenção do juiz, ele não deve julgar uma causa cuja parte seja defendida por escritório de algum parente seu.

A rigor, mais do que uma completa inovação, a nova hipótese de impedimento é a concretização de um ponto fundamental do Estado Democrático de Direito: a Justiça deve ser imparcial. A Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, estabelece que “toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei”.

A Constituição de 1988 também protege a imparcialidade do magistrado, por exemplo, ao prever o princípio do juiz natural, ao proibir tribunais de exceção e ao fixar vedações aos magistrados – atividades que, se exercidas por um juiz, diminuiriam sua isenção. E, como estabelece a Lei 13.105/2015, “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição”. Não podia ser diferente. De que serviria um conjunto sofisticado de regras sobre o processo, se a Constituição não fosse respeitada? Se o juiz da causa estivesse numa situação de maior proximidade com alguma das partes?

Tudo isso é cristalino, mas não para a AMB. Na opinião da associação dos magistrados, seria impossível cumprir a norma, o que feriria o princípio da proporcionalidade. Eis aí como se expressa agora a resistência contra melhorias promovidas pelo Congresso. Sem argumentos e sem provas, alega-se que não é possível implementar a norma aprovada. A mesma tática tem sido usada contra a figura do juiz de garantias.

Dito tudo isso, é preciso também respeitar as competências. Cabe ao Congresso, e não ao STF, legislar sobre as hipóteses de impedimento.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 04.07.23