segunda-feira, 3 de julho de 2023

A coisa pública

A busca incessante pelos favores do erário reflete a fraqueza das nossas instituições republicanas, ainda mais seus agricultores. A conta, no final, fica com o contribuinte. Mas não é só isso.

O IBGE divulgou recentemente o desempenho do PIB no primeiro trimestre de 2023. O grande destaque foi a agropecuária, que cresceu nada menos que 18,8% em relação ao mesmo período do ano passado. Os mais entusiasmados (e menos afeitos à matemática) dizem que o setor carrega a economia brasileira nas costas. Não é assim, mas não deixa de ser um crescimento exuberante. A estimativa é de uma safra de 305 milhões de toneladas, 16% maior que em 2022.

Na semana passada, o presidente Lula anunciou em grande estilo o financiamento do Plano Safra 2023/2024. Serão R$ 364,2 bilhões apenas para médios e grandes produtores, 27% a mais que no ano passado. Mais de R$ 100 bilhões serão oferecidos a taxas de juros subsidiadas, que podem chegar a 7% ao ano. Sim, o Tesouro arca com benefícios para que a agricultura pague juros mais baixos. Prevê-se um custo de R$ 5,1 bilhões apenas para a agricultura empresarial. O setor pedia muito mais. É preciso? Talvez não, mas o setor alega que outros países subsidiam

Foi aprovada no Senado a prorrogação da desoneração da folha de salários para 17 setores da economia, supostamente os que mais empregam. Decerto o 18.º se lembrará de uma das famosas leis de Murphy (“na minha vez, muda”). O subsídio, que começou no governo Dilma Rousseff em 2011, custa bilhões por ano e não há nenhuma evidência de que tenha impacto relevante sobre o nível de emprego. É só mais um benefício. O contribuinte, constrito, paga.

Também tivemos o recente apanágio aos carros que são populares entre as pessoas ricas. Aqui a agravante é que foi uma iniciativa espontânea do governo petista, apenas uma homenagem à íntima relação que mantém com o setor automobilístico desde priscas eras (lembremos que um ex-presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) foi ministro da Indústria do presidente Lula da Silva em 2007). Sem nenhuma cerimônia, a Volkswagen, ingrata, anunciou a paralisação de suas linhas de produção. O subsídio aos carros confronta os esforços do ministro Fernando Haddad para equilibrar as contas públicas e em nada contribuirá para a retomada sustentável do crescimento. Serve apenas para colocar o rico no Orçamento.

Assim vamos, de sinecura em sinecura. Há muitos outros exemplos. Todos os apaniguados têm teses meritórias para justificar o que lhes parece um direito absoluto, inquestionável. São distorções de um capitalismo poroso, onde a distinção entre público e privado é fosca e a busca incessante pelos favores do erário reflete a fraqueza das nossas instituições republicanas. 

Luís Eduardo Assis, o autor deste artigo, é  economista, foi diretor de Política Monetária do Banco Central e professor de Economia da PUC-SP e FGV-SP. Escreveu 'O Poder das Ideias Erradas' (ed. Almedina). E-mail: luiseduardoassis@gmail.com. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.07.23

Decepção

Para quem se compara a Nelson Mandela e pretende o Nobel da Paz, a tarja do jornal francês seguramente não é bom sinal.

Após quatro anos de isolamento internacional, Lula movimenta-se no modo recuperação do tempo perdido. Mas um jornal francês de centro-esquerda refere-se a ele como “decepção”, após ter classificado o sofrimento do povo venezuelano de mera “narrativa”, ao receber com salamaleques o ditador Nicolás Maduro. Para quem se compara a Mandela e pretende o Nobel da Paz, a tarja francesa seguramente não é bom sinal.

Diante do nocaute de Bolsonaro pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), agora a dureza do jogo obstrutivo político e seus preços fica mais evidente e Lula frustra expectativas em relação à sua capacidade para superar os previsíveis desafios deste terceiro mandato. Até onde deve ceder para governar? Que valores serão sacrificados em nome da governabilidade? Há limites para o realismo político?

Pior do que não cumprir promessas, o que lamentavelmente já se naturalizou no Brasil, é a perda gradual e contínua de identidade política do petismo, para cuja construção Lula foi referência na fundação do partido, há 43 anos. Foi protagonista, lastreando-se na proteção da dignidade humana, dos direitos sociais, dos direitos das mulheres, na luta pela integridade e transparência.

O Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos posicionou-se com veemência publicamente contra a PEC 9/23, a maior virada de mesa da história dos partidos, a quarta anistia, que propõe simplesmente que eles não se sujeitem à lei como todos os mortais, destruindo regras garantidoras de direitos de mulheres e negros. Mas o partido político do presidente e sua base de apoio, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, desprezaram todas as políticas públicas historicamente construídas pelo partido, todas as ações afirmativas que encharcam a Constituição, e preferiram assumir a posição diametralmente oposta, votando a favor da anistia, de braços dados com os bolsonaristas.

Se isso se repetir na Comissão Especial, no plenário e pelo próprio presidente da República, ficará difícil de manter a versão de que este grupo político ainda defende mulheres e negros, pois os terá abandonado à própria sorte em nome de outros interesses de ocasião.

Por outro lado, ainda que tenha havido anulações processuais e reconhecimento de parcialidade jurisdicional, no que diz respeito ao presidente, nos quatro mandatos (de Lula e Dilma) o Brasil aderiu e subscreveu o Pacto dos Governos Abertos, aprovou a Lei de Acesso à Informação e foi instituída a prática política de indicar o procurador-geral da República (PGR) dentro da lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República.

Foi a forma encontrada pelo PT de reverenciar a democracia e de prestigiar a autonomia do Ministério Público Federal. Afinal, o presidente fiscalizado está escolhendo o próprio fiscal. Isso se rompeu no governo passado, que indicou e reconduziu um PGR fora da lista, e este acaba, inclusive, de inaugurar, de forma surpreendente e inédita, seu próprio retrato na galeria do Conselho Nacional do Ministério Público, três meses antes do fim de seu mandato.

Observe-se: houve intenso debate público, no início do atual mandato, a partir da revelação dos gastos com cartões corporativos de Bolsonaro, que se apresentava como gestor austero e que gastaria em patamares supostamente franciscanos. Mas, diante da abertura das informações, foram revelados gastos milionários no cartão corporativo. Chamaram a atenção as despesas, no que diz respeito aos valores absolutos, mas também em relação aos grandes volumes de recursos financeiros para o mesmo beneficiário. Percebeu-se que se tratava de refeições servidas a centenas de pessoas no contexto de uma daquelas famigeradas motociatas, em movimentos preparatórios da campanha à reeleição do ex-presidente.

Acertadamente, então, o governo federal publicou minuta de decreto para colher sugestões da sociedade civil, com o objetivo de construir uma nova regulamentação limitativa, visando à moralização do uso do cartão corporativo. Ao fim, o decreto foi publicado, mas lamentavelmente não temos experimentado tempos de contenção.

Em quatro meses, conforme amplamente divulgado, foram gastos por meio do cartão corporativo presidencial R$ 12 milhões, o que significa uma média de R$ 4 milhões mensais, projetando-se R$ 48 milhões anuais – valores superiores aos que vinham sendo gastos pelo governo anterior.

Mas o pior é deixar de instituir a transparência como política de Estado, sendo o Brasil um dos oito celebrantes mundiais do Pacto dos Governos Abertos. O Instituto Não Aceito Corrupção e outras organizações da sociedade civil requereram à Controladoria-Geral da União (CGU) que todos os comprovantes de despesas presidenciais fossem digitalizados e lançados no Portal da Transparência, para permitir controle social amplo. Não foram os pedido atendidos.

Lula acredita ser favorito ao Nobel da Paz, mas a verdade nua e crua é que, à medida que seu mandato avança, a sociedade precisa se esquecer do contexto do salvacionismo democrático que o elegeu, recebendo um choque de realidade de Brasil real, do populismo da decepção, como alertam os franceses.

Em matéria de enfrentamento à corrupção, seja pela direita, seja pela esquerda, a agenda parece estar fadada a não evoluir um milímetro sequer no País. Simplesmente, o assunto não interessa (ou interessa) aos detentores do poder. 

Roberto Livianu, o autor deste artigo, é Procurador de Justiça no Ministério Público de S. Paulo, doutor em Direito pela USP, escritor, professor, palestrante e idealizador do Instituto Não Aceito Corrupção. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.07.23

Os fundamentos das decisões do Supremo

É oportuna a iniciativa do STF de apresentar, de forma acessível, sua jurisprudência sobre temas sensíveis, como a liberdade de expressão. País não pode ficar refém da desinformação

Há muita crítica contra o Supremo Tribunal Federal (STF). E há também muita incompreensão sobre o funcionamento da Corte. Quase sempre, as críticas ignoram o fundamento dos votos, bem como a própria jurisprudência anterior do Supremo, limitando-se a expressar contrariedade com a decisão da qual se discorda. Sob essa ótica, a atuação do Supremo ganha um caráter casuístico, quase arbitrário, como se as decisões dependessem unicamente das idiossincrasias de cada ministro. É um cenário desafiador para o Supremo, cuja autoridade é necessária para que possa desempenhar seu papel institucional contramajoritário de defesa da Constituição.

Junto a isso, como parte do mesmo fenômeno, há muita desinformação sobre as liberdades e garantias fundamentais, disseminando graves incompreensões sobre temas fundamentais do Estado Democrático de Direito. Frequentemente, o debate público é tomado por visões simplistas, cujo único objetivo é manipular, dificultando ou mesmo impossibilitando uma discussão serena e madura dos temas.

Nesse contexto, é muito oportuna a iniciativa do STF de lançar a linha editorial Supremo Contemporâneo, com publicações que reúnem de forma acessível a jurisprudência da Corte sobre diferentes temas. O objetivo é apresentar um resumo de precedentes especialmente relevantes, com os fundamentos utilizados e trechos dos votos dos ministros. Agrupar essas decisões, proferidas em diferentes momentos, ajuda a dar sentido e contexto ao trabalho do STF em defesa da Constituição ao longo do tempo.

Com 29 julgados de 2007 a 2022, o primeiro volume da série é dedicado à liberdade de expressão. Há processos famosos, como a não recepção da Lei de Imprensa pela Constituição (2009), o fim da exigência de diploma para o exercício do jornalismo (2009), a liberação das biografias não autorizadas (2015) e o pretenso direito ao esquecimento (2021). “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento”, disse o STF.

O precedente mais recente citado no livro afirma que “a liberdade de expressão não pode ser usada para a prática de atividades ilícitas ou discursos de ódio, contra a democracia ou contra as instituições” (2022). O mais antigo, de 2007, é a declaração de inconstitucionalidade de decreto distrital de 1999 proibindo a realização de manifestações públicas na Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios, Praça do Buriti e vias adjacentes.

Segundo o STF, a restrição ao direito de reunião estabelecida no decreto “é inadequada, desnecessária e desproporcional”, confrontando “com a vontade da Constituição, que é permitir a reunião pacífica para fins lícitos”. O STF não disse que o governo do Distrito Federal não pode proibir uma manifestação violenta. Apenas afirmou que não se pode, sob pretexto da segurança pública, impedir toda e qualquer manifestação.

Precedente especialmente interessante para o debate atual é a decisão de que as marchas da maconha, com manifestantes defendendo a descriminalização da droga, não constituem crime. O debate pela abolição penal de uma conduta punível “não se confunde com incitação à prática de delito, nem se identifica com apologia de fato criminoso”. Segundo o STF, o Estado não pode reprimir o debate “ainda que as ideias propostas possam ser consideradas, pela maioria, estranhas, insuportáveis, extravagantes, audaciosas ou inaceitáveis, sendo inadmissível a proibição estatal do dissenso”.

O livro traz decisões que aparentemente não dizem respeito à liberdade de expressão, mas cuja fundamentação remete ao tema. Por exemplo, ao declarar a constitucionalidade do fim da contribuição sindical obrigatória, o STF afirmou que, com o engajamento político de entidades sindicais, fixar contribuições compulsórias de quem não concorda com tais posicionamentos configura “violação à garantia fundamental da liberdade de expressão”.

A defesa da Constituição inclui enfrentar a desinformação. É preciso expor de forma acessível a jurisprudência do STF e seus fundamentos. Assim, muitos fantasmas desaparecem. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 03.07.23

A reinvenção da direita brasileira

Para aproveitar as oportunidades da inelegibilidade de Bolsonaro, a direita civilizada precisa depurar valores conservadores e liberais e concretizá-los em um movimento cívico

Ante a inelegibilidade de Jair Bolsonaro, a única coisa maior que a janela de oportunidades aberta à direita é a montanha de desafios que precisa superar. Bolsonaro é um feroz antiesquerdista, mas nunca foi conservador nem liberal, só um demagogo nostálgico da ditadura e hostil ao ecossistema democrático da Constituição de 88.

Em todo o mundo as democracias liberais estão na defensiva. Fora, o aventurismo militar da Rússia e o expansionismo diplomático da China buscam reconstruir uma ordem mundial adaptada às suas ambições autocráticas. No Ocidente, eles despertam medo, mas também seduzem esquerdas e direitas abastardadas, pela suposta eficiência de seus “modelos” de crescimento ou defesa das tradições. Dentro, há uma crise de identidade, evidente nas próprias distorções do termo “liberalismo”: nos EUA, ele está associado à “nova esquerda” e seu identitarismo divisivo e autoritário; em outras democracias, a propaganda esquerdista o desfigurou, associando-o ao espantalho “neoliberal”, que nada mais é que um darwinismo social. Ao mesmo tempo, cresce o falso conservadorismo da extrema direita hostil à globalização e a minorias.

Em sua história do liberalismo, Edmund Fawcett divisou quatro valoreschave da identidade liberal. Primeiro, que a sociedade deve ser plural; um espaço de conflitos politicamente canalizados a uma competição de ideias frutuosa. Segundo, que é preciso progredir por reformas, não rupturas. Terceiro, a desconfiança da concentração do poder. Quarto, a defesa dos direitos pessoais, políticos e de propriedade. A renovação não passa por desconstruir esses valores, mas empregá-los como alicerces na construção de um contrato social liberal adaptado ao século 21.

A direita precisa fazer um exame de consciência, reconhecer sua complacência com as desigualdades sociais e energizar seus compromissos com a responsabilidade individual, a liberdade econômica e a distribuição do poder para demonstrar convincentemente que estes são os meios mais eficazes para construir uma sociedade inclusiva, justa e próspera.

O desafio no Brasil é o mesmo, mas mais profundo, porque aqui, mais do que se reinventar, a direita precisa se inventar. Na redemocratização, as expressões do liberalismo se restringiram ou a farsas deletérias (como Fernando Collor ou Bolsonaro) ou a soluções de compromisso de uma socialdemocracia esclarecida (FHC). Com curtos estoques de tempo e popularidade, Michel Temer sanou excessos desastrosos do estatismo petista – se teria energia ou convicção para edificar instituições liberais, é algo que fica no campo da especulação. Ao redor dessas ilhas liberais, há um conservadorismo difuso na sociedade, que com o movimento evangélico ganha força (mas também toques de obscurantismo), e um conservadorismo amorfo na arena política (que muitas vezes só serve à conservação de privilégios elitistas e paroquiais).

Não se trata só de depurar essa massa crítica para esculpir no ideário político valores conservadores e liberais. É preciso concretizá-los articulando um partidarismo de direita no melhor sentido do termo. Isso implica reverter a lógica do populismo. Não oferecendo programas tecnocráticos de cima para baixo, muito menos se embrenhando na disputa por um novo “salvador da pátria”, ou seja, jogando o jogo do culto à personalidade caro ao lulopetismo e ao bolsonarismo. Como cravou William Waack no Estadão, “falta de nomes não é o maior problema da direita pós-Bolsonaro; falta projeto de País”. O erro seria insistir na estratégia de desmoralização dos eleitores de Lula ou Bolsonaro. Ao contrário, é preciso humildemente ouvi-los, construir com eles compromissos de baixo para cima e comunicá-los com paixão, a fim de dinamizar uma mobilização cívica inspirada nas grandes articulações políticas que edificaram a Nova República nas “Diretas Já” e superaram suas crises com os impeachments de Collor e Dilma. Esse é o caminho para a reinvenção da direita. A menos que o trilhe, ela continuará a agonizar pelas mãos de seus adversários ou usurpadores. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 03.07.23

Melhor já ir se acostumando

 O enredo malufista guarda ainda poucos paralelos com o ocaso de Bolsonaro


O então deputado federal Paulo Maluf (PP-SP) em reunião da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, em novembro de 2015 Nilson Bastian/Infoglobo

O então deputado federal Paulo Maluf (PP-SP) em reunião da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, em novembro de 2015O então deputado federal Paulo Maluf (PP-SP) em reunião da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, em novembro de 2015 Nilson Bastian/Infoglobo

Se eu postar uma foto de Luan Santana, Gabigol e Paulo Maluf e perguntar quem ali seria um político mal-afamado, o acerto viria por exclusão. Pois bem. Maluf, por anos, foi um miasma a assustar a boa família brasileira. Desalmado como seu descendente Jair, cunhou a clássica frase de espírito bolsonarista:

— Estrupa (sic), mas não mata.

A falta de votos nas urnas e a Justiça o jogaram no ostracismo — e, por vários anos, cumpriu prisão domiciliar. Há pouco devolveu alguns milhões de dólares desviados de uma obra pública paulistana. A quantia roubada dava para construir vários outros túneis e viadutos. Mesmo enredado, com suas digitais sangrentas na cena no crime, negava as suspeitas em ríctus indignado. Mentia sem Rivotril.

Em tempos mais pretéritos, promotores de Justiça avançaram sobre as espertezas de Orestes Quércia. A política da época congelou as investigações. Descobriu-se, para pouco espanto da plateia, que o preço do quilômetro do metrô paulistano era o dobro do cobrado no túnel sob o Canal da Mancha, entre França e Inglaterra. Se levantado o tapete roto, estariam ali as mesmas construtoras logo flagradas nos dutos da Petrobras.

Parece ser um ciclo vicioso, ora à direita, ora à esquerda. No caso, os dois espectros políticos de braços dados. Para qualquer grande obra pública, necessita-se de comprovada capacidade técnica. Não há no país mais de uma dezena de empresas com currículo para construir uma linha de metrô. Acontece, como já foi verificado pelos promotores paulistas, a formação de cartel — e, assim, sobem os preços combinados.

A saída? Abrir às empresas estrangeiras a participação nas concorrências. Bem, aí os sindicatos de trabalhadores, nas mãos do PT e de outros afamados, são contra a presença internacional. Alegam que defendem seus empregos. Curiosamente, empresas como a Odebrecht, com financiamento brasileiro, fizeram obras em países da América do Sul. Assim caminham amasiadas a direita oportunista e a esquerda corporativa. A turma do Dallagnol, conhecida como os santinhos de Curitiba, não queria ficar com a grana recuperada da Petrobras para uma fundação administrada por eles? Mesmo assim, ele recebeu mais de 300 mil votos de patriotas paranaenses.

Maluf, Quércia, Marin (este puxando cana nos Estados Unidos), entre outros, são muitos os nomes da direita agora no ocaso, mas antes vistos como líderes messiânicos. Por eles, seus seguidores pegariam resfriado. Falou-se em malufismo, como ainda também em quercismo. Na essência, eram a mesma coisa: um modo ou mau hábito operante do dinheiro público e do lupanarinato político. Nunca se falou de um malufismo sem Maluf, porque a falta de voto deixou inanimada qualquer descendência. Depois das derrotas, a Justiça, sem a pressão política de seus cargos, andou até colocá-lo na prisão.

O enredo malufista acima guarda ainda poucos paralelos com o ocaso de Bolsonaro — por enquanto, pessoal. Ao menos Maluf, a despeito das lentes bifocais, era um tipo simpático e desafinou o coro da ditadura apoiada pelo capitão. Mas ambos, em vários momentos, se transformaram na esperança da direita e da extrema direita. Só que os dois foram abatidos pelas circunstâncias venais; seus truques logo cansaram as plateias e os patriotas de sempre.

O caso de Bolsonaro se mostra ainda mais trágico. Perdeu a eleição apesar de estar no cargo, do uso indiscriminado dos instrumentos de Estado em benefício próprio — quem pagou aquelas motociatas? não foi o Valdemar... — e da distribuição de verbas sob critérios escusos. Grande parte do Centrão eleito deve-se aos recursos do orçamento secreto.

Bolsonaro como cabo eleitoral? Bolsonarismo sem Bolsonaro? Com a ajuda do aparato estatal se viu derrotado. Assim como muitos taparam o nariz ao votar em Lula, outros muitos esconderam as joias ao escolher Bolsonaro. Tal episódio histórico jamais ocorrerá novamente. Basta acompanhar a fé indelével dos evangélicos no futuro do capitão. Em breve, Lula será o líder deles, nada lhes faltará, apostam. Dízimo não tem ideologia.

No pós-Bolsonaro, a caminho de ele ser um corretor de imóveis, especula-se sobre herdeiros. Assim como, na ditadura, também pensou-se numa direita de terno em lugar da farda. Uma direita proativa, empreendedora, do tipo que joga tênis. E que faz obras e combate a corrupção. Sempre em defesa dos pés descalços. Deu em Collor cassado e transformado num político municipal. Depois no Maluf em prisão domiciliar. Ao contrário de magnatas russos, que suspeitamente despencam de prédios, tal direita teve um pouco mais de sorte.

Miguel de Almeida, o autor deste artigo, é editor e diretor de cinema. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 03.07.23

domingo, 2 de julho de 2023

José Paulo Sepúlveda Pertence

 Mais de 40 anos de amizade pessoal e convivência profissional

@EdsonVidigal

Morreu o Pertence nesta madrugada num hospital aqui em BSB. Minha 1a. causa no STF foi em parceria com ele. Deixou comigo a sustentação oral no Pleno. Ganhamos. Estou arrasado. Éramos muito próximos. Segue a fila da travessia da ponte para além do horizonte.


José Paulo SEPÚLVEDA PERTENCE
Presente!
O maior da história!
Único a transformar em verdade fática o sentido de silêncio eloquente. Quando votava todos se calavam, ouviam e admiravam sua infinita capacidade.
Inteligência e humor que nunca o deixou!
Dono de uma gargalhada inesquecível! Que escuto agora do céu de sua infinitude!
O Brasil e a democracia muito devem a ele.
Eu,
Que ocupo sua cadeira no STF, sempre e hoje mais ainda.
Peço: Sua benção!
José Antonio Dias Toffoli

Sarney lamenta morte de ex-ministro do STF Sepúlveda Pertence

Ex-presidente foi o responsável por indicar jurista ao cargo na Corte e também por nomeá-lo procurador-geral da República

Sepúlveda Pertence, quando era ministro do STF, em 2007Sepúlveda Pertence, quando era ministro do STF, em 2007 (Roberto Stuckert Filho / Agência O Globo)

O ex-presidente do Brasil José Sarney lamentou a morte ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Sepúlveda Pertence, aos 85 anos. Em nota, ele afirmou que o magistrado, classificado como "um amigo de longos anos", foi "um dos maiores juristas da História". Sarney foi o responsável por nomear Pertence como ministro do STF e também ao cargo de procurador-geral da república.

"Foi com intensa comoção que recebi a notícia do falecimento de José Paulo Sepúlveda Pertence. Perde o Brasil um dos maiores juristas de sua História, um dos maiores magistrados que já passaram pelo Supremo Tribunal Federal, o consolidador do Ministério Público Federal, o brilhante advogado, o defensor do direito; perdemos, eu, minha mulher, minha família, um amigo de longos anos, uma extraordinária criatura humana, o observador arguto da vida pública, o intelectual completo, o caráter sem jaça, o exemplo de integridade moral", diz o ex-presidente no texto.

O jurista estava internado havia cerca de uma semana no Hospital Sírio Libanês, em Brasília, e sofreu falência múltipla dos órgãos. Pertence tinha problemas pulmonares por ter fumado durante toda a vida, inclusive cachimbo, hábito que ele abandonou com o nascimento da neta, em março de 2010.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ministros do Supremo e outras autoridades lamentaram neste domingo a morte do jurista. Em seu texto, o petista afirmou que Pertence foi um dos "maiores juristas da história do Brasil" e que foi um privilégio tê-lo como "amigo e advogado".

"Sempre atuou pela defesa da democracia e do Estado de Direito, como advogado e também como ministro do Supremo Tribunal Federal. Por isso, era respeitado por todos. Neste momento de perda, meus sentimentos aos seus familiares, em especial aos seus filhos, aos amigos e admiradores", escreveu o presidente.

O corpo do ministro aposentado será velado no Salão Branco do STF a partir das 10h desta segunda-feira. O magistrado era tido com uma unanimidade nos meios jurídico e político do Brasil.

Leia na íntegra a nota de José Sarney

Foi com intensa comoção que recebi a notícia do falecimento de José Paulo Sepúlveda Pertence. Perde o Brasil um dos maiores juristas de sua História, um dos maiores magistrados que já passaram pelo Supremo Tribunal Federal, o consolidador do Ministério Público Federal, o brilhante advogado, o defensor do direito; perdemos, eu, minha mulher, minha família, um amigo de longos anos, uma extraordinária criatura humana, o observador arguto da vida pública, o intelectual completo, o caráter sem jaça, o exemplo de integridade moral.

Deus me deu a oportunidade de nomeá-lo, não por amigo, mas por mérito indiscutível, para dois dos principais cargos do Estado: Procurador-Geral da República e Ministro do Supremo Tribunal Federal. Em ambos sua presença está registrada como dos pontos mais altos destas instituições.

Nos conhecemos quando era muito moço, por amigos comuns como Carlos Castello Branco e José Aparecido de Oliveira; e ao mesmo tempo por sua ligação com Victor Nunes Leal, com quem trabalhou e por quem eu tinha grande estima e admiração.

Inconsoláveis, Marly, meus filhos e eu partilhamos com seus filhos Evandro, Eduardo e Pedro Paulo e toda a família a tristeza dessa ausência, mas sabendo que teremos para sempre a presença de sua inteligência e sua amizade.

JOSÉ SARNEY

Publicado n'O GLOBO online, em 02.07.23, às 15h56

A teoria da relatividade de Lula

Para o Einstein petista, democracia é conceito ‘relativo’, e a Venezuela é uma democracia porque realiza ‘mais eleições que o Brasil’. É um deboche com os que sofrem sob o tacão de Maduro


O genial Einstein petista e a sua relatividade

A Venezuela realiza “mais eleições que o Brasil”, logo é um país democrático. Eis o postulado da esdrúxula “teoria da relatividade democrática” formulada pelo presidente Lula da Silva.

Relativizando as barbaridades perpetradas pelo ditador Nicolás Maduro e debochando do sofrimento do povo venezuelano, há décadas privado de tudo sob o tacão do regime chavista, nosso genial Einstein petista afirmou, em entrevista à Rádio Gaúcha, no dia 29 passado, que “o conceito de democracia”, ora vejam, “é relativo”.

Para Lula, a bem da verdade, deve ser mesmo. Afinal, gente da estirpe de Maduro, Hugo Chávez, Daniel Ortega e Fidel Castro, por exemplo, é tida pelo petista, há tempos, como a quintessência do democrata, pois eles encarnam, em sua visão autoritária, as legítimas aspirações do “povo”. Nesse sentido, democracia, para Lula, pode ser qualquer regime que se coadune com seus valores e dogmas ideológicos, ainda que uma prisão ilegal aqui, um fechamento de jornal ali ou uma execução sumária de opositor acolá sejam inevitáveis, fatos da vida.

Entretanto, para qualquer democrata genuíno, em qualquer lugar do mundo, a democracia é o que é – sem relativismos. É a supremacia da vontade popular; é a liberdade de ser e agir nos limites da lei, que vale para todos; é a intransigência com qualquer forma de arbítrio. Mas, como não é nem nunca foi um democrata genuíno, Lula segue o manual da esquerda retrógrada, aquela que considera “democratas” todos os tiranos que se apresentam como adversários do “imperialismo estadunidense” – impostura em nome da qual se justifica toda sorte de repressão interna. Aos pobres habitantes dos países comandados pelos ditadores companheiros de Lula, resta apenas o direito de votar em eleições fajutas.

Não há que falar em democracia, de fato, quando aos cidadãos é vedado o direito de influenciar os rumos de seu país por meio do sufrágio universal, com voto direto e secreto. Mas há outras garantias e liberdades democráticas tão fundamentais quanto essa, como, por exemplo, as liberdades de expressão, a liberdade de imprensa e a existência de meios legais que permitam a participação da oposição na disputa eleitoral, com paridade de armas. Nada disso, contudo, existe na Venezuela.

Menos de 24 horas depois de Lula classificar a Venezuela como um país “democrático”, o regime de Maduro proibiu Maria Corina Machado de registrar sua pré-candidatura à eleição de 2024. Se a eleição fosse limpa, Maria Corina seria, segundo todos os prognósticos, a mais forte ameaça à permanência de Maduro na presidência. Como a eleição não será limpa, Maduro não teria com o que se preocupar – mas o ditador venezuelano, zeloso quando se trata de se aferrar ao poder, parece que não quer dar a menor chance para o azar.

Com um misto de desfaçatez e escárnio, Lula desafiou os que chamam o governo da Venezuela pelo que é – uma ditadura implacável – a visitar o país e “fiscalizar” as eleições. “Se não tiver eleição honesta, a gente fala”, disse o petista. Ora, essa fiscalização já foi feita por organismos internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), e por instituições independentes da sociedade civil de uma série de países verdadeiramente democráticos, inclusive o Brasil. Até a ONU, por meio de seu Conselho de Direitos Humanos, já atestou que a ditadura do “companheiro” Maduro “não cumpre, de maneira nenhuma, as condições mínimas para a realização de eleições livres e confiáveis” na Venezuela.

É lamentável, triste até, que o presidente da República submeta o Brasil à vergonha de condescender com um regime tão nefasto quanto o comandado por Nicolás Maduro, sobretudo no contexto em que um ex-presidente, Jair Bolsonaro, acaba de ser condenado à inelegibilidade por oito anos justamente por seus desabridos ataques à democracia brasileira. Mas Lula é irremediável. Resta aos verdadeiros democratas do País conviver com sua retórica de botequim até que um presidente que nutra lídimo apreço pelos valores democráticos volte, enfim, a despachar no Palácio do Planalto.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 02.07.23

Justiça tardia

Bolsonaro deveria ser apenas um pé de página nessa história, ou ter sido barrado ao longo dos 30 anos de vida parlamentar em diversas ocasiões


                                                     Jair Bolsonaro (Douglas Magno/AFP)

O Brasil é um país em que tudo pode acontecer, até mesmo um político medíocre e nefasto como Jair Bolsonaro chegar a presidente da República. A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de torná-lo inelegível é um fato histórico, embora o personagem não merecesse tão alta distinção. Deveria ser apenas um pé de página nessa história, ou ter sido barrado ao longo dos 30 anos de vida parlamentar em diversas ocasiões, como quando ameaçou uma colega de estupro, quando declarou-se disposto a fuzilar um presidente da República, quando homenageou um torturador notório ao votar pelo impeachment da presidente Dilma, e assim por diante.

Mesmo assim, a inelegibilidade do ex-presidente Bolsonaro é um fato marcante da nossa história política recente, que conta com várias crises, impeachments, tentativas de golpe, ou golpes propriamente ditos. Depois de 8 de janeiro, ficou difícil alguém duvidar de que o que estava em curso era um golpe de Estado tradicional, com as Forças Armadas aderindo ao presidente rebelado, uma varredura no Legislativo e no Judiciário, que passariam a ser subordinados ao Executivo, como acontece nas ditaduras de esquerda e de direita no mundo.

Os argumentos dos ministros Raul Araújo e Kassio Nunes Marques a favor do ex-presidente Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) refletem uma atitude leniente em relação ao seu comportamento político nos últimos 35 anos, entre parlamentar do baixo clero e presidente da República da mesma extração que, se prevalecesse agora, permitiria que Bolsonaro continuasse sua carreira destruidora.

Assim como passou 30 anos como vereador, deputado estadual e deputado federal cometendo barbaridades sem que fosse punido, porque era considerado um membro desimportante do baixo clero, agora seria absolvido pelo TSE porque seus crimes não deram certo: o golpe fracassou, a TV Brasil não tem audiência, sua opinião pessoal quanto às urnas foi derrotada no Congresso. O fato de ter cometido crime de abuso do poder político sendo presidente da República seria o de menos para seus defensores, como se Bolsonaro fosse apenas mais um qualquer entre muitos aloprados inconsequentes espalhados por aí.

Quando Bolsonaro diz que é ridículo achar que um bando de “senhorinhas e senhorinhos” queriam dar um golpe no dia 8 de janeiro, ele tenta minimizar a rebelião que incentivou durante todo o seu governo. Além do mais, como é seu hábito, abandona os que passaram dias e meses acampados em frente aos quartéis, acreditando que Bolsonaro tinha apoio para o golpe. Era o que ele queria que acreditassem quando falava de “meu Exercito” e ninguém das corporações o contestava.

Era o que queria que acreditassem quando reuniu embaixadores para ouvir suas diatribes contra as urnas eletrônicas. Nas redes sociais, a pós-verdade dizia que Bolsonaro tinha apoio até no exterior. Bolsonaro manipulou os militares, parte com cargos e mordomias, parte pelo constrangimento, pois uma contestação formal poderia causar, ai sim, uma crise institucional.

Constrangeu a todos os militares a ponto de permitirem os acampamentos de onde saíram os planos de explodir uma bomba no aeroporto de Brasília ou a marcha sobre a Praça dos Três Poderes, escoltados pela policia, para depredarem prédios públicos. Uma tergiversação hoje lamentada por muitos oficiais graduados.

Invadir o Supremo, o Congresso, o Palácio do Planalto não acontece do nada, é preciso fomentar essa raiva contra as instituições para obter o resultado infame. Se nada mais aconteceu, é porque a cúpula das Forças Armadas nunca aderiu aos chamados de Bolsonaro, embora oficiais de alta patente estivessem envolvidos na tentativa de golpe. Uma condenação como essa, rigorosa como necessário, é fundamental para que o estado democrático seja cada vez menos relativizado entre nós. ( Íntegra do texto publicado ontem no Globo)

Merval Pereira, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Comentarista político de O GLOBO e Presidente da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente em 01.07.23.

Inelegibilidade é castigo modesto para conjunto da obra de Bolsonaro

Ex-Presidente prometeu ressurgir como "cabo eleitoral de luxo", mas ainda tem contas a prestar com a Justiça

O ex-presidente Jair Bolsonaro após ser declarado inelegível pelo TSEO ex-presidente Jair Bolsonaro após ser declarado inelegível pelo TSE Douglas Magno/AFP

No voto que selou a inelegibilidade de Jair Bolsonaro, a ministra Cármen Lúcia afirmou que os atos do capitão expuseram uma “consciência de perverter”. A expressão foi cunhada pelo jurista italiano Francesco Carnelutti (1879-1965). Define a conduta de quem sabe não ter razão, mas age como se a tivesse.

Bolsonaro sabia que as urnas eletrônicas eram confiáveis e podiam ser auditadas. Sabia que seu código-fonte estava aberto a partidos e entidades fiscalizadoras. Sabia que a Justiça Eleitoral não tinha lado — e jamais se prestaria a participar de um complô para prejudicá-lo.

Apesar de saber disso tudo, o capitão tentou convencer os eleitores do contrário. De forma consciente, usou a estrutura da Presidência para propagar mentiras e teorias conspiratórias.

As urnas não foram o único alvo das fake news bolsonaristas. Enquanto esteve no poder, o ex-presidente recorreu ao mesmo expediente para fustigar as universidades, desacreditar a imprensa, acuar os defensores dos direitos humanos e do meio ambiente. A cada passo, buscou fabricar um novo inimigo. Assim manteve viva a aura de político antissistema, mesmo depois de subir a rampa e se instalar no centro do poder.

Foi na pandemia que a consciência de perverter produziu seus danos mais nocivos. Na contramão da ciência, o capitão sabotou as medidas de distanciamento, boicotou o uso de máscaras e liderou uma campanha de desinformação contra as vacinas.

Sua irresponsabilidade favoreceu o vírus e produziu milhares de mortes evitáveis. Esses crimes permanecem impunes graças à inércia da Procuradoria-Geral da República, que engavetou provas e se negou a denunciá-lo.

Ao condenar Bolsonaro, o TSE passou a mensagem de que todo poder tem limites. Um presidente que concorre à reeleição larga em vantagem, mas não pode ignorar a lei e achincalhar as instituições para se perpetuar na cadeira. O mandato não é salvo-conduto para desrespeitar as regras do jogo e conspirar contra a democracia.

A inelegibilidade é um castigo modesto para o conjunto da obra de Bolsonaro. Após o julgamento, o ex-presidente anunciou que seguirá na política como “cabo eleitoral de luxo”. Faltou lembrar que ele ainda responde a uma série de investigações criminais. O desfecho dos casos mostrará se o ministro Alexandre de Moraes estava certo quando disse que a Justiça pode ser cega, mas não é tola.

Partido Militar

O TSE absolveu o general Braga Netto, candidato a vice na chapa derrotada em 2022. Ele também estava na cena do crime eleitoral que motivou a condenação do aliado. Agora está livre para disputar as próximas eleições.

Além de Braga Netto, outros quatro generais participaram do comício no Alvorada. Três eram ministros do capitão: Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Paulo Sérgio Nogueira. O quarto, Luis Carlos Gomes Mattos, presidia o Superior Tribunal Militar.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é comentarista de política de O GLOBO. Publicado originalmente em 02.07.23

sábado, 1 de julho de 2023

Bolsonaro, enfim, é punido

O ex-presidente passou décadas desafiando a democracia impunemente, o que deu ares de legitimidade a seu golpismo; sua inelegibilidade é só o começo de um processo de saneamento


O ex-presidente Jair Bolsonaro foi declarado inelegível até 2030 (Foto: Douglas Magno / AFP)

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tornou Jair Bolsonaro inelegível pelos próximos oito anos. Trata-se de punição constitucional e necessária. Desde a redemocratização do País, ninguém havia tido o despautério de fazer o que Bolsonaro irresponsavelmente fez durante o mandato. De forma reiterada e ignorando seu compromisso de respeitar a Constituição, ele se valeu do cargo de presidente para tumultuar o processo eleitoral.

Bolsonaro nunca teve a intenção de aprimorar o sistema de votação, como alega. Se isso fosse verdade, ele teria, em primeiro lugar, que respeitar a competência do Congresso sobre o tema, e não desautorizar as instituições democráticas legitimamente constituídas, caso da Justiça Eleitoral. Como se sabe, ele fez o oposto, atacando insistentemente o processo eleitoral. O ápice foi a infame reunião de 18 de julho de 2022 com embaixadores estrangeiros.

Alega-se que, no limite, se tratou de genuíno exercício de liberdade de expressão. Ora, como já afirmamos diversas vezes nesta página, a liberdade de expressão não é um direito absoluto, sobretudo quando o propósito de quem se expressa não é o de dar uma opinião, e sim o de violentar a democracia. O leitmotiv evidente de Bolsonaro, coerente com toda a sua trajetória política, era o de disseminar a desconfiança nas urnas e gerar instabilidade no País, criando as condições para um eventual golpe. Felizmente, as instituições reagiram e, dentro da mais rigorosa legalidade, declararam o óbvio: quem afronta a democracia de tal forma deve ser impedido de se candidatar a cargo eletivo.

A inelegibilidade de Bolsonaro é medida justa e necessária, mas é preciso reconhecer: ela deveria ter vindo muitos anos antes. Há décadas o sr. Bolsonaro viola as regras básicas do regime democrático. Como deputado federal, ele quebrou várias vezes o decoro parlamentar e nunca respeitou a diversidade de opinião. Em um de seus arroubos, chegou a defender o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, ocasião em que este jornal exigiu sua cassação (ver o editorial Dejetos da democracia, de 8/1/2000).

A Constituição de 1988 fixou o critério: “É incompatível com o decoro parlamentar (...) o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional”. Sob pretexto da inviolabilidade civil e penal por opiniões, palavras e votos do art. 53 da Constituição, Bolsonaro falou durante anos as maiores barbaridades, sem a mínima consideração pelos limites da lei, o respeito ao outro ou os parâmetros da civilidade. Infelizmente, o Congresso omitiu-se em seu dever constitucional de retirar seu mandato. Ante a impunidade, Bolsonaro julgou-se autorizado a abusos cada vez maiores.

A inelegibilidade de Bolsonaro, portanto, se presta a proteger o regime democrático, mas as mais de três décadas de bolsonarismo impune deixaram como sua principal herança maldita a transformação do golpismo em discurso supostamente legítimo. Antes da ascensão de Bolsonaro ao poder, eram marginais e inexpressivas as manifestações públicas em defesa da volta das Forças Armadas ao poder, fantasma autoritário que parecia bem enterrado pela Constituição de 1988. No entanto, os quatro anos de Bolsonaro na Presidência deram verniz de legitimidade à hermenêutica golpista da Constituição, aquela que vê como legal a convocação de militares para intervir no Estado. A agitação sediciosa na frente dos quartéis e o assalto às sedes dos Três Poderes no 8 de Janeiro, bem como a eleição de muitos parlamentares simpáticos a uma ruptura democrática, são a prova incontestável do retrocesso causado pelo bolsonarismo.

Assim, a inelegibilidade de Bolsonaro, obviamente tardia, é apenas o começo de um longo processo de saneamento da política, absolutamente necessário diante da constatação de que o ex-presidente, malgrado ter sido um mau militar e um mau político, continua a ser considerado por muita gente como um potente cabo eleitoral. Ou seja, para evitar a recidiva autoritária, que costuma ser muito pior que a doença, a democracia precisa ter a capacidade de expurgar quem pretende destruí-la – e para isso nada mais poderoso do que seguir rigorosamente o que está na lei.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 01.07.23

Bolsonaro cavou a inelegibilidade com seus erros, Lula não pode cavar a volta de Bolsonaro

Não é prudente agir como se o ex-presidente estivesse morto politicamente com o afastamento das urnas por 8 anos


Presidente Lula na abertura do 26.º Encontro do Foro de São Paulo na noite de quinta-feira, 29 Foto: Wilton Junior/Estadão

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva está brincando com fogo, ao esquecer que na política, como na vida, nada como um dia atrás do outro. Assim como ele saiu da prisão, venceu as eleições e assumiu o terceiro mandato, não é prudente agir como se Jair Bolsonaro estivesse morto politicamente com a inelegibilidade por oito anos. Pode ser, pode não ser. E depende diretamente do próprio Lula.

A política, já diziam as velhas raposas mineiras, “é como as nuvens, você olha e ela está de um jeito, olha de novo e ela já mudou”. Com a asfixia do centro democrático e a polarização entre esquerda e direita, Lula empurrou o centro para Bolsonaro em 2018 e Bolsonaro empurrou para Lula em 2022. Agora, Lula corre o risco de jogá-lo de volta, ou para a “nova direita” pós-Bolsonaro, ou para o próprio Bolsonaro.

Com a asfixia do centro democrático e a polarização entre esquerda e direita, Lula empurrou o centro para Bolsonaro em 2018 e Bolsonaro empurrou para Lula em 2022

Com a asfixia do centro democrático e a polarização entre esquerda e direita, Lula empurrou o centro para Bolsonaro em 2018 e Bolsonaro empurrou para Lula em 2022 Foto: Werther Santana/Estadão

É incompreensível que Lula repita o general Ernesto Geisel e diga que “a democracia é relativa”, ache lindo ser rotulado como comunista, insista em elogiar o regime criminoso da Venezuela, faça reverências a Fidel Castro, Hugo Chávez e Nicolás Maduro e dê sinais a favor dos regimes autoritários de China e Rússia e contra as maiores democracias ocidentais, EUA e Europa. O que ele ganha com isso? E o Brasil?

O debate no Congresso, acompanhado com lupa pelos setores produtivo e financeiro, agronegócio e estudiosos da política é se Bolsonaro terá ou não condições de ser o que ele chama de “cabo eleitoral de luxo”. Sem mandato, caneta, verbas e sem projetar poder? Provavelmente, não. E suas motociatas não farão tanto barulho. Em 2022, ele tinha tudo isso, usou ao extremo e foi o primeiro presidente derrotado na reeleição.

Não há dúvida, porém, quanto a força da direita que emergiu com Bolsonaro e lhe deu 58 milhões de votos, depois de tudo: negação da Covid, educação, cultura, ciência, estatísticas, Amazônia, parcerias internacionais – e da própria democracia. Um fenômeno. Lula não pode desprezar.

Ao radicalizar, Lula trabalha contra ele e a favor do adversário, fortalecendo as versões de que vai implantar o comunismo e o Brasil vai virar uma Venezuela. É gol contra, tiro no pé, autoengano, seja o que for, mas o problema não é exclusivo de Lula e sim do País e dos democratas, que cobram responsabilidade e juízo para não alimentar os fantasmas que embalam autoritarismo, retrocesso, negacionismo.

No primeiro mandato, Lula disse que “não tinha o direito de errar”. Hoje, ele tem muito menos ainda, porque o inimigo é forte, veio para ficar e é uma ameaça para o País. Bolsonaro cavou a inelegibilidade com seus próprios erros, Lula não pode cavar a volta de Bolsonaro.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é Jornalista e comentarista de politica no telejornal EmPauta da Globo News. Publicado originalmente no O Estado de S. Paulo, em 01.07.23

O mundo mudou, Lula também precisa evoluir

Petista assumiu seu 3º mandato como nova esperança para o Brasil e o mundo. Por vezes ele cumpre as altas expectativas. Porém, ideias obsoletas e má assessoria são obstáculos frequentes, opina Philipp Lichterbeck.

Fazer sala para Nicolás Maduro (esq.) é um dos erros graves de Lula (Foto: Evaristo Sa/AFP/Getty Images)

A política mundial se transformou desde o fim do segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2011. Hoje, mais do que nunca, ela transita no campo de forças bipolar entre os Estados Unidos e a China.

Através do Inflation Reduction Act (IRA), os americanos mostraram com toda força que querem permanecer o número um da economia. Essa lei "anti-inflacionária" prevê na verdade investimentos gigantescos para modernizar a economia dos EUA, atrair empresas estrangeiras e impulsionar a transformação energética.

Ao mesmo tempo, a China cresce irrefreavelmente, no campo econômico e no militar; está cada vez mais moderna e também mais verde; seus produtos, cada vez melhores. Entre China e EUA, dificilmente há lugar para terceiros.

Quem quase não mudou desde 2011, foi Lula. Ele sonha com um papel mais influente e importante para o Brasil no palco global. Contudo, as possibilidades para tal são mais limitadas. Não é necessariamente a culpa de Lula: ele viaja muito, procura apresentar o país novamente como parceiro confiável, e estabelecê-lo como voz do "Sul Global".

Ocasionalmente ele tem sucesso, como na Cúpula para um Novo Pacto Financeiro Global de Paris, poucos dias atrás, ao chamar a atenção para a desigualdade no mundo. Ou ao criticar os europeus por quererem impor ao Brasil regras mais rigorosas do que estipulado no acordo de livre-comércio original entre a União Europeia e o Mercosul.

Faltam parcerias duradouras na América do Sul

O problema é que Lula não tem parceiros confiáveis, nem mesmo na América do Sul. Ele também segue á fatídica tradição de que no subcontinente não há alianças duradouras entre Estados, mas sim, no máximo, entre governos.

A cooperação entre Alemanha e França funciona, independente de quem ocupe o governo; a entre o Brasil e seus vizinhos, não. Com o presidente argentino Alberto Fernández, de esquerda, Lula se entende às mil maravilhas, mas assim que um conservador assumir o poder em Buenos Aires, acabaram-se os encontros entre camaradas. Assim não há como se fazer política externa de longo prazo.

Portanto se quer ser levado a sério como líder do "Sul Global", Lula precisa começar a forjar alianças na América do Sul, não obstante suas próprias simpatias, A cúpula do Unasul, em maio, foi um passo nessa direção. Lula pode sonhar em exercer seu poder de influência também na África ou na Ásia. No entanto, constata-se que de vez em quando ele subestima seu carisma atual.

O Brasil é levado a sério internacionalmente porque é um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, e porque tem petróleo e minério de ferro. Mas seria um grande erro querer permanecer no papel de exportador de matérias-primas. Se quiser ganhar peso internacional, o país deverá criar novas cadeias de valor no Brasil que sejam o mais ecológicas possível. No entanto, o governo Lula está distante da elaboração de uma política industrial sustentável.

Antes da catástrofe do bolsonarismo, o Brasil conquistou uma reputação como um ótimo mediador internacional, neutro e imparcial. Parece que Lula queria se manter fiel a essa imagem quando se recusou a tomar partido pela vítima na questão da guerra na Ucrânia. Mas foi, acima de tudo, ingênuo.

Lula aparentemente acredita, de fato, que diante de um agressor fascista, mentiroso e imperialista como Vladimir Putin, com uma batidinha no ombro e uma cervejinha ou vodca, fosse possível acordar uma paz aceitável para a Ucrânia e a Europa.

Há duas décadas Putin vem travando guerras em três continentes, ou manda seus mercenários travarem. Enquanto países antes neutros como a Finlândia e a Suécia entraram logo depois da invasão da Ucrânia para a Otan, Lula segue subestimando o agressor.

O mesmo Lula num mundo novo?

O fato de, na questão da Rússia, não se guiar por assessores mais jovens, mas sim pelo octogenário Celso Amorim – o qual, como todo velho esquerdista, parece partir do princípio de que os EUA são os únicos responsáveis por todo o mal no mundo – custou a Lula capital considerável nas democracias ocidentais.

O presidente brasileiro, é claro, age em concordância com os demais países do Brics – o qual inclui também a agressora Rússia. Mesmo assim, é preciso se perguntar o que realmente une o Brics. A ditadura capitalista estatal da China tem interesses totalmente diversos daqueles da cada vez mais caótica África do Sul, ou da nação mais populosa do mundo, a Índia.

A ideia do Brics de estabelecer uma moeda alternativa ao dólar é, em si, boa, mas deverá levar anos até ser implementada, e aí será sob medida para os interesses chineses. E o Brasil já corre perigo permanente de dependência demasiada em relação a Pequim.

O segundo grande erro de petista foi fazer a corte ao ditador venezuelano Nicolás Maduro. A esquerda brasileira não pode, a sério, execrar Jair Bolsonaro e condenar as ideias golpistas de seus adeptos, e ao mesmo tempo fazer sala a um antidemocrata e militarista muito pior, e líder de um regime de repressão. Torna Lula extremamente inconvincente.

Relações equilibradas com a Venezuela: sim. Cortejar o regime Maduro e disseminar fake news de supostas "narrativas": não. Também aqui cabe se perguntar quem está assessorando Lula.

O presidente brasileiro quer aumentar o peso do Brasil no mundo. No próximo ano, quando o Brasil ocupa a presidência do G20, ele terá a chance de provar que não só o mundo, mas também ele evoluiu.

Philipp Lichterbeck, o autor deste artigo, é correspondente e colunista da Deutsche Welle Brasil. O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW. Publicado originalmente em 01.07.23

Antes tarde que nunca: enfim impõem-se limites a Bolsonaro

Punição ao ex-presidente chega com anos de atraso, confirmando impressão de que o Judiciário brasileiro só se atreve a tocar em políticos em declínio. Uma democracia bem fortificada, porém, deveria agir mais cedo.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (Foto: Oslaim Brito/TheNEWS2/picture alliance)

Com 5 votos a 2, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) condenou Jair Messias Bolsonaro. A maioria dos juízes entendeu que o então presidente cometeu abuso de poder político em 18 de julho de 2022, quando disse mentiras sobre o sistema eleitoral brasileiro a embaixadores estrangeiros especialmente convidados. Segundo ele, as urnas teriam seriam fraudadas para favorecer seu principal adversário, Luiz Inácio Lula da Silva, e a Justiça Eleitoral seria parte da conspiração.

As fake news de Bolsonaro sobre as urnas supostamente manipuladas copiaram as de seu ídolo Donald Trump. E tanto nos Estados Unidos como no Brasil, uma multidão foi instigada pelas teorias da conspiração a invadir o Capitólio e a Praça dos Três Poderes, respectivamente. No caso de Bolsonaro, a violência de 8 de janeiro de 2023 fez com que o lento e preguiçoso TSE finalmente agisse rapidamente. Bolsonaro está fora do cargo há apenas seis meses.

Ainda assim, o Judiciário reagiu tarde demais. Durante mais de 30 anos, permitiu-se que o populista de direita realizasse sua sabotagem contra a democracia sem ser perturbado, primeiro no Congresso e depois no Palácio do Planalto. Ele agrediu verbalmente seus adversários, pediu o assassinato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e insultou Dilma Rousseff da pior forma possível durante a votação do impeachment, dedicando seu voto ao repugnante carrasco Brilhante Ustra.

Mesmo como presidente ele disseminou notícias falsas sem ser incomodado, destruindo deliberadamente a confiança de milhões de pessoas nas instituições e causando milhares de mortes adicionais pelo coronavírus. E ninguém impediu o incendiário. O fato de o Judiciário ter se oposto às fantasias golpistas do então presidente no final de seu mandato deve-se exclusivamente ao presidente do TSE, Alexandre de Moraes, que não se deixou intimidar por Bolsonaro e sua turba raivosa.

Bolsonaro não poderá disputar eleições por oito anos. Isso se a sentença proferida nesta sexta-feira (30/06) resistir a eventuais recursos da defesa, inclusive ao Supremo Tribunal Federal (STF). O próprio Bolsonaro parece ter pouca esperança, como mostra seu discurso de vítima. A iniciativa de parlamentares leais a ele de apresentar uma lei especificamente para salvar seu direito de disputar eleições também promete pouco sucesso.

Registro indigno para o cargo de presidente

Até a derrota apertada para Lula em outubro passado, Bolsonaro não apenas havia vencido todas as eleições que disputou, mas também ajudou toda a sua família – filhos e ex-mulheres – e numerosos aliados a obter vitórias nas urnas. E, assim, garantiu-lhes acesso a todos os benefícios da democracia brasileira: levou dezenas de parentes e associados a cargos estatais bem remunerados, por meio dos quais eles provavelmente tiveram que ceder parte de seus salários ao clã Bolsonaro. Os casos de parasitismo conhecidos como "rachadinha" precisam ser urgentemente investigados pelo Judiciário. Será que as Cortes se atreverão?

Bolsonaro ainda é alvo de outros 15 processos no TSE relacionados à campanha eleitoral de 2022. Mas o ex-militar também tem que responder por suas fake news sobre a covid-19, pelo escândalo do desvio de joias no valor de milhões de dólares e por tentativa de subversão. É um registro completamente indigno para o cargo de presidente que Bolsonaro tem a mostrar depois de quatro anos no comando do país. O Judiciário poderia ter poupado a democracia brasileira se tivesse agido de forma mais rápida e consistente. De qualquer forma, o julgamento proferido agora ainda pode quebrar o gelo e dar coragem aos demais juízes para condenarem Bolsonaro em outras ações.

Políticos intocáveis em seu auge

Contudo, permanece a impressão de que os tribunais só se atrevem a tocar em políticos que estão em declínio. Já havia sido o caso de Lula, que não foi prejudicado pelo escândalo do Mensalão em 2006, quando sua popularidade era alta. Então em 2017, quando o político aposentado estava manchado por anos de fogo constante da mídia em torno do escândalo da Lava Jato, vieram as condenações. Como os ventos políticos voltaram a favorecer Lula, ele não tem nada a temer do Judiciário. É claro que isso cheira a oportunismo.

Também entre os apoiadores de Bolsonaro, há a sensação de que o Judiciário não está agindo tão cegamente – e, portanto, imparcialmente – como deveria. Para eles, a condenação de Bolsonaro é mais uma prova da suposta corrupção do sistema.

Esse é o reflexo de o judiciário não ter tomado medidas consistentes contra Bolsonaro anos atrás. Como diz o ditado: é preciso cortar o mal pela raiz.

Thomas Milz, o autor deste artigo, é  Jornalista e fotógrafo. Publicado originalmente pela Deutsche Welle Brasil, em 30.06.23. O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW. / Thomas Milz saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.

Após seis meses de Lula, qual é o Brasil que voltou à cena?

Política externa e falas do petista provocaram alguma decepção em países do Ocidente, em especial sobre Ucrânia. Mas acordo com União Europeia e projeção ambiental podem trazer frutos – se a política interna permitir.

Lula durante reunião de cúpula do G7Foto: Ludovic Marin/AFP/Getty Images

O Brasil voltou, estamparam diversos jornais estrangeiros no final de 2022, após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva. A frase havia sido dita pelo próprio em novembro na COP27, no Egito, e nas semanas seguintes serviu como uma luva para diplomatas e analistas resumirem a expectativa de reinserção internacional do país, após anos de relações difíceis da gestão Jair Bolsonaro com democracias liberais do Ocidente.

Mas qual Brasil voltaria ao palco internacional ainda era, àquela época, uma imagem pouco clara – turvada pelo guarda-chuva abrangente de defesa da democracia, que marcou a campanha do petista, e pela alta expectativa de agentes políticos do Ocidente, que já conheciam Lula de seus governos anteriores e ansiavam por um aliado confiável na América Latina para ajudar a resolver problemas globais, como a mudança climática e a ameaça da ultradireita.

Seis meses após a posse do petista, que incluíram visitas suas a 12 países, a imagem está mais nítida.

O Brasil que voltou não é um aliado de toda hora do Ocidente, e isso ficou especialmente claro em declarações e ações de Lula sobre a guerra na Ucrânia, um evento histórico que renovou a importância da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e foi definido como uma virada de época pelo chanceler federal alemão, Olaf Scholz.

O Brasil também não está disposto a aceitar as novas condições ambientais da União Europeia (UE) para assinar rapidamente o tratado de livre comércio com o Mercosul, que pode criar a maior zona de livre comércio do mundo e oferecer aos europeus uma vantagem geopolítica diante da nova Guerra Fria entre Estados Unidos e China.

E, como nos dois primeiros governos Lula, o atual segue interessado em transformar a ordem mundial no sentido da multipolaridade e na redução da hegemonia de Washington. Desde o início do ano, o presidente brasileiro vem, por exemplo, manifestando o desejo de que o dólar deixe de ser a moeda de referência nas trocas comerciais entre países.

Por esses motivos, surgiram alguns sinais de decepção em países ocidentais com o petista. Reportagem publicada pelo jornal britânico Financial Times na última semana sobre uma campanha de bastidores feita em 2022 pela Casa Branca para pressionar políticos e militares brasileiros a respeitarem o resultado das urnas identificou ressentimento e fricção de autoridades americanas com Lula, sendo as críticas do petista ao dólar um dos itens mencionados.

Também na semana passada, o jornal francês Libération colocou Lula na sua capa, sob o título "Lula, a decepção", dizendo que o brasileiro seria um "falso amigo do Ocidente" – especialmente pelo seu posicionamento sobre a guerra na Ucrânia.

Mesmo assim, o Brasil sob Lula segue sendo visto pelas potências ocidentais como um ator relevante e que deve ser ouvido sobre grandes questões como a mudança climática e a reforma das organizações internacionais, e o acordo Mercosul-UE ainda tem chances de acontecer. Entenda os principais pontos do que está em jogo.

Fora da disputa EUA-China

A principal diferença geopolítica entre o mundo que existia nos primeiros governos Lula, de 2003 a 2010, e o atual é a consolidação da China como superpotência e a reação dos Estados Unidos à ameaça de sua hegemonia.

Washington tem reagido às ambições de Pequim com ações concretas, como proibindo empresas americanas de venderem chips sofisticados para a China ou reforçando seu apoio à autonomia de Taiwan. Em outros países ocidentais, como a Alemanha, Pequim também é hoje vista mais como rival do que como parceira.

O Brasil tem laços profundos com os Estados Unidos, que é seu segundo maior parceiro comercial. Mas também tem interesses enormes na China, seu maior parceiro comercial e destino de quase 30% de suas exportações. Lula foi aos Estados Unidos em fevereiro, e à China, com uma comitiva maior, em abril.

Nesse embate, não interessa a Brasília assumir claramente um lado, diz Peter Birle, diretor científico do Instituto Iberoamericano (IAI) em Berlim e diretor alemão do Centro Mecila, um projeto de cooperação científica entre Brasil e Alemanha sediado em São Paulo.

"O governo [Joe] Biden está tratando de construir um mundo bipolar novamente, mas para o Brasil isso não traz ganhos. O governo brasileiro quer tratar com ambos", afirma.

Lula e Joe BidenLula e Joe Biden

Lula e Biden. O Brasil tem laços fortes com os Estados Unidos, que é seu segundo maior parceiro comercial. Mas também com a China.Foto: Jonathan Ernst/REUTERS

Estabilidade x transformação da ordem global

Outro movimento em curso na cena global é a consolidação de vozes críticas à governança atual de organismos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.

A criação dos Brics, que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, durante o governo anterior de Lula, indicou uma contestação a esse modelo, e hoje o grupo – apesar dos interesses muito heterogêneos entre seus membros – tem um banco internacional de fomento e é sondado por outras nações que querem aderir a ele.

"O Ocidente gostaria de ter o Brasil como um membro da sua coalizão, mas não é isso que o Brasil quer. Os Estados Unidos e a União Europeia estão pensando mais na estabilidade do sistema global atual, enquanto o Brasil e outros países têm muito mais interesse em mudanças", diz Birle.

Para Günther Maihold, professor do Instituto de Estudos Latino-Americanos (LAI) da Universidade Livre de Berlim, as expectativas entre líderes do Ocidente depositadas sobre o brasileiro realmente eram "altas demais".

"Havia a imagem de um 'santo Lula' que seria um novo amigo e aliado do Ocidente, e muitos esperavam que ele poderia fazer uma intermediação entre o G7 [grupo das sete democracias liberais mais industrializadas do mundo] e os Brics", diz. Ao contrário disso, afirma, Lula tem sido cauteloso para não definir a presença internacional do Brasil nessa chave.

Lula e Xi Jinping. Brasília não quer tomar lado nas disputas entre China e EUAFoto: Ken Ishii/Kyodo/AP/dpa/picture alliance

A reforma da governança global foi discutida em um encontro em Paris na semana passada, do qual Lula participou. O presidente francês, Emmanuel Macron, expressou alguma simpatia pela visão dos países do Sul Global em entrevista à CNN, e disse ver um risco de "divisão global", acentuado pela guerra na Ucrânia, devido a uma dinâmica de "o Ocidente contra o resto" – promovida, segundo ele, "por alguns países importantes".

O francês afirmou entender a crítica de alguns países de que haveria um "duplo padrão" adotado pelo Ocidente, que teria vultosos recursos para a guerra na Ucrânia, mas não tanto para o combate à pobreza e às mudanças climáticas. E pontuou que seria necessário um "novo consenso" mundial para evitar a criação de uma "ordem multilateral alternativa" com novos organismos internacionais.

Renegociação do acordo Mercosul-UE

Outro tema central da diplomacia da gestão Lula tem sido o acordo Mercosul-UE. O texto foi fechado em 2019 e ainda precisa ser ratificado pelos países-membros, mas há obstáculos.

O processo de ratificação foi paralisado durante o governo Bolsonaro, devido à preocupação dos europeus com o aumento do desmatamento da Amazônia e a pressão de setores da sua agropecuária receosos com a competição dos produtos do Mercosul.

Em março, a UE enviou ao Mercosul uma carta adicional pedindo a inclusão no texto de mais compromissos ambientais e sanções em caso de descumprimento. Além disso, em maio o bloco europeu aprovou uma nova lei antidesmatamento que proíbe a importação de produtos oriundos de áreas de florestas tropicais desmatadas após dezembro de 2020.

As duas iniciativas desagradaram o governo brasileiro, que considerou que elas alteram o equilíbrio do acordo ao criar mais obrigações apenas para um dos lados – exportadores brasileiros, por exemplo, teriam que comprovar que não houve desmatamento associado aos seus produtos e arcar com os custos de devida diligência.

Por outro lado, Lula também manifestou contrariedade com o item do acordo sobre compras governamentais, que autoriza empresas europeias a participar de licitações públicas nos países do Mercosul em condições de igualdade com as empresas locais. Segundo o brasileiro, isso prejudicaria as pequenas e médias empresas no Brasil.

Lula e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der LeyenFoto: Dati Bendo/EU

O Mercosul deve enviar uma resposta à UE em julho. A secretária de Comércio Exterior do governo brasileiro, Tatiana Prazeres, afirmou ao jornal Valor Econômico que Brasília pretende negociar os critérios de devida diligência para reduzir os custos para os exportadores nacionais que pretendam cumprir as exigências dos europeus.


Ela também explicitou a dinâmica das negociações: após os europeus reabrirem o debate sobre o acordo com novas demandas ambientais, o governo brasileiro optou por "espelhar a abordagem" a reabrir o debate sobre compras governamentais.


Maihold, do LAI, diz que o Brasil não é o único país a criticar a lei antidesmatamento da UE, em função da forma como o bloco europeu definiu padrões que devem ser "impostos" a outros países sem oferecer espaço para a "negociação ou construção de consensos".


Ele pondera que, além de aparar arestas com o Mercosul nesse ponto, faltará à UE construir consenso interno sobre o acordo, em especial diante dos produtores agropecuários de países como França e Áustria, que são mobilizados politicamente e críticos ao texto.


Birle, do IAI, é cético sobre a possibilidade de o acordo ser concluído neste ano, conforme é o desejo manifestado por Lula e pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. "A França tem uma agricultura muito importante e militante, e não acho que a Alemanha vá arriscar um conflito com a França sobre o acordo com o Mercosul. Por outro lado, Lula diz que não quer aceitar a participação das empresas europeias nas licitações, mas isso será muito difícil pois faz parte do acordo", diz.

Falas simpáticas à Rússia sobre Ucrânia

A postura de Lula sobre a invasão russa à Ucrânia é até aqui o ponto de maior estranhamento entre Brasília e os países do Ocidente. E isso se deve especialmente por declarações do petista, que em diversos momentos transmitiram uma proximidade maior ao agressor Moscou do que com a Kiev atacada.

A posição oficial do Brasil sobre a guerra é de neutralidade no conflito, no sentido de que o país não participa enviando armas ou munições. Ao mesmo tempo, Brasília defende o princípio da integridade territorial e é contra a violação de fronteiras internacionais, e foi o único país dos Brics a votar a favor de resolução da ONU pela retirada das tropas russas da Ucrânia.

No entanto, Lula, em mais de uma oportunidade, equiparou a responsabilidade da Ucrânia à da Rússia pelo início da guerra, e acusou os EUA e a UE de prolongarem o conflito no Leste Europeu, o que foi rebatido pela Casa Branca e por Bruxelas.

O petista também foi criticado por ter mantido contato frequente com o governo russo nos primeiros meses de seu governo, ao passo que só no final de abril decidiu enviar um representante a Kiev – apesar de Lula se apresentar como possível mediador do conflito.

Birle, do IAI, diz compreender a postura oficial de neutralidade do Brasil, coerente com sua tradição de política externa e pelo fato de a guerra na Ucrânia não representar para os brasileiros uma ameaça tão grande como para os europeus, mas critica as declarações do petista sobre o tema.

"Nunca esperaria uma participação ativa do Brasil nessa coalizão [pró-Ucrânia]. Mas há uma decepção quando Lula diz algumas coisas tomando mais parte da Rússia do que da Ucrânia", afirma. "Entendo que ele não tem interesse em ter um conflito com a Rússia ou a China, mas algumas vezes seria melhor não dizer nada do que dizer muita coisa."

A ministra do Exterior da Alemanha, Annalena Baerbock, em uma visita a São Paulo no início do mês, também disse compreender que a população da América Latina tenha percepções diferentes sobre os riscos causados pela invasão da Ucrânia pela Rússia, e que o conflito não esteja no topo das preocupações de muitos brasileiros que sofrem com alta do preço dos alimentos. 

Mas ela aproveitou a ocasião para transmitir a posição alemã sobre o tema e a expectativa de Berlim de que os países latino-americanos adotassem uma posição mais ativa contra as ações da Rússia na Ucrânia. "Segurança e desenvolvimento não são opostos, são mutuamente dependentes. E se ignorarmos uma violação tão brutal da carta das Nações Unidas, a ordem internacional baseada em regras, então não apenas o agressor prevalecerá, mas o livre comércio também não terá mais chance", disse.

A ida de Baerbock ao Brasil foi a mais recente de uma série de visitas de autoridades alemães ao país neste ano, que incluíram o presidente Frank-Walter Steinmeier, para a posse de Lula, e o chanceler federal Olaf Scholz e a ministra da da Cooperação Econômica e do Desenvolvimento, Svenja Schulze, em janeiro.

Para Maihold, do LAI, as declarações de Lula sobre a Ucrânia "não foram os melhores momentos da política externa brasileira" e "não contribuíram para o Brasil construir uma reputação para uma eventual mediação".

"Acho que Lula está de alguma forma tentando manter uma solidariedade com a Rússia por ser membro do Brics, e ao mesmo tempo há uma crítica histórica aos países do Ocidente – mas isso acaba misturado em declarações que não ajudam." Ele também não identifica que tipo de contribuição concreta Lula poderia dar para uma solução do conflito.



Lula e o chanceler federal da Alemanha, Olaf ScholzFoto: Kay Nietfeld/dpa/picture alliance

Calendário tem oportunidades, mas política interna traz riscos

Lula ainda tem pela frente 42 meses do atual governo, e contará com três oportunidades para projetar sua política externa. Em 1º de dezembro, o Brasil assumirá por um ano a presidência temporária do G20 [grupo das maiores economias do mundo mais a UE], e organizará uma cúpula do grupo no Rio de Janeiro em novembro de 2024.

Em 2025, Brasília exercerá a presidência dos Brics e também organizará uma cúpula. No mesmo ano, o Brasil sediará a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30), em Belém do Pará – e o tema ambiental é onde o Brasil tem, por essência, sua maior capacidade de projeção global.

No entanto, a resiliência de Lula em fóruns internacionais ainda está para ser provada. A novidade do Brasil está de volta já arrefeceu a esta altura, e o petista terá que mostrar resultados concretos de seu governo – que enfrenta um equilíbrio frágil com um Congresso mais poderoso e conservador do que nas suas gestões anteriores.

Maihold, do LAI, aponta que essa é uma diferença fundamental que influencia sua atuação externa. No período de 2003 a 2010, diz, Lula conseguiu projetar o Brasil no mundo a partir do sucesso doméstico de suas políticas sociais e econômicas. "Agora a situação é na direção inversa: Lula está tentando obter reputação internacional para, de alguma forma, facilitar a solução de seus problemas internos", afirma.

"Há uma extrema polarização interna, o Brasil está em uma situação de baixo crescimento e o que ele está oferecendo à comunidade internacional não necessariamente conseguirá implementar. Vimos isso no marco temporal das terras indígenas", disse. "Ele precisa conseguir lidar com a situação interna, senão será deslegitimado no âmbito externo."

Bruno Lupion, o autor desta reportagem, é repórter da Deustsche Welle Brasil. Publicado originalmente em 01.07.23

Por todos nós, Bolsonaro nunca mais!

Pelos humilhados de todas as humilhações, pelos deserdados das imensas riquezas de um país sumamente injusto, pelos que tem fome de comida e sede de justiça, pelos sem teto, pelos que trazem nos olhos tristes a visão secular do racismo e do preconceito social, pelas mãos calosas e os rostos vincados de nossos trabalhadores.

Ex-presidente Jair Bolsonaro fala em injustiça em coletiva em Belo Horizonte (Foto: Douglas Magno / AFP) - AFP

Pelas corajosas mulheres brasileiras, por nossos irmãos pretos, indígenas, LGBTQIA+, pelas crianças que descalças e maltrapilhas perambulam nas esquinas estendendo-nos mãos e estômagos vazios, pelos quase 800 mil brasileiros que morreram de COVID enquanto a besta-fera negava a epidemia e achacava os laboratórios internacionais da vacina, pelo verde de nossa potência ambiental, a Amazônia, pela resistência de seus caboclos, pela garra de nossos adoráveis e fortes nordestinos, pelo futuro que nós teimaremos sempre em construir, pelo fim da bandidagem na vida pública. 

Por nossos artistas perseguidos e espezinhados pelos fascistas, por nossa cultura, por Drummond, por Portinari, por Jobim, por Villa-Lobos, por Cartola, por Luiz Gonzaga, por Tarsila e por Clementina.

Pelos nossos sábios, por César Lattes, por Josué de Castro, por Paulo Freire, por Darcy Ribeiro e por Milton Santos. 

Pelas bençãos de Deus, pela força dos Orixás, pelo machado de Xangô, pela graça de Nossa Senhora da Aparecida, doce madrinha de nossa Pátria, pela fé que não nos abandonou e nos anima.

Pelos heróicos pracinhas da FEB nos campos da Itália (os que voltaram e os que repousam no cemitério de Pistóia), pelos Emboabas, pelos Cabanos, pelos Inconfidentes e o corpo de Tiradentes esquartejado pelas vielas de Ouro Preto, pelo Conselheiro e pelo povo de Canudos, pelo Contestado, por Zumbi e seu heróico quilombo, por João Cândido, o Almirante Negro, pela epopéia da coluna Prestes, pela coragem e a dor dos supliciados, torturados, mortos e desaparecidos pela ditadura militar de 64, pela memória de todos eles.

Pelo carinho aos amigos, pelo amor dos meus netos e pelas lágrimas que agora verto: BOLSONARO NUNCA MAIS! 

Ruy Nogueira, o autor deste artigo, é publicitário, mineiro, 60 anos.