Ex-presidente vai enfrentar o dispositivo da legal criado em 2021, a Lei de Defesa do Estado Democrático, que pode levar à condenação na Justiça Comum; artigo faz da incitação ao golpe um crime
Jair Bolsonaro no aeroporto de Brasília na manhã desta quinta-feira, 29, antes de ser julgado pelo TSE Foto: WILTON JUNIOR
Quase ninguém percebeu quando o Congresso aprovou a Lei de Defesa do Estado Democrático que um novo tipo penal estava sendo criado. Acrescido ao artigo 286 do Código Penal, havia uma nova modalidade de incitação ao crime, incorrendo na mesma pena dele “quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade”.
É a sombra deste artigo que, depois do julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), vai se aproximar da cabeça do ex-presidente Jair Bolsonaro. No Supremo Tribunal Federal (STF) ninguém esqueceu que o subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos pediu, no dia 13 de janeiro, a inclusão de Bolsonaro na investigação sobre a intentona do dia 8 de janeiro, em Brasília. Usou para tanto a representação de 80 procuradores contra o ex-presidente que, no dia 10 de janeiro, publicou vídeo no Facebook no qual se dizia que “Lula não foi eleito pelo povo, ele foi escolhido e eleito pelo STF e TSE”.
O vídeo afirmava ainda que o adversário de Bolsonaro “não foi eleito pelo povo brasileiro”. “Lula foi escolhido pelo serviço eleitoral, pelos ministros do STF e pelos ministros do Tribunal Superior Eleitoral.” Para o Ministério Público Federal não há dúvida de que, apenas dois dias depois da tresloucada tomada da sede dos Três Poderes, a mensagem de Bolsonaro incitava “novos atos de insurgência civil contra os Poderes da República, de modo a configurar o crime previsto no art. 286, parágrafo único, do Código Penal”.
O constitucionalista Oscar Vilhena, que participou da comissão que debateu o projeto da Lei de Defesa do Estado Democrático, afirma que a lei, a partir de então, passou a punir as vivandeiras que buscam provocar extravagâncias no poder militar. “Antes, quando as vivandeiras se manifestavam, a lei não dispunha de meios para punir essa conduta. Agora tem.” Para ele, não se restringiu a liberdade de expressão em nome de um discurso autoritário, mas se definiu que não se pode incitar as Forças Armadas a dar um golpe.
Vilhena cita ainda dois outros artigos da lei que ajudaram a defender a democracia. O que definiu como crime tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais e ainda o que tornou um delito a ação de impedir ou perturbar a eleição ou a aferição de seu resultado, mediante violação indevida de mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação estabelecido pela Justiça Eleitoral.
Para Vilhena, com a introdução desses dispositivos na legislação penal, o sistema de defesa da democracia ficou fortalecido, paradoxalmente, por um Congresso conservador, em uma conjuntura política caracterizada por ataques permanentes por parte do próprio presidente da República e seus apoiadores. É diante dessa nova realidade que Bolsonaro vai ter de prestar contas.
Como não se pode alegar desconhecimento da lei, Bolsonaro terá de responder à Polícia Federal e, eventualmente à Justiça, o significado de mensagens encontradas no celular do ex-capitão Ailton Barros. Preso e acusado de participar do esquema de falsificação de certificados de vacinação contra a covid-19, Barros enviou, por exemplo, para seu contato PR1, que os investigadores acreditam ser o então Presidente da República, no qual dizia. “Vamos acampar em Brasília até os 11 ministros do STF saírem de suas cadeiras!”
Entre as pautas que ele deseja incluir em uma manifestação em Brasília estava um xingamento ao ministro Alexandre de Moraes, o Supremo tribunal Federal (STF): “Bicha velha, pelancuda na questão das urnas eletrônicas”. Em outra mensagem, ele dizia: “Bom dia PR quer que eu ligue ou já safou? Apaguei ‘pq’ já peguei orientação com o Cidinho” Cidinho é o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ex-chefe da ajudância de ordens do presidente, também preso sob a acusação de fraude nas carteiras de vacinação.
Cid é também investigado no inquérito do Supremo que apura as chamadas milícias digitais e deve depor na próxima semana na CPMI do 8 de janeiro, que investiga os atos golpistas. Foi Cid quem manteve conversas com o coronel Jean Lawand Junior após as eleições de 2022 no qual o militar incitava o ajudante de ordens a convencer Bolsonaro a dar o golpe. “Mas o Pr (presidente) não pode dar uma ordem... se ele não confia no ACE (Alto Comando do Exército).” Ou seja, vontade não faltaria, o que não haveria eram as condições para que o golpe fosse dado.
O tenente-coronel Cid foi o chefe da Ajudância de ordens de Bolsonaro Foto: Dida Sampaio
Ora, se o Alto Comando não era confiável para os golpistas, era necessário incitar outras pessoas a cometer o golpe. Daí a ideia do coronel Lawand – errada – de que do general de divisão para baixo todos os militares estariam disponíveis para a aventura. Havia resistência e ela não era apenas dos generais de quatro estrelas. E, apesar de oficiais bolsonaristas terem estimulado coronéis a passarem por cima dos generais para dar o golpe, nenhuma das mais de 600 unidades militares se rebelou.
Aos federais, Bolsonaro disse não saber que orientações que Cid repassou a Barros. Também negou que tivesse conhecimento de que o ex-major estivesse participando de tratativas para um golpe de estado em razão do resultado das eleições de 2022. E ressaltou que não concordava “com qualquer tratativa nesse sentido”. Tarde demais? Quem conhece Brasília se lembra de uma frase de Ulysses Guimarães.
O cacique do PMDB dizia aos colegas que eleições têm as suas incertezas. E é por isso que o Palácio do Planalto e o Congresso têm suas rampas. A cada quatro anos, pode-se subi-la, mas também descê-la. Assim é a vida dos eleitos. E completava que os ocupantes do Legislativo e do Executivo não podiam esquecer uma lição sobre o Judiciário: “Do outro lado da Praça dos Três Poderes não existe rampa”.
Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é jornalista especializado na cobertura para O Estado de S. Paulo das relações entre o poder civil e o poder militar. Publicado originalmente em 30.06.23, às 20h22