sexta-feira, 30 de junho de 2023

Bolsonaro inelegível acerta contas com Código Eleitoral e agora terá encontro com Código Penal

Ex-presidente vai enfrentar o dispositivo da legal criado em 2021, a Lei de Defesa do Estado Democrático, que pode levar à condenação na Justiça Comum; artigo faz da incitação ao golpe um crime

Jair Bolsonaro no aeroporto de Brasília na manhã desta quinta-feira, 29, antes de ser julgado pelo TSE Foto: WILTON JUNIOR

Quase ninguém percebeu quando o Congresso aprovou a Lei de Defesa do Estado Democrático que um novo tipo penal estava sendo criado. Acrescido ao artigo 286 do Código Penal, havia uma nova modalidade de incitação ao crime, incorrendo na mesma pena dele “quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade”.

É a sombra deste artigo que, depois do julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), vai se aproximar da cabeça do ex-presidente Jair Bolsonaro. No Supremo Tribunal Federal (STF) ninguém esqueceu que o subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos pediu, no dia 13 de janeiro, a inclusão de Bolsonaro na investigação sobre a intentona do dia 8 de janeiro, em Brasília. Usou para tanto a representação de 80 procuradores contra o ex-presidente que, no dia 10 de janeiro, publicou vídeo no Facebook no qual se dizia que “Lula não foi eleito pelo povo, ele foi escolhido e eleito pelo STF e TSE”.

O vídeo afirmava ainda que o adversário de Bolsonaro “não foi eleito pelo povo brasileiro”. “Lula foi escolhido pelo serviço eleitoral, pelos ministros do STF e pelos ministros do Tribunal Superior Eleitoral.” Para o Ministério Público Federal não há dúvida de que, apenas dois dias depois da tresloucada tomada da sede dos Três Poderes, a mensagem de Bolsonaro incitava “novos atos de insurgência civil contra os Poderes da República, de modo a configurar o crime previsto no art. 286, parágrafo único, do Código Penal”.

O constitucionalista Oscar Vilhena, que participou da comissão que debateu o projeto da Lei de Defesa do Estado Democrático, afirma que a lei, a partir de então, passou a punir as vivandeiras que buscam provocar extravagâncias no poder militar. “Antes, quando as vivandeiras se manifestavam, a lei não dispunha de meios para punir essa conduta. Agora tem.” Para ele, não se restringiu a liberdade de expressão em nome de um discurso autoritário, mas se definiu que não se pode incitar as Forças Armadas a dar um golpe.

Vilhena cita ainda dois outros artigos da lei que ajudaram a defender a democracia. O que definiu como crime tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais e ainda o que tornou um delito a ação de impedir ou perturbar a eleição ou a aferição de seu resultado, mediante violação indevida de mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação estabelecido pela Justiça Eleitoral.

Para Vilhena, com a introdução desses dispositivos na legislação penal, o sistema de defesa da democracia ficou fortalecido, paradoxalmente, por um Congresso conservador, em uma conjuntura política caracterizada por ataques permanentes por parte do próprio presidente da República e seus apoiadores. É diante dessa nova realidade que Bolsonaro vai ter de prestar contas.

Como não se pode alegar desconhecimento da lei, Bolsonaro terá de responder à Polícia Federal e, eventualmente à Justiça, o significado de mensagens encontradas no celular do ex-capitão Ailton Barros. Preso e acusado de participar do esquema de falsificação de certificados de vacinação contra a covid-19, Barros enviou, por exemplo, para seu contato PR1, que os investigadores acreditam ser o então Presidente da República, no qual dizia. “Vamos acampar em Brasília até os 11 ministros do STF saírem de suas cadeiras!”

Entre as pautas que ele deseja incluir em uma manifestação em Brasília estava um xingamento ao ministro Alexandre de Moraes, o Supremo tribunal Federal (STF): “Bicha velha, pelancuda na questão das urnas eletrônicas”. Em outra mensagem, ele dizia: “Bom dia PR quer que eu ligue ou já safou? Apaguei ‘pq’ já peguei orientação com o Cidinho” Cidinho é o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ex-chefe da ajudância de ordens do presidente, também preso sob a acusação de fraude nas carteiras de vacinação.

Cid é também investigado no inquérito do Supremo que apura as chamadas milícias digitais e deve depor na próxima semana na CPMI do 8 de janeiro, que investiga os atos golpistas. Foi Cid quem manteve conversas com o coronel Jean Lawand Junior após as eleições de 2022 no qual o militar incitava o ajudante de ordens a convencer Bolsonaro a dar o golpe. “Mas o Pr (presidente) não pode dar uma ordem... se ele não confia no ACE (Alto Comando do Exército).” Ou seja, vontade não faltaria, o que não haveria eram as condições para que o golpe fosse dado.

O tenente-coronel Cid foi o chefe da Ajudância de ordens de Bolsonaro Foto: Dida Sampaio

Ora, se o Alto Comando não era confiável para os golpistas, era necessário incitar outras pessoas a cometer o golpe. Daí a ideia do coronel Lawand – errada – de que do general de divisão para baixo todos os militares estariam disponíveis para a aventura. Havia resistência e ela não era apenas dos generais de quatro estrelas. E, apesar de oficiais bolsonaristas terem estimulado coronéis a passarem por cima dos generais para dar o golpe, nenhuma das mais de 600 unidades militares se rebelou.

Aos federais, Bolsonaro disse não saber que orientações que Cid repassou a Barros. Também negou que tivesse conhecimento de que o ex-major estivesse participando de tratativas para um golpe de estado em razão do resultado das eleições de 2022. E ressaltou que não concordava “com qualquer tratativa nesse sentido”. Tarde demais? Quem conhece Brasília se lembra de uma frase de Ulysses Guimarães.

O cacique do PMDB dizia aos colegas que eleições têm as suas incertezas. E é por isso que o Palácio do Planalto e o Congresso têm suas rampas. A cada quatro anos, pode-se subi-la, mas também descê-la. Assim é a vida dos eleitos. E completava que os ocupantes do Legislativo e do Executivo não podiam esquecer uma lição sobre o Judiciário: “Do outro lado da Praça dos Três Poderes não existe rampa”.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é jornalista especializado na cobertura para O Estado de S. Paulo das relações entre o poder civil e o poder militar. Publicado originalmente em 30.06.23, às 20h22

Democracia não é relativa

Eleito para assegurar a vigência da democracia no Brasil, Lula erra ao enaltecer Maduro e fazer vista grossa ao que acontece na Venezuela

Lula e o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, no Palácio do ItamaratyLula e o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, no Palácio do Itamaraty Brenno Carvalho / Agência O Globo

É lamentável que, no curso de um julgamento histórico, que deverá tornar Jair Bolsonaro inelegível pelos graves ataques perpetrados por ele contra o Estado democrático de direito no Brasil, Lula, eleito com a promessa de defendê-lo, diga em alto e bom som que a democracia é algo relativo. Não é, presidente. Nem aqui nem na Venezuela.

Não é democrático um regime que muda as regras do jogo no Judiciário e no Legislativo para se manter. Não é democrático um regime que mantém presos políticos e persegue opositores. Não é democrático um regime que aparelha as Forças Armadas e cria aparatos paramilitares para se impor. Não é democrático um regime que sufoca a imprensa e persegue jornalistas.

Hugo Chávez e Nicolas Maduro cometeram todos esses ataques à democracia ao longo dos muitos anos em que o chavismo comanda a Venezuela.

A necessária retomada de relações diplomáticas e comerciais com o país vizinho não precisa vir acompanhado dessa sabujice quase semanal que Lula resolveu praticar com Maduro. Absolutamente nada justifica passar pano para autocrata, seja ele de direita ou de esquerda.

Não há um ínfimo interesse legítimo do Brasil que recomende essa dissociação do presidente da República entre o que acontece na Venezuela e os recentes e graves ataques que a democracia enfrentou aqui mesmo, sob Jair Bolsonaro.

Se as instituições brasileiras fossem mais tíbias, e se Bolsonaro contasse com o aparato subserviente que Chávez e Maduro tiveram a seu dispor, o destino do Brasil poderia ter sido estar hoje sob um regime semelhante ao praticado em Caracas.

Porque Bolsonaro flertou com o aparelhamento das polícias e das Forças Armadas, atacou a imprensa impiedosamente, tentou submeter e desacreditar o Judiciário e aliciar o Legislativo à base de Orçamento secreto. As eleições passaram a ser tratadas pelo presidente como ilegítimas, quando os fatos demonstravam a higidez do nosso sistema.

Isso é o oposto da Venezuela, que tem eleições, sim, mas eivadas de suspeitas de fraudes e não acreditadas pelas organizações internacionais. Não é a quantidade de vezes que um autocrata renova sua permanência no cargo que dita que o país é uma democracia. A alternância de poder com paridade de armas é um pressuposto absoluto da democracia, e relativizar também isso é um desserviço lamentável a uma luta que o Brasil trava nesse exato momento.

O julgamento do TSE tem trazido de volta à nossa memória, sempre desafiada por uma sucessão de fatos ainda mais aterradores que os anteriores, a gravidade extrema do que Bolsonaro foi capaz de fazer para tentar melar as eleições e se manter no poder.

O que ele faria se fosse reeleito depois de jogar com abusos flagrantes de poder político e econômico? Um bom mostruário do que ele tentaria é fornecido pela Venezuela do chapa de Lula, bem como pela Hungria e pela Polônia. O ditador ser de direita ou de esquerda não o faz menos repulsivo.

Muitos dos que votaram em Lula o fizeram para assegurar a vigência das liberdades, dos direitos civis, do meio ambiente e da democracia como valor absoluto, e não por concordar com o viés ideológico do petista. Ele se engana de forma crucial se acredita que conta com aval da maioria em sua reverência, reiterada de forma inexplicável e contraproducente, a Maduro ou a um desgastado Alberto Fernandes, que não é autocrata, mas não é modelo de governança para a maioria da população brasileira.

No momento em que o Brasil está prestes a se livrar da ameaça golpista de Bolsonaro, é triste ver o presidente eleito para assegurar a plenitude da democracia tão duramente conquistada dizer que esse é um valor cambiante. Que o TSE, nesta sexta-feira, demonstre ao Brasil que não se brinca com isso.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalemnte n'O GLOBO, em 30.06.23

quarta-feira, 28 de junho de 2023

A independência da Justiça é inegociável

Aplicação equilibrada da lei é condição indispensável ao País. Indicações políticas de Lula e Bolsonaro ao STF alimentam o retrocesso. Judiciário precisa resgatar sua autoridade

Interpretações excêntricas do ordenamento jurídico podem causar muitos e graves danos. Exemplo atual é o caso do art. 142 da Constituição. Por meio do marco constitucional de 1988, o País conseguiu restabelecer o regime democrático, assegurando, entre outros pontos, a separação e a independência dos Poderes. Não há nenhuma dúvida quanto a isso: a Constituição de 1988 veio instaurar o Estado Democrático de Direito.

No entanto, apesar de toda a clareza, há quem pretenda utilizar o texto constitucional de 1988 – no caso, o dispositivo sobre as Forças Armadas – como justificativa para autorizar uma intervenção militar no País, afrontando os princípios democráticos mais básicos. Em algumas vezes, a manobra é defendida abertamente. Noutras, fala-se em um suposto papel de moderação e de harmonia institucional que caberia às Forças Armadas exercer. Num e noutro caso, trata-se de violação da Constituição. No Estado Democrático de Direito, o poder é civil, sem nenhum tipo de tutela militar.

A desvirtuação golpista do art. 142 é um caso extremo. Mas são inúmeras as situações em que interpretações equivocadas do Direito – sobre, por exemplo, as liberdades individuais, a atividade econômica, a vida política e as relações trabalhistas – podem causar graves prejuízos ao País. A depender da aplicação que é dada à lei, em vez de reduzir as desigualdades, a Justiça pode contribuir para reproduzir e intensificar privilégios. Em vez de favorecer o desenvolvimento econômico, ela pode impor mais empecilhos e incertezas ao ambiente de negócios.

A importância de uma interpretação adequada do Direito remete diretamente à importância da composição dos tribunais superiores: Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Superior Tribunal Militar (STM) – além, por óbvio, do próprio Supremo Tribunal Federal (STF). Esses órgãos colegiados definem a interpretação que deve ser dada à Constituição e às leis. De forma muito concreta, eles definem qual é o Direito no País.

Ciente do papel fundamental do STF e dos tribunais superiores no funcionamento do regime democrático, a Constituição definiu procedimentos e requisitos exigentes – reputação ilibada e notável saber jurídico – para o preenchimento desses cargos. Houve nítida preocupação do legislador constituinte para que esses órgãos não ficassem reféns do corporativismo das carreiras públicas. Na definição dos integrantes desses tribunais, o papel fundamental caberia ao Executivo e ao Legislativo, por meio da sabatina no Senado.

Infelizmente, nos últimos anos, as lideranças políticas parecem ter perdido a noção de sua responsabilidade, institucional e democrática, no preenchimento desses cargos. Em vez de fortalecerem o caráter técnico das indicações, respeitando a exigência constitucional do notável saber jurídico, os chefes do Executivo federal vêm fazendo o oposto. Jair Bolsonaro e Lula da Silva podem ter muitas diferenças, mas o fato é que os dois, com as últimas indicações ao Supremo, atuaram na mesma direção: a deterioração institucional da Corte com a indicação, por motivos não republicanos, de pessoas notoriamente abaixo das exigências do cargo.

O País tem um problema gravíssimo quando suas duas grandes forças políticas atuam em detrimento da independência da cúpula do Judiciário. Não há discurso a favor da democracia ou da liberdade individual capaz de reparar o profundo dano que é colocar no Supremo pessoas sem a devida qualificação, por razões meramente políticas. Para piorar, o Senado tem sido conivente com esse retrocesso que afeta o funcionamento do Estado e toda a vida em sociedade.

É preciso cobrar maior responsabilidade do Executivo e do Legislativo, punindo nas urnas quem age no cargo contrariamente ao interesse público. Mas também o Judiciário pode e deve reagir. Diante dessas tentativas de manipulação, que minam sua autoridade, cabe à Justiça zelar especialmente por sua colegialidade e pela rigorosa fundamentação técnica de suas decisões.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.06.23

Bolsonaro pode ficar inelegível no julgamento do TSE, e não perder direitos políticos; entenda

Voto do ministro Benedito Gonçalves, relator do caso contra o ex-presidente Jair Bolsonaro no tribunal, não cassa direito ao voto e de participação partidária do ex-chefe do Executivo

Ministro Benedito Gonçalves, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro  Foto: WILTON JUNIOR

O ministro Benedito Gonçalves, relator da ação contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), votou nesta terça-feira, 27, pela condenação do ex-mandatário por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. Gonçalves decidiu pela inelegibilidade de Bolsonaro por oito anos. A decisão do ministro, no entanto, não acarreta na perda ou na suspensão dos direitos políticos, como direito ao voto e de participação na organização partidária, do ex-presidente.

A inelegibilidade e a suspensão dos direitos políticos são punições eleitorais diferentes. Enquanto a primeira proíbe o condenado de ser candidato a qualquer cargo político pelo período de oito anos, a outra cassa o direito ao voto, à filiação e participação partidária e, consequentemente, a elegibilidade do alvo do processo.

Caso os outros seis ministros que analisam o caso de Bolsonaro acompanhem o relator, o ex-presidente ficará inelegível, mas manterá os direitos políticos, como explica o advogado Alberto Rollo, especialista em Direito Eleitoral.

“A inelegibilidade é uma sanção que está prevista na Lei da Ficha Limpa, usada como um dos argumentos jurídicos no voto do ministro Gonçalves. A punição acarreta na perda da capacidade eleitoral passiva, isto é, somente ser votado. Não pode ser candidato. É menos abrangente que a suspensão e a perda dos direitos políticos”, explicou Rollo.

Segundo o advogado, em casos de suspensão ou perda dos direitos políticos, a possibilidade de se candidatar é apenas um dos direitos cassados em casos de condenações com base no artigo 15 da Constituição.

A Constituição prevê a perda ou suspensão dos direitos políticos em casos de cancelamento da naturalização, incapacidade civil absoluta (em casos de menores de 16 anos ou portadores de doenças mentais graves, por exemplo), condenação criminal transitada em julgado, recusa de cumprimento de obrigação a todos imposta (como o serviço militar obrigatório) e condenações por improbidade administrativa.

Na prática, a perda definitiva dos direitos políticos só é possível em duas hipóteses: com o cancelamento da naturalização e a perda da nacionalidade brasileira.

“A suspensão de direitos políticos é mais abrangente. Prevê a perda da capacidade eleitoral ativa e passiva. Ou seja, a suspensão é temporária e fica vigente no período em que as condenações estiverem em vigor. Já a perda é definitiva. Um exemplo são as pessoas que se naturalizaram brasileiros e depois perderam a naturalização por irregularidades no processo”, afirmou Alberto Rollo.

Especialista em Direito Eleitoral, o advogado Fernando Neisser explica que um brasileiro nato, que nasceu no País, não pode perder os direitos políticos definitivamente.

“A diferença fundamental entre a suspensão dos direitos políticos e a inelegibilidade é que a suspensão é mais e a inelegibilidade é menos. O conjunto de direitos políticos inclui votar e ser votado, ajuizar ação popular, assinar apoiamento para criação de novos partidos, se filiar a partido político, assinar apoiamento de projeto de lei popular, ser mesário. A inelegibilidade, de todos esses direitos, só limita o de ser eleito”, disse.

Cabo eleitoral

De acordo com Acácio Miranda, doutor em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, o ex-presidente ainda terá o direito de votar nas eleições de 2024 e 2026. Segundo Miranda, Bolsonaro ainda poderá ser utilizado como um cabo eleitoral de outras formas.

“Hoje, no Brasil, o cabo eleitoral, ele faz de forma gratuita, a rigor, e parte de uma liberdade de expressão. Uma vez que, eu estou externando a minha opinião política”, explicou.

Defesa rejeita inelegibilidade

Na quinta-feira passada, 22, o advogado Tarcísio Vieira, ex-ministro do TSE que atua na defesa do ex-presidente Bolsonaro, tentou convencer os magistrados que os ataques golpistas em Brasília, no dia 8 de janeiro, nada têm a ver com o processo em curso na Corte nem foram incitados por Bolsonaro. “A defesa entende que só pode ser apreciado o que constou no processo até o despacho saneador em 8 de dezembro”, afirmou o advogado do ex-presidente.

A jornalistas, Vieira disse ainda que não havia motivo para pressa para a conclusão do julgamento. “Não tem eleição neste ano. Tem no final do ano que vem. O presidente não tem mandato. Ele vai ficar inelegível em relação ao quê? A uma eleição que ocorra no ano que vem, daqui a três anos? Não há necessidade de aceleração desse julgamento”, afirmou.

Rayanderson Guerra e Gabriel de Sousa para O Estado de S. Paulo, em 28.06.23, às 11h39

Bala de prata chamada Michelle

O imbrochável parece que vai ter de engolir a fraquejada; espero estar errada

Jair Bolsonaro continua o mesmo. A entrevista concedida à jornalista Mônica Bergamo mostra que está mais em forma do que nunca. Raso, vitimista, desclassificado, fala com naturalidade sobre a hipótese de virar garoto-propaganda de imóveis nos Estados Unidos, avalia sua popularidade pelo fato de que encheu uma hamburgueria e comeu de graça: "Enchi a pança". Que pesadelo.

Como esse sujeito foi presidente do Brasil e quase se reelegeu para um segundo mandato? Não é uma pergunta retórica. A reportagem me rendeu um "meudeusdocéu" atrás do outro. Eu me pergunto como não perdemos a capacidade de nos chocar com tanta barbaridade, com tanta distopia. Talvez porque ele sempre conseguiu nos surpreender. Negativamente, claro.

Passei quatro anos chamando-o e a seu governo de pesadelo. Não houve dia em que nós, cidadãos, não acordássemos aos sobressaltos. Não tinha fim de semana, feriado, Natal, com um pouco de paz. E, agora, prestes a se tornar inelegível, fala num tom de desdém sobre todo o processo e seu futuro político.

Sobre o Brasil, sobre como poderia fazer diferença se voltasse ao poder, sobre que planos teria para a população, nada. Basicamente diz que não quer abandonar seu país porque aqui há clima para "falar besteira" e "contar piada de tudo que possa imaginar". É ou não um pesadelo?

A única coisa importante: Bolsonaro blefa. Ele diz ter uma bala de prata para 2026, sem revelar qual. Não tem. A não ser que se refira à Michelle, ideia que, segundo consta, o faz dar "pulos" de contrariedade. Na entrevista, admitiu pela primeira vez, se não estou equivocada, que, se ela quiser, pode, mas que a alertou sobre sua falta de experiência. Como se ele tivesse alguma para ser presidente. Ora, por que eles falam sobre essa possibilidade se ela não for uma? Porque o imbrochável parece que terá de engolir a fraquejada. Podem me cobrar. Espero estar muito errada.

Mariliz Pereira Jorge, a autora deste artigo, é jornalista e roteirista de TV. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impessa, às 18h17, em 27.06.23

Quanto Bolsonaro vale como cabo eleitoral?

Dificilmente ex-presidente será um 'king maker' em 2024

Tarcísio de Feitas e Bolsonaro em 2022 - Presidência da República

Jair Bolsonaro será um bom cabo eleitoral? O PL pensa que sim. O partido já faz contas e espera que o ex-presidente prestes a tornar-se inelegível o ajude a eleger 1,5 mil prefeitos em 2024, quintuplicando o número de alcaides da legenda. Mas será que esse cálculo tem base ou é só um desejo meio delirante?

Quando o futuro é opaco, consultar o passado é um bom ponto de partida para as estimativas. E, a julgar pelo passado, Bolsonaro foi uma figura decisiva nas eleições de 2022 —ele conseguiu transformar um poste pessoal no governador de São Paulo—, mas teve um desempenho pífio como cabo eleitoral no pleito municipal de 2020. Na ocasião, o então presidente emprestou seu apoio a 13 candidatos a prefeito e a 45 a vereador. Desses todos, apenas 13 se elegeram, sendo só dois prefeitos, os de Parnaíba (PI) e Ipatinga (MG), que não são exatamente megalópoles.

É possível empilhar várias hipóteses para o fracasso. A que me parece mais convincente é que as eleições municipais são dissociadas daquelas para postos federais e estaduais. Pelo menos foi essa a explicação que o próprio Bolsonaro usou na ocasião. E eu concordo com ela.

Mesmo a força do bolsonarismo no pleito de 2022, que é inegável, merece uma análise mais detida. Penso que o ex-presidente perdeu a reeleição principalmente porque suas atitudes repeliram o eleitor moderado. É na faixa dos eleitores de direita não tão moderados que ele permanece influente. É só ver que figuras muito identificadas com seu governo, como o astronauta e a Damares, ganharam fácil assentos no Senado e ex-bolsonaristas que romperam com o chefe só colheram insucesso nas urnas, casos de Weintraub, Hasselmann e Frota.

A minha impressão é que Bolsonaro, com muito menos microfones do que tinha quando ocupava a Presidência, será relevante para definir quem no campo da direita terá um bom desempenho, mas dificilmente será um "king maker", um fazedor de reis.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. Autor de "Pensando Bem…". Publicado originalmente na edição impressa da Folha, às 13h06 de 27.06.23

Os argumentos do relator pela inelegibilidade de Bolsonaro

De acordo com ministro do TSE Benedito Gonçalves, houve responsabilidade direta e pessoal do ex-presidente ao praticar "conduta ilícita em benefício de sua candidatura à reeleição".

Bolsonaro poderá ficar de fora de eleições até 2030Foto: Andressa Anholete/Getty Images

O corregedor-geral da Justiça Eleitoral e relator da ação contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, ministro Benedito Gonçalves, votou nesta terça-feira (27/06) pela inelegibilidade por oito anos do ex-presidente.

O prazo de inelegibilidade seria contado a partir das eleições gerais de 2022, o que significa que o ex-presidente, que tem 68 anos, só poderia voltar a disputar eleições em 2030. O julgamento prosseguirá nesta quinta-feira, quando os demais seis integrantes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deverão se manifestar. 

Num discurso com palavras fortes, Gonçalves considerou que Bolsonaro cometeu abuso de poder político e fez uso indevido dos meios de comunicação. O juiz isentou o general Walter Braga Netto, candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro.

De acordo com o voto do relator, houve responsabilidade direta e pessoal de Bolsonaro ao praticar "conduta ilícita em benefício de sua candidatura à reeleição", em referência à reunião com embaixadores estrangeiros, no Palácio da Alvorada, em 18 de julho de 2022, que deu origem à ação.

"O conteúdo comunicado às embaixadas e aos embaixadores não tinha qualquer aptidão para dissipar pontos obscuros, mas sim levantar um estado de paranoia coletiva", afirmou Gonçalves.

"Não é possível fechar os olhos para os efeitos antidemocráticos de discursos violentos e de mentiras que colocam em xeque a credibilidade da Justiça Eleitoral", prosseguiu.

Segundo ele, Bolsonaro disse "mentiras atrozes" sobre o processo eleitoral brasileiro, mesmo após perder as eleições de outubro, "a fim de manter as suas bases políticas mobilizadas".

"Minuta do golpe"

O ministro rejeitou o pedido da defesa de Bolsonaro para que fosse retirada do processo a chamada "minuta do golpe", um esboço de decreto que teria como objetivo reverter o resultado das eleições promovendo uma intervenção no tribunal eleitoral e que foi encontrado na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres.

A defesa do ex-presidente argumenta que a minuta trata de fatos posteriores à reunião com os embaixadores e, por isso, deveria ser desconsiderada pelo TSE.

Ao rejeitar a exclusão da "minuta do golpe" do processo, o ministro afirmou que "a reunião de 18 de julho de 2022 não é uma fotografia na parede, mas um fato a ser analisado com contexto", para a compreensão do qual podem contribuir provas posteriores ao caso.

Para o ministro, o esboço de decreto é "golpismo em sua essência".

Nesta quinta-feira, deverão se manifestar os ministros do TSE Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques, André Ramos Tavares, Cármen Lúcia, Nunes Marques e Alexandre de Moraes, presidente do tribunal.

Estes foram os argumentos do relator:

Uso indevido dos meios de comunicação

O ministro reforçou que, no evento com embaixadores, o discurso de Bolsonaro foi construído para difundir informações falsas com o intuito de convencê-los de que havia um grave risco de fraude nas eleições de 2022 e que o então presidente da República, em simbiose com as Forças Armadas, estava numa cruzada em prol da democracia do país.

Gonçalves enfatizou que o encontro, organizado com a clara intenção de desqualificar o sistema eleitoral, foi transmitido ao vivo tanto pela TV Brasil quanto pelos redes sociais de Bolsonaro, "alcançando ampla repercussão" e culminando na remoção do vídeo por iniciativa da plataforma YouTube.

O relator acrescentou que o candidato estava ciente da popularidade desse tipo de conteúdo na internet e utilizou a condição para gerar engajamento e manter uma mobilização política de caráter passional incapaz de aceitar contestações vindas de fora da bolha de seguidores.

Para o ministro, houve "difusão deliberada e massificada, por meio de emissora pública e das redes sociais", de desinformação sobre o sistema eletrônico de votação e sobre a governança eleitoral brasileira em benefício da candidatura de Bolsonaro.

Abuso de poder político

Quanto ao abuso de poder político, o corregedor-geral afirmou que Bolsonaro teve uma conduta "aberrante" ao usar o poder simbólico de presidente da República e a posição de chefe de Estado para "degradar o ambiental eleitoral".

De acordo com o ministro, ao proferir falas sem qualquer embasamento técnico com o único objetivo de confrontar o TSE, Bolsonaro violou ostensivamente as obrigações de presidente da República listadas na Constituição, em especial o dever de zelar pelo livre exercício dos Três Poderes, pelo exercício dos direitos políticos e pela segurança do país.

O ministro destacou ainda que, de forma intencional, Bolsonaro desprezou o "farto material" produzido pelo TSE sobre o funcionamento das urnas, optando por exercitar, perante os chefes das missões diplomáticas, a mesma prática discursiva utilizada em lives nas redes sociais para reafirmar a desconfiança infundada na atuação da suprema corte eleitoral.

Tudo isso, segundo Gonçalves, configura abuso de poder político, pois Bolsonaro "fez uso de sua posição de presidente da República, de chefe de Estado e de comandante supremo das Forças Armadas para potencializar os efeitos da massiva desinformação a respeito das eleições brasileiras apresentada à comunidade internacional e ao eleitorado".

A ação julgada pelo TSE

Bolsonaro é acusado de cometer abuso de poder político e de usar indevidamente os meios de comunicação durante uma reunião que ele, então pré-candidato, organizou com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada, em 18 de julho de 2022, e na qual fez vários ataques infundados à confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro, em especial às urnas eletrônicas.

Na reunião com os embaixadores, Bolsonaro fez uma série de acusações mentirosas e sem provas contra o sistema eleitoral brasileiro. Ele repetiu teorias fantasiosas sobre as urnas eletrônicas, atacou ministros do Poder Judiciário e declarou que o TSE deveria acatar "sugestões de transparência" feitas pelas Forças Armadas. O evento durou cerca de 50 minutos e foi transmitido ao vivo pela TV Brasil e em redes sociais.

Na época, o jornal The New York Times chegou a publicar que diplomatas ficaram abalados e incomodados com as falas de Bolsonaro.

Depois da reunião com os embaixadores, já em agosto de 2022, o PDT moveu uma "ação de investigação judicial eleitoral" contra Bolsonaro. O partido – que tinha Ciro Gomes como candidato à Presidência – afirmou que o então presidente praticou abuso de poder político.

Segundo o TSE, o abuso de poder político ocorre quando aquele que detém o poder se aproveita da sua posição "para agir de modo a influenciar o voto do eleitor".

O PDT argumentou ainda que Bolsonaro fez uso indevido do aparato estatal, já que a reunião ocorreu no Palácio da Alvorada e foi transmitida na íntegra pela TV Brasil, que é pública. A legislação brasileira proíbe candidatos que buscam a reeleição de usar a estrutura estatal e a máquina pública em seu proveito.

A ação também apontou para o uso indevido de meios de comunicação social, já que Bolsonaro usou suas redes sociais para divulgar os ataques ao sistema eleitoral. O PDT argumenta que o ex-presidente visava ganhos eleitorais com a publicação das imagens, até porque ele parecia ter o apoio dos países representados na reunião.

Ou seja, o encontro com embaixadores em Brasília foi uma das peças de campanha eleitoral que compuseram a narrativa criada por Bolsonaro de que as urnas eletrônicas podiam ser fraudadas.

A investigação coletou depoimentos e provas. O vídeo da reunião com os embaixadores é a principal delas. Ele foi entregue pelo próprio PDT quando moveu a ação.

Outra prova incluída no processo foi a chamada "minuta do golpe", apreendida pela Polícia Federal. O documento é o rascunho de um decreto presidencial com o qual Bolsonaro instauraria Estado de Defesa e realizaria uma intervenção na sede do TSE em caso de derrota nas eleições. Ele foi encontrado na casa de Anderson Torres, que foi ministro da Justiça e Segurança Pública de Bolsonaro.

Essa minuta pode reforçar o entendimento de que ameaças golpistas eram recorrentes no governo passado – e inclusive envolviam outros órgãos de Estado.

Alexandre Schossler | Érika Kokay para Deutsche Welle Brasil, em 28.06.23

terça-feira, 27 de junho de 2023

Evangélicos estão em silêncio sobre Bolsonaro; por quê?

Especialistas analisam o aparente distanciamento entre crentes e o ex-presidente

Bolsonaro participa de culto no auditório Nereu Ramos, na Câmara dos Deputados (Pedro Ladeira - 3.ago.22/Folhapress)

Recebi o seguinte comentário na semana passada, às vésperas do início do julgamento que pode tornar Bolsonaro inelegível por oito anos: "O marido da minha mãe é pastor de uma Assembleia de Deus e muito bolsonarista. Ele não tem falado sobre política em casa e comentou que ninguém mais fala de Bolsonaro na igreja".

Nas últimas duas eleições, cerca de 70% dos eleitores evangélicos votaram em Bolsonaro. Em 2022, mesmo com a atuação irresponsável do ex-presidente durante a pandemia, eles ainda o apoiaram. O que mudou desde novembro passado e o que esse silêncio quer dizer?

Uma possível explicação é que há um constrangimento generalizado entre evangélicos bolsonaristas. O cenário apocalíptico que foi pintado durante a eleição não se concretizou, como mencionou o pastor batista André Neto: "A ameaça comunista, a perseguição religiosa, os ataques à pauta dos costumes e moralidades, nada aconteceu".

Em vez disso, o governo de Lula tem evitado se envolver em debates polêmicos. O pastor Guilherme de Carvalho analisa: "Não acredito que a maioria dos eleitores evangélicos seja composta por bolsonaristas radicais, mas quando questões centrais da vida espiritual são afetadas, há uma reação. Se houver respeito a essas questões, a tendência é que a relação entre os evangélicos e o governo desinflame".

Outro fator é a melhora da economia. Os evangélicos, que são predominantemente moradores das periferias, têm sentido isso no bolso. Carla Ribeiro Sales, batista e socióloga, afirma: "A possível aprovação do pacote do Haddad traz tranquilidade ao mercado. Mesmo aqueles que não acompanham esse tipo de notícia, percebem seus resultados em termos afetivos e reagem positivamente".

O silêncio também pode estar ligado à saída de Bolsonaro do governo. Miguel Souza, cientista político e presbiteriano, diz: "A quantidade de auxílio distribuído para sua base o ajudou a compensar possíveis perdas de voto decorrentes da má gestão da pandemia".

A imagem do ex-presidente também foi prejudicada pelos ataques de 8 de janeiro, que assustaram evangélicos moderados. O escândalo das joias e o fato de Bolsonaro ter parado de visitar igrejas também afetaram sua imagem para esse eleitorado. Mas "ele falou ao coração dos evangélicos como nenhum outro personagem político", contou a socióloga batista Carla Ribeiro Sales.

Bolsonaro representou uma experiência de autodescoberta para quem percebe o mundo como uma guerra entre bem e mal. Sugere que a vitória está ao alcance das mãos. E abre caminho para novos personagens, que defendem claramente valores conservadores e se comunicam a partir de referências bíblicas. Deltan

Dallagnol e Nikolas Ferreira aparecem na primeira fila.

Juliano Spyer, o autor deste artigo, é antropólogo, pesquisador do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatório Evangélico. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 26.06.23, às 13h01

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Juro é tema que exige discussão técnica, não política

Ao atacar presidente e autonomia do BC, Lula e Haddad contribuem para disseminar visão errada da economia

Sede do Banco Central do BrasilSede do Banco Central do Brasil Andressa Anholete/Bloomberg

O Brasil é um dos poucos países onde os jornais dão destaque a um tema que, no mundo desenvolvido, fica relegado aos meios acadêmicos e ao mercado financeiro: a taxa de juros. Pudera. Ao manter a Selic em 13,75%, o Banco Central (BC) despertou a ira do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Lula não se cansa de atacar o BC, e Haddad disse que a queda do juro deveria ter começado em março. Ambos estão errados — e disseminam uma visão errada.

O brasileiro que embarcou na batalha em torno dos juros precisa evitar a simplificação grosseira — a ideia de Lula segundo a qual o BC “está jogando contra os interesses da economia” — e entender que se trata de discussão técnica. Quanto mais é tratada em tons políticos, pior para o país. É um sintoma do nosso atraso que mesmo meios intelectuais sofisticados aceitem argumentos pedestres, que atribuem ao presidente do BC, Roberto Campos Neto, alguma intenção política (ou maligna), ignorando o papel e o funcionamento dos bancos centrais. Tornar o BC autônomo foi, por sinal, fundamental justamente para evitar a interferência política que manipulava juros e alimentava a inflação no passado.

É verdade que o juro é alto no Brasil. Descontada da Selic a inflação projetada para o próximo ano, a taxa perto de 7% põe o país na liderança do ranking de juros reais (seguido por México e Chile, com 6% e 5% respectivamente). Tal realidade não é nova. Entre 2000 e 2007, os juros reais brasileiros giraram em torno de 11%. Depois, em razão da estabilidade monetária, da confiança fiscal e do acúmulo de reservas, caíram para 5% entre 2008 e 2017. Nos dois anos anteriores à pandemia, desabaram a pouco mais de 2%. A pressão inflacionária que se seguiu inverteu o ciclo no mundo todo, e o BC se viu obrigado a retomar o aperto monetário.

Tecnicamente, bancos centrais buscam praticar uma taxa de juros neutra, patamar capaz de controlar os preços sem interferir no ciclo econômico. Não é tarefa simples, pois envolve a análise dos indicadores inflacionários, do nível de atividade e das expectativas futuras, ponderados por modelos matemáticos sofisticados. A realidade brasileira resulta no maior juro neutro do mundo (uns 3,5% antes da pandemia, patamar que subiu diante da incerteza fiscal). Isso acontece por termos baixo nível de poupança — menos de 16% do PIB, bem aquém dos 22% no Chile ou 21% no México — e gastos altíssimos com aposentadorias (ao redor de 12% do PIB). A resultante é mais consumo e maior pressão inflacionária.

Com maior inflação média, menos poupança e mais gasto previdenciário, naturalmente o juro neutro necessário para segurar a espiral de preços é mais alto. É essa a principal razão para as taxas recordes no Brasil. “Não é culpa do BC”, diz Samuel Pessôa, pesquisador do Ibre/FGV e economista-chefe do Julius Baer Family Office. “O juro alto resulta das próprias escolhas da sociedade, que são feitas no Congresso Nacional. A culpa é nossa.”

É possível criticar, com base em argumentos técnicos, a estratégia de Campos Neto para combater a inflação. Mas é inegável que ela tem surtido o efeito desejado. O índice acumulado em 12 meses está em torno de 4%, dentro da meta perseguida (embora deva subir até o fim do ano). O importante é entender o que se critica. Não dá para pôr a culpa no termômetro pela febre ou no barômetro pela tempestade.

Editorial de O GLOBO, em 24.06.23

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Excluir Bolsonaro da arena eleitoral é um ato de legítima defesa

Tornar ex-presidente inelegível é maneira de barrar do processo eleitoral quem atuou para destruí-lo

Jair Bolsonaro facilitou a vida dos ministros do TSE que começaram a julgá-lo. Por anos, o ex-presidente liderou uma conspiração à luz do dia para derrubar a credibilidade do sistema de votação do país e deixou para trás as provas de um plano que tinha como objetivo mantê-lo no poder mesmo derrotado.

Na prática, Bolsonaro tentou fraudar o processo de escolha de um novo presidente. Para isso, ele abusou do cargo que ocupava: acionou o Exército para interferir na organização da eleição e usou ferramentas oficiais para difundir informações falsas. Segundo o Ministério Público, era uma conduta que causava o "estremecimento do apoio popular à própria existência de eleições".

Como presidente, Bolsonaro passou quatro anos num esforço para fragilizar controles democráticos e desestabilizar um sistema que ameaçava a renovação de seus poderes. Como candidato, violou as regras do jogo eleitoral para ficar no cargo. Excluí-lo dessa arena temporariamente é o mínimo que o TSE pode fazer.

A pena que o tribunal deve aplicar a Bolsonaro não é apenas uma punição pelas infrações do passado. Tornar o ex-presidente inelegível por oito anos é também uma maneira de bloquear a participação direta no processo eleitoral de um personagem que atuou para destruí-lo.

Seria ingenuidade acreditar que, com o caminho livre para concorrer ao Planalto novamente em 2026, Bolsonaro se converteria milagrosamente num devoto das urnas eletrônicas. Eleito para mais um mandato, dificilmente deixaria de lado seus delírios golpistas e sua campanha para driblar as regras que limitam o poder do presidente.

Ainda que a inelegibilidade pareça amarga, oito anos certamente não tornarão Bolsonaro um fiel cumpridor da ordem institucional. O ex-presidente opera numa frequência que favorece o confronto com esse princípio, como sugere o discurso de perseguição que ele ensaia diante da provável condenação. Se voltar às urnas em 2030, provavelmente voltará com o mesmo figurino.

Bruno Boghossian, o autor deste artigo, é jornalista. Foi repórter da Sucursal da Folha de S. Paulo em Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA). Publicado originalmente na edição impressa da Folha,em 22.06.23

Diabetes afetará 1,3 bilhão de pessoas até 2050, o dobro do número atual

Uma série de artigos médicos sugere reforçar a atenção às questões socioeconômicas para lidar com uma doença associada à obesidade, ao uso de álcool ou tabaco e à falta de atividade física

A má alimentação e o sedentarismo favorecem o aparecimento da diabetes tipo 2. (Ag. Sul / Getty)

Em 2018, Nam Han Cho, então presidente da International Diabetes Federation (IDF) , referiu-se à epidemia desta doença como "a terceira guerra mundial", comparando o milhão e meio de mortes por ano que provoca com os caídos numa guerra . A hipérbole mostra o desespero de alguns especialistas diante do avanço implacável da doença e da dificuldade em conscientizar a sociedade sobre sua magnitude. Hoje, a revista médica The Lancet publica uma série de artigos nos quais mais uma vez chama a atenção para a ameaça do diabetes, que, segundo eles, não está sendo enfrentado com as ferramentas certas.

Segundo estimativas publicadas na revista, até 2050 haverá cerca de 1,3 bilhão de pessoas com diabetes em todo o mundo, um aumento que é mais de duas vezes os 529 milhões afetados hoje. 90% serão pessoas com diabetes tipo 2, doença associada à obesidade, alimentação, consumo de álcool ou tabaco e falta de atividade física, e que está intimamente relacionada à pobreza. Nos Estados Unidos, o diabetes é 1,5 vez mais frequente entre minorias como negros ou índios americanos, um problema que os autores dos artigos do The Lancet atribuem, entre outras coisas, ao racismo estrutural.

Em um editorial também publicado nesta sexta-feira, a revista adverte contra a abordagem equivocada que muitos adotam em relação ao diabetes. Apesar do sucesso de novos medicamentoscontra esta doença, que também ajudam a reduzir a obesidade, "a solução para sociedades insalubres e injustas não são mais comprimidos, mas reavaliar e reimaginar nossas vidas para oferecer oportunidades que abordem o racismo e a justiça e atuem sobre os fatores sociais da doença", afirmam afirmam, citando o médico Rupa Marya e o economista Raj Patel. O mercado de medicamentos para diabetes crescerá, segundo algumas estimativas, para US$ 100 bilhões na próxima década e pode chegar a 10 vezes esse valor até 2045. No entanto, como acontece com muitas outras doenças, que são mais tratáveis ​​com hábitos saudáveis ​​aplicados a tempo do que com medicamentos quando já é quase tarde, o esforço de antecipação do diabetes não recebe a devida atenção. Em 2018, os países da União Europeia utilizaram, em média, 2,

Seis anos de guerra na Síria mudaram a vida de milhões de pessoas.  Os serviços de saúde, como planejamento familiar, cuidados de saúde mental ou tratamento de doenças crônicas, foram negligenciados, pois o pessoal médico teve que se concentrar em salvar vidas.  Na foto, uma enfermeira testa um paciente para diabetes em um dos centros de MSF em Al Bab.

Já há algum tempo, os especialistas enfatizam a necessidade de incluir a pobreza como um fator fundamental a ser combatido para melhorar a saúde. A chamada de despertar do The Lancetestima que até 2045, até três em cada quatro adultos com diabetes no mundo viverão em países de baixa ou média renda. Hoje, apenas cerca de 10% das pessoas que sofrem com a doença nesses locais recebem tratamento adequado. A carga crescente de diabetes, no entanto, não é vista apenas nos países com menos recursos. Nos Estados Unidos, a prevalência da doença quase dobrou entre os jovens, que estão cada vez mais expostos a todos os tipos de alimentos que aumentam o risco de obesidade e um estilo de vida mais sedentário. Como acontece com todas as doenças em todas as partes do mundo, quem mais sofre com o aumento da potência mundial são os pobres, que na maioria das vezes são negros ou nativos americanos.

Com as tendências atuais, nenhum país deverá reduzir suas porcentagens de diabéticos e haverá regiões como o Norte da África ou o Oriente Médio onde as taxas chegarão a 20%. "O diabetes continua sendo uma das maiores ameaças à saúde pública de nosso tempo e deve crescer rapidamente nas próximas três décadas em todos os países, independentemente de idade ou sexo, representando um grande desafio para os sistemas de saúde em todo o mundo", diz Shivani Agarwal, da Albert Einstein School of Medicine, em Nova York (EUA). Agarwal, que liderou esta série de artigos, afirma que "o foco na compreensão da desigualdade no diabetes é vital para alcançar as metas de desenvolvimento sustentável da ONU,

Na série, são mencionados casos de sucesso no apoio a comunidades com menos recursos, como em alguns países da África subsaariana, onde a cooperação de governos, indústria e associações de pacientes tornou possível facilitar o acesso à insulina e outros produtos de saúde com reduções mensuráveis ​​no impacto da doença.

Daniel Mediavilla para o EL PAÍS, em 22.06.23

Por que Bolsonaro não é mais o Trump dos trópicos

A direita sabe que a maioria dos brasileiros rejeita a direita golpista do ex-presidente, mas também não quer a volta do Partido dos Trabalhadores ao seu estado puro

Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil, nesta quarta-feira em Porto Alegre, Brasil. (Crédito: Diego Vara / Reuters)

Com a ascensão do bolsonarismo de extrema-direita com suas conotações nazi-fascistas , Bolsonaro passou a ser visto como o Trump dos trópicos na América do Sul. A derrota nas urnas para Lula, embora por apenas 2% de diferença, acabou com suas esperanças.

Em vez de enfrentar a derrota de peito nu, Bolsonaro fugiu do país , refugiando-se sob as asas de seu guardião Trump e deixando para si a missão de turvar as águas da vitória de Lula com ataques violentos às sedes do poder em Brasília.

Ele cometeu um erro ao medir sua força política e desafiou o judiciário com ataques violentos ao Supremo Tribunal Federal, o que o arrastou para um processo judicial que muito provavelmente o impedirá de disputar eleições políticas por oito anos, condenando-o ao ostracismo político.

O ex-presidente já havia decepcionado os seus ao fugir do país para se refugiar nos Estados Unidos , recusando-se a entregar a faixa de comando ao vencedor. Assim, voltou ao país mais cabisbaixo do que vitorioso e, na expressão de alguns comentaristas políticos, como uma “barata boba” que não sabe o que fazer.

Se Bolsonaro, que está em colapso político, for desqualificado politicamente, o mais provável é que seu povo também acabe acuando aos poucos e busque um sucessor, como já começaram a fazer, caso em que é possível que seu grande padrinho americano Trump, também envolvido em processos judiciais, acaba se esquecendo do amigo brasileiro.

Seus seguidores mais fiéis e, em geral, a extrema direita mais dura que sempre confiou nele e que hoje está reduzida a 15%, sabem que o líder está se dissolvendo politicamente como um cubo de açúcar e procuram ansiosamente um sucessor. Hoje Bolsonaro e sua extrema-direita se encontram encurralados diante do governo Lula, que é saudado no exterior justamente como o salvador da ameaçada democracia brasileira.

Se a era do extremismo de Bolsonaro parece vazar por todos os lados e o Brasil disse não às tentativas fracassadas de golpe militar , isso não impede que as placas tectônicas da direita entrem em férias. Ainda estão latentes na tentativa de encurralar a esquerda e conseguir se manter no poder, nem que seja por meio do Parlamento, que ainda é majoritariamente conservador e que está dando dores de cabeça ao novo governo democrático.

Se é verdade que o perigo de uma direita à la Trump parece ter desaparecido no Brasil com a derrocada do bolsonarismo radical, também é verdade que o perigo de um retrocesso democrático continua latente e fará de tudo para dificultar que o Executivo para derrotar completamente os perigos do golpe.

E aí reside, ao mesmo tempo, a responsabilidade do novo e terceiro governo progressista de Lula, que se divide entre a esquerda mais radical de seu partido, o PT, e os elementos de centro que introduziu em seu governo, sem os quais certamente teria perdido as eleições.

Não. As águas turbulentas da política brasileira ainda não se acalmaram e a tarefa de Lula de derrotar definitivamente o avanço da extrema-direita não terminou e dependerá muito de sua acuidade política.

O governo Lula em suas ações específicas não pode esquecer que o atual presidente ganhou as eleições não tanto por causa dele e por causa de seu partido de esquerda. Era tudo mais complexo. Lula ganhou porque teve a intuição de recuperar uma parte do centrão que não queria votar em Bolsonaro mas também não queria votar na esquerda.

E essa dialética continua até hoje e alerta Lula em cada decisão para mostrar que seu governo não é de esquerda, mas sim contra o golpe de Bolsonaro e o avanço de forças conservadoras que se inclinam cada vez mais para a extrema direita.

Talvez por isso, apenas seis meses após a nova Administração, já se fale abertamente do seu possível sucessor em 2026, que dependerá fundamentalmente do sucesso ou insucesso da sua equipa.

A direita sabe que a maioria dos brasileiros hoje rejeita o golpe de Bolsonaro e a direita grosseira, mas também não quer a volta do PT ao seu estado puro. É um país que confia mais num centro conservador com fortes sotaques sociais que sabe ouvir ao mesmo tempo as queixas dos milhões de pobres que ainda ressoam no país.

E é nessa dialética pela busca não apenas de um Trump dos trópicos, seja ele um Bolsonaro ou não, mas de uma centro-direita moderna dita “civilizada” sobre a qual quem sabe que o nostálgico líder de ditaduras tem estado desacreditado ao se revelar aos seus como um covarde.

É esse equilíbrio diante do desejo de mudança de uma sociedade que hoje continua atenta aos movimentos do novo e inédito governo Lula, que possibilitará ou não que a velha esquerda nas próximas eleições faça possibilitou à extrema-direita golpista entender melhor o que a nova conjuntura política em transformação no país exige deles.

No passado, Lula chegou a se autodenominar uma "metamorfose ambulante". É o que ele tem buscado neste seu terceiro mandato com um governo progressista, mas com arestas conservadoras. Sua tarefa não será fácil, a julgar pela oposição que encontra no Congresso.

Lula deve estar atento aos novos movimentos clandestinos de um bolsonarismo ferido, mas não definitivamente morto, e que poderá ressuscitar nas mãos de novos e falsos profetas que já se vislumbram no horizonte diante da decadência dos desgastados -fora e capitão golpista extremista .

Juan Arias, o autor deste artigo, é correspondente do EL PAÍS no Brasil. Publicado em 23.06.23.

quinta-feira, 22 de junho de 2023

‘Spending Review’ em ferrovias

Certamente, um programa de revisão das políticas públicas precisa ser implementado no setor para mudar o patamar de investimentos na área

Ferrovias sucateadas no Brasil

As políticas públicas devem sempre passar por revisões para que os programas de governo sejam aperfeiçoados, a partir de uma governança transparente e metodológica. Essa boa prática internacional pode ser crucial para ampliar investimentos no setor de ferrovias brasileiro. Como senador, aprovei dois projetos de lei estruturantes que me permitem dar uma visão geral sobre como esses assuntos se relacionam, com consequências positivas na produtividade da economia.

Nota-se que os investimentos em ferrovias fecharam o ano de 2022 no patamar mais baixo dos últimos anos.

Entre 2010 e 2016, período que antecedeu o moribundo teto de gastos, o País investiu por ano, na média, algo em torno de R$ 11,5 bilhões, sendo R$ 8,4 bilhões pelo setor privado e R$ 3,2 bilhões pelo setor público. Com o limite de gastos, o investimento público anual se reduziu para R$ 795 milhões, entre 2017 e 2018, e para R$ 464 milhões, no período entre 2019 e 2022. Com isso, o investimento privado despencou para cerca de R$ 6 bilhões no período pós-teto. Esses números, que estão a preços de 2022, demonstram que recuperar a capacidade de investimentos no setor de ferrovias é impreterível.

Certamente, um programa de revisão das políticas públicas precisa ser implementado no setor de ferrovias para mudar o patamar de investimentos na área.

O Senado Federal aprovou em 2017 o Projeto de Lei n.º 428, de minha autoria, que obriga o governo a enviar ao Congresso Nacional um plano de revisão periódica de políticas públicas. É um instrumento de gestão que serve de base para decisões sobre o nível de financiamento de programas governamentais existentes. O projeto foi elaborado com inspiração no poderoso instrumento de gestão chamado de Spending Review, prática sistematicamente adotada pelos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para fortalecer a governança no setor público.

Em recente estudo da McKinsey, intitulado Spending Reviews: a more powerful approach to ensuring value in public finance, diversos especialistas explicam como esse instrumento de gestão pode fornecer diretrizes de políticas públicas para aumentar a produtividade e a eficiência operacional de programas governamentais em áreas estratégicas de governo. O processo é conduzido para ampliar a transparência, mostrando aos cidadãos mais informações sobre por que e como o dinheiro gerado pelas políticas públicas é gasto.

A lógica desse sofisticado instrumento é simples. Um grupo de trabalho do governo escolhe um programa para avaliar a partir de um cenário de referência, identificando fatores que determinam o custo e os resultados da política pública. Com base em avaliações técnicas, são feitas recomendações de melhoria do programa com o objetivo de aumentar sua eficiência e efetividade. Todo o processo é conduzido de forma permanente, envolvendo atores do setor público, do setor privado, da academia e da sociedade civil.

Cabe, aqui, lembrar que o projeto de lei que apresentei para instituir o Spending Review na administração pública federal se encontra na Câmara dos Deputados (PLP n.º 539), após ter sido aprovado por unanimidade no Senado Federal em 2018.

Naquele mesmo ano, também tive a oportunidade de apresentar o Projeto de Lei n.º 261, que acabou sendo aprovado e sancionado pelo Executivo federal após três anos de intensos debates no Parlamento. Trata-se da Lei n.º 14.273, de 2021, que dispõe sobre a organização do transporte ferroviário, o uso da infraestrutura ferroviária, os tipos de outorga para a exploração indireta de ferrovias em território nacional e as operações urbanísticas a elas associadas.

Este novo marco de ferrovias representa uma verdadeira revolução no setor. Primeiro, porque permite que empresas privadas explorem economicamente o setor por meio de contratos de autorização, a partir de trechos mais curtos conhecidos como shortlines, que se conectariam com corredores de desenvolvimento concedidos para o setor privado. O potencial econômico desse novo arcabouço institucional é imensurável: operações ferroviárias poderão ser viabilizadas em combinação com o uso racional do espaço urbano, estimulando a ampliação do setor mercado ferroviário na matriz de transporte de cargas e de passageiros.

Para que esse novo arcabouço funcione bem, é importante que o Brasil revise as políticas públicas na área de ferrovias. Aumentar os investimentos no setor de transporte é um desafio enorme, mas o cenário é favorável. As atuais lideranças do Ministério dos Transportes parecem engajadas em promover ousado Spending Review na área de atuação da pasta.

O Brasil é continental, com uma população densa que precisa se conectar de forma eficiente. Além disso, apresenta uma economia com enorme potencial de diversificação, capaz de exportar elevados volumes de minério, grãos e outros produtos de grande valor agregado. Precisamos rever as políticas públicas em vigor com foco na ampliação dos investimentos em infraestrutura, expandindo a participação do setor ferroviário na matriz de transporte. Nessa esteira, reduziremos o custo de transporte de mercadorias no País de forma sustentável do ponto de vista ambiental. •

José Serra, o autor deste artigo, é economista. Foi Prefeito, Governador e Senador por S. Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 22.06.23.

Evento jurídico em Lisboa reúne um terço de STF e STJ

Organizado por Gilmar Mendes e Luís Felipe Salomão, fórum faz parte do circuito de candidatos ao STJ em busca de apoio

Evento em Lisboa reunirá um terço do STF (Supremo Tribunal Federal) e STJ (Superior Tribunal de Justiça) (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress) - Folhapress

O 11° Fórum Jurídico de Lisboa, que acontece entre os dias 26 e 29 de junho, irá reunir quase um terço do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e do STF (Supremo Tribunal Federal).

Será um dos eventos do circuito internacional que candidatos a tribunais superiores devem percorrer em busca de apoio.

Atualmente, o STJ está com três vagas em aberto: duas destinadas a magistrados estaduais e uma para o quinto constitucional, destinado a advogados.

Para a primeira, há 59 desembargadores candidatos; para a segunda, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) selecionou seis para o STJ afunilar em uma lista tríplice.

O evento em Lisboa é organizado pelo ministro do STF Gilmar Mendes, com o apoio do corregedor nacional de Justiça, Luís Felipe Salomão. Está confirmada a presença de 10 dos 30 ministros do STJ em exercício e três dos 10 do STF — o advogado Cristiano Zanin só deve tomar posse no segundo semestre para completar a formação de 11.

Participam ainda nove ministros do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), entre eles Flávio Dino (Justiça) e o vice-presidente Geraldo Alckmin, que podem ter influência na escolha final.

Esses eventos internacionais são vistos pelos candidatos como uma boa oportunidade para um contato mais informal com as autoridades que participarão da escolha.

Além disso, com um período mais curto para campanha e com tantos candidatos, servem como uma forma de conseguir driblar a busca pelos gabinetes.

Fazem parte do circuito, ainda, o evento da Academia Paulista de Magistrados, comandada pelo desembargador Heraldo de Oliveira, em Paris, entre 28 e 30 de junho, e o do Ipeja (Instituto de Pesquisa e Estudos Jurídicos Avançados) em Coimbra, no início de julho.

A presidente da corte, Maria Thereza, marcou para 23 de agosto a votação da lista quádrupla para as cadeiras reservadas a desembargadores estaduais, e da lista tríplice para ocupar o quinto constitucional dedicado à advocacia. Os nomes serão posteriormente encaminhados para a escolha de Lula.

Juliana Braga, originalmente, para o Painel da Folha de S. Paulo, em 21.06.23, às 19h09

Covarde sei que te podem chamar

Bolsonaro prepara-se para, como sempre, jogar a culpa do golpe nos cúmplices que ele aliciou

Bolsonaro e Mauro Cid no Palácio do Planalto - Adriano Machado - 18.jun.19/Reuters

Em duas colunas de 2021 (26/1 e 28/1), compilei 170 palavras para definir Bolsonaro, nenhuma delas muito lisonjeira. Em ordem alfabética, iam de abutre, boçal e charlatão a trambiqueiro, ultrajante e vigarista, passando por classificações científicas, como fascista, genocida e golpista. Como se esperava, Bolsonaro não se ofendeu —porque está abaixo de qualquer ofensa. Mas uma palavra perdida entre as 170 é a que hoje melhor o define e talvez venha a ser adotada até pelos que o cercavam no tempo das onipotências: covarde.

Não é novidade. Ele sempre foi. Todos nos lembramos de sua blenorrágica verborreia contra juízes, instituições, minorias, urnas, vacinas e a própria vida por sentir-se amparado pelo grande irmão, o Exército. E de como, ante uma reação da sociedade, "retratava-se", sabendo que suas afrontas já estavam nas redes sociais.

São muitos os comparsas de quem Bolsonaro se serviu e, quando algo deu errado, virou-lhes as costas ou atirou-lhes a culpa —Fabricio Queiroz, Daniel Silveira, Roberto Jefferson, Carla Zambelli, Anderson Torres. Donde, mesmo que publicamente insuflados por ele ao golpe, que os coronéis Mauro Cid, Jean Lawand e demais golpistas não tenham ilusões. Assim como Bolsonaro amarelou no 8/1 e os fez de otários, não contem com ele para dividir as penas pelo golpe frustrado. No tribunal, suando nas mãos, Bolsonaro balbuciará covardemente que tudo partiu deles.

Neste momento, até os aliados políticos se revoltam por Bolsonaro estar brochando diante do que o espera no TSE. Acham que ele deveria defender-se, reagir, espernear. Mas Bolsonaro parece achar bom negócio a inelegibilidade, desde que não vá preso. Uma vez covarde, sempre covarde.

Um samba de Ataulpho Alves e Mario Lago, "Atire a Primeira Pedra", imortalizado por Orlando Silva em 1943, poderia consolá-lo. Começa com o verso "Covarde sei que me podem chamar

Ruy Castro, o autor desta crônica, é Jornalista, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 21.06.23, às 12h31.

O que disse Cristiano Zanin, aprovado para o STF, sobre imparcialidade, drogas, aborto e outros temas sensíveis

Imparcialidade, drogas, aborto, liberdade expressão, entre outros — na sabatina que o confirmou para assumir o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), o advogado Cristiano Zanin Martins foi questionado pelos senadores sobre uma grande variedade de temas atuais e sensíveis.

Zanin foi indicado para a vaga do ex-ministro Ricardo Lewandowski (Crédito da foto: Geraldo Magela / Ag. O ESTADO).

Zanin foi aprovado na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) do Senado (por 21 votos a favor e 5 contra) e em seguida no plenário (58 a 18).

Como é praxe nas sabatinas, novo ministro não aprofundou seu posicionamento em assuntos mais polêmicos com a justificativa de que os temas podem ser julgados pelo STF e ele não pode antecipar o voto - além de precisar analisar questões técnicas e fatos de cada caso em julgamento.

No entanto, as respostas de Zanin ajudaram a diminuir um pouco as incógnitas em torno de sua figura - que cultivou descrição ao longo de sua atuação como advogado de Lula nos últimos anos.

Relação com Lula e imparcialidade

Bombardeado por perguntas sobre sua relação profissional e pessoal com Lula vindas de diversos senadores, Zanin - que defendeu o petista nos casos da operação Lava Jato - afirmou que teve bastante convivência com o presidente como seu advogado, mas que sempre defendeu a importância da imparcialidade dos julgadores e que pretende agir de acordo.

Respondendo a uma pergunta do senador Sergio Moro (União-PR), esclareceu que não foi padrinho de casamento de Lula (como Moro disse ter lido na internet) e que, neste ano, a única ocasião em que esteve presencialmente com o presidente foi quando recebeu o convite para o cargo no Palácio do Planalto.

O encontro cara a cara com Moro foi o primeiro desde as intensas trocas entre os dois durante o julgamento dos processos.

"Então minha relação com o presidente tem esses contornos - jamais vou negá-la, ao contrário, sou grato pela indicação", disse Zanin, que afirmou também que terá uma atuação imparcial e não terá problemas em se declarar impedido em casos em que estejam presentes os critérios para suspeição.

"A imparcialidade do julgador é um elemento estruturante da Justiça, é fundamental para assegurar a credibilidade do sistema de Justiça. Todas as medidas que eu possa adotar para assegurar a credibilidade do sistema de Justiça, eu farei", afirmou.

"Minha função jamais será a de proteger um partido ou grupo político em detrimento do outro. Não tenho filiação partidária, não tenho atividade político partidária", disse ele.

"O exercício da Corte demanda atuação imparcial e independente do magistrado. Isso é o que sempre defendi na minha carreira profissional, não só nos tribunais nacionais mas no comitê de direitos humanos da ONU", afirmou.

"É um assunto que sempre me preocupou. Eu sempre defendi a atuação imparcial e se aprovado defenderei com ainda mais rigor."

Zanin obteve vitórias no caso de Lula justamente ao conseguir decisão do Supremo em favor de seu argumento de que o presidente não teve um julgamento imparcial.

'Juiz não tem que ser protagonista'

Zanin disse que, como determina a lei, vai se declarar impedido para julgar qualquer caso em que tenha atuado como advogado, independentemente de quem defendeu.

Mas afirmou que não deve se declarar impedido em qualquer caso da Lava Jato apenas por ele ser oriundo da operação.

"Para processos futuros, é preciso analisar os autos, o conteúdo do processo, as partes. O simples fato de um processo ter a etiqueta 'Lava Jato' não pode ser um critério para controle jurídico. O critério deve ser o que a lei prevê. Se houver hipóteses de impedimento, não terei o menor problema em declarar suspeição", afirmou.

O advogado afirmou que os atributos do magistrado devem ser "equilíbrio, temperança e equidistância em relação às partes".

"O magistrado tem que ouvir em condição de igualdade as duas partes de forma equidistante e formar o seu juízo com equilíbrio. Não deve ser o protagonista do processo, mas agir com muito equilíbrio e temperança", disse, em uma aparente cutucada no senador Sergio Moro, que, quando era juiz, foi um dos "personagens" mais proeminentes durante o curso da operação Lava Jato.

O senador Rogério Carvalho fez perguntas à Zanin (Crédito: Gerald Magela / Ag. Senado)

Guerra às drogas

Zanin deu pistas sobre sua postura quanto à criminalização das drogas e a questão de se os guardas municipais podem ou não fazer revistas pessoais.

Ele afirmou que não é uma questão "de ser favorável ou não ao combate", mas uma questão de respeitar o que a lei diz sobre os limites de atuação dos agentes públicos.

"Droga é um mal que precisa ser combatido", disse ele, "e o Senado tem aprimorado a legislação nesse sentido".

"Minha visão é que a lei deve definir a atribuição do agente público, ou seja, é preciso avaliar se o agente público tem atribuição legal para realizar o ato de persecução", disse.

"O Estado não pode adotar a regra do vale tudo. O estado tem poder enorme, e ele deve ser contido sempre que usado fora do que prevê a lei ou de forma abusiva."

Os senadores Esperidião Amin e Sergio Moro participaram da sabatina (Crédito: Geraldo Magela / Ag. Senado)

Liberdade de expressão e liberdade de imprensa

Questionado sobre uma fala em seu livro em que cita a regulação de imprensa em comparação do Brasil com o Reino Unido, Zanin afirmou que defende “de forma veemente” a liberdade de imprensa "como um direito fundamental, inclusive daquele que tem o direito de ser informado".

"(Como advogado) tive oportunidade de defender a liberdade de imprensa de empresas e jornalistas que estavam tendo sua liberdade cerceada", afirmou.

Zanin disse que em seu livro não defende um modelo de disciplina, mas coloca o tema em discussão.

Quanto ao direito à liberdade de expressão, Zanin afirmou sua importância, mas disse que ela tem limites, não é um "direito absoluto, não protege um direito a cometer crimes".

"Exercício de um direito nao pode comprometer a esfera jurídica de outra pessoa", afirmou.

Direitos da população LGBT

Sobre direitos da população LGBT, Zanin afirmou na sabatina que respeita "todas as formas de expressão do afeto e do amor" e que isso é um direito fundamental.

"Isso tem que ser respeitado pela sociedade e pelas instituições", disse ele, que citou resoluções no Conselho Nacional de Justiça e do próprio STF que garantiram direitos, como a união estável entre pessoas do mesmo gênero.

"Novos julgamentos sobre esses assuntos", afirmou, "vão passar pela Constituição, pelos fundamentos, dentre eles a dignidade da pessoa humana e o objetivo fundamental da república - promover o bem de todos sem preconceitos de origem cor, idade e quaisquer outra formas."

Aborto

Em outros temas delicados, como o direito a interromper uma gravidez, Zanin evitou dar respostas tão precisas.

"O respeito à vida está previsto na Constituição. É uma garantia fundamental." disse ele.

O advogado afirmou que temos que enaltecer o direito à vida, mas, ao mesmo tempo, afirmou, "existe um arcabouço tanto da tutela do direito à vida" quanto sobre as "hipóteses de excludente de ilicitude (para mulheres que fazem o procedimento) em casos determinados", como estupro ou anencefalia do feto.

Terras Indígenas

Zanin disse que não poderia comentar o caso específico do Marco Temporal (tese jurídica que diz que os povos indígenas (que visa restringir a demarcação de terras às ocupadas em 1988) para não antecipar votos.

Mas afirmou que a Constituição prevê tanto o direito à propriedade privada quanto os direitos dos povos originários.

"Então, nessa questão é preciso sopesar esses valores e conciliar os dois direitos", disse.

Foro Privilegiado

Zanin afirmou que o foro privilegiado para autoridades é um assunto sobre o qual o entendimento do Supremo já está consolidado. Uma das decisões mais recentes da Corte restringiu o foro para atos cometidos durante o mandato.

"Não posso e nem deveria analisar um julgamento que já ocorreu. Eventuais mudanças podem ser realizadas pela via do Congresso", afirmou Zanin.

Liberdade religiosa

Sobre liberdade religiosa, Zanin destacou que o Estado brasileiro é laico, mas que assegura a liberdade de crença e de religião a todos os cidadãos.

"Prestigiar a liberdade religiosa é prestigiar também o texto constitucional", disse ele.

Zanin ponderou que a liberdade religiosa não pode extrapolar a ponto de ofender um terceiro.

A pergunta havia sido feita pelo senador Carlos Viana (Podemos-MG) que disse que há "pastores e padres sendo perseguidos" e acusados de homofobia.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 22.06.23

Bolsonaro no TSE: 3 cenários possíveis de julgamento que pode deixar ex-presidente fora de eleições

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deve iniciar na quinta-feira (22/06) o julgamento de uma ação que pode tornar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seu candidato a vice, Walter Braga Netto (PL), inelegíveis por até oito anos.

Jair Bolsonaro (à direita) e Hamilton Mourão durante cerimônia de diplomação no TSE, em 2018. Agora, ex-presidente pode ficar inelegível por até oito anos (Crédito da foto: Valter Campanato / SAg. Brasil).

O julgamento vem sendo bastante aguardado por parte da cena política uma vez que Bolsonaro é visto como o principal líder da direita no Brasil e maior adversário do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) hoje.

Se a decisão acarretar na inelegibilidade, Bolsonaro ficaria impedido de concorrer às eleições presidenciais de 2026, entretanto, o ex-presidente ainda poderia apelar contestando a sentença.

Diante da expectativa em torno do julgamento, a BBC News Brasil consultou especialistas em Direito Eleitoral sobre os três principais cenários que podem ocorrer ao longo do julgamento que pode definir o futuro do ex-presidente.

Segundo eles, o julgamento deverá ser demorado, diferentemente do que ocorreu com o ex-deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR), que foi jullgado em uma única sessão e terminou com seu mandado cassado.

Eles afirmam que um cenário com pedido de vistas não está descartado, o que paralisaria o julgamento.

Entretanto, eles também afirmam que, caso isso ocorra, é possível que outros ministros da Corte adiantem seus votos, o que indicaria qual é a tendência no tribunal em relação ao caso.

Alvo de 16 ações

Bolsonaro enfrenta 16 ações na Corte. O caso mais avançado é um processo movido pelo PDT ainda no ano passado e que será julgado agora.

Nele, a chapa da qual Bolsonaro faz parte é acusada de ter cometido abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação social quando reuniu em julho de 2022 dezenas de diplomatas no Palácio da Alvorada para apresentar falsas teorias sobre a insegurança das urnas e atacar ministros do TSE e do Supremo Tribunal Federal (STF).

O encontro ocorreu antes do início da campanha eleitoral, em que Bolsonaro foi derrotado por Lula em votação no segundo turno. A Procuradoria-Geral Eleitoral (PGE) se manifestou a favor da condenação de Bolsonaro.

A defesa do ex-presidente, por sua vez, argumenta que o evento não tinha caráter eleitoral e que o então presidente usou sua liberdade de expressão para manifestar preocupações legítimas sobre a integridade das eleições brasileiras.

Caso seja condenado, Bolsonaro pode ficar inelegível e impossibilitado de disputar cargos públicos. A pena pode ser ampliada a Braga Netto, que hoje é apontado como pré-candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro nas eleições de 2024.

Como a BBC News Brasil mostrou nesta semana, apesar da importância do julgamento, a mobilização da militância bolsonarista nas redes sociais ainda é dispersa.

Ao longo dos seus quatro anos de mandato, Bolsonaro levantou suspeitas sem provas de que o sistema eleitoral do Brasil não era seguro (Crédito da foto: Reuters)

Julgamento sumário? Improvável

Especialistas afirmam que o julgamento de Bolsonaro dificilmente acontecerá na mesma velocidade do que cassou o mandato do agora ex-deputado Deltan Dallagnol.

Dallagnol foi cassado por unanimidade pelo TSE em uma sessão realizada no dia 16 de maio.

Ele era acusado de ter burlado a Lei da Ficha Limpa ao pedir exoneração do seu cargo de procurador da República para fugir de eventuais punições em processos administrativos.

Dallagnol e sua defesa rebateram as acusações e alegam que ele era inocente.

O julgamento foi marcado pela rapidez com que o caso foi finalizado. Em pouco mais de uma hora, todos os ministros votaram pela condenação do ex-deputado.

O advogado Alberto Rollo, especialista em Direito Eleitoral, e a advogada Juliana Bertholdi, que também tem especialização na área, avaliam que a tendência é que o caso de Bolsonaro não seja resolvido da mesma forma e que uma sentença, no cenário mais rápido, só saia nos próximos dias.

"Esses julgamentos são imprevisíveis, mas há uma indicação de que o julgamento pode demorar mais porque houve uma reserva das três próximas sessões do TSE para esse caso. Não é um procedimento comum e isso pode indicar que a expectativa dentro do tribunal é de que as discussões sejam longas", afirma Bertholdi.

"A gente espera que o relator (ministro Benedito Gonçalves, o mesmo do caso de Deltan) faça um voto bastante longo, que pode tomar todo o espaço da sessão de quinta-feira. Isso levaria o caso para continuar a ser julgado na semana seguinte", diz Rollo.

Bertholdi aponta que um dos motivos pelos quais o julgamento de Bolsonaro deve ser mais longo que o de Deltan é a natureza distinta dos casos.

No episódio envolvendo o ex-deputado federal, Deltan era alvo de um processo para avaliar a regularidade do registro de sua candidatura. Bolsonaro, por outro lado, é alvo de uma ação de investigação judicial eleitoral (AIJE).

"Uma ação para registro de candidatura é um processo mais simples. Você avalia se os requisitos foram preenchidos e decide. Uma AIJE, por outro lado, é mais complexa, envolve uma série de procedimentos como a coleta de provas, testemunhas e isso pode fazer com que o processo de análise dos julgadores seja mais demorado", afirma.

Rollo afirma que um dos motivos para que o julgamento de Bolsonaro possa ter um andamento diferente do de Deltan é o "tamanho político" do ex-presidente.

"Bolsonaro é maior que Deltan, e há uma expectativa sobre as mensagens que os ministros irão passar à sociedade durante o julgamento. Acredito que parte dos ministros vai aproveitar o julgamento para enviar mensagens jurídico-políticas sobre o caso", diz.

Kássio Nunes Marques foi indicado por Bolsonaro ao STF. Há expectativa de que ele possa pedir vistas do processo, o que atrasaria o julgamento do ex-presidente (Crédito da foto: ASCOM/TRF1)

Pedido de vista: possibilidade concreta

Um dos cenários possíveis durante o julgamento de Bolsonaro é que algum dos ministros ou ministras do TSE peçam vistas do processo, o que pode atrasar a conclusão do caso.

O pedido de vistas é um procedimento previsto por lei e tem o objetivo de dar mais tempo a um determinado magistrado para analisar melhor as provas ou teses apresentadas tanto pela defesa quanto pela acusação.

O uso da medida em algumas cortes como o STF é criticado porque não há punições para os magistrados que demoram a devolver o processo para que ele possa ser finalizado.

Operadores do Direito afirmam que a ferramenta também pode ser usada para, politicamente, atrasar o julgamento de um determinado caso.

No TSE, no entanto, uma resolução aprovada em fevereiro deste ano estabeleceu um prazo máximo a ser cumprido pelos magistrados em caso de pedido de vistas.

Pela nova regra, os ministros podem pedir vista por 30 dias renováveis por apenas mais 30 dias.

"Qualquer magistrado ou magistrada pode pedir vistas. Caso isso ocorra, o julgamento só deve ser finalizado no segundo semestre", diz Rollo.

O plenário do TSE é composto por sete ministros. Três são oriundos do STF: Alexandre de Moraes (atual presidente), Cármen Lúcia e Kássio Nunes Marques. Outros dois são do Superior Tribunal de Justiça (STJ): Benedito Gonçalves (corregedor) e Raul Araújo Filho. Os outros dois são membros da advocacia: Floriano de Azevedo Marques Neto e André Ramos Tavares.

Nas últimas semanas, a expectativa em torno de um eventual pedido de vistas ficou sob Kássio Nunes Marques, que foi indicado ao STF pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2020.

A possibilidade de que ele pudesse pedir vistas do processo, atrasando o julgamento, vem sendo levantada por analistas políticos por conta da suposta proximidade entre Kássio Nunes Marques e Bolsonaro.

Apesar disso, segundo o portal UOL, o ministro classificou essa possibilidade como "pura especulação".

"Nunca tratei desse assunto com ninguém; pura especulação", disse o ministro ao portal.

Votos podem ser antecipados?

Um terceiro cenário avaliado por Alberto Rollo é a possibilidade de que os ministros e ministras do TSE adiantem seus votos mesmo diante de um pedido de vistas.

Por tradição, sempre que isso ocorre, o processo é suspenso, e os ministros que ainda faltarem votar aguardam o reinício do julgamento para proferirem seus votos.

Rollo, no entanto, avalia que diante da importância do caso, é possível que os demais ministros possam adiantar seus votos.

"Ainda que haja um pedido de vistas, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, pode perguntar aos demais ministros se eles querem divulgar seus votos. Isso já deixaria uma indicação clara sobre qual o desfecho mais provável do julgamento", afirma.

Como a corte é composta de sete magistrados, são necessários quatro votos para condenar ou absolver um réu.

Juliana Bertholdi diz que a possibilidade de antecipação de votos existe, embora não seja usual.

Ela diz, porém, que apesar de os votos poderem ser antecipados e uma maioria formada, isso não significa que o julgamento estará virtualmente encerrado.

"O regimento permite que haja mudanças nos votos dos ministros mesmo depois que eles proferem suas posições. Ou seja: vamos ter, realmente, que esperar o fim do julgamento para saber o que vai acontecer", afirma a advogada.

Leandro Prazeres, de Brasília - DF para a BBC News Brasil, em 22.06.23

Ex-senador Demóstenes Torres aponta Toffoli como “símbolo do Brasil da conciliação”

Em artigo, procurador de Justiça aposentado e advogado afirma que “estadista do STF buscou incessantemente o equilíbrio”

José Antonio Dias Toffoli, ministro do Supremo Tribunal Federal (Crédito da foto: Carlos Moura/SCO/STF)

Em artigo publicado nesta quarta-feira (21), o ex-senador Demóstenes Torres exaltou o histórico do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) José Antonio Dias Toffoli como integrante da Suprema Corte e, entre 2018 e 2020, presidente dela.

No texto, publicado pelo portal “Poder360”, o ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado se refere a Toffoli como “símbolo do Brasil da conciliação”, dizendo que ele teve “a honra espancada” por petistas e bolsonaristas, mas “não revidou”.

“Sob seu comando, a Corte julgou com isenção e conviveu com a política, o jurídico, o outsider, os profissionais, os patriotas, os vermelhos, os verdes, os amarelos. Toffoli mostrou por que é chamado de doutor: não é por título nem pelo cargo, mas pela habilidade em manter a chama da democracia sem ameaça de incêndio, não importava que banda tocasse”, escreveu.

No mesmo texto, Demóstenes chama Toffoli de “estadista em busca de equilíbrio”.

“O estadista do STF buscou incessantemente o equilíbrio, mesmo que para isso tivesse de conviver com desequilibrados. O grupo que na campanha miava contra a Corte, ao ser vitorioso nas eleições passou a rosnar e ao assumir começou a morder. A turma derrotada também berrava contra”, afirmou.

E continuou: “O líder do Judiciário suportou, contemporizou, articulou, mesmo que a poucos passos na mesma praça o cabeça do outro poder continuasse na ribalta, estilingue à mão, atirando pedras e perdas”.

O ex-senador ainda citou o advogado Cristiano Zanin, sabatinado pela CCJ nesta quarta após ser indicado ao STF pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Ainda segundo Demóstenes, Toffoli abre caminho para que Zanin “se inspire em alguém com cultura jurídica e livresca”.

“Há excelentes vitrines de caráter em sua nova Casa. Caso Zanin observe Toffoli haverá Brasil no futuro, pois seu legado na presidência do STF e na apreciação de diversos casos essenciais para a sociedade é exatamente o de que a bonança vence a tempestade. A bondade de Toffoli é vencedora”, concluiu o ex-senador.

*Publicado por Léo Lopes, da CNN / Leia a íntegra do artigo em  https://www.poder360.com.br/opiniao/entre-deuses-e-santos-um-homem-toffoli/.