quarta-feira, 21 de junho de 2023

Inelegibilidade é muito pouco para punir Bolsonaro

É um despropósito a Justiça ter de brincar de Al Capone para tentar cercá-lo

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL)  (Evaristo Sá/AFP)

É uma piada de mau gosto Jair Bolsonaro ser julgado por abuso de poder político depois de tudo o que esse sujeito causou ao Brasil. Imagino que, numa análise fria, a inelegibilidade, pena que ele pode vir a receber, seja suficiente para alguns. Para outros, é só começo do inferno astral.

Para mim, é um despudor que esse traste ainda esteja por aí se lambuzando de Chopard e de leite condensado e a Justiça tenha que brincar de Al Capone para tentar cercá-lo.

Não à toa, essa comparação tem sido feita ad infinitum. O mafioso era acusado de assassinato, contrabando, tráfico, suborno, rede de prostituição e jogos ilegais, mas foi enquadrado por sonegação de impostos.

Tal qual o miliciano que ocupou o Planalto, envolvido em prevaricação, charlatanismo, crimes de responsabilidade, crimes contra a humanidade, falsificação de documentos, crime de lesa-pátria, ameaças ao Estado democrático de Direito, má gestão na pandemia, genocídio, ataques ao sistema eleitoral, estes muito antes da reunião com os embaixadores, que lhe podem render o gancho eleitoral.

O que temos para o momento? Inelegibilidade. Uma palavra grandona, mas uma pena muito pequena. É chacota com os brasileiros. Jair Bolsonaro sequestrou um país inteiro, puxou o freio de mão da nossa história, passamos os últimos quatro anos numa contagem regressiva apenas esperando para sair do cativeiro. Ainda que possa ser apenas o começo do seu acerto de contas, no futuro as próximas gerações olharão com assombro a passividade do Parlamento e da Justiça, cúmplices na manutenção da sociedade como refém de um golpista e seus capangas.

Ou talvez a inelegibilidade para Bolsonaro seja o máximo possível num país que deixa livre o motorista bêbado que mata pedestre, a dona de casa que deixa cair do prédio o filho da empregada, os maridos que matam suas mulheres, mas que bota na cadeia gente que rouba para comer ou para não morrer de frio.

Mariliz Pereira Jorge, a autora deste artigo, é Jornalista e roteirista de TV. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo (edição impressa) em 20.06.23, às 19h32

"Rússia sob Putin se assemelha à Alemanha nazista"

Segundo o cientista político Francis Fukuyama, única ideologia de Moscou é um nacionalismo extremo, ainda menos desenvolvido que o nazista. Retorno de Trump em 2024 "resolveria todos os problemas da Rússia", alerta.

Francis Fukuyama ficou famoso com seu livro "O fim da história e o último homem", de 1992. (Foto: Aristidis Vafeiadakis/Zumapress/picture alliance)

Francis Fukuyama foi alçado à fama em 1989 ao publicar o artigo "O fim da história", em que argumentava que a democracia liberal e o capitalismo de livre mercado são o ponto final da evolução sócio - cultural da sociedade. Três anos depois, o cientista político, filósofo e economista nipo-americano publicaria "O fim da história e o último homem", expandindo essas ideias.

No fim de junho, autoridades da Rússia proibiram Fukuyama de entrar no país. A DW conversou com ele poucos dias depois de seu ingresso no conselho consultivo da organização Anti-Corruption Foundation International, criada pelo dissidente russo Alexei Navalny, que está preso.

Na entrevista, Fukuyama disse ser uma honra estar na lista de críticos de Moscou, um regime que, segundo ele, hoje mais se parece com a Alemanha nazista.

"Sua única ideologia é uma espécie de nacionalismo extremo, mas ainda menos desenvolvido que o dos nazistas. É também um regime muito mal institucionalizado. Realmente gira em torno de um homem, Vladimir Putin, que controla de fato todas as grandes alavancas do poder."

O cientista político de 69 anos também elaborou sobre um eventual retorno de Donald Trump à Presidência americana em 2024, que "resolveria todos os problemas da Rússia".

"Ele (Trump) aparentemente está comprometido em retirar os Estados Unidos da Otan. A Rússia terá alcançado seus principais objetivos simplesmente por essa mudança na política americana", alerta.

DW: Como o senhor se sente por estar na lista de proibidos de entrar na Rússia?

Francis Fukuyama: Considero uma honra estar na lista. Todos os críticos estrangeiros importantes da Rússia e da invasão russa da Ucrânia foram incluídos nessa lista, e na verdade eu estava me perguntando por que eles demoraram tanto para chegar até mim.

Por que se juntou ao conselho da Anti-Corruption Foundation?

Sou um grande admirador de Alexei Navalny, conheci-o em Varsóvia em 2019. Corrupção é um problema muito grande na Rússia e em todo o mundo, e estou muito feliz em apoiar a fundação dele de todas as maneiras possíveis.

O presidente russo, Vladimir Putin, disse recentemente: "Nós apenas começamos", referindo-se à guerra na Ucrânia. Ele está blefando?

Acho que ele está mentindo, assim como sobre muitas coisas. Analistas militares do Ocidente que têm observado o dispositivo de forças russo notaram que, no momento, a Rússia está passando por uma escassez de contingente muito grave.

"É por isso que Putin nos odeia"

Eles perderam talvez um terço de todas as forças originalmente reunidas para derrotar a Ucrânia. As estimativas de baixas russas são incertas, mas foram possivelmente 20 mil mortos e talvez 60 mil feridos, além dos prisioneiros. E para um país do tamanho da Rússia, isso é realmente um desastre militar.

Então acho que, levando em conta que os russos tiveram ganhos muito marginais nos dois meses desde que começaram a se concentrar no Donbass, não acho que eles tenham muito de reserva, e Putin está blefando quando diz que estão apenas começando.

Qual poderia ser uma estratégia bem-sucedida para a Ucrânia?

A estratégia mais realista neste momento é focar no sul, para reabrir o acesso da Ucrânia ao Mar Negro, retomando Kherson e outros portos no Mar de Azov. Isso é mais importante do que o Donbass [região do sul da Ucrânia em parte no poder de separatistas pró-russos]. Acredito que retomar o Donbass será bastante difícil nos próximos meses.

Mas até o final do verão [junho a setembro na Europa], seria possível ver algum progresso real no sul. É muito, muito importante para a Ucrânia recuperar esse acesso, para que possa retomar as exportações de todos os seu produtos agrícolas a partir de seus portos do Mar Negro e quebrar o bloqueio russo de Odessa.

Como a situação poderia mudar se Donald Trump fosse reeleito presidente dos Estados Unidos?

Se Donald Trump voltar em 2024, isso resolve todos os problemas da Rússia, porque ele aparentemente está comprometido em retirar os EUA da Otan. A Rússia terá alcançado seus principais objetivos simplesmente por essa mudança na política americana.

E é por isso que acho muito importante a Ucrânia fazer algum progresso e recuperar o impulso militar durante o verão, porque a unidade no Ocidente realmente depende de se acreditar que há uma solução militar para o problema no curto prazo.

Caso se sinta que estamos simplesmente enfrentando um impasse prolongado que vai durar para sempre, então acho que a unidade começará a se romper, e haverá mais pedidos de que a Ucrânia ceda território para acabar com a guerra.

Como vê a Rússia numa perspectiva global mais ampla? Qual é o tipo de regime político?

Mais do que qualquer outra coisa, ela realmente se parece com a Alemanha nazista neste momento. Sua única ideologia é uma espécie de nacionalismo extremo, mas ainda menos desenvolvido que o dos nazistas. É também um regime muito mal institucionalizado. Realmente gira em torno de um homem, Vladimir Putin, que controla de fato todas as grandes alavancas do poder.

Comparados com a China, eles são muito, muito diferentes. A China tem um grande Partido Comunista com 90 milhões de membros, tem muita disciplina interna. No caso da Rússia, não há esse tipo de institucionalização.

Portanto, não acho que seja um regime estável. Não acho que tenha uma ideologia clara que seja projetável. Acho que quem se alinha com ela (Rússia) é simplesmente alguém que não gosta do Ocidente por diferentes razões.

Trinta anos depois, o senhor tem alguma atualização sobre seu conceito de fim da história?

Estamos numa situação diferente da que estávamos há 30 anos. Tem havido retrocessos na democracia em geral, inclusive nos Estados Unidos, na Índia e em outros grandes países democráticos nos últimos anos. Mas o progresso da história nunca foi linear.

Tivemos grandes contratempos na década de 1930 aos quais sobrevivemos. Tivemos outro conjunto de contratempos na década de 1970, com a crise do petróleo e a inflação em muitas partes do mundo. Portanto, a ideia de progresso histórico não está morta.

Às vezes há contratempos, mas as instituições e ideias subjacentes são fortes e sobreviveram por um longo tempo, e espero que continuem a sobreviver.

A guerra na Ucrânia e outras crises políticas flamejantes estão ofuscando a crise climática mais global e perigosa?

Obviamente, as necessidades energéticas de curto prazo levaram a um ressurgimento dos combustíveis fósseis e retardaram o progresso na redução das emissões de carbono. Mas é um retrocesso temporário. E acho que é preciso lidar com ambas as questões, não é uma escolha entre uma ou outra. Realmente é preciso levar as duas a sério.

Mas a crise climática é uma que se desenrola lentamente e continuará conosco pelas próximas gerações. E, portanto, não acho que o fato de estarmos retrocedendo agora seja necessariamente a posição final em que acabaremos.

 Mikhail Bushuev | Sonya Angelica Diehn para a Deutsche Welle Brasil, em 21.06.23

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Brasil fez acordo sigiloso com Arábia Saudita para suprir fábrica de explosivo

Governo brasileiro elevou autorizações de exportação de tecnologia militar para Arábia Saudita, durante gestão Jair Bolsonaro

Bolsonaro com Mohammed bin Salman, príncipe da Arábia Saudita (José Dias / PR)

Plantas devem atender toda a demanda militar do regime saudita por explosivos e espoletas de detonação de bombas.

O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) consolidou um acordo sigiloso de exportação de produtos e tecnologias para a Arábia Saudita construir a sua primeira fábrica própria de explosivos militares. As plantas foram criadas por uma empresa brasileira sob demanda do regime saudita que pretende, até 2030, “suprir toda a demanda militar” do país por explosivos e espoletas de detonação de bombas, itens que podem ser úteis em guerras e conflitos no Oriente Médio.

A autorização para a venda de equipamentos e serviços ao regime de Mohammed Bin Salman foi concedida no segundo semestre de 2018, na reta final da gestão de Michel Temer. As principais etapas da construção se desenvolveram sob o governo Bolsonaro. Em paralelo, ele aumentou autorizações para exportação de tecnologia militar aos sauditas.

Com Bolsonaro, cresceu o interesse da indústria militar em negócios com a Arábia Saudita. A emissão de autorizações pelo governo brasileiro também. Os dados obtidos pelo Estadão são inéditos. Em 2019, 2020 e 2021 houve 21 pedidos de empresas à gestão Bolsonaro, dos quais 17 foram deferidos. Eram contratos para venda de armas, blindados, bombas e serviços. Nos anos anteriores, o interesse brasileiro no país foi menor. Entre 2017 e 2018, houve dez pedidos, sendo oito autorizados. Em 2015 e 2016, nenhum.

A empresa que pediu e recebeu autorização do governo brasileiro para fechar o contrato é a Mac Jee, com sede em São José dos Campos (SP). A estrutura montada tem cerca de 500 mil metros quadrados e fica dentro da Saudi Chemical Company Limited (SCCL), maior empresa de produção de energia civil e militar do país.

COMPONENTES. A fábrica produz TNT e RDX, componentes usados para determinados tipos de bombas. Todo o processo de autorização e de contratação é protegido por sigilo. Procurados, os ministérios que lidam com o tema informaram que não poderiam comentar motivações ou condições do acordo da Mac Jee. O valor do contrato é desconhecido.

Por serem armas consideradas de alto poder destrutivo, o governo brasileiro não poderia permitir a exportação em razão de acordos internacionais. Em 1995, o País assinou o Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR), de não proliferação de armas de destruição em massa. Assim, o Brasil deveria ter pedido garantias da Arábia Saudita de que isso não ocorreria, sob pena de sanções. O governo diz não poder se manifestar. 

Contexto

O Estado de S. Paulo.19 Jun 2023

• O perigo do RDX

Em 2021, agências de inteligência americanas descobriram queoauditas estavam produzindo mísseis balísticos com a ajuda da China. O RDX poderia equipar ogivas.

• Viagens e joias

No período da construção da fábrica, várias comitivas foram a Riade. Em uma delas, joias avaliadas em R$ 5 milhões foram entregues ao ministro Bento Albuquerque, que tentou entrar com elas ilegalmente no Brasil.

Vinicius Valfré , o autor desta matéria, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 19.06.23

Novos testes para o Estado Democrático de Direito

A democracia resistiu aos abusos de populistas como Boris Johnson, Donald Trump ou Jair Bolsonaro. Agora, o escrutínio desses abusos impõe desafios à política e à Justiça de seus países

Quando se fala das ameaças do populismo à democracia é importante lembrar que não basta ao Estado ser “Democrático”, é preciso que seja também “de Direito”. A legitimidade dos representantes políticos depende da escolha popular, mas também do respeito à lei, tal como interpretada pelo Judiciário. Em contrapartida, a Justiça deve evitar se imiscuir em deliberações políticas via interpretações extensivas da lei. O equilíbrio desse sistema será, mais uma vez, testado em velhas democracias, como a dos EUA e do Reino Unido, e em novas, como a do Brasil.

No centro desses testes estão três ex-incumbentes populistas: Donald Trump, Boris Johnson e Jair Bolsonaro. Os três fizeram carreira estimulando um culto à personalidade, apresentando-se como vingadores do “povo” genuíno contra “elites” corruptas e proclamando-se nacionalistas nostálgicos, indispensáveis para restaurar a grandeza da pátria. Com essa autoatribuída missão, de posse do mandato popular, os três se julgaram livres para romper convenções e afrontar instituições. Em parte por isso, os três foram rejeitados pela vontade popular – Trump e Bolsonaro, diretamente pelas urnas, e Johnson, pelos representantes eleitos no Parlamento.

Além do sistema democrático, o sistema de Justiça de seus países – ao contrário de outros, como Rússia, Turquia, Hungria ou Venezuela – resistiu às suas tentativas de empregar a lei como arma contra adversários. Agora que estão fora do poder, a Justiça enfrentará um novo teste. Os abusos de Johnson não chegaram a extrapolar a esfera política, mas os de Trump e Bolsonaro estão sob escrutínio do Judiciário.

No dia 9, Johnson, ante a iminência de um inquérito parlamentar que julgaria se ele mentiu a respeito de festas clandestinas durante os lockdowns, renunciou ao seu mandato legislativo. Na mesma semana, Trump, já o primeiro ex-presidente a ser indiciado por crime – pela Corte do Estado de Nova York sob acusação de violação de regras eleitorais –, tornou-se o primeiro indiciado por crimes federais – por, alegadamente, reter documentos sigilosos. No dia 22, Bolsonaro será julgado no Tribunal Superior Eleitoral pela acusação de abuso do poder político.

Tais processos afirmam o princípio basilar do Estado de Direito: ninguém está acima das leis. Mas sua sensibilidade política impõe um novo desafio. Se antes se testou a independência da Justiça, agora se testará sua isenção. Se antes ela resistiu a ser um instrumento do poder político, agora deve resistir a ser um instrumento de retaliação política.

A Justiça, por óbvio, deve ser sempre imparcial. Mas, em casos em que suas decisões impactam deliberações da vontade popular, não basta ser imparcial, é fundamental parecer. Não basta a observância rigorosa dos ritos legais, é preciso especial acurácia com a publicidade dos processos, justamente para imunizá-los contra a desvirtuação de facções políticas, seja para se martirizar, para se vingar ou para desmoralizar a própria Justiça.

Johnson, Trump e Bolsonaro já estão alardeando “perseguição política”. No caso de Johnson, a implausibilidade é mais evidente: sua deposição e a atual investigação foram corroboradas por membros de seu próprio partido, que têm legitimidade para impedir que ele concorra novamente pela legenda. No caso de Trump, o veredicto final virá da vontade popular. Mesmo condenado, ele pode concorrer. É um sintoma do mal-estar da democracia americana que ele seja o favorito do partido Republicano e que seus partidários estejam, de antemão, comprando sua tese de perseguição política. De todo modo, os maiores riscos e responsabilidades restam na esfera política. Já no caso do Brasil, recaem sobre a Justiça. Ao decidir sobre a elegibilidade de Bolsonaro, ela precisa mostrar que sua função não é livrar a democracia dos “maus” políticos – essa é tarefa do eleitor –, mas somente dos que cometem crimes. Ao desafio corriqueiro de aplicar a lei sem excesso nem leniência, sem temor nem favor, soma-se o de resistir à tentação de ser um tribunal político. Ao fim e ao cabo, contudo, ambos são um só e mesmo desafio.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 19.06.23

Bolsonaro fora do jogo, uma decisão histórica

A ligeira queda na intensidade da polarização pode aumentar a esperança de terceiros, que no passado não conseguiram espaço para competir

O ex-presidente Jair Bolsonaro (Cristiano Mariz/Agência O Globo)

Começa nesta semana o julgamento de Bolsonaro no TSE. É apenas um dos muitos processos contra ele. Mas, segundo todas as previsões, não deverá escapar. Bolsonaro se tornará inelegível. Existe apenas uma possibilidade de adiar essa decisão por 90 dias, caso o ministro que ele indicou para o STF, Nunes Marques, peça vista. Mas não seria um pedido inteligente, uma vez que a sorte está lançada, com o parecer do procurador eleitoral. Uma solução rápida pode ser importante.

Bolsonaro e a corrente política que ele representa terão de encontrar uma alternativa, e isso demanda uma discussão longa. Um novo nome precisará também de alguns meses para se fixar. No processo que se julga agora, Bolsonaro é considerado por muitos indefensável. Ele reuniu embaixadores estrangeiros, usando o aparato oficial da Presidência, para criticar o sistema eleitoral brasileiro e defender o voto em papel, algo que já havia sido rejeitado.

Logo no início, seus advogados minimizaram a cerimônia, dizendo que foi apenas uma troca de ideias. Mas na verdade os embaixadores apenas ouviram e não dispõem, pelo menos até onde se sabe, de dons telepáticos. O episódio em si é muito problemático. De forma indireta, também deve pesar na decisão dos ministros a tentativa de golpe de 8 de janeiro. Ela é na verdade fruto da longa pregação de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas.

Depois do 8 de Janeiro, surgiram evidências de episódios que confirmam a preparação de um golpe, todo ele justificado pela negação do resultado das eleições. A minuta encontrada na casa do ex-ministro Anderson Torres previa uma intervenção no TSE, neutralização dos ministros, que seriam substituídos principalmente por militares. Depois disso, no episódio da falsificação dos cartões de vacinação, descobriu-se no celular de Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, uma nova e longa conversa sobre golpe. Com um fato gravíssimo e tantas circunstâncias negativas, Bolsonaro deverá se despedir do processo eleitoral, pelo menos por oito anos.

É difícil prever em detalhes as consequências dessa decisão. Mas certamente alterará a História nos próximos anos. A saída de cena de Bolsonaro não significa que os conservadores no Brasil percam força, muito menos prenuncia que a direita entrincheirada na internet esmorecerá em sua guerra de memes. A ausência de um líder carismático contribui para baixar o tom no processo eleitoral.

O presidente Lula, por sua vez, afirmou que não pretende disputar em 2026. É uma escolha que pode ser revista. De qualquer forma, é possível imaginar um cenário que reproduza o confronto que houve em São Paulo, entre Tarcísio e Haddad. São os mais prováveis nomes alternativos. Tive a oportunidade de acompanhar os debates presidenciais e de assistir aos realizados em São Paulo. Se o cenário realmente acontecer, creio que a cena política terá uma carga emotiva menor e um debate mais detalhado sobre programas.

Não há juízo de valor aí. Apenas uma constatação de que a mudança, potencialmente, poderá reduzir a intensidade da polarização. Toda essa análise na verdade conta com a reprodução em outros termos dos confrontos de 2018 e 2022. Há um fator que não incluí aqui. A ligeira queda na intensidade da polarização pode também aumentar a esperança de terceiros, que no passado não conseguiram espaço para competir à altura das duas grandes forças.

Vamos esperar o desenrolar da semana. Talvez voltemos ao assunto em 90 dias, talvez tenhamos de prosseguir no tema. Há semanas que se estendem por anos. Minha hipótese é que estamos entrando numa delas.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 19.06.23

Junho de 2013 abriu crise de legitimidade da democracia

Como passamos dos gritos de “Não me representam!” de 2013 para os gritos de “Eu autorizo!” dos golpistas de 2022?

Manifestantes marcham na Avenida Paulista em 18 de junho de 2013 (Eliária Andrade / Agência O Globo)

Intuitivamente, parece que a inquietação social despertada pelos protestos de junho de 2013 está de alguma maneira relacionada ao populismo radical de direita que ascendeu no Brasil em 2018. Em junho de 2013, os jovens nas ruas gritavam “Sem partido!” e “Não me representam!”, mas sua crítica da representação e dos partidos políticos apontava para algum tipo de democracia direta, simbolizada pelas centenas de câmaras municipais ocupadas por jovens entre o final de junho e começo de julho e pelas práticas assembleístas de movimentos como o Passe Livre (São Paulo), Assembleia Popular Horizontal (Belo Horizonte) e Bloco de Lutas (Porto Alegre).

No bolsonarismo, não há sinal de horizontalismo ou democracia direta que pretenda aprofundar a democracia, mas algo que parece a rejeição da democracia liberal, com a afirmação de um líder forte, sem os embaraços das limitações constitucionais nem o contrapeso dos outros Poderes da República. Como passamos dos gritos de “Não me representam!” de 2013 para os gritos de “Eu autorizo!” dos golpistas de 2022?

Junho de 2013 faz parte de um ciclo de levantes populares que também aconteceu noutros países entre os anos de 2011 e 2013. Eles tinham em comum a denúncia dos limites da democracia representativa e a proposição de outra forma de fazer política, mais direta. Os gritos de “Não me representam!” estavam também presentes em protestos noutras partes do mundo. O lema do 15M, movimento espanhol primo de junho de 2013, dizia “Democracia real já!”. O de outro primo, Occupy Wall Street, dizia “Nós somos os 99%”. Todos contrapunham o teatro farsesco dos parlamentos à pulsação viva e comunitária das ruas.

Em sua rejeição da representação política, tida como insuficientemente democrática, os manifestantes desse ciclo rejeitaram também as identidades políticas de esquerda e de direita. Esse, aliás, foi um dos pontos de choque entre os organizadores, ativistas de esquerda, e as multidões que acorreram aos protestos. O sociólogo Paolo Gerbaudo deu a esse fenômeno o nome de “anarcopopulismo”: “anarco” porque havia esse desejo de uma democracia direta, e “populismo” porque os manifestantes se viam como expressão integral do povo, para além das distinções entre esquerda e direita e para além das lideranças ativistas.

Há, assim, uma ligação subjacente entre o anarcopopulismo dos protestos dos mais jovens de 2013 e o populismo autoritário dos mais velhos que confluiu no bolsonarismo em 2018. Eles têm em comum uma denúncia dos limites da democracia liberal e uma busca pela expressão direta do povo. Mas, enquanto a resposta dos jovens era uma cidadania ativa que aprofundaria a democracia, a resposta dos mais velhos, cinco anos depois, era uma autoridade forte que representaria o povo diretamente, sem a mediação e as limitações das instituições liberais.

Quando, no 1º de maio de 2021, os bolsonaristas lançaram o slogan “Eu autorizo!”, queriam dizer que o povo dava autorização direta a Bolsonaro para enfrentar instituições que julgavam não democráticas, como imprensa e STF. Esse enfrentamento não era visto como antidemocrático, mas como uma espécie de democracia populista, em que o líder é empoderado diretamente pela multidão e enfrenta as limitações impostas por instituições que, segundo eles, tiram a soberania do povo.

À primeira vista não parece, mas há um impulso democratizante que anima o populismo autoritário. O cientista político Yascha Mounk diz que a atual onda populista é uma reação à ampliação das competências de instituições não eleitas, como tribunais constitucionais vistos como limitadores da soberania popular. Sempre que o Supremo impõe uma limitação ao Executivo, isso é lido pelos populistas como apropriação da soberania popular e, portanto, como encolhimento da democracia.

Talvez seja por isso que, no meio da mais séria crise da democracia brasileira, o apoio declarado ao regime democrático é o mais alto da Nova República. Segundo pesquisa do Datafolha de outubro de 2022, 80% dos bolsonaristas e 78% dos não bolsonaristas apoiam a democracia. Mas o que cada grupo entende por democracia não poderia ser mais diferente.

Pablo Ortellado, o autor deste artigo, é Professor de Gestão de Políticas Públicas na USP. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 17.06.23

Fazer o quê? E como?

Primeiro, é preciso saber quais são as propostas. Segundo, quando se sabe, qual prevalece. E terceiro, quem será nomeado para tocar as coisas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva comanda reunião ministerial (Cristiano Mariz/O Globo)

No início deste mês, dava-se como certo que a ministra do Turismo, Daniela Carneiro, seria demitida nesta semana. Não foi. Na próxima, o presidente Lula vai para a Europa, de modo que a ministra, também deputada federal pelo Rio, pode ganhar mais alguns dias, se escapar neste final de semana. Estaria o governo avaliando a política para o turismo? Teria a ministra fracassado em apenas cinco meses de governo?

Ingenuidade.

Há uma intensa discussão sobre o futuro desse ministério, mas ninguém, entre amigos e adversários da deputada, fala sobre programas para desenvolver o turismo interno ou para atrair mais estrangeiros para este belo país.

Tem mais. Daniela Carneiro integra o grupo político liderado por seu marido, prefeito de Belford Roxo, o Waguinho. O casal, com ligações à direita, apoiou Lula nas últimas eleições — e o presidente é muito grato. Logo, se a questão não tem nada a ver com turismo, tem muito a ver com a compensação que se dará ao grupo de Waguinho. Algo numa área parecida? Algo a ver com viagens? Aeroportos? Nada. Especula-se que o prefeito e sua mulher estejam interessados na gestão dos serviços de saúde do Rio. Mais exatamente, nos grandes hospitais federais. São cinco grandes. Problema: estão sob controle do PT.

De novo, não se fala de políticas para melhorar a eficiência dos hospitais, reduzir as filas de espera, coisas assim. Nos bastidores da disputa, comenta-se que essa área da saúde tem mais capilaridade e, sobretudo, muito mais verbas, contratos de prestação de serviços, compra de equipamentos e medicamentos. (Aliás, como registrou Bernardo Mello, do GLOBO, dois diretores desses hospitais, indicados pelo PT, já foram exonerados, depois de reportagens do jornal e da TV Globo, levantando questões de administração.) Repararam? A ministra tem apenas cinco meses de gestão. Os diretores, nem isso. Não daria para avaliar nenhuma política séria.

Na última reunião ministerial, Lula disse a seus auxiliares que não queria mais saber de ideias novas, mas da aplicação de propostas já definidas. Quem tem propostas? O ministro Fernando Haddad, certamente. Tem conseguido desenvolver seus programas, mas não sem enfrentar surpresas dentro do próprio governo. Ele vinha repetindo que seu objetivo é reduzir os incentivos fiscais, quando o vice-presidente e ministro da Indústria, Geraldo Alckmin, anunciou um programa de concessão de incentivos para a indústria automobilística. Haddad ainda se salvou de uma goleada feita de gols contra. Conseguiu limitar o programa de Alckmin, mas teve de entregar algumas centenas de milhões de reais.

A questão dos incentivos aparece em dois temas cruciais para o governo e para o país: a reforma tributária e o arcabouço fiscal. Qual linha prevalecerá? É a pergunta que se fazem senadores e deputados. Na verdade, uma questão mais ampla: o governo e suas bases apoiam que projeto de reforma dos impostos? São dilemas que prejudicam o funcionamento do governo. Primeiro, saber quais são as propostas. Segundo, quando se sabe, qual prevalece. E terceiro, o mais importante, quem será nomeado para tocar as coisas.

Considerem a disputa aberta entre ambientalistas e desenvolvimentistas. Estes querem os investimentos na indústria do petróleo, incluindo a exploração do óleo na Margem Equatorial, ao longo da foz do Amazonas, e na construção de ferrovias e estradas, de apoio ao agronegócio, que passam pela Amazônia. Ora, a preservação da floresta é compromisso firme de Lula, local e internacional. E os ambientalistas, liderados por Marina Silva, demonstram muita firmeza. Parece que o presidente tentará conciliar as posições.

Muitas escolhas precisam ser feitas, e logo. O governo está para anunciar uma nova versão do Programa de Aceleração do Crescimento — e ali deverão constar os investimentos e financiamentos prioritários. Aí veremos. Aliás, saberemos também o nome. PAC lembra Dilma. E está meio queimado. É outro dilema. O de menos.

Carlos Alberto Sardenberg, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 17.06.23


sexta-feira, 16 de junho de 2023

Política miúda agarra o volante no Congresso e pisa no acelerador

Primazia do centrão esvazia agenda e valoriza busca por vantagens e sobrevivência

Eis aí os representantes do Povo brasileiro, eleitos pelo voto livre e consciente, tomando posse na Câmara dos Deputados, em Brasília-DF.

Aquele Congresso travado, que faz jogo duro de votação em votação, sabe pisar no acelerador de vez em quando. A Câmara aprovou em uma hora e 58 minutos o projeto que pune o que chama de "discriminação" de políticos. A pressa era tanta que alguns deputados apertaram o botão verde antes de ler o relatório final.

O velocímetro da Câmara é um bom termômetro dos impulsos de autopreservação e busca por benesses no mundo político. Quando estão em jogo interesses pouco nobres da classe, os parlamentares costumam fechar acordos com rivais, encurtar discussões e fazer de tudo para não chamar muita atenção.

Em maio, a Comissão de Constituição e Justiça precisou de uma hora e 52 minutos para dar aval a uma anistia aos partidos que cometeram irregularidades eleitorais. No fim do ano passado, os deputados levaram 42 minutos para aprovar o projeto que flexibiliza a entrada de políticos em estatais e uma hora e 32 minutos para aumentar os salários da cúpula dos três Poderes.

Votações-relâmpago para aprovar medidas em causa própria são uma tradição de décadas, mas a política miúda finca raízes cada vez mais fundas no Congresso. Conquistar vantagens é a principal razão institucional de boa parte de um Legislativo que, no agregado, não se importa em manter laços frouxos de adesão ou oposição a agendas diferentes.

A primazia do centrão é causa e consequência desse jogo. Parlamentares aflitos por sobrevivência e sedentos por benefícios formaram um consórcio para extrair proteção e regalias de suas relações de poder. Assim, acumulam força para preservar seus mandatos e dizer, às claras, que podem votar a favor ou contra uma mesma plataforma a depender dos cargos e emendas que receberem.

Não é coincidência que o mais novo símbolo desse processo seja o projeto contra a "discriminação" de políticos. O texto foi proposto pela filha de Eduardo Cunha, o homem que refundou o centrão em 2014, e relatado por um aliado de Arthur Lira, que aperfeiçoou os métodos do grupo.

Bruno Boghossian, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 16.06.23

Acinte exposto

Deputados legislam em causa própria ao votar PL que altera norma anticorrupção

Plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília (DF) (Crédito da foto: Pedro Ladeira/Folhapress)

Quando a Câmara dos Deputados aprova um projeto de lei à noite, após uma tramitação repentina e com endossos da esquerda à direita, convém desconfiar.

Passava das 21h de quarta-feira (14) quando os parlamentares começaram a votação de um texto que favorece as chamadas "pessoas expostas politicamente", ou PEPs —uma classificação na qual eles próprios se incluem. A proposta, apresentada há menos de um mês, escapou do devido debate em três comissões temáticas da Casa.

No plenário, o projeto recebeu 252 votos favoráveis e 163 contrários. No primeiro grupo estava a maioria das bancadas presentes de partidos tão diversos quanto PT, PDT, MDB, PSD, PP, União Brasil e Republicanos.

O que mobilizou o esforço concentrado de tantas forças políticas foi o intento nada desinteressado de interferir em recomendações legais para o tratamento das PEPs, em particular na rede bancária —e, mais do que isso, impor penas a instituições financeiras que venham a criar obstáculos às pessoas enquadradas em tal condição.

Nesse rol estão os detentores de mandatos eletivos no Executivo e no Legislativo da União, ministros de Estado e de tribunais superiores, entre outras autoridades que são alvo de cuidados especiais estabelecidos pela legislação, assim como parentes e representantes.

Tais normas, que seguem padrões internacionais, buscam reforçar o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro —e foi contra isso que a Câmara acintosamente atuou com presteza inaudita.

É verdade que foram retirados alguns dos dispositivos mais escandalosos do projeto, como penas mais elevadas em casos de injúria contra PEPs. Entretanto o que sobrou ainda é muito problemático.

De modo genérico, o texto pretende punir "discriminação" contra pessoas politicamente expostas, o que pode dar margem a todo tipo de interpretação quanto ao alcance do termo. Pior, a regra é estendida a quaisquer réus de processos judiciais em curso.

Há previsão de dois a quatro anos de prisão, além de multa, a quem negar abertura de conta-corrente ou concessão de crédito devido à condição de PEP —o que obviamente configura intimidação aos bancos ou, na pior hipótese, bom pretexto para os que não desejam adotar as cautelas necessárias.

Chega a ser difícil compreender a estratégia da Câmara com a tramitação tão obviamente açodada do projeto, mas não se deve subestimar o profissionalismo do mundo político quando se trata de legislar em causa própria.

Resta esperar que o Senado ao menos promova um debate minucioso e transparente da matéria, se é que dela há algo a ser aproveitado.

Editorial da Folha de S. Paulo (editoriais@grupofolha.com.br), em 16.06.23

Mais uma lei para privilegiar nossa casta política

Cidadãos de bem, vulneráveis e perseguidos, ou cidadãos de bens acima da lei?

Arthur Lira colocou o texto à disposição dos deputados às 20h, e a votação começou dez minutos depois (Crédito da foto: Sergio Lima/AFP)

Que a nossa Câmara dos Deputados é um antro de fisiologismo, nepotismo, corporativismo e outros ismos, poucos duvidam. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Não importa o nome ou o partido do presidente da República. Cunhas e Liras nos assombram com seu poder, cinismo e ousadia. Como se fossem vulneráveis e perseguidos, deputados acabam de aprovar um projeto de lei para punir “a discriminação contra pessoas politicamente expostas”.

Não basta o escandaloso foro privilegiado, que já protege políticos autores de crimes comuns. Agora, querem mais proteção. Porque se julgam cidadãos de bem. Ou seriam cidadãos de bens? O Congresso brasileiro é o segundo mais caro do mundo. Perde apenas para os Estados Unidos. E costuma votar na calada da noite em benefício próprio. Financeiro ou moral. Anões ou gigantes, miram no Orçamento público, aquele que poderia garantir dignidade às “pessoas socialmente expostas”. Essas, sim, vulneráveis.

“O projeto é inconstitucional, fere a impessoalidade e a isonomia de direitos. Votação relâmpago foi para não ter pedido de votação nominal”, me disse Sergio Abranches. O sociólogo e cientista político resume nessa frase os vícios do texto aprovado. O conteúdo viola nossa Constituição de 1988, no artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. E a pressa em votar, sem consulta ou debate, revela o motivo do açodamento. Poupar os deputados de se expor ou argumentar com nome e sobrenome.

Ficamos combinados assim. Para a Câmara de Lira, se você discriminar um político, o criminoso é você; pode ser multado e pegar dois a quatro anos de prisão. Os familiares até segundo grau dos políticos também estariam protegidos de “discriminação”. Não foi pequena a margem na aprovação: 252 votos a 163. O PT votou em peso a favor do projeto: 43 votos a favor e 11 contra.

Por que políticos devem ser monitorados em nome do bem público? Em vez de blindados? Exatamente pela tendência de muitos de buscar o enriquecimento ilícito ou a lavagem de dinheiro. Não vou dizer que é a maioria. Ou chamar de ladrões. Posso ser presa pelo Lira.

Os crimes listados por esse projeto de lei são: acusar políticos por condutas que viraram caso de Justiça, mas ainda não transitaram em julgado. Impedir acesso a cargos de administração; Impossibilitar a promoção profissional. Negar emprego em empresa privada. Negar abertura de contas bancárias.

Pela letra da Constituição, ninguém pode ser discriminado. Nem político nem branco nem preto nem rico nem pobre nem mulher nem homossexual nem trans nem jovem nem velho. Então, por que o político precisa criar uma lei para proteger a ele e seus familiares? Descrê da Constituição? Ou parte do princípio que os políticos são corruptos por definição ou deformação do cargo? Eles têm complexo de perseguição?

Uma vez citei meu ministro de estimação no STF, Luís Roberto Barroso, em artigo sobre nossas castas. “O sistema do foro privilegiado é ruim, funciona mal, traz desprestígio para o Supremo, traz impunidade. Criamos um direito penal que produziu um país de ricos delinquentes. No Brasil, as pessoas são honestas se quiserem, porque, se não quiserem, não acontece nada”. O toma lá dá cá de cargos com foro no Supremo impede o alcance da Justiça de primeiro grau.

O conflito institucional existe em grande parte pelo abuso de poder dos políticos. Quem rouba para encher seu bolso e o bolso de filhos e parentes, ou para ganhar eleições, deveria ter punição exemplar. Quem desvia centenas de milhões de dólares de dinheiro público num país em que tudo falta, de educação à saúde, é um criminoso. Assalta a infância, a juventude, a velhice, os ideais e o futuro do Brasil. Não merece uma lei especial.

Ruth de Aquino, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 16.06.23

Vem aí a Lei Eduardo Cunha

Suas excelências querem um tipo penal sob medida para protegê-las

O deputado cassado Eduardo Cunha prestigia a posse da filha Dani Cunha (Reprodução)

Não bastam as imunidades, as mordomias e os penduricalhos. Suas excelências agora querem um tipo penal sob medida para protegê-las.

A Câmara aprovou projeto que cria o crime de discriminação contra pessoas politicamente expostas. A ideia foi apresentada por Dani Cunha, filha do deputado cassado Eduardo Cunha.

No texto, ela descreve os políticos como vítimas de “atos de cunho discriminatório”. A pretexto de reparar injustiças, a deputada propõe novos privilégios para a casta que integra.

De acordo com a proposta, o gerente que negar crédito a um político pode ser punido com até quatro anos de prisão. A regalia é estendida a parentes e “estreitos colaboradores”, o que beneficiaria todo tipo de aspone e laranja.

Dani alega que as regras de combate à lavagem de dinheiro impediriam parlamentares de fazer saques e abrir contas bancárias. Curiosamente, o pai dela não encontrou dificuldades para virar correntista na Suíça.

A deputada também propôs aumentar a pena imposta a quem atentar contra a honra de políticos, inclusive os já condenados por corrupção. Num surto de lucidez, o relator Cláudio Cajado sumiu com o artigo na versão final do projeto.

Discípulo de Cunha, o deputado Arthur Lira patrocinou um arranjo para votar o texto a toque de caixa. A aliança para aprová-lo uniu o PT de Lula ao PL de Bolsonaro. Só não entraram na corrente siglas pequenas como Novo e PSOL.

O debate em plenário ofereceu momentos de puro nonsense. O deputado Julio Lopes, personagem da corte de Sérgio Cabral, solidarizou-se com um aliado que teria sido impedido de trocar dólares ao chegar de viagem.

O deputado Elmar Nascimento, fiel escudeiro de Lira, bradou contra a “discriminação leviana” que causaria sofrimento a “homens de bem”. Ele fez questão de esclarecer que também se inclui na categoria.

Num esforço para dissuadir os colegas, o deputado Chico Alencar citou palavras de Frei Vicente do Salvador, franciscano que tentou explicar o Brasil no início do século XVII: “Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”.

“Este projeto tem o nome e o sobrenome desse tipo de visão nefasta”, emendou Chico. Se o Senado não barrar o texto, em breve teremos a Lei Eduardo Cunha.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 16.06.23

Bolsonaro começa a encarar seu passivo

 Kassio Nunes Marques pode até ceder à enorme pressão a que é submetido e pedir vista do processo que, cedo ou tarde, levará o Tribunal Superior Eleitoral a declarar Jair Bolsonaro inelegível. 

O ex-presidente Jair Bolsonaro e o ministro do Supremo Kassio Nunes Marques ( Cédito da foto: Marcos Corrêa/PR)

A sobrevida que isso pode dar ao ex-presidente não se traduzirá, no entendimento de expoentes da própria direita, em grandes manifestações de apoio a ele nas ruas ou em possibilidade de reverter um placar estimado em 6 x 1 ou, no máximo, 5 x 2 pela perda de seus direitos políticos.

A ação no TSE, uma de 16 que questionam a conduta de Bolsonaro ao longo do processo eleitoral, é apenas o início da confrontação do capitão com seu legado de ataque sistemático às instituições e à democracia, abuso do cargo para buscar a reeleição e condução criminosa durante a pandemia de Covid-19, todas elas frentes com potencial de lhe causar danos sérios.

Até no bolso. Bolsonaro achou que poderia simplesmente deixar de pagar as multas que recebeu por sucessivamente afrontar as normas que determinavam o uso de máscara em São Paulo no auge da emergência sanitária. Aparecer com o rosto descoberto, de preferência jogando perdigotos em incautos, fazia parte do negacionismo bolsonarista e de sua maneira de medir forças com o então governador João Doria, na época ainda um potencial rival.

Pois a conta chegou e já passa dos R$ 400 mil, com bloqueio de valores de quem achou que seria uma eterna galhofa uma tragédia que ceifou a vida de mais de 700 mil brasileiros por quem ele tinha o dever constitucional de zelar como presidente da República. Bolsonaro pareceu preocupado? Que nada. Deu um jeito de incluir as decisões da Justiça paulista nos temas que se prestam a piadas de tiozão e ameaçou pendurar o prejuízo na conta do PL.

No julgamento do TSE, talvez seja mais difícil tirar uma onda. Daí porque a estratégia do mesmo Bolsonaro seja, agora, se vitimizar. Depois de ter a audácia de convocar embaixadores do mundo todo a uma reunião oficial no Palácio da Alvorada para disparar mentiras a respeito do sistema eletrônico de votação, ele agora alega que não era candidato na época (ora, por que então usou o cargo e o palácio para tratar de tema única e exclusivamente eleitoral?) e que o processo corre célere para prejudicá-lo.

Daí vem a cobrança sobre Nunes Marques, que deve a Bolsonaro sua indicação ao Supremo Tribunal Federal. Colegas do TSE e políticos que conhecem o ministro há tempos se dividem quanto a sua disposição de prestar esse favor ao ex-presidente.

Os que acreditam que ele deixará o julgamento seguir argumentam que seria inócuo o pedido de vista para o resultado e que seria um custo alto demais a pagar em termos de desgaste entre os pares das duas Casas. Quem aposta na providência terrena lembra justamente o milagre que foi para Nunes Marques chegar a uma indicação para a maior Corte do país estando, como estava, fora do radar de toda a comunidade jurídica nacional.

Nas conversas de bastidores, não há da parte de aliados do PL, do PP e do Republicanos, partidos que concentram os bolsonaristas, uma comoção genuína para a decisão, que pode vir agora ou lá na frente.

Muitos dos que defendem o ex-presidente diante das câmeras e em postagens nas redes sociais acreditam que, ao retirá-lo da disputa política, o TSE presta, de certa forma, um favor à direita, pois permite a escalação de um nome mais palatável para 2026 sem que haja necessidade de algum afilhado romper com o padrinho para disputar. Herdar os eleitores órfãos de Bolsonaro sem precisar mover um dedo para tirá-lo do jogo é o que os partidos que encheram os cofres à custa do capitão poderiam esperar de melhor.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista e apresentadora do "Roda Viva" da TV Cultura. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 15.06.23

quinta-feira, 15 de junho de 2023

A oposição de Lula ao acordo Mercosul-União Europeia

Esquisita, confusa e inexplicável a ferrenha oposição do presidente Lula para a cláusula de compras governamentais no projeto de acordo comercial entre Mercosul e União Europeia. "Os europeus querem que o Brasil abra as portas governamentais. A gente não vai fazer isso", disse Lula.


Ursula von der Leyen, Presidente da União Europeia, ouviu um "não" do Presidente do Brasil

Compras governamentais é o capítulo de um acordo comercial que garante fornecimento aos governos de produtos e serviços pelas empresas dos países signatários do acordo.

Esta é matéria exaustivamente negociada, sobre a qual se obteve convergência desde 2019. Os termos são flexíveis, excluem compras pelos Estados e municípios, preveem prazos, exceções e tratamento favorecido às pequenas e médias empresas.

Lula alega que o acordo pode prejudicar empresas brasileiras e produzir invasão de produtos e serviços da União Europeia, o que alijaria as indústrias locais.

Mas os termos não são unilaterais. Valem para as duas mãos de direção. O que se quer de um processo de revitalização da indústria brasileira é que ela se insira nas redes globais de produção e distribuição. Portanto, o que se quer é ampliar o mercado externo. Ora, o acordo União Europeia-Mercosul conta com mais de 700 milhões de pessoas. Abrir mão de acesso a esse mercado equivaleria a optar pelo nanismo comercial. Além disso, se a empresa brasileira não consegue competir nem mesmo no âmbito das compras governamentais locais, onde vai competir?

Se há uma questão a resolver aqui não é a rejeição dessas cláusulas, mas o entendimento das razões pelas quais a indústria brasileira (e do Mercosul) é tão pouco competitiva e quais seriam as saídas para isso. O acordo poderia ser o início da recuperação da indústria – e não o contrário.

Seus termos estão sendo negociados há mais de 20 anos. O último emperramento aconteceu porque os europeus não confiaram no governo Bolsonaro. Essa foi a razão pela qual a União Europeia incluiu um anexo (side letter) com novas exigências na área ambiental e definição de sanções por descumprimentos.

Três hipóteses para a nova linha dura do presidente Lula: (1) colocação de um ponto de barganha destinado a eliminar as exigências da side letter; (2) necessidade de satisfazer os segmentos nacionalistas mais radicais do PT e aliados que sempre foram contra qualquer acordo de abertura comercial; e (3) oposição de certos setores da indústria, especialmente da área da saúde.

Mas há novidades que podem produzir avanços. A primeira é a de que Bolsonaro, com sua obsessão em fazer passar a boiada, já não está no governo. A outra é a nova e grave preocupação das autoridades europeias com o avanço da China sobre os mercados da América do Sul. Sentem que está passando da hora de ocupar os espaços comerciais e geopolíticos na região. 

Celso Ming, o autor deste artigo, é Jornalista especialista em economia. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 15.06.23

A inacreditável ‘TV PT’

A ideia de que o PT possa ter concessão pública de radiodifusão, esdrúxula, reforça a vocação anti-republicana do partido, incapaz de distinguir o público do privado


É evidente que o Ministério das Comunicações deve rejeitar, sem pestanejar, o inacreditável pedido do PT para operar seus próprios canais de rádio e TV com sinal aberto. Se o fará mesmo são outros quinhentos, posto que o governo é do PT e o presidente é Lula da Silva, aquele que nomeou o próprio advogado para o Supremo Tribunal Federal porque, ora vejam, é seu amigo do peito. Lula pode posar de democrata, mas a natureza antirrepublicana do lulopetismo sempre fala mais alto.

Ao encaminhar o pedido, a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, argumentou, em tom solene, que “o PT é grandioso”, “o maior partido de esquerda da América Latina”. Nada mais natural, portanto, que uma agremiação política formidável como essa tenha sua emissora de rádio e seu canal de TV para “difundir as ideias e propostas da militância”. E mais: tudo isso bancado com recursos públicos, porque ninguém ali é bobo.

É bastante improvável que o pedido petista prospere, mas não por ser absurdo e, no limite, inconstitucional, que fique claro. O ministro das Comunicações, Juscelino Filho, já deu mostras suficientes de que não perde um minuto de sono preocupado com a separação entre os interesses público e privado. Acossado pela série de malfeitos revelados por este jornal, não é difícil imaginá-lo atendendo ao pleito do PT como forma de se sustentar na cadeira. Tampouco Lula faria essa distinção republicana. Basta ver a instrumentalização da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) como plataforma de suas lives, para citar apenas um exemplo recentíssimo de seu descompromisso com a impessoalidade.

O pedido petista não deverá ir adiante porque, ainda que passe pelo ministro das Comunicações e pelo presidente da República, dificilmente seria acolhido pelo Congresso. A Constituição, em seu artigo 223, diz que a outorga e a renovação de concessões de radiodifusão competem ao Poder Executivo, mas a decisão deverá ser apreciada pelo Legislativo em tempo hábil (§ 1.º). Mas admitamos, num exercício de reductio ad absurdum, que os parlamentares cheguem à conclusão de que não só o PT, mas todos os partidos deveriam ter seus canais de rádio e TV. Caberia, então, ao Supremo declarar a inconstitucionalidade da medida por violação do princípio da moralidade, sem falar no descumprimento da Lei de Licitações – ou seria aberta concorrência pública para cada uma das frequências pretendidas pelas legendas?

Ora, o PT quer é justamente instalar essa confusão no País. Partidos políticos não têm de ter concessões públicas de radiodifusão por uma razão elementar: já têm à disposição o discutível “horário gratuito” de propaganda de rádio e TV e ainda dispõem dos horários reservados às campanhas eleitorais a cada dois anos. E todas essas inserções, convém lembrar, a expensas dos contribuintes, seja por meio de isenções tributárias concedidas às emissoras de rádio e TV que veiculam as peças institucionais e publicitárias, seja pelos fundos públicos que financiam os partidos. Como o PT não se sustenta vendendo camisetas ou broches com a estrelinha do partido, é óbvio que a programação da tal “TV PT” seria produzida com recursos públicos.

Outro aspecto não menos importante a revelar o descalabro que seria a concessão pública à “TV PT” é a quebra da isonomia entre os partidos. Em qualquer democracia saudável, todas as siglas que representam as ideologias e os múltiplos interesses dos cidadãos, preenchidos os requisitos legais para sua criação, devem ter paridade de armas na conquista de eleitores. Como nem todos os partidos políticos no Brasil – mesmo entre os que estão representados no Congresso – haverão de ter um canal de TV para chamar de seu, o PT teria à disposição um poderoso instrumento de comunicação que desequilibraria a seu favor a disputa democrática pelo poder.

Por fim, é preciso reafirmar que a concessão de radiodifusão é um serviço público da maior relevância que não deve ser reduzido a instrumento de desinformação por um partido que, entre as fantasias e os fatos, há muito já fez sua escolha.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 15.06.23

Revelações da CPI antecipam batalha sangrenta no caso Americanas

Foram necessários seis meses e uma Comissão Parlamentar de Inquérito para a Americanas S.A. admitir publicamente o óbvio. O que houve na maior varejista do Brasil foi um esquema de proporções épicas, a maior fraude corporativa da História do Brasil.

O CEO da Americanas, Leonardo Coelho Pereira, durante depoimento à CPI da Americanas da Câmara dos Deputados na última terça-feira (13) Brenno Carvalho/O Globo

O atual presidente da companhia, Leonardo Coelho, afirmou aos deputados que um rombo calculado em R$ 25,7 bilhões foi escamoteado nas demonstrações financeiras ao longo de vários anos. É uma enormidade, ainda mais considerando que o faturamento anual foi de R$ 32 bilhões em 2021.

Impressionaram, ainda, as evidências de que os antigos diretores trabalhavam ativamente e em equipe (ou talvez fosse melhor dizer em quadrilha) para transformar prejuízo em lucro, além de produzir uma contabilidade falsa para o conselho de administração e o mercado.

Havia duas planilhas: a “visão interna”, com os números reais, e a “visão conselho”, com dados inflados. Por e-mail, os executivos discutiam formas de perpetuar e esconder a enganação, pois do contrário seria “morte súbita”.

Segundo o CEO, eles negociavam com bancos e auditorias formas de retirar de documentos qualquer termo que pudesse ligar o alerta sobre as fraudes. O objetivo era um só: inflando o lucro, faziam subir o valor das ações na Bolsa e recebiam bônus milionários. Isso à custa de dezenas de milhares de investidores, fornecedores e trabalhadores.

Engana-se, porém, quem acha que esse relato bombástico encerra a história. Ao contrário, inaugura uma batalha pela distribuição de responsabilidades que promete ser sangrenta.

Para começo de conversa, em mais de quatro horas de sessão da CPI, mal se ouviram os nomes dos principais acionistas — Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, que até outro dia formavam o trio dourado do capitalismo brasileiro. Na versão meticulosamente apresentada pelo CEO — ao fim e ao cabo, um funcionário do trio —, os antigos diretores foram os únicos responsáveis pelos crimes.

Tudo era feito de forma a driblar o conselho, onde o próprio Sicupira tinha assento, além do filho de Lemann. “Era apresentado ao Conselho de Administração aquilo que a diretoria desejava que se tornasse público”, diz o relatório de 20 páginas entregue aos deputados. Não se trata de duvidar do que foi exibido. A questão é saber o que ainda não apareceu.

O próprio CEO admite que o documento, preparado por advogados da Americanas, “foi baseado nas informações, mas não são a conclusão do comitê independente [contratado pela companhia], que ainda está investigando”.

A reação dos ex-executivos fatalmente virá. Nos bastidores, eles se preparam para atirar. Quem conhece bem o 3G e a cultura corporativa forjada por eles duvida que pelo menos Sicupira, que participava da rotina da Americanas, não tivesse ideia do que se passava.

Além de ser do conselho, Beto se envolvia diretamente na contratação dos executivos, de quem exigia lealdade. Além disso, embora talvez não fosse possível identificar as fraudes específicas apontadas pelo CEO, não faltou quem percebesse furos no balanço.

De acordo com o sócio de uma gestora que acompanhou a empresa durante anos e vendeu suas ações por desconfiar dos números, era comum rubricas de gastos aparecerem e desaparecerem de uma demonstração financeira para outra sem que ninguém desse satisfação.

Era comum, também, anunciarem aquisições sem explicitar quanto havia sido pago ou o impacto sobre as finanças. “Eles se davam ao direito de não dar explicação a ninguém, porque eram o 3G. A gente aceitava, porque eram ícones da competência e do capitalismo.”

Aí reside o tema que deveria estar no cerne das preocupações do poder público. A Americanas não é a primeira empresa do 3G a ter problemas. Para ficar só no exemplo mais recente, em 2019, fraude semelhante foi descoberta por autoridades dos Estados Unidos na Kraft Heinz, que teve de corrigir o balanço em US$ 15,4 bilhões e pagar multa de US$ 62 milhões. Kraft e 3G ainda tiveram de pagar US$ 450 milhões para encerrar a ação movida pelos investidores.

Enquanto tudo isso acontecia lá fora, no Brasil os executivos da Americanas recebiam seus bônus, os bancos faturavam com as taxas de seus financiamentos, as auditorias recebiam sua remuneração, e os órgãos reguladores se mantinham alheios aos sinais de que algo poderia estar errado.

Sempre se poderá dizer, como fez o CEO na CPI, que “quem olha do lado de fora não consegue perceber essa fraude”. O nó está justamente em saber quem estava realmente de fora e quem estava dentro. Algo me diz que ainda vamos descobrir.

Atualização às 8h07: O faturamento anual da Americanas é de R$ 32 bilhões e não de R$ 14 bi, como constava na versão anterior do texto. A informação foi corrigida. Da mesma forma, Beto Sicupira continua membro do conselho da companhia.

Malu Gaspar, a autora deste artigo, é jornalista especializada em politica e economia. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 15.06.23

Postura de Lula ameaça acordo já fechado com União Europeia

Ao tentar revogar compromissos já assumidos, presidente faz o jogo dos protecionistas europeus

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, com o presidente Lula em Brasília (Cristiano Mariz/Agência O Globo)

É do interesse do Brasil um acordo de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia (UE). Por isso causam preocupação as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Brasília em encontro com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Lula criticou exigências dos negociadores da UE na área ambiental e disse querer rever um mecanismo do texto já acordado sobre a participação de empresas europeias em compras governamentais. Não está claro se o objetivo é aparar arestas pontuais e firmar logo o acordo ou criar empecilhos, para assim reabrir a negociação iniciada em 1999 e concluída em 2019, adiando indefinidamente a implementação. A segunda possibilidade seria desastrosa para o Brasil, tanto do ponto de vista comercial como geopolítico.

O acordo firmado prevê a eliminação de impostos de importação para mais de 90% dos bens comerciados entre os dois blocos ao longo de um período de transição de 15 anos. Embora as vantagens comerciais para o setor industrial sejam menores, pois as tarifas europeias já são baixas, a implementação elevará os investimentos e favorecerá a integração brasileira a cadeias globais. Para o setor agrícola, o ganho advém do aumento das cotas para diversos produtos. Por tudo isso, não surpreende que entidades representativas de empresários industriais e do campo sejam favoráveis ao tratado.

O acordo é um primeiro passo para abrir a economia brasileira — ainda uma das mais fechadas do planeta — à competição. Negociações multilaterais envolvendo dezenas de países são consideradas impossíveis na atual conjuntura internacional. As grandes potências não mostram interesse nessa alternativa, e a Organização Mundial do Comércio (OMC) sofre há anos uma erosão de poder. O único caminho disponível para a liberalização comercial hoje é a assinatura de acordos entre países ou blocos.

Do ponto de vista geopolítico, também faz sentido estreitar a aproximação com os europeus. Num momento em que a disputa entre Estados Unidos e China só faz crescer, o Brasil precisa escapar das armadilhas dessa bipolaridade. Estreitar os laços com os europeus seria uma maneira salutar de evitar ser forçado a escolher um dos lados, ampliando as opções.

A crítica de Lula às exigências ambientais é válida. Apresentado no começo do ano, um adendo exige uma meta impraticável para o fim do desmatamento e prevê sanções em caso de descumprimento. O artifício parece uma maquiagem ambiental para o velho protecionismo. Reduzir o desmatamento é interesse também do Brasil e, com boa vontade, as exigências poderiam ser reformadas ou eliminadas.

O caso das compras governamentais é distinto. Obcecado pela ideia de política industrial, Lula quer barrar a participação dos europeus em licitações do governo, voltando atrás num compromisso já assumido pela diplomacia brasileira. Se insistir, dará oportunidade para que a UE apresente velhas e novas demandas. Já será difícil garantir todas as aprovações necessárias para que o texto do acordo entre em vigor (27 parlamentos nacionais, fora o Parlamento Europeu). Reabrir as negociações depois de fechado o texto só piora a situação. É tudo o que os protecionistas europeus querem para dinamitar o acordo. Será provavelmente o fim de um tratado fundamental para dinamizar a economia brasileira. Infelizmente, talvez seja esse o plano de Lula.

Editorial de O GLOBO, em 14.06.23

quarta-feira, 14 de junho de 2023

A chance do Brasil

Oferta da UE para investimento em hidrogênio verde no Brasil mostra o grande potencial do País na corrida pela produção de energia limpa e eficiente, que hoje mobiliza o planeta

O anúncio da presidente da União Europeia (UE), Ursula von der Leyen, de que o bloco investirá € 2 bilhões (R$ 10,5 bilhões) para incentivar a produção de hidrogênio verde no Brasil teve ares de afago ao presidente Lula da Silva, com vista a facilitar a assinatura do acordo com o Mercosul. Mas a intenção de investimento europeu, que a executiva trouxe na bagagem esta semana em sua visita oficial, não é um favor, e sim uma oportunidade de negócios. E das mais rentáveis.

Na jornada mundial em busca de uma matriz energética mais limpa e sustentável, o hidrogênio verde vem se firmando como uma das alternativas mais potentes de substituição aos combustíveis fósseis, como gasolina, diesel e óleo combustível. Em recente relatório distribuído a investidores, o Boston Consulting Group (BCG), uma das três maiores consultorias estratégicas do mundo, estimou que, entre 2025 e 2050, governos e empresas devem destinar entre US$ 6 trilhões e US$ 12 trilhões na produção e transporte de hidrogênio com baixo teor de carbono.

É uma realidade que está batendo à porta e com pesquisas avançadas, que vêm reduzindo custos de produção. Com a vantagem de contar com uma matriz energética diversificada e já bastante limpa, com farta geração de energia hídrica, além da solar e eólica, o Brasil é um parceiro cobiçado para projetos de transição energética. Ao contrário de países que precisam se amparar predominantemente na eletrificação dos carros para cumprir o compromisso de zerar a emissão de gases do efeito estufa, como é o caso dos membros da União Europeia, temos outras portas de saída.

Como disse, em entrevista ao Estadão, Gastón Diaz Perez, CEO da Bosch na América Latina, o centro das discussões ambientais é a descarbonização, e não a eletrificação. Ele ressaltou que, com o uso do etanol e carros flex, o Brasil já reduziu em 60% as emissões de carbono, comparativamente à utilização de motores a gasolina. “Há várias opções para descarbonização”, disse. “Cada uma delas é uma carta. Muitos países têm uma só carta. O Brasil tem o baralho completo.”

Obtido por meio da eletrólise da água – um processo químico que utiliza a corrente elétrica para separar as moléculas de oxigênio e hidrogênio – com o uso da energia renovável de hidrelétricas, usinas eólicas, solares ou ainda de biomassa e biogás, o hidrogênio verde vem sendo pesquisado e desenvolvido há duas décadas. Mas os recursos orçamentários para acelerar a formação do mercado no País ainda são escassos. Há apenas um ano o BNDES lançou linhas específicas de financiamento para o setor. Neste caso, uma política pública consistente de subsídios refletiria uma visão de futuro, ao contrário de apostas antiquadas nos incentivos setoriais à indústria para fomentar o desenvolvimento.

Enquanto o governo engatinha, empresas estrangeiras, como o grupo francês Qair, a mineradora australiana Fortescue e o grupo alemão Linde, controlador da White Martins, já estão investindo bilhões de reais no ganho de escala na produção de hidrogênio verde no Brasil, para uso tanto no transporte quanto na indústria. A primeira planta em larga escala está prevista para 2027, em Camaçari, na Bahia, num investimento da fabricante de fertitilizantes Unigel.

O estudo Building the Green Hydrogen Economy (Construindo a Economia do Hidrogênio Verde), do BCG, destaca que esse combustível terá papel fundamental na descarbonização de indústrias com maior dificuldade de reduzir suas emissões, como a siderúrgica, a química e aviação, por exemplo. Por tudo isso, prevê uma explosão de demanda, passando dos 94 milhões de toneladas de 2021 para mais de 350 milhões de toneladas/ano a partir de 2025, devendo chegar a 2050 em 530 milhões de toneladas/ano.

Como se vê, trata-se de um mercado rentável e promissor que está apenas começando. Portanto, a oferta de Ursula von der Leyen, que não tem nada de desinteressada, mostra como o Brasil tem tudo para ser a grande usina de energia limpa para o mundo. Logo, deve concentrar suas atenções na matriz energética do futuro, abandonando, o mais rápido possível, os investimentos em energia poluente do século passado.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.06.23

As acusações que podem impedir Bolsonaro de disputar eleições

A intensa campanha do então presidente Jair Bolsonaro (PL) contra a credibilidade da Justiça Eleitoral e da urna eletrônica pode causar agora seu afastamento das eleições por oito anos.

Para entrevistados, é alta a probabilidade de Jair Bolsonaro ser condenado em julgamento do TSE (Crédito da foto: Isaac Fontana / EFE, Rex, Shutersstock)

Para especialistas em direito eleitoral ouvidos pela BBC News Brasil, é alta a probabilidade de o ex-presidente ser condenado em um julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) previsto para começar no próximo dia 22. Caso isso se confirme, Bolsonaro ficará inelegível.

O ex-presidente enfrenta 16 ações na Corte. No caso mais avançado, que será julgado na próxima semana, é acusado de ter cometido abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação social quando reuniu em julho de 2022 dezenas de diplomatas no Palácio da Alvorada para apresentar falsas teorias sobre a insegurança das urnas e atacar ministros do TSE e do Supremo Tribunal Federal (STF).

O encontro ocorreu pouco antes do início da campanha eleitoral, em que Bolsonaro foi derrotado pelo atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A defesa do ex-presidente, por sua vez, argumenta que o evento não tinha caráter eleitoral e que o então presidente usou sua liberdade de expressão para manifestar preocupações legítimas sobre a integridade das eleições brasileiras.

A ação apresentada pelo PDT, partido que disputou a campanha presidencial com o candidato Ciro Gomes, pede a inelegibilidade de Bolsonaro e do general Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil que concorreu como candidato à vice-presidente. A Procuradoria-Geral Eleitoral (PGE) se manifestou a favor apenas da condenação de Bolsonaro.

Entenda a seguir, em quatro pontos, os argumentos da acusação e da defesa, por que especialistas acham provável uma condenação e quais ministros julgarão o ex-presidente.

1. Quais são as acusações?

Segundo a Constituição Federal e a legislação eleitoral brasileira, um político pode ser declarado inelegível caso tenha atuado contra a normalidade e a legitimidade das eleições. Isso pode ocorrer por meio de três ilegalidades:

Abuso do poder político — ou seja, quando um governante usa seu cargo atual para favorecer a si próprio ou a aliados na eleição;

Abuso de poder econômico — que ocorre, por exemplo, quando o candidato usa recursos ilegais na sua campanha ou realiza compra de votos;

Uso indevido de meios de comunicação — como no caso de um canal de televisão usar sua programação para favorecer algum concorrente ou um candidato usar suas redes sociais para propagar informações falsas.

Na ação que será julgada no dia 22, o ex-presidente está sendo acusado de ter cometido abuso de poder político por ter usado a estrutura da Presidência da República para convocar diplomatas para uma reunião de caráter eleitoral, com ataques infundados ao sistema de votação.

A suposta irregularidade teria sido agravada pelo fato de o evento ter sido transmitido ao vivo pela EBC, empresa pública de comunicação, e pelas redes sociais do presidente, configurando também o uso indevido de meios de comunicação.

Bolsonaro em foto de 18 de julho de 2022, quando ocorreu encontro com diplomatas (Crédito da foto: Clauber Cleber Caetano / PR)

O PDT argumenta ainda, na ação, que a reunião com os diplomatas não se tratou de um episódio isolado, mas se inseriu numa estratégia de campanha de Bolsonaro para questionar o resultado em caso de derrota.

Para o partido, a reunião visava “buscar adesão dos países estrangeiros para que, se porventura um golpe de Estado fosse instaurado, obtivesse apoio, já que o processo de votação não seria confiável e estaria eivado de fraude”.

“Esse (apoio para um golpe) foi o objetivo da reunião. Não existiu nenhum interesse público subjacente à estruturação do evento”, reforçou.

Para convencer o TSE sobre a gravidade dos atos de Bolsonaro, o partido cita como consequência de suas falas os ataques antidemocráticos de 8 de janeiro.

“O discurso proferido na reunião com embaixadores converge com dizeres apropriados por eleitores e apoiadores do candidato, em uma cruzada antidemocrática com a instalação de acampamentos em frente aos QG’s do Exército em todos os rincões do Brasil, centrada em uma suposta existência de fraude nas urnas, bem como também no sistema eleitoral, de modo que bradavam por intervenção militar e por um ‘processo eleitoral transparente’”, disse o partido nas alegações finais da ação.

“A consequência da perpetração, pelo Senhor Jair Messias Bolsonaro, dessas condutas acintosas ao Estado Democrático de Direito e à integridade do processo eleitoral foi o intenso ataque de vândalos e golpistas contra as sedes do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto, em 08 (oito) de janeiro de 2023”, afirma o PDT em outro trecho da manifestação.

O PDT cita ainda a “minuta do golpe” — documento encontrado pela Polícia Federal no dia 12 de janeiro na casa de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro —, que serviria para decretar um estado de defesa no Brasil, possibilitando a revisão do resultado das eleições de 2022, vencida por Luiz Inácio Lula da Silva.

Ao longo do processo, o TSE autorizou que essa minuta fosse incorporada como prova na ação.

2. O que diz a defesa de Bolsonaro?

O ex-presidente argumenta, na ação, que o evento não teve caráter eleitoral, destacando que não houve pedido de votos e que o público-alvo (diplomatas estrangeiros) não votam no Brasil. Segundo sua defesa, a reunião foi um “ato de governo” e, por isso, contou com a transmissão da EBC.

Os advogados de Bolsonaro disseram ainda, em manifestação ao TSE, que "a má-fé de determinados setores da imprensa" levou a cobertura do evento a tratar "uma proposta de aprimoramento do processo democrático como se se tratasse de ataque direto à democracia".

A defesa ressalta, ainda, que a reunião foi convocada por Bolsonaro após o então presidente do TSE, Edson Fachin, realizar em maio de 2022 o evento "Sessão Informativa para Embaixadas: o sistema eleitoral brasileiro e as Eleições de 2022".

Na ocasião, Fachin fez um discurso com críticas indiretas aos ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral.

"Convido o corpo diplomático sediado em Brasília a buscar informações sérias e verdadeiras sobre a tecnologia eleitoral brasileira, não somente aqui no TSE, mas junto a especialistas nacionais e internacionais, de modo a contribuir para que a comunidade internacional esteja alerta contra acusações levianas", afirmou no evento.

A defesa de Bolsonaro alega, então, que ambos os encontros com diplomatas representariam um “diálogo institucional” sobre o sistema eleitoral.

“O que se percebe das falas do primeiro investigado Jair Messias Bolsonaro, por meio de um exame sereno e desapaixonado, feito com as lentes do necessário diálogo institucional e da inadiável promoção da transparência eleitoral, é nada mais nada menos do que um convite ao diálogo público continuado para o aprimoramento permanente e progressivo do sistema eleitoral e das instituições republicanas”, diz a defesa em manifestação ao TSE.

“Com o respeito devido, não parece difícil entender que o sistema eletrônico de votação e as boas práticas que acercam a realização de uma eleição como a brasileira são dignas de constante aperfeiçoamento, não havendo motivos para se confundir questionamentos (pontos duvidosos!), postos às claras, com ato de abuso de poder político e/ou de meios de comunicação”, afirma ainda a defesa, liderada pelo advogado Tarcísio Vieira, ex-ministro do TSE.

Quanto às acusações de que teria responsabilidade nos atos de 8 de janeiro, Bolsonaro tem negado qualquer envolvimento. Enquanto estava vivendo nos Estados Unidos, disse, sem apresentar provas, que “pessoas de esquerda” programaram as invasões.

"As manifestações da direita ao longo de 4 anos foram pacíficas e não temos nada a temer. Jamais o nosso pessoal faria o que foi feito agora no dia 8 [de Janeiro]. Cada vez mais nós temos certeza que foram pessoas da esquerda que programaram aquilo tudo", disse o ex-presidente à emissora americana NBC.

Bolsonaro deixou o país para uma temporada na Flórida poucos dias antes da posse de Lula e voltou ao Brasil no final de março.

3. Por que especialistas consideram condenação provável?

Para o advogado Luiz Fernando Casagrande Pereira, especialista em direito eleitoral, a cassação do deputado estadual pelo Paraná Fernando Francischini em outubro de 2021 é um precedente que torna “muito provável” a condenação de Bolsonaro.

Bolsonarista, Francischini foi o deputado estadual mais votado no Paraná em 2018 e perdeu seu mandato devido a acusações infundadas contra o funcionamento das urnas. Além disso, o TSE o declarou inelegível por oito anos.

Em 2018, o deputado estadual pelo Paraná Fernando Francischini perdeu o mandato devido a acusações infundadas contra o funcionamento das urnas (Crédito da foto: Alex Ferreira / Câmara dos Deputados)

A punição foi aplicada porque Francischini fez uma transmissão ao vivo no Facebook durante a votação de 2018 apontando supostas fraudes em urnas eletrônicas que não estariam registrando votos para o então candidato Jair Bolsonaro. A alegação era que o eleitor digitava 17 (número de Bolsonaro em 2018, quando concorreu pelo antigo PSL), mas não aparecia o rosto e o nome do atual presidente no painel da urna.

Porém, a investigação do caso identificou que, na verdade, essas pessoas estavam digitando 17 no momento em que a urna registrava o voto para governador, e não para presidente, de modo que seria impossível o voto ser registrado para Bolsonaro.

Depois, acrescenta Pereira, uma resolução do TSE de dezembro de 2021 estabeleceu ser proibida "a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinja a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos".

Ainda segundo essa resolução, quem promover esse tipo de alegação falsa contra o processo eleitoral poderá sofrer "apuração de responsabilidade penal, abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação". Isso significa que, além de poder enfrentar uma investigação criminal, tal pessoa pode ser processada na Justiça Eleitoral.

Na visão de Casagrande Pereira, essa resolução foi um “recado” para os candidatos em 2022.

“Então, eu diria que o Bolsonaro assumiu esse risco quando fez os movimentos que fez, inclusive a reunião com os embaixadores, que está inserido num contexto de outras tantas vezes em que ele questionou o sistema de votação e totalização e obteve sucesso”, nota o advogado.

“Sucesso no sentido de convencer as pessoas de que o sistema não é confiável. E era exatamente isso que o TSE queria impedir quando cassou o mandato do Francischini e quando adotou essa resolução”, continuou.

Decisões preliminares do TSE relacionadas ao caso que será julgado também são um sinal ruim para Bolsonaro. Ainda em 2022, a Corte determinou que fossem retirados do ar os vídeos com a transmissão da reunião.

Também no ano passado, o tribunal multou o presidente em R$ 20 mil por considerar que o evento foi campanha eleitoral antecipada e feriu a resolução que proíbe ataques falsos ao sistema eleitoral.

Para Vânia Aieta, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenadora-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), a reunião com diplomatas no Palácio da Alvorada configura claro abuso de poder político.

“Nessa ação, vejo possibilidades concretas e reais da condenação do Bolsonaro”, avalia.

“Essa reunião de fato se configura abuso do poder político, na medida em que ele usa do papel dele de presidente, usa de toda a institucionalidade presidencial, para convocar o corpo diplomático e dizer, sem apresentar absolutamente nenhuma prova, que a Justiça Eleitoral estaria fraudando as eleições”, reforça.

Aieta lembra que o país já teve situações de fraude eleitoral que levaram à anulação de eleições, mas todos os episódios anteriores à adoção da urna eletrônica (lançada em 1996).

Um caso, ela cita, ocorreu em 1994, quando a Justiça Eleitoral refez a eleição para deputados estaduais e federais no estado do Rio de Janeiro, após os votos brancos terem caído para níveis historicamente baixos, indicando uma falsificação de parte dos votos.

“Mas (a acusação de fraude de Bolsonaro) agora era uma mera retórica de desinformação, um mero estímulo à criação de uma rede de desinformação que viria então a serviço de desacreditar o resultado eleitoral se não lhes fosse favorável”, destaca a professora.

4. Quem vai julgar Bolsonaro?

Das sete vagas titulares do TSE, três são ocupadas por ministros do STF: atualmente, estão lá Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Kassio Nunes (Crédito da foto: Alejandro Zambrana/SECOM - TSE)

O TSE é formado por sete ministros titulares e a expectativa nos bastidores de Brasília é que o julgamento deve ter um placar de 5 a 2 ou 6 a 1 pela condenação de Bolsonaro.

Das sete vagas titulares do TSE, três sempre são ocupadas por ministros do STF, que cumprem mandatos de dois anos renováveis por mais dois. Atualmente, são Alexandre de Moares, que preside o tribunal, Cármen Lúcia e Kassio Nunes.

Moraes tem adotado uma postura dura contra os ataques ao sistema eleitoral, e por isso acredita-se que votará pela inelegibilidade de Bolsonaro. A expectativa é que Cármen Lúcia acompanhará essa posição.

Já Kassio Nunes, indicado ao STF por Bolsonaro, é visto como um aliado do ex-presidente e pode ser o único voto contra a condenação. Reforça essa avaliação o fato de que o ministro concedeu uma liminar suspendendo a cassação de Francischini pelo TSE, decisão que depois foi derrubada pela maioria do Supremo.

Nessa liminar, Nunes citou “a preeminência atribuída pela Constituição de 1988 à livre circulação de pensamentos, opiniões e críticas com vistas ao fortalecimento do Estado Democrático de Direito e à pluralização do ambiente eleitoral, cabendo à Justiça Eleitoral intervenção mínima, em primazia à liberdade de expressão”.

Outras duas vagas titulares do TSE são ocupadas por ministros do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em mandatos de dois anos não renováveis.

Um deles é Benedito Gonçalves, corregedor-geral eleitoral e relator da ação. Ele é visto como alinhado a Moraes no TSE.

O outro é Raul Araújo, ministro de perfil conservador que já tomou decisões consideradas favoráveis a Bolsonaro, por exemplo, quando proibiu manifestações políticas no Lollapalooza depois de artistas demonstrarem apoio a Lula na eleição.

Entre juristas, porém, há dúvidas sobre qual será seu voto no caso.

E as outras duas vagas titulares do TSE são ocupadas por juristas vindos da advocacia — no momento, Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares. Ambos foram nomeados em maio por Lula e são considerados próximos a Moraes.

Mariana Schreiber, de Brasília - DF para a BBC News Brasil, em 14.06.23