terça-feira, 13 de junho de 2023

Nem-nem: geração em busca de um propósito

Os dados oscilam, mas há anos a frustração dos jovens que não estudam nem trabalham permanece como ferida aberta a exigir cuidados mais dedicados do Estado e da sociedade

Uma pesquisa rápida ao acervo do Estadão revelará que há mais de dez anos as aflições da chamada geração nem-nem, grupo de jovens entre 15 e 29 anos que não estudam nem trabalham, são temas recorrentemente abordados nesta página. Para este jornal, há poucos sinais mais reveladores da distância que separa o Brasil de um futuro à altura de suas potencialidades do que a negligência do Estado e da sociedade com a falta de confiança no País que desalenta tantos milhões de jovens naquela faixa etária, há tanto tempo.

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Educação 2022, divulgados pelo IBGE há poucos dias, não são alvissareiros. Eles mostram que um em cada cinco brasileiros entre 15 e 29 anos está fora da sala de aula e do mercado de trabalho. Ou seja, dos 49 milhões de jovens nessa faixa etária, 9,8 milhões (20%) estão em situação de total desalento – uma geração à procura de um propósito de vida. Ainda de acordo com a pesquisa, 15,7% dos jovens estavam trabalhando e estudando no ano passado; 25,2% apenas estudando; e a maioria, 39,1%, estava trabalhando, mas longe das escolas, centros técnicos e universidades.

Os porcentuais oscilam entre uma pesquisa e outra, mas há anos, de forma consistente, a frustração de milhões das novas gerações com o País permanece como ferida aberta a exigir cuidados mais dedicados. O número dos nem-nem apurado na Pnad Contínua Educação 2022 é ligeiramente menor do que o revelado pela pesquisa realizada em 2019, quando 22,4% dos brasileiros entre 15 e 29 anos não trabalhavam nem estudavam. Contudo, esse recuo de 2,4 pontos porcentuais nem de longe autoriza otimismo. Como falar em melhora diante do fato de que quase 10 milhões de cidadãos em idade produtiva não encontram estímulos ou condições objetivas para voltar às salas de aula ou procurar um emprego?

A Pnad Contínua Educação 2022 reforça, ainda, a necessidade de uma intervenção multidisciplinar, o mais rápido possível, para acudir esses jovens desiludidos, em especial as mulheres. Elas apontam a gravidez (22,4%) e a necessidade de realizar trabalhos domésticos ou cuidar de outras pessoas (10,3%) como impedimentos para os estudos ou para o trabalho fora de casa. Mesmo os jovens que trabalham, mas não estudam (40,2%) inspiram preocupação. Afinal, que desenvolvimento pessoal e financeiro podem almejar para si e suas famílias no futuro quando, por força das necessidades de momento, precisam abdicar de sua formação educacional?

Há caminhos para que o País se livre, de uma vez por todas, da indecência de entregar boa parte de sua juventude à desesperança, comprometendo seu próprio futuro. E eles são conhecidos. Dependem primordialmente do despertar da sociedade para o problema e da cooperação entre os entes federativos.

Ao governo federal, por exemplo, cabe formular e conduzir uma política econômica responsável que leve o País à retomada do crescimento duradouro, condição indispensável para a ampliação de postos de trabalho. É elementar. Pais empregados, com renda suficiente para que a família tenha uma vida digna, significam filhos livres para estar na sala de aula, não em busca de complementação da renda familiar.

Os governos subnacionais, por sua vez, sem prejuízo da coordenação da União, têm de estabelecer a educação pública como prioridade inegociável. Nesse sentido, é mais que bem-vinda a ideia do governo de São Paulo de criar, no âmbito da Secretaria da Educação, a Coordenadoria de Educação Profissional, que será responsável por ofertar milhares de vagas em cursos técnicos aos jovens paulistas usando a atual estrutura das escolas da rede pública. De acordo com o Palácio dos Bandeirantes, as aulas técnicas serão ministradas por profissionais atuantes no mercado para o qual prepararão seus alunos.

Essa é apenas uma ideia. Há muitas outras. Tão mais rápido será o encontro do País com um futuro mais auspicioso, menos desigual, quanto maior for a atenção dedicada pelo Estado e pela sociedade a uma geração que perdeu até mesmo a capacidade de sonhar.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 13.06.23

É chegada a hora de Brasil e Ucrânia se unirem

Para o futuro da democracia, ficar calado ou permanecer neutro não é opção

O líder ucraniano, Volodimir Zelenski (à esq.), e seu chefe de gabinete, Andrii Iermak, em encontro com o presidente dos EUA, Joe Biden, em Kiev - (Gleb Garanich - 20.fev.23/Reuters - REUTERS)

Desde pequeno, três assuntos me fazem lembrar do Brasil.

O primeiro é a bossa nova. Fiquei encantado na primeira vez em que ouvi "Garota de Ipanema". Segundo: o café. Quando a União Soviética estava nos seus últimos anos, bens que costumavam ser sinais de luxo ultrapassaram os limites da Cortina de Ferro. Forte e perfumado, tornou-se um ingrediente essencial no dia a dia dos ucranianos. O terceiro é, obviamente, o futebol. Dos lendários Pelé e Garrincha ao icônico Ronaldo.

Mas esses assuntos são para tempos de paz. Nestes dias turbulentos, tenho pensado em outro tema que me lembra o Brasil: a capoeira. Admiro a força daqueles que a criaram —pessoas que resistiram à escravidão. Desde a invasão ilegal da Ucrânia pela Rússia, tive a honra de conhecer pessoas igualmente heroicas.

O líder ucraniano, Volodimir Zelenski (à esq.), e seu chefe de gabinete, Andrii Iermak, em encontro com o presidente dos EUA, Joe Biden, em Kiev - Gleb Garanich - 20.fev.23/Reuters - REUTERS

Mas os paralelos entre a Ucrânia e o Brasil vão além. Os atos de agressão da Rússia não foram apenas contra o nosso povo, mas também contra o meio ambiente. A Ucrânia perdeu um terço de suas florestas. Ecossistemas estão à beira da extinção. Os brasileiros abrigam boa parte do pulmão do nosso planeta —a Amazônia— e, por isso, compreendem que esta é uma ameaça para a humanidade.

O futuro do mundo livre está sendo decidido neste momento nos campos de batalha da Ucrânia. Moscou rompeu promessas feitas em acordos internacionais para justificar as tentativas de exterminar um Estado soberano. A sua máquina de propaganda funciona no Brasil e em todo o mundo, disseminando afirmações sem sentido sobre a hegemonia do Ocidente.

Os ucranianos sofreram a deportação forçada de 20 mil crianças, viram tortura e execução do seu povo e a destruição de cidades inteiras. E isso é só a ponta do iceberg. A ideologia do mundo russo é uma mistura explosiva de capitalismo selvagem, imperialismo e nacionalismo chauvinista. E não dá sinais de que vai parar.

Os países do hemisfério Sul lutaram contra o colonialismo e ditaduras impostas por outras nações durante parte da sua história. A Ucrânia está fazendo o mesmo. Mas a escolha que cada líder mundial tem que fazer agora é muito maior do que decisões sobre armas ou sanções.

Será que os Brics querem ser associados a um Estado que cometeu tais horrores? Será que a conveniência econômica supera os riscos para a humanidade e as ameaças globais à segurança ecológica, nuclear e alimentar? Os acontecimentos na Ucrânia não são apenas por territórios ou recursos.

Se a Rússia não for interrompida, como o resto do mundo impedirá que outros regimes semelhantes se repitam na Ásia, África ou América do Sul?

A agressão e o genocídio não podem ser justificados. O acordo entre Moscou e Minsk para a instalação de armas nucleares no território belarusso é mais um passo na direção do desastre. A Ucrânia desistiu das suas armas nucleares e foi invadida. Deverá o Brasil voltar a buscar ogivas nucleares por precaução?

Ficar calado ou permanecer neutro não é opção. Esta é uma decisão que determinará o futuro da democracia. A visão ucraniana, que oferece um futuro global mais seguro, está delineada na fórmula da paz do presidente Volodimir Zelenski. Não se pode permitir que o terrorismo fique impune.

Os ucranianos e os brasileiros não têm só uma filosofia comum, mas também interesses que pautam as economias do futuro. Nossos países podem iniciar uma nova era de relações, seja na expansão das nossas indústrias aeroespaciais ou de transformação de alimentos, seja em projetos de sustentabilidade ou em produtos eletrônicos.

É a hora de nos mantermos unidos.

Andrii Iermak, o autor deste artigo, é Chefe de gabinete da Presidência da Ucrânia. Publicado originalmente em português do Brasil pela Folha de S. Paulo, em 13.06.23

Kit de desvios

Casos dos robôs educativos e da Codevasf mostram baixo controle sobre emendas

Kit de robótica comprado por meio de emendas parlamentares (Pedro Ladeira/Folhapress)

Se fosse uma série, o roteiro talvez merecesse críticas por faltar-lhe verossimilhança: parlamentares destinam R$ 26 milhões para comprar kits de robótica que serão utilizados em escolas sem laboratório de ciências, sem internet e sem água encanada.

Em desmandos da política, contudo, não raro a realidade supera a ficção; o caso, revelado por reportagem da Folha, é apenas o mais recente em uma longa lista de episódios que roçam o surrealismo.

Nos capítulos atuais, a Polícia Federal investiga um casal que retirava dinheiro em espécie de agências bancárias e entregava os valores a pessoas ainda não identificadas.

A PF desconfia que os montantes tenham sido desviados de contratos em torno dos kits de robótica e terminaram nas mãos de agentes públicos. Um deles seria Luciano Cavalcante, principal auxiliar de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados —suspeita que os investigadores embasam com imagens de vídeos.

Outro aliado de Lira, o vereador João Catunda, de Maceió, estaria por trás da empresa que adquiriu kits por R$ 2.700 e os revendeu para cidades alagoanas por R$ 14 mil.

A hipótese de corrupção salta aos olhos e, com razão, exaspera o cidadão que cumpre suas obrigações dentro da lei. É o dinheiro dos impostos, afinal, que locupleta quem se beneficia de desvios.

Não se deve perder de vista, porém, que o caso seria grave mesmo que não tivesse todas as digitais de um esquema espúrio. É que, mesmo nessa eventualidade, haveria enorme desperdício de verbas muito necessárias país afora.

Tome-se a situação da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). Contratos com empreiteiras pouco conhecidas suscitam desconfiança, mas o maior ralo de dinheiro talvez nem seja esse, e sim a subversão da estatal.

Em tese voltada à irrigação, ela parece servir mais para a pulverização dos recursos federais em pequenos projetos. Tudo direcionado para acólitos e familiares de políticos e, pior, sem avaliação de prioridades, necessidade ou eficiência.

Como no caso dos kits de robótica, ainda que de fato fossem comprados a bom preço, que valia teriam em escolas sem internet?

Ambos os episódios ilustram os frutos podres das práticas fisiológicas. Elas não surgiram ontem, mas ganharam novo impulso com o aumento do poder do Congresso sobre o Orçamento. Emendas parlamentares foram o duto por onde o dinheiro passou antes de chegar aos kits de robótica e à Codevasf.

Nada há de errado em o Parlamento definir despesas; tudo vai mal, entretanto, quando há pouco controle e ainda menos transparência no trato da coisa pública.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 13.06.23 (editoriais@grupofolha.com.br)

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Chamando o vento pelo assobio

Por Edson Vidigal

No zap, pelo viva voz, Luiz Raimundo me conta que a Ilha hoje amanheceu assobiando. Aquele assobio de barqueiro-pescador chamando vento. 

Venta Lelê pra esse barco andar, venta Lelê pra esse barco andar... 

Ergo-me movendo os braços como numa saudação de palanque, daquelas que de há muito nem faço mais:

- É o Maranhão, mermão! É o Maranhão...

Então, navegando entre as ondas de um colírio, o meu drone, empanturrado de tanta inteligência artificial, restante das gambiarras engendradas nos silícios do Bacanga, alcança uma enorme palmeira branca tirada, segundo o António, de uma rocha metamórfica, constituída de calcita e dolomita recristalizada de textura sacaroide, de granulação variável, frequentemente provida de veios coloridos, tudo isso, para ser chamada, ao final, de mármore. 

(Esse António de quem vos falo é o Houaiss, isso mesmo – o António Houaiss, mais conhecido pelo dicionário concorrente do Aurélio, sim, o popular pai-dos-burros, do Aurélio Buarque de Hollanda, em cuja equipe militou o nosso imortal Campelo, da AML, e porque não lhe pagaram ainda rola processo judicial pelo aí. 

Tenho o meu pensar cauteloso, mas sempre muito indignado, sobre como estão ultimamente os três pilares do nosso mui querido Estado Democrático de Direito. Como diria um amigo nosso, aprendiz de Proust, depois eu conto...

O António não resumiu seu tempo à essa obra esplendorosa que é o Dicionário. Vivesse hoje estaria, quem sabe, talvez, mais festejado em feiras e festivais por suas invenções gastronômicas. Escreveu um livro de receitas positivamente testadas na panela e no fogão. 

E não só isso. O Professor Sérgio, não sei bem, se à época já fosse o pai do Chico, quando ele, o António, mais o Mangabeira, irmão do Octavio baiano, mais o Hermes Lima, o Evandro Lins, nascido ali em Parnaíba e criado bem aqui em Itapecuru-Mirim, todos então na velha UDN, a qual não era conhecida ainda como a UDN da calúnia, desafiaram a velharada do partido e fundaram a Esquerda Democrática, a qual veio a ser o PSB, um tanto desvirtuada nos princípios programáticos da origem pelo Arrais, o qual voltou do exilio quando da última ditadura com um olhar ao Brasil um tanto ultrapassado. Mas a ideia de que o socialismo cabe muito bem num Estado Democrático de Direito foi debatida e construída originariamente aqui no Brasil por eles, os jovens da Esquerda Democrática.)

Meu drone deu uma volta pelo topo da palmeira branca plantada numa praça que tem um coreto quase em frente a uma igreja de construção farejando o gótico. Mostra-me a foto que ele, o inteligente artificial, - e já são tantos hoje na política, agora me apresenta. No topo da brancona e longilínea palmeira, quem? O Gonçalves Dias, não, não, sim, o cantor das selvas, de Caxias.

Num dos bancos da praça do poeta de Caxias vez por outra era visto um senhor a tomar banho de sol. Aborrecia-se demais quando os garotos do grupo escolar em frente jocosamente o chamavam – ei Cauby Peixoto, ei Cauby Peixoto! O cara virava uma arara. Mas o negócio é que pendurava um palito de picolé no canto da boca e quando não assobiava, cantava a Tarde Fria. 

- É o Maranhão mermão! Sempre assobiando, palitando os dentes com palito de picolé, cantando a Tarde Fria...

(Lelê é a nossa neta. De Euridice e minha também. Por extensão. Dessas que nunca se tira da tomada. Linda, inteligente, arguta. Como toda neta da gente. A saudade amanhecida hoje nesse friozão que faz aqui foi lá no meu subconsciente e voltou dizendo que é a Lelê quem chama o vento e ele atende. E não o seu Loló.)

O chamamento do vento na ilha do Maranhão e terras circunvizinhas, como constatou e descreveu um ancestral do Macrón - o padre D’abeville, o qual tinha horror a mentiras, em especial as atiradas de uns incertos púlpitos, - oh templos, oh mores, - o cara que mandava no vento acionado pelo assobio chama-se Loló e mora invisível, até onde eu sei, por todas as praias do litoral nordeste do Brasil. 

Na jurisdição do seu Loló, a qual abarca por inteiro a ilha do Maranhão e terras circunvizinhas, incluindo Cedral e até Cajapió (não é a pior cajá, gente), seu Loló tem casa no Calhau. Foi lá que, no último século, lhe levaram a notícia de que o Coronel Santana deu ordem de prisão e levou preso o Secretário de Fazenda, se bem lembro, no último dia do governo do doutor Nunes Freire. 

Esse Coronel Santana, e fazia tempo de Quarta-Feira de Cinzas no País, era um dos mais exímios assobiadores – chamadores de vento para empinar seu papagaio tipo jamanta na Praça Marechal Deodoro.

Chico Maranhão também assobiava muito na praia do Calhau chamando o vento do seu Loló para desencalhar.

- Desencalhar, o que siô? 

- Sereia, siô. Sereia.

É sempre bom lembrar o achado de Glauber Rocha, segundo o qual “no Maranhão, quem não é mais poeta, virou coco babaçu.”

Bsb, 09.06.23

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Que Brasil Lula projetará nas próximas viagens?

Seria uma lástima se Lula e Biden desperdiçassem a oportunidade de serem sal da terra e luz do mundo, com a bênção do papa e o aplauso da comunidade mundial

Visto de Washington, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não fez amigos nem influenciou países no acanhado começo de seu inusitado terceiro mandato no Palácio do Planalto. Ao contrário, desapontou aliados tradicionais na Europa e nas Américas ao persistir na conhecida trilha das oportunidades perdidas, que vai no sentido oposto do objetivo declarado de promover o interesse nacional e fazê-lo projetando a liderança do Brasil em temas centrais para nós e nossos vizinhos. Quem sabe as bênçãos de Santo Antônio, São João e São Pedro iluminarão o caminho do presidente e o ajudarão a colher bons frutos em sua próxima viagem internacional, este mês, durante as festas juninas.

Em Paris, Lula tratará com seu colega francês, Emmanuel Macron, de dois assuntos que estão no topo na agenda internacional: a guerra deflagrada pela injustificável invasão da Ucrânia pela Rússia, a primeira entre duas nações europeias desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945; e o urgente desafio de conter as mudanças climáticas e preservar o meio ambiente – este tema da primeira encíclica do papa Francisco, que pede um envolvimento substantivo do Brasil. Ambas as discussões continuarão no Vaticano, com votos de sucesso dos amigos do País ao redor do mundo.

O que fará Lula? Adiará a escolha e correrá o risco de perder o bonde da História, calculando que o País será chamado à mesa de negociações quando a realidade as impuser? Se esse cálculo se comprovar correto, o que o Brasil aportará, além de boas intenções e capacidade diplomática? Mas, se o cálculo se mostrar equivocado e o País for alijado das conversas, por irrelevante ou não confiável, hoje um cenário plausível, o que fará o presidente?

Não há respostas prontas para essas perguntas, até porque elas só terão credibilidade se resultarem de um debate interno que o País até hoje não teve fora dos rarefeitos círculos acadêmicos e intelectuais. Fazê-lo agora, para começar, impõe o difícil reconhecimento de que o Brasil diminuiu de tamanho relativo na última década, especialmente durante o abjeto governo de Jair Bolsonaro, e terá de encontrar seu caminho num ambiente internacional muito diferente daquele no qual Lula ascendeu ao poder na primeira década do século.

As escolhas que Lula fez até agora, com a ajuda de seu assessor internacional, o ex-chanceler Celso Amorim, claramente não foram satisfatórias para uma parcela importante dos eleitores que o levaram ao poder num país dividido e polarizado. A demora em condenar a criminosa invasão russa da Ucrânia e o desejo de ficar em cima do muro em nome de uma suposta neutralidade expuseram a pusilanimidade nacional ao mundo, que esperava mais da maior democracia do Hemisfério Sul. Nos EUA, onde os funcionários mais e melhor conhecem o Brasil, a decepção veio à tona em declarações públicas hostis de ex-diplomatas e comentários de gente influente no Executivo e no Congresso. Resumindo, o Brasil deixou de reconquistar o espaço que perdeu durante o calamitoso governo de Bolsonaro e terá a missão de Sísifo para reparar o mal feito.

Some-se a isso uma pronunciada queda de interesse pelo País em Washington, o que dificulta a construção de agendas positivas de cooperação e investimentos. Este panorama desolador pode ser revertido por Lula, se ele tiver interesse e disposição política para tomar um rumo mais produtivo nas relações com aliados tradicionais como os EUA, sem prejudicar os laços com a China, hoje o maior parceiro comercial do Brasil.

Para tanto, o líder brasileiro terá de superar ressentimentos e preconceitos ideológicos e retomar o caminho virtuoso das escolhas corajosas que fizeram dele e do Brasil na década de 1980 exemplos a serem seguidos. Terá Lula a energia e a ousadia necessárias para reinventar-se aos 77 anos? Uma visita bem preparada à Casa Branca e um fim de semana com o presidente Joe Biden em Camp David certamente ajudariam, e por isso merecem consideração em Brasília e em Washington. Tais eventos seriam recebidos como golaços diplomáticos nos dois países e alterariam o panorama internacional de forma significativa. Abririam perspectivas de cooperação econômica, política e cultural entre as duas maiores democracias multirraciais e multiculturais das Américas, para benefício de ambas e de seus vizinhos.

Não menos importante, Biden e Lula, de 80 e 77 anos respectivamente, projetariam a vitalidade das sociedades que lideram e reacenderiam a chama da esperança num mundo melhor em dois países que ainda enfrentam as consequências de séculos da escravidão de africanos que, libertados, deram a ambos e ao mundo culturas densas e ricas nas artes, na música e na literatura. Seria uma lástima se Lula e Biden, dois homens de origens humildes, desperdiçassem a oportunidade única que a História lhes oferece de serem sal da terra e luz do mundo, com a bênção do papa Francisco e o aplauso da comunidade mundial. Não é pouco. E, quem sabe, talvez seja suficiente para o Nobel da Paz.

Paulo Sotero, o autor deste artigo, é Jornalista - pesquisador sênior do Brasil Institute no Wilspn Center, em Washington - DC. Publicado originalmente pelo O Estado de S. Paulo, em 07.06.23

Ruptura de barragem no Dnieper deixa centenas de milhares de pessoas na Ucrânia sem água potável

Kiev descreve o incidente como um "terrível ato terrorista" de Moscou e alerta que mais de 40.000 cidadãos de 80 cidades estão em risco de inundação


A barragem de Nova Kajovka desabou, esta terça-feira.
TASS (VIA REUTERS

Cidades e campos alagados, resgates em botes de borracha, vítimas tentando guardar seus pertences em sacolas plásticas. A ruptura da barragem de Nova Kakhovka no rio Dnieperdeixou uma paisagem devastada no sul da Ucrânia, onde pelo menos 5.900 pessoas foram deslocadas em ambas as margens. Quase 1.900 pessoas foram evacuadas na área controlada pela Ucrânia, de acordo com as autoridades de Kiev. 

Nos territórios ocupados pela Rússia, mais de 4.000 pessoas foram realocadas para outros locais, segundo autoridades leais a Moscou. Em uma primeira avaliação do desastre, o governo ucraniano estima que cerca de 10.000 hectares de terras agrícolas foram inundados; pelo menos 20.000 residências e empresas estão sem eletricidade e "centenas de milhares" dos afetados não têm acesso à água potável. E a catástrofe não acabou: um total de 80 cidades, nas quais residem cerca de 42.000 pessoas, correm risco de inundação. Além disso, de acordo com as previsões do Executivo ucraniano, 500.

As autoridades de Kiev e Moscou continuam a se culpar pela destruição da barragem. Até agora, eles não relataram mortes, embora tenham relatado uma dúzia de desaparecidos, sete na área sob controle russo e três na área ainda em mãos ucranianas. Tudo isso em meio aos planos da esperada contraofensiva na Ucrânia , que a Rússia já iniciou, mas sobre a qual Kiev não confirma nada. O imenso rio Dnieper, que separa os dois exércitos em Kherson, a cerca de 60 quilômetros da barragem, é um dos cenários-chave dessa grande operação militar.

O ministro das Infraestruturas, Oleksandr Kubrakov, alertou durante uma visita à área para o perigo da movimentação de minas, da disseminação de doenças e da mistura de substâncias químicas com a água, informa a agência Reuters. Em alguns pontos, segundo o governador regional de Kherson, Oleksandr Prokudin, a água ultrapassa os cinco metros e os serviços de resgate precisam se deslocar em barcos. Na margem oriental do Dnieper, na zona ocupada pela Rússia, cresce a sensação de caos entre a população e o medo de surtos epidêmicos devido à morte em massa de animais e à inundação de cemitérios. Por sua vez, as autoridades impostas pelo Kremlin na área prometem aos afetados um pagamento de 10.000 a 50.000 rublos (entre 115 e 570 euros), "dependendo do grau de dano" sofrido em suas casas, relata Javier G. Cuesta . .

Além da catástrofe humana e ambiental, o colapso da infraestrutura também gera temores de que afete a usina nuclear de Zaporizhia , a maior da Europa e localizada às margens do rio Dnieper. Por enquanto, a usina, que depende do nível adequado de água para seu resfriamento, não sofreu nenhum problema, conforme confirmado pelo governo de Kiev.

“Atualmente, não há ameaça direta”, destaca ainda o Ministério da Energia através de um comunicado referente à central nuclear. É “improvável” que estas instalações venham a ter “problemas de segurança adicionais imediatos”, segundo os serviços secretos do Reino Unido, que monitorizam diariamente os aspetos mais críticos da segurança no país invadido.

Embora a água de Nova Kakhovka seja essencial para resfriar os reatores da usina de Zaporizhia, inicialmente, "não há risco iminente à segurança", disse na terça-feira o diretor da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Raphael Grossi. Ciente, de qualquer forma, da importância do enclave, ocupado por militares russos e palco constante de combates, Grossi se deslocará na próxima semana à usina, onde uma missão da AIEA monitora o local desde setembro passado . O nível da água na barragem é normalmente de 16 metros. Se cair abaixo de 13,2, existe o perigo de o sistema de refrigeração não responder, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente da Ucrânia.

As da usina de Zaporizhia são as instalações mais críticas e as que mais preocupam desde o incidente da madrugada de terça-feira. De acordo com o Ministério da Energia, o incidente também inundou 129 subestações transformadoras em Kherson, bem como duas usinas de energia solar na região de Mykolaiv.

Até a manhã de quarta-feira, 1.852 casas foram inundadas na margem oeste do rio Dnieper, a maioria delas no distrito de Korabel, ao sul da cidade de Kherson, segundo o governador regional. O oeste é a costa que está sob controle ucraniano desde que as Forças Armadas locais conseguiram expulsar os russos há sete meses.

Na manhã desta quarta-feira, um dia e meio após o rompimento da barragem, o nível da água havia baixado 2,5 metros e as áreas circundantes continuaram inundadas, embora a um ritmo mais lento do que na terça-feira, segundo a empresa pública Ukrhydroenergo, que gere centrais hidroelétricas. A companhia ferroviária nacional, Ukrzaliznytsia, organizou na madrugada um dispositivo de evacuação que operava da cidade de Kherson a Mikolaiv, mas a ausência de grandes grupos populacionais nas áreas afetadas pelo incidente não torna necessário fretar comboios especiais, eles explicou a fontes da empresa EL PAÍS.

As autoridades de Kiev insistem em responsabilizar as forças de ocupação russas por um ataque deliberado para destruir a barragem. “Os terroristas russos mostraram mais uma vez que são uma ameaça para todos os seres vivos. A destruição de uma das maiores reservas de água da Ucrânia é absolutamente deliberada", disse o presidente, Volodimir Zelensky, por meio de seu perfil na rede social Twitter. “Este é um dos atos terroristas mais terríveis desta guerra”, declarou o ministro Kubrakov durante sua visita a Kherson. Além disso, a Ucrânia descreve o ocorrido como "ecocídio". A equipe de Zelensky publicou um vídeo mostrando peixes mortos nas margens do rio Dnieper.

As inundações beneficiam, à primeira vista, as tropas russas, segundo o Institute for the Study of War (ISW), centro dos Estados Unidos que não tem, no entanto, dados para determinar quem está por trás da quebra. "Alargar o rio Dnieper e complicar as tentativas de contra-ofensiva ucraniana" pode ser uma tática buscada pelos militares do Kremlin, aponta em seu relatório diário.

Kherson também é uma das regiões mais fortemente minadas na guerra atual. O Comité Internacional da Cruz Vermelha alertou esta quarta-feira para o perigo de a água deslocar as minas que faltam retirar, bem como a sinalização colocada para alertar a população e não aceder às áreas impuras.

Nova Kajovka é um enclave estratégico que as tropas russas ocupam desde o ano passado. O abastecimento de água à população da península da Crimeia, ocupada pela Rússia desde 2014, depende em grande parte dessas instalações, onde a tensão é evidente há meses. O exército local assumiu o controle da capital regional, Kherson, localizada cerca de 60 quilômetros abaixo, perto da foz do Mar Negro, em novembro. Essa contra-ofensiva conseguiu expulsar as tropas invasoras da margem direita, mas em todos esses meses, apesar de tentar, não conseguiram retomar o controle de Nova Kajovka.

Luís Vega, o autor desta reportagem, é o enviado especial do EL PAÍS a Kiev (Ucrânia), capital do País invadido pela Rússia. Publicada originalmente em 07.06.23.

O Congresso brasileiro ameaça a humanidade

O que fazer quando as decisões de um parlamento negacionista afetam o futuro de todos?

Membros de povos indígenas e organizações ligadas a movimentos indígenas se manifestam no centro de Manaus, Amazonas (Brasil). (Crédito da foto: Rafael Alves, EFE)

O Parlamento brasileiro é um exemplo da situação em que a humanidade se encontra: em um planeta em colapso climático, o futuro global é determinado por decisões locais. No Brasil, o Congresso é controlado por deputados e senadores negacionistas do clima, em parte por ignorância, em parte porque preferem enriquecer no presente imediato, em parte pelas duas razões. 

No final de maio, os deputados atacaram o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas , liderado por Marina Silva, destruindo estruturas essenciais. Tiraram também o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas , liderado por Sonia Guajajara, sua principal função: demarcar as terras das populações originárias. O Senado aprovou a desfiguração dos ministérios de Luiz Inácio Lula da Silva diretamente ligados à proteção da natureza. 

Na segunda-feira, Dia Mundial do Meio Ambiente, Marina Silva, que lutou quase sozinha para mudar esse quadro, chamou o desmatamento de seu ministério de "regressão". É muito mais do que isso. O ataque compromete, talvez de forma irreversível, a proteção da Amazônia.

Este é o drama. O futuro muito próximo é decidido por homens de terno, em sua maioria brancos, longe da Amazônia e de outros biomas. Sem maioria no Congresso, Lula apoiou o desmatamento dos ministérios. Os deputados da base governista nem fingiram que estavam tentando impedir a destruição. A emergência climática está longe da consciência da maioria. Embora os eventos extremos se multipliquem pelo mundo, continua sendo um assunto de gueto, mesmo para uma parte da esquerda.

Um dia antes do ataque à estrutura do novo governo, os deputados brasileiros já haviam aprovado outra atrocidade: o "marco provisório", aberração que determina que apenas os índios que estiveram em suas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, têm o direito de ter seu território demarcado. O ponto deliberadamente ignorado é que muitos indígenas foram expulsos de suas terras ou fugiram para não serem exterminados.

Com a aprovação do projeto, que ainda precisa passar pelo Senado, os deputados querem avançar com a destruição da natureza. Hoje o Supremo Tribunal Federal julga essa questão. O voto mobilizou os povos indígenas, mas deveria mobilizar toda a humanidade, pois ficou demonstrado que a Amazônia resiste onde há terras indígenas.

A democracia brasileira é precária. Se fosse uma ditadura, o risco seria ainda maior, porque os poucos contrapesos já teriam sido retirados. O Brasil caminhava nessa direção quando Jair Bolsonaro desmoralizou a presidência. Por isso os Estados Unidos de Joe Biden e parte dos governos da Europa comemoraram a vitória de Lula, que prometeu proteger a Amazônia. Mas o projeto de extrema-direita continua ativo no Congresso brasileiro e está decidindo o futuro do mundo.

Deputados e senadores negacionistas só deixarão de negar quando perderem dinheiro aqueles que financiam suas campanhas. A pressão externa deve ser muito maior. A União Européia deve prevenir de forma mais efetiva a importação de produtos do desmatamento e agir contra as mineradoras e outras corporações com bandeira de países membros que destroem a floresta e poluem os rios. A imprensa repete que o Congresso “emparedou” Lula. Nós é que estamos emparedados. E a casa está queimando.

Eliane Brum, a autora deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 07.06.23. Tradução de Meritxell Almarza . 

Uso de aplicativos incrementou prática da conciliação, diz Paulo Sérgio Domingues

Apesar de todos os percalços vividos na crise da Covid-19, o uso das ferramentas digitais na prestação jurisdicional durante a epidemia incrementou a prática da conciliação ao facilitar o contato entre as partes, seus advogados e os conciliadores, disse o ministro Paulo Sérgio Domingues, do Superior do Tribunal de Justiça.

Justiça teve de ser criativa nas conciliações durante a crise da Covid, disse Domingues

Entusiasta do uso dos aplicativos eletrônicos desde os tempos em que, como desembargador, coordenou o gabinete de conciliação do Tribunal Regional da 3ª Região (TRF-3), Domingues traçou um panorama do momento atual da prática conciliatória em sua entrevista à série "Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito", na qual a revista eletrônica Consultor Jurídico ouve alguns dos principais nomes do Direito sobre os temas mais importante da atualidade.

"A pandemia nos ensinou muito a respeito de como podemos incrementar a conciliação a partir da utilização de meios eletrônicos para a solução consensual de conflitos", disse o ministro, que é especialista no uso de tecnologia no Poder Judiciário, tendo chefiado a comissão de informática que cuidou da implantação do processo judicial eletrônico, da digitalização de processos físicos e da segurança cibernética no TRF-3.

Segundo Domingues, no auge da crise, a Justiça se viu obrigada a promover as conciliações de maneira criativa. Para isso, recorreu a aplicativos de videoconferência, como o Teams e o Zoom, como forma de conectar as partes, os advogados e os conciliadores.

"Nós fizemos muitas dessas conciliações sem nenhum problema depois em relação ao cumprimento dos acordos", contou o ministro. "Quando uma pessoa não podia sair de casa para assinar os acordos, uma foto com o RG, com o joinha, já funcionava como um 'OK' para uma conciliação. Da mesma forma, um advogado segurando sua carteira da OAB e dando um 'OK' também resolvia a conciliação."

Na visão do ministro, tudo isso serviu para mostrar, tanto para os jurisdicionados quanto para os advogados, que pode ser mais prático buscar a solução consensual já a partir da propositura de uma ação.

"Não há dúvida de que, com mais de um milhão de advogados atuando, apenas a propositura de ações judiciais não vai resolver os problemas, porque o Judiciário vai ficar congestionado e cada vez mais lento. Isso é inevitável. Então, é importante que os advogados tenham essa consciência de que a participação deles na conciliação não é algo ruim, e sim algo que contribui para uma solução mais rápida. E que permite que o Judiciário se ocupe de processos mais complexos", explicou Domingues.

O ministro considera que esse entendimento chegou às faculdades de Direito, que acordaram para a importância da solução consensual e já começam a oferecer matérias que tratam da prática.

"A gente espera que isso se dissemine, porque é algo que é necessário mesmo para a própria sobrevivência do advogado no futuro. Conciliação e tecnologia: sem essas duas ferramentas o advogado provavelmente não vai conseguir sobreviver no mercado."

Por fim, Domingues disse que há espaço para a conciliação em todos os tribunais, inclusive nos superiores. "Isso pode ser realizado de uma maneira institucional, com a participação de grandes litigantes, sejam públicos, sejam privados, de maneira que o alcance das conciliações alcançadas acabe se disseminando para os tribunais do país inteiro."

Publicado originalmente pelo Consultor Jurídico, em 07.06.23

'Menos juridiquês': o projeto que defende linguagem simples para Justiça ser mais democrática

Linguagem mais simples aproxima as pessoas da Justiça


Ei Thêmis! Fala claro e simples que eu te entendo.

Inane. Cônjuge supérstite. Inobstante. Hialinamente.

São palavras incomuns, desconhecidas, complicadas e que podem ser substituídas por sinônimos bem mais simples: "cônjuge supérstite" é o mesmo que viúvo, "hialinamente" quer dizer "claramente".

Apesar de tudo isso, não é raro encontrá-las em documentos de processos judiciais - em textos de advogados, promotores e decisões de magistrados.

É o famoso "juridiquês" - uma linguagem desnecessariamente complicada usada com frequência em documentos judiciais.

O Direito, como toda área de conhecimento, tem termos técnicos conhecidos por quem é da área e não pelos leigos. O problema não uso desses termos técnicos, mas a forma excessivamente rebuscada de escrever - nenhuma dessas palavras citadas no início do texto, por exemplo, é um termo técnico-jurídico necessário.

Pensando em aproximar o Judiciário da sociedade, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está promovendo uma iniciativa bem sucedida do Tribunal de Justiça da Bahia para ampliar o uso de uma linguagem mais simples na Justiça e criar formas de traduzir as decisões para o público em geral.

"Existe uma necessidade do Judiciário se aproximar mais da sociedade", diz o conselheiro do CNJ Mário Maia.

"E existem muitas formas de tornar a Justiça mais acessível - a linguagem é uma delas."

"Como primeira forma de contato, eu entendo que linguagem pode aproximar ou afastar. Da forma como ela normalmente se apresenta, é muito difícil de compreender."

Segundo ele, a ideia da iniciativa não é acabar com o o uso dos termos técnicos, que são necessários, mas incentivar o uso de uma linguagem mais direta e também criar formas de "traduzir" o processo para quem não é da área.

"Isso não desmerece o vernáculo jurídico, que vai continuar existindo, mas explicar as decisões para as pessoas não tiveram a oportunidade de aprendê-lo", diz Maia.

"Não é que ele tenha que ser combatido. Ele deve ser preservado no ambiente jurídico, na academia. Existem tradições conservadas que carregam um valor histórico."

Mas manter uma tradição não significa rejeitar o novo, diz ele.

O acesso à Justiça ainda é muito restrito no Brasil

Linguagem simples

O principal ponto da iniciativa é incentivar que os tribunais de Justiça disponibilizem uma explicação em linguagem simples de certas decisões, sentenças ou portarias a depender do perfil de pessoas que elas afetem.

"Uma decisão que afeta empresas, que têm equipes jurídicas especializadas, não precisa disso. Mas uma decisão sobre aposentadoria, por exemplo, ou que afete o regime de trabalho do trabalhador rural, precisa ser acessível", defende Maia.

Essa "tradução" seria produzida pelas próprias varas tanto em forma de texto como em forma de áudio - acessível por QR Code, por exemplo - pensando tanto em pessoas com deficiência visual quanto em pessoas que não sabem ler.

"Para muitas pessoas é constrangedor ter que dizer que é analfabeto e pedir para alguém ler", diz Maia.

"Disponibilizar uma explicação em áudio é uma forma de inclusão. O acesso à Justiça gera a noção de pertencimento, a pessoa começa a se sentir cidadã, detentora de direitos, de proteção."

A iniciativa beneficia inclusive pessoas com alta escolaridade de outras áreas do conhecimento, segundo o conselheiro.

Afinal, a dificuldade de entender decisões pode acontecer mesmo que as peças do processo estejam escritas de forma bastante objetiva, com sentenças na ordem direta e linguagem clara, já que o uso de certos termos técnicos é inevitável.

"Se eu ler um comunicado de uma associação médica eu também não vou entender", diz Maia. "Então, essa iniciativa é algo que beneficia todo mundo."

A iniciativa, no entanto, depende de cada tribunal - é uma recomendação do CNJ, não uma resolução, que tornaria seus termos obrigatórios.

"É algo que pode ser iniciativa do tribunal, do magistrado ou mesmo da secretaria da vara, de acordo com o perfil de pessoas. Há locais onde seria importante, por exemplo, disponibilizar o conteúdo em linguagens de povos indígenas. Muitas vezes a gente esquece que o português não é a única língua falada no Brasil", diz Maia.

A experiência do Tribunal de Justiça da Bahia, afirma, mostra que a iniciativa não gera gastos extras.

"Sempre tem alguma resistência das pessoas, mas o debate é bom, ajuda a conscientizar e é uma forma da gente escutar os questionamentos", diz.

Letícia Mori, originalmente, de S. Paulo - SP para a BBC News Brasil, em 06.06.23. (Twitter,@_leticiamori)

terça-feira, 6 de junho de 2023

O arriscado ‘negócio da China’

Programa chinês para financiar projetos mal planejados e possivelmente explorados por corruptos locais na África, Ásia e América Latina ameaça asfixiar países em desenvolvimento

Em 2013, o presidente chinês, Xi Jinping, anunciou um vasto programa de financiamento de infraestrutura em economias emergentes. A Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês), disse ele, era o “projeto do século”. Com efeito, a China se tornou o maior credor bilateral do mundo, especialmente para os países em desenvolvimento, eclipsando até o Banco Mundial e o FMI. Dez anos depois, as falhas no programa – incluindo a sua opacidade, gerenciamento de risco insuficiente e a participação de algumas das nações devedoras menos confiáveis do mundo – estão forçando Pequim a uma operação para apagar incêndios, com o risco de precipitar uma “crise da dívida do século” para o mercado emergente.

A China financiou projetos de infraestrutura em dezenas de países, desde ferrovias na África, portos na Ásia e estradas na América Latina, que, somados, beiram US$ 1 trilhão. Os críticos chamaram a iniciativa de “diplomacia de armadilha da dívida”, para forçar os devedores a ceder ativos estratégicos, como portos e minas. Uma vez que os termos e condições dos empréstimos são sigilosos, é difícil avaliar se e até que ponto foi esse o caso. Especialistas apontam que os empréstimos vêm de dúzias de bancos espalhados pelo país e são aleatórios demais para serem coordenados de cima. De acordo com o centro de pesquisas AidData, do College of William and Mary, na Virgínia, os contratos iniciais estavam em linha com os preços de mercado. Na maioria dos casos, os bancos chineses não exigiam dos tomadores de empréstimo a penhora de ativos físicos. No entanto, os bancos chineses exigiam que os países mantivessem uma conta separada a ser tomada ou bloqueada em caso de disputa, o que, somado às condições de confidencialidade, tornava difícil para outros credores e os próprios cidadãos desses países monitorar as condições financeiras do governo.

Já no final da década passada, o pagamento das dívidas começou a escassear. Com a pandemia e a guerra na Ucrânia, os riscos de calotes se multiplicaram. Novos empréstimos foram feitos pela China, mais para evitar novos calotes, especialmente na África, do que em novos projetos. Esses empréstimos, segundo o Kiel Institute for the World Economy, tomaram novas formas. Eles seguem opacos, mas, além disso, comportam juros inusualmente altos. De resto, não são canalizados para todos os participantes da BRI, mas exclusivamente para os que representam riscos para os bancos chineses. É difícil contornar a suspeita de agiotagem em escala internacional.

Obviamente, os países estrangulados pelo garrote chinês não são meras vítimas inocentes. É mais do que plausível supor que boa parte dessas obras foi feita sem planejamento adequado e se tornou campo fértil para esquemas de corrupção das elites locais. Mas o fato, como disse o premiê alemão, Olaf Scholz, é que “há um perigo sério de que a próxima grande crise do Sul Global seja alavancada pelos empréstimos que a China distribuiu pelo mundo”.

Esforços do G-20, do qual a China faz parte, para criar um “Quadro Comum” de reestruturação da dívida provaram-se letra morta. A cooperação exigiria compartilhar informações, mas a China prefere conduzir suas negociações em privado, frequentemente exigindo pagamentos em commodities ou seus ganhos futuros, e “furando a fila” dos outros credores.

“Na minha visão, nós temos de arrastá-los – mas talvez esse termo seja rude. Nós precisamos caminhar juntos”, afirmou a diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, a respeito da China. “Porque, se não o fizermos, haverá catástrofe para muitos, muitos países.”

É do interesse de todo o mundo, incluindo Pequim, criar um sistema eficiente de resolução de dívidas e empréstimos emergenciais para conter a crise dos mercados emergentes que se avizinha. Em alguns casos críticos, como na Zâmbia ou Sri Lanka, a China chegou a cooperar com o FMI em pacotes de resgate. Mas, para ampliar essa cooperação, será indispensável que os credores chineses tragam à luz os termos de seus empréstimos e aceitem soluções multilaterais equânimes para todos os credores.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 06.06.23

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Três vezes Brasil

O País hoje: uma mediocridade política só comparável, no passado, às ‘ditaduras estaduais’, uma recuperação econômica que parece se distanciar no horizonte e uma sociedade desordeira

A rigor, o título deste artigo deveria ser Relembrando Euclides da Cunha. O leitor com certeza sabe que o grande autor de Os Sertões foi também um notável ensaísta e, em particular, um exímio analista político.

Não vacilo em afirmar que seu Esboço de História Política, escrito no primeiro centenário da Independência, incluído no volume À Margem da História (reeditado pela Editora Lello em 1967), tem seu lugar assegurado entre os quatro ou cinco melhores textos brasileiros nessa área. Inventei outro título por uma razão muito simples: meu propósito não é resenhar Euclides, mas aproveitar o texto dele para reinterpretar e trazer o texto dele até o Brasil atual. Na primeira parte, apenas interpreto a linha-mestra do Esboço; na segunda e na terceira, exponho o que se passou desde 1891, superpondo o que veio à minha mente à medida que relia o original de Euclides.

O fio condutor da interpretação euclidiana parece-me ser este: “Somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política”. Complementado logo adiante por esta frase-manifesto: “Estávamos destinados a formar uma raça histórica, através de um longo curso de existência política autônoma. Violada a ordem natural dos fatos, a nossa integridade étnica teria de constituir-se e manter-se garantida pela evolução social. Condenávamos à civilização. Ou progredir ou desaparecer”.

A “teoria política” era a ponte de que nos valeríamos para a travessia, deixando para trás a tirania colonial e pondo os pés num futuro que talvez fosse a civilização. Reparem que aqui o Euclides simpatizante do evolucionismo de Augusto Comte faz uma crítica ao mestre e, portanto, a si mesmo. O espectro da regressão a um status colonial delineava claramente as alternativas: era o desmembramento em republiquetas turbulentas, instáveis, comandadas alternadamente por caudilhos, ou antecipar mentalmente o futuro desejado, deixar de lado a ilusão de um determinismo que a ele nos levasse.

 “Violando a ordem natural dos fatos”, acreditar, ainda que com pouca chance de sucesso, na teoria que nos serviria de ponte. Mas tal teoria não poderia ser uma abstração. Haveria de ser um fazerpolítico, que dependia de o destino nos dar líderes e pensadores à altura do empreendimento. O destino não nos faltou: os dois monarcas, Pedro I e Pedro II, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Marquês do Paraná, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e outros mais, cada um a seu modo, deram-nos o impulso para a civilização. Acrescente-se que, naquele período, estávamos em condições de fornecer todo o café que o mundo demandasse. Descontados a anarquia da Regência (1831-1840), o prolongamento excessivo da escravidão e a instauração da República fruto não de uma visão política esclarecida, mas do fato de não ter o País um sucessor masculino, e sim uma princesa – casada com um estrangeiro, o Conde D’Eu –, o saldo foi positivo.

Mas, como diz o ditado popular, pau que dá em Chico dá em Francisco. Aqui, peço vênia para umas pinceladas no brilhante quadro de Euclides. Cedo ou tarde, a riqueza propiciada pelo café haveria de ser destroçada pela competição internacional. E, no lugar do Marquês do Paraná, artífice da pacificação, e de Joaquim Nabuco, o primeiro a denunciar sem meias palavras a ilegitimidade para a qual degenerava o Poder Moderador, veio, por um lado, uma chusma de pseudointelectuais siderados pela ascensão do fascismo na Europa e, pelo outro, os comediantes que personificaram a Política dos Governadores, que melhor fora epitetada como Política das Ditaduras Estaduais, que transformou cada Estado (exceto o Rio Grande do Sul) num regime de partido único. Em seguida, a rebelião de alguns Estados contra a “socialização das perdas”, o subsídio ao que restava da outrora pujante cafeicultura e, finalmente, a tragicomédia da Revolução de 1930, cujo desfecho só poderia ser a ditadura getulista, a polarização getulismo-antigetulismo e, no fim da linha, 21 anos de governos militares.

Essa passagem de nossa história não pode omitir a estrutura social que dela resultou: uma minúscula elite garroteando o patrimônio e a renda nacional; uma classe média esquálida, cada vez mais incrustada na máquina do Estado, eis que desprovida de bases para crescer, tanto no campo como na cidade; e um amazonas de miseráveis, exescravos, desempregados e analfabetos. Para supostamente superar esse estado de coisas, a obsessão com a chamada industrialização por substituição de instituições (ISI), que nos deixou onde estamos: na estagnação e com o maligno espectro da “armadilha do baixo crescimento”.

E agora, José? Agora são uma mediocridade política somente comparável, no passado, às antes mencionadas “ditaduras estaduais” e uma recuperação econômica que parece se distanciar no horizonte a cada minuto. Mas isso ainda não é o pior. É uma sociedade desordeira, que parece não enxergar a si mesma, vivendo da mão para a boca e quase totalmente destituída de valores coletivos. 

Bolívar Lamounier, o autor deste artigo, é sócio-diretor da Augurium Consultoria. Membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.06.23

Ministros alemães buscam mão de obra qualificada no Brasil

Annalena Baerbock, do Exterior, e Hubertus Heil, do Trabalho, querem atrair enfermeiras e enfermeiros para compensar falta de profissionais na Alemanha. Cooperação sobre clima e paz também na agenda de encontros.


O ministro alemão do Trabalho, Hubertus Heil, e a ministra alemã do Exterior, Annalena Baerbock, falam com jornalistas em frente à sede do Itamaraty, em Brasília (Foto: Annette Riedl/dpa/picture alliance)

Os ministros alemães do Exterior, Annalena Baerbock, e do Trabalho, Hubertus Heil, chegaram ao Brasil nesta segunda-feira (05/06), como parte de uma iniciativa oficial visando trazer profissionais brasileiros da área de saúde para trabalharem em seu país.

Com duração total de seis dias, a viagem pela América Latina para recrutamento de mão de obra qualificada prosseguirá pela Colômbia e Panamá. "Enfermeiras/os brasileiras/os e eletricistas colombianos já são recebidos de braços abertos na Alemanha. Queremos ampliar essa parceria", declarou Baerbock.

No seu primeiro dia em Brasília, ela se encontrou com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Em declaração conjunta, as chefes de pasta acentuaram a vontade de seus países de avançarem lado a lado na política climática.

Melhores salários e condições: uma meta comum

Segundo a Agência Federal de Trabalho da Alemanha, há no país "uma óbvia falta de profissionais de cuidados", com três vagas livres para cada enfermeira em busca de emprego. E a Fundação de Proteção dos Pacientes alerta que nos próximos anos se aposentam 500 mil funcionários de hospitais clínicas e ambulatórios.

Em contrapartida, o Brasil conta com 2,5 milhões de cuidadoras/es formada/os, e em 2021 a taxa de desemprego no setor era de 10%, registra o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen).

Ainda assim – e apesar de o Brasil ser o principal parceiro comercial da Alemanha na América Latina – Heil afirmou que menos de 200 enfermeira/os brasileira/os estão atuando atualmente em seu país. A Agência Federal de Trabalho calcula que será possível contratar até 700 profissionais por ano.

Em visita ao curso de enfermagem da Universidade Católica de Brasília, Heil pronunciou-se a favor do aumento da imigração, ressaltando que em ambos os países é necessário melhorar as condições de trabalho e salariais para a classe.

A pró-reitora acadêmica da universidade, Adriana Pelizzari, mostrou-se aberta para o intercâmbio de estudantes e cooperação na pesquisa – em que a Universidade de Göttingen está interessada, de acordo com o ministro alemão.

Juntamente com o ministro brasileiro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, Heil assinou uma declaração de intenção pela "imigração justa", com o fim de criar estruturas mais simples para incentivar o intercâmbio de mão de obra.

Unidos no clima, descompasso na guerra da Rússia
Antes de iniciar o giro pela América Latina, Baerbock definira a região como "parceira natural da Europa", que "nem mesmo um oceano pode separar": "Muito nos une: vivemos em democracias, somos próximos culturalmente e lutamos por um sistema internacional baseado em regras e direitos humanos."

Marina Silva cumprimenta Annalena BaerbockMarina Silva cumprimenta Annalena Baerbock
Baerbock também reuniu-se com Marina Silva e ambas reforçaram intenção de avançarem lado a lado na política climáticaFoto: Kira Hofmann/photothek/IMAGO
"Isso vale tanto para a Colômbia e Panamá quanto para o Brasil, nosso parceiro estratégico que ocupará a próxima presidência do G20", acrescentou, frisando a intenção do governo de Luiz Inácio Lula da Silva de contribuir para a solução dos desafios globais mais urgentes, pois "sem a América Latina não será possível aliviar a crise climática”.

Quanto ao desmatamento na Amazônia por queimadas e exploração madeireira: "Isso afeta a todos nós: se as árvores continuarem caindo, todo o ecossistema entrará em colapso. Por isso, compartilhamos da ambição do presidente Lula de oferecer perspectivas a quem vive próximo à selva, não contra a selva, mas com ela."

A chefe da diplomacia alemã acrescentou: "Estamos unidos na nossa firme convicção de que só pode haver prosperidade se a liberdade e a paz prevalecerem. Embora ocasionalmente, como na guerra de agressão russa contra a Ucrânia, tenhamos perspectivas diferentes." Por esse motivo, é "tão importante que países como o Brasil também ergam sua voz pela imposição do direito internacional", reforçou Baerbock.

Publicado originalmente por Deustche Welle Brasil, em 05.06.23

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Lula e Maduro, o amor é lindo

Narrativa é uma história que cada um conta como quer e cuja veracidade depende de quem a escuta

O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, e o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, durante encontro em Brasília - (Ueslei Marcelino - 29.mai.23/Reuters)

Entre as várias besteiras que tem cometido em vez de dedicar-se a reconstruir o país, Lula embarafustou-se por uma mixórdia verbal na segunda-feira (29) ao receber em palácio um convidado que entrou em surdina, quase que pelos fundos e sem limpar os pés: o ditador venezuelano Nicolás Maduro. Lula chamou de "narrativa" as acusações que pesam sobre Maduro e sua maneira de tratar os opositores —com prisões, sequestros, desaparecimentos, afogamentos, tortura, estupros e execuções, tudo isso possibilitado por asfixia da imprensa, degola do Poder Legislativo, pesada corrupção de militares e eleições de araque.

Esse é o violento diagnóstico contra Maduro pela Anistia Internacional, a Human Rights Watch, a Organização das Nações Unidas e o Tribunal Penal Internacional de Haia, entidades a que apelamos contra Bolsonaro por incitação a golpe de Estado, charlatanismo na pandemia e genocídio dos povos indígenas. Não por acaso, Bolsonaro também chamou a isso de "narrativa".

Narrativa, como se vê, é uma história cuja veracidade depende de quem a conta —ou de quem a escuta. Lula instou Maduro a "construir sua narrativa, para que possa efetivamente fazer as pessoas mudarem de opinião". Jurando por essa narrativa antes mesmo de ouvi-la, carimbou: "A sua narrativa vai ser infinitamente melhor do que a que eles têm contra você". O amor é lindo, não?

E então vem a mixórdia verbal: "Está nas suas mãos construir a sua narrativa e virar esse jogo, para a Venezuela voltar a ser um país soberano, onde somente seu povo, por meio de votação livre, diga quem vai governar o país".

Pois não é exatamente o que o mundo espera da Venezuela? Que volte a ser um país soberano, onde somente o povo, através de eleições livres, sem as mentiras, as gambiarras econômicas e o uso da máquina do Estado praticados por Bolsonaro, digo Maduro, escolha quem irá governá-lo.

Ruy Castro, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 31.05.23, às 7h30.

Lula se julgou senhor dos senhores, mas vem colecionando malfeitos

Presidente dá a impressão, neste início de mandato, de que foi tomado por uma espécie de síndrome de onipotência

 (Foto: Wilton Junior/Estadão)

Desde Hesíodo, sabemos que o castigo é cruel. O titã Prometeu se julgou tão poderoso que roubou o fogo do céu. Foi punido por Zeus, que o acorrentou a um rochedo onde águias vinham comer-lhe o fígado.

Lula ganhou uma eleição apertada, mas se julgou senhor dos senhores. Por conta disso, vem colecionando malfeitos.

(Emendômetro: Lula já pagou mais de R$ 5 bilhões em emendas, mas Congresso cobra mais)

Governo libera verbas do orçamento secreto deixadas por Bolsonaro e dá mais recursos para acalmar parlamentares; deputados e senadores exigem maior controle sobre verbas

Achou-se em condições de mediar a paz no coração da Europa em uma guerra que tem raízes milenares. Na cúpula do G-7, chegou a condenar a invasão de países vizinhos pela Rússia e depois quis que a Ucrânia aceitasse entregar território ocupado nessas condições, em troca de uma paz incerta. Foi ignorado. Também no G-7, entendeu que devia dar um pito no Fundo Monetário Internacional (FMI), por não atender aos reclames da caloteira Argentina. Também foi ignorado.

No encontro dos presidentes da América do Sul, tentou ressuscitar a Unasul, um clube marcado pela ideologia, mas não obteve sucesso. Recebeu o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, com salamaleques e honras militares. Em seguida, expôs a teoria de que ditadura e democracia são questões de narrativa: os fatos se submetem a quem consegue impor a versão desejada.

Internamente, certos problemas começaram quando o presidente Lula deixou o “exército do Stédile” solto para invadir terras e ainda o presenteou com sua companhia na viagem à China. Foi o que bastou para que as águias do agronegócio avançassem sobre seu fígado.

O esvaziamento dos ministérios do Meio Ambiente e Mudanças do Clima e dos Povos Indígenas veio em seguida, até mesmo com o voto dos petistas, que tiveram de conformar-se com perder menos. O projeto que define um marco temporal para demarcação de terras indígenas passou na Câmara por falta de empenho do governo para rejeitá-lo. E o governo corre contra o tempo e distribui emendas e cargos para aprovar a MP de organização dos ministérios ou o Executivo volta a ter a estrutura do governo Bolsonaro.

O anúncio do “Novo Carro Popular” foi cabal demonstração de amadorismo político. Foi tanto uma decisão quanto uma elaboração açodada, baseada em renúncia fiscal, cujo único objetivo é esvaziar os pátios lotados das montadoras. Até agora não se sabe nem quanto vai custar nem quanto tempo vai durar. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que não ultrapassará “três ou quatro meses”. O secretário do Desenvolvimento Industrial, Uallace Lima, fala em “até um ano”. É um programa que vai na contramão do objetivo principal da Fazenda, que é eliminar subsídios e perdas de arrecadação.

E tem outras coisas importantes a serem decididas, como o arcabouço fiscal e a reforma tributária.

Falta um Hércules para livrar Prometeu do seu suplício. Mas, antes, ele precisa se dar conta que não pode tudo, especialmente não pode enganar-se a si próprio. Fatos são fatos, versões são versões.

Celso Ming, o autor deste artigo, é comentarista de economia n'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 01.06.23

Agressão a jornalistas no Itamaraty exige mais que protesto contra Maduro

Truculência dos seguranças do ditador da Venezuela contou com apoio de profissionais brasileiros

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro (Sérgio Lima/AFP)

Em qualquer democracia, é inaceitável que jornalistas sejam agredidos em pleno exercício da profissão. Pior ainda quando a agressão é cometida por agentes de um país estrangeiro em território nacional, em parceria com integrantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Foi o que aconteceu na terça-feira no Palácio Itamaraty, em Brasília, durante entrevista do ditador venezuelano Nicolás Maduro. Entre as vítimas, a repórter Delis Ortiz, da TV Globo, levou um soco no peito.

“É lamentável que, após todos os casos de violência contra repórteres brasileiros que faziam a cobertura em Brasília nos últimos anos, um episódio semelhante se repita”, afirmou o presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Marcelo Rech. “Esperamos que os compromissos públicos de apurar as responsabilidades e evitar que tais agressões jamais ocorram novamente se tornem realidade daqui para a frente.” ANJ, Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) emitiram notas de repúdio contra o episódio.

No último ano do governo Jair Bolsonaro, as agressões físicas a jornalistas cresceram 38%, segundo pesquisa da Abert. Entre janeiro e dezembro de 2022, houve 47 episódios envolvendo 74 repórteres. Os alvos mais frequentes foram profissionais da televisão. Dois jornalistas foram mortos, o mais conhecido deles, Dom Phillips, assassinado na Amazônia. Com a derrota da extrema direita em outubro, muitos acharam que a hostilidade do público e de agentes de segurança contra a imprensa diminuiria. Por isso a surpresa com o comportamento dos seguranças brasileiros.

Dos que cercam o ditador Maduro não se esperava nada distinto. A Venezuela ocupa a 159ª posição entre os 180 países do ranking de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteira. Depois de assumir o poder em 2013, Maduro adotou postura ainda mais autoritária que Hugo Chávez diante do jornalismo profissional. Um jornalista chegou a ser preso durante entrevista com ele em 2019 no Palácio de Miraflores, sede do governo. Prisões arbitrárias são corriqueiras. Nesse capítulo, a Venezuela não está longe da Rússia de Vladimir Putin.

A promessa do governo brasileiro é “apurar responsabilidades”. Pela gravidade do ocorrido, é pouco. É urgente punição exemplar para os agressores. Não há imagens do momento da agressão, mas há várias testemunhas da truculência dos seguranças, capazes de apontar quem praticou os atos violentos. É preciso haver treinamento de todos os demais para evitar que tais cenas se repitam. Por fim, mas não menos importante, o governo Lula deveria pensar duas vezes antes de voltar a receber ditadores como o venezuelano em solo brasileiro.

Editorial de O GLOBO, em 01.06.23

Maduro no Brasil: 'Declarações de Lula foram tapa na cara dos venezuelanos', diz Capriles, líder da oposição na Venezuela

Candidato para as presidenciais de 2024 na Venezuela, Henrique Capriles afirmou que o presidente, após defender que há "narrativa antidemocrática no país vizinho", deve decidir de que lado está

Henrique Capriles, em visita ao Brasil em busca de apoio internacional em 2016Henrique Capriles, em visita ao Brasil em busca de apoio internacional em 2016  (André Coelho / O Globo)

A visita do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, ao Brasil e, sobretudo, as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre o país, causaram profundo mal-estar entre líderes da oposição venezuelana. Em entrevista ao GLOBO, o ex-candidato presidencial Henrique Capriles, que pretende disputar novamente a Presidência do país em 2024, afirmou que as falas de Lula foram "infelizes" e "um tapa na cara de milhões de venezuelanos", sobretudo dos setores mais vulneráveis e entre os que tiveram de abandonar o país para sobreviver. Ao receber Maduro com pompa na segunda-feira em Brasília na véspera de uma cúpula de líderes sul-americanos, Lula chamou o encontro de "histórico", responsabilizou os EUA pela derrocada econômica venezuelana e disse que as acusações de que a Venezuela não vive sob uma democracia são uma "narrativa".

"Gostaria de saber o que Lula pensa sobre a situação de nossos aposentados, e ele já está em idade de receber uma aposentadoria, que ganham menos de US$ 5 por mês", afirmou Capriles, que nas eleições de 2013, as primeiras após a morte do presidente Hugo Chávez, foi derrotado por Maduro por menos de dois pontos percentuais (50,61% contra 49,12%), resultado questionado até hoje por setores da oposição.

Como o senhor analisa a visita de Maduro ao Brasil?

Bom, Maduro estava exultante por poder estar no Brasil. Ele funciona assim, sempre com dezenas de funcionários e sempre tentando mostrar que é muito bem recebido onde vai. Mas nada disso melhora sua imagem perante os venezuelanos.

Qual a sua opinião sobre as declarações do presidente Lula sobre a Venezuela e sobre Maduro?

Para mim, as declarações de Lula foram infelizes, absolutamente infelizes. Aqui não se trata de um tema de discurso. É preciso mexer no tabuleiro político, mas isso não significa desconhecer o problema que a Venezuela vive, em matéria econômica, social, direitos humanos e uma longa lista de problemas. Que Lula diga que a situação da Venezuela é um discurso repetido no exterior, e que a realidade da Venezuela não é a que se diz, isso é uma declaração infeliz e que merece a rejeição dos venezuelanos.

Lula vem da luta dos trabalhadores, e eu gostaria de perguntar a ele sua opinião sobre os milhões de venezuelanos que tiveram de sair do país. O Brasil não é um dos países que mais recebem venezuelanos que sofrem a migração forçada, então eu diria a Lula que desse uma volta na Colômbia, Equador, Peru. Os venezuelanos nunca foram um povo que emigrava para outras terras, então, por que existem tantos venezuelanos espalhados pelo mundo? A resposta é porque não podem ter na Venezuela um trabalho estável, bem pago, para poder comer, pagar um remédio, porque o sistema de saúde pública não te dá. Gostaria de saber a opinião de Lula sobre tudo isso.

Também gostaria de saber o que Lula pensa sobre a situação de nossos aposentados, e ele já está em idade de receber uma aposentadoria, que ganham menos de US$ 5 por mês. Um litro de gasolina custa US$ 0,50. Se você vier a Caracas, verá carros importados, lojas com produtos importados, e tudo isso é consumido pelos funcionários de alta hierarquia do governo. Tudo isso é transportado em barcos, ou seja, não existe bloqueio na Venezuela.

O que opina Lula sobre isso? O que opina Lula sobre os venezuelanos que atravessam o Darién [selva na fronteira entre Panamá e Colômbia], sobretudo jovens, porque não têm possibilidade de se sustentar em seu país? De que lado está Lula? Do lado de Maduro, ou do lado do sofrimento dos venezuelanos? Sobre as sanções, podemos abrir um debate sobre se são eficientes ou não. Mas esta crise é responsabilidade de Maduro. De que país está falando Lula?

Como foram recebidas as declarações do presidente brasileiro na Venezuela?

Acho que Lula não entendeu que os tempos mudaram. A retórica da época em que eram presidentes [o equatoriano Rafael] Correa, Cristina [Kirchner, da Argentina], Lula, Evo [Morales, da Bolívia], [o venezuelano Hugo] Chávez, que era um permanente confronto com os que estivessem em desacordo com eles, dividiu seus países. O Brasil é um país dividido. Lula, pelo visto, não entendeu o que aconteceu na Venezuela. Não sou extremista, mas sua declaração foi infeliz. Lula foi eleito democraticamente, como [o colombiano Gustavo] Petro, [o chileno Gabriel] Boric, [o uruguaio Luis] Lacalle Pou. Onde não houve eleições democráticas na América do Sul? Na Venezuela.

Quem está apegado a uma retórica é ele, Lula, com desconhecimento sobre nossa realidade. Foi um tapa na cara nos milhões de venezuelanos que estão espalhados pelo mundo. Você sabe a dor que significa para a família venezuelana, os pobres, os avós que ficaram com seus netos, enquanto seus filhos trabalham em outros países? Esses venezuelanos vivem graças a remessas que chegam do exterior e já totalizam cerca de US$ 4 bilhões. Lula não percebeu isso? O que defende Lula, o status quo representado por Maduro ou a possibilidade de que a Venezuela possa se estabilizar economicamente?

Fontes do governo Lula informaram que o presidente brasileiro disse a Maduro, numa reunião fechada, que a eleição presidencial de 2024 deve ser competitiva, justa e transparente, com participação da oposição e observação internacional. Para a oposição que o senhor integra, Lula continua sendo um ator externo importante que poderia contribuir com o processo eleitoral?

Essa pergunta quem deve responder é Lula. Nós já dissemos até o cansaço que os venezuelanos acreditam no voto, somos democratas, acreditamos na expressão democrática do voto. Mas a democracia não é apenas votar. Eu votei nas últimas eleições, defendi voltar ao caminho eleitoral, estou nessa luta desde 2020. Fui crítico do governo interino [de Juan Guaidó], porque no caminho perdeu sua razão de ser e o objetivo de ter eleições, porque parece que nunca acreditaram na bandeira eleitoral.

A eleição deve ser competitiva e servir para que a Venezuela resolva sua crise política. Não pode ser uma eleição manipulada, como foi em 2018. Espero que essa luta nos aproxime de presidentes eleitos democraticamente, que lutem para que a Venezuela tenha uma solução democrática. Mas Lula só só faltou dizer que aqui existe uma campanha midiática, não correspondente com a realidade. Campanha midiática é a que sofremos todos os dias nos canais públicos, que ignoram os problemas do país. Segundo eles, não acontece nada na Venezuela. São campanhas de desinformação permanentes.

Convido Lula a estar do lado da solução, e não do problema. Esperamos do Brasil, e da região, ajuda, não ingerência, que facilitem o caminho para termos uma eleição democrática e também para a recuperação do país, que hoje é o mais desigual do continente.

A porta de diálogo com o governo Lula continua aberta?

Nós nunca nos negaremos a falar com alguém que queira ajudar o país. Não tenho preconceitos, nem uso cortinas ideológicas.

Nos últimos tempos, alguns economistas apontaram uma melhora dos indicadores econômicos do país...

A situação social é catastrófica, a ajuda do governo aos mais pobres é precária. Não se cria emprego. Depois da queda forte durante a pandemia, houve uma recuperação esperada, alguns empresários fizeram alguns investimentos, e o que Maduro fez foi não os assediar. Suspendeu a política de confisco e expropriação, que reinou no passado, na época da bonança petroleira. Como destruíram a estatal Petróleos da Venezuela, entenderam que não podiam continuar assediando o setor privado. Mas no primeiro trimestre deste ano, o consumo caiu 30%, a inflação caiu como consequência da queda do consumo, da retração da economia, e os números são muito negativos. Alguns são mais otimistas, continuam apostando, e eu digo que são heróis. Por isso digo que o país tem futuro.

Qual é sua expectativa sobre o processo de diálogo entre governo e oposição no México?

O processo de negociação está paralisado. Os Estados Unidos poderiam ajudar para que o processo possa ser retomado.

Como os EUA fariam isso?

A expectativa que existia sobre a administração [Joe] Biden era de que as políticas do governo de [Donald] Trump sobre a Venezuela fossem revisadas, porque essas políticas não deram certo. Ficar preso nisso é um erro. Não significa ignorar as violações dos direitos humanos, pelo contrário. Significa ver a situação que vive o povo venezuelano e liderar soluções para o povo venezuelano. Discursos são discursos, e o país precisa de soluções. A administração Biden tem um peso importante sobre a negociação no México.

O senhor pretende ser candidato nas eleições presidenciais de 2024?

Eu fui inabilitado pelo regime de Maduro, sou um dos inabilitados. Quase todos estamos nessa condição. Decidi concorrer, pela causa dos venezuelanos, principalmente os mais vulneráveis. Ainda não sabemos como serão as primárias. Se haverá uma primária ampla, aberta, ou mais fechada. Uma primária mais fechada iria contra minha luta de todos estes anos, a favor de uma Venezuela inclusiva.

A Venezuela precisa de um governo profundamente popular, que atenda a gigantesca dívida social que temos. Depois dos bilhões de dólares que entraram no país, hoje estamos numa situação de caos econômico e social. E isso não tem a ver com as sanções, a destruição econômica do país é responsabilidade do governo. As sanções devem ser revisadas, não ajudaram a mudar as coisas no país. Mas a destruição começou antes das sanções. No Brasil, até doamos dinheiro para uma escola de samba. Bilhões de dólares dados de presente.

Se o senhor ganhar a primária, poderá ser candidato?

Bom, isso forma parte da discussão das condições eleitorais. Para que uma eleição seja legítima e competitiva não podem existir políticos inabilitados. Petro estava inabilitado e teve uma decisão favorável da Corte Interamericana de Direitos Humanos que foi respeitada pelo Estado colombiano. Eu também tenho uma decisão favorável a mim, adotada antes da Venezuela sair da comissão. O problema é que Maduro não respeita essas decisões, como não respeita as leis e a Constituição, porque na Venezuela não temos uma democracia.

O regime de Maduro continua violando os direitos humanos?

As organizações de defesa dos direitos humanos são permanentemente assediadas pelo governo. O acesso a informações oficiais é muito difícil. Temos exemplos, inclusive de amigos próximos como Fernando Albán, que foi atirado de um dos andares do prédio do Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin), na Praça Venezuela. Ele é um dos casos em mãos do Tribunal Penal Internacional (TPI). E se as pessoas chegaram até o TPI é porque não encontraram Justiça em seu país. E a Justiça na Venezuela não melhorou. As mudanças na Corte Suprema foram cosméticas. O problema de fundo continua existindo. E sobre isso, pergunto a Lula: você acredita ou não na defesa dos direitos humanos? Se você é um democrata, não podem existir nuances.

Janaína Figueiredo, correspondente, de Buenos Aires (Argentina) para O GLOBO. Publicado originalmente em 31.05.23.

O bicho

Na campanha, Lula fez discurso de união nacional, que não acontece. Com isso, está perdendo o apoio do centro democrático

Congresso empareda governo e dificulta aprovação de projetosCongresso empareda governo e dificulta aprovação de projetos Brenno Carvalho / Agência O Globo

Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega. Nada melhor para definir a situação política do governo hoje que o título da peça de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar, de 1966. Não havia saída. A decisão da Câmara, já tomada, de alterar a estrutura organizacional imaginada pelo presidente eleito é um duro golpe político, uma intromissão indevida que deveria ser contestada no Supremo Tribunal Federal (STF). Mas Lula não tem apoio político para tanto.

Obrigar um governo de esquerda a se organizar dentro do conceito de extrema direita, esvaziando as políticas públicas do meio ambiente e indigenista, fazendo desaparecer ministérios como Planejamento e Cultura, já é uma sublevação, negação do que o eleitorado de centro democrático aprovou nas urnas, embora por pequena margem, que sugeria que o governo saído dela fosse de união nacional.

Não é — e por culpa de Lula. O Congresso está, como sempre esteve, no conservadorismo. Ao contrário, o governo montado até agora é um simulacro de união nacional, na verdade uma hegemonia da esquerda, principalmente do PT. Enquanto os partidos de centro-direita reagem rejeitando as políticas esquerdistas, mesmo as necessárias como as ambientais, o governo acelera na direção da esquerda, e a distância entre os espectros políticos se amplia.

O governo Lula não está agindo com presteza para aprovar suas teses no Congresso; só se preocupa quando perde. A negociação do marco temporal deveria ter sido feita há muito tempo, especialmente depois da derrota das políticas indigenistas. Não quer dizer que a disputa se dê apenas no campo ideológico, mas esse fator é a grande diferença entre Lula 3 e Lula 1 e 2. Naquele tempo em que Lula era quase imbatível, os partidos de centro ou centro-direita se contentavam com as migalhas do mensalão e do petrolão. E que migalhas.

Hoje continuam querendo as migalhas milionárias das emendas e fundos financeiros, mas querem mais. Acostumaram-se a definir as políticas públicas durante o período em que Bolsonaro rendeu-se à maioria de que sempre fez parte: o Centrão. Bolsonaro tentou fazer política pessoal, jogando seu prestígio contra as estruturas partidárias, e deu com os burros n’água. Docemente constrangido, aderiu ao que era seu passado político no baixo clero e dedicou-se apenas a montar um golpe ditatorial.

Lula gostaria de controlar as emendas parlamentares, controlando assim o Congresso, e de cuidar de um governo com fortes cores de esquerda. Uma das queixas dos líderes rebelados contra o governo é que as emendas são negociadas individualmente, assim como Bolsonaro tentou negociar com “bancadas suprapartidárias”, esvaziando as lideranças. O resultado está aí.

Na Câmara, toda vez que quer negociar, o governo tem de dar algo em troca. Quanto mais difícil a aprovação, mais caro fica. Os deputados estão emparedando o governo e não querem conversa. Os dois lados estão assim. Se Lula tivesse feito realmente um governo de união nacional, de forças partidárias equivalentes, esse problema não estaria acontecendo.

O Congresso está claramente resolvido a aprovar só o que considera de interesse do país, como fez com o arcabouço fiscal, mas, quando a disputa é ideológica, vence a direita, que domina o debate. Cada vez que Lula mexe com ideologia, como aconteceu dias atrás na vergonhosa recepção ao ditador venezuelano Nicolás Maduro, mais atiça a direita no Congresso, que mostrará força para derrotar o governo.

A direita, que tinha vergonha de existir quando Lula e Dilma governaram, agora não tem mais. Foi avançando com Temer e fez um strike com Bolsonaro, sem possibilidade de controle. Lula só ganhou a eleição porque o eleitorado de centro se decepcionou com Bolsonaro. Na campanha, fez discurso de união nacional, que não acontece. Com isso, está perdendo o apoio do centro democrático.

Na campanha, Lula fez discurso de união nacional, que não acontece. Com isso, está perdendo o apoio do centro democrático.

Merval Pereira, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Presidente da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 01.06.23

Em menos de 6 meses, Lula enfrenta tempestade perfeita

Mas nem o observador mais pessimista poderia supor que a boa vontade política com que Lula começou seu mandato, turbinada pelos atos golpistas de 8 de janeiro, degringolaria tão rápido.


O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fala no Palácio do Itamaraty, em Brasília, após reunião com presidentes da América do Sul. (Brenno Carvalho/O Globo)

Não havia dúvida em Brasília de que Luiz Inácio Lula da Silva enfrentaria testes de estresse com o Congresso Nacional, nem de que o resultado seria decisivo para seu governo. Quem analisava a discrepância entre o discurso de campanha e a prática das gestões petistas também podia prever, sem grande dificuldade, que em algum momento a “frente ampla” formada para derrotar Jair Bolsonaro começaria a claudicar.

Mas nem o observador mais pessimista poderia supor que a boa vontade política com que Lula começou seu mandato, turbinada pelos atos golpistas de 8 de janeiro, degringolaria tão rápido.

O governo ainda nem completou seis meses e, só na última semana, já foi derrotado na votação do marco temporal das terras indígenas, e sua proposta de reorganização da Esplanada dos Ministérios foi desfigurada — especialmente na área ambiental, grande diferencial de Lula, que ajudou a lustrar sua reputação de “reconstrutor” das instituições brasileiras.

Como se não bastasse, ele aproveitou um encontro de presidentes para empenhar seu capital democrático em aval entusiasmado à ditadura de Nicolás Maduro. Num discurso repleto de elogios, exortou o colega a falar para sua “imprensa livre”, como se tal coisa existisse na Venezuela. Afirmou sem corar que não é possível que o regime de Maduro “não tenha um mínimo de democracia”.

Calou-se quando os seguranças do Planalto agrediram a repórter Delis Ortiz em meio à confusão provocada pela tentativa de blindar Maduro do acesso da imprensa. E acabou criticado por quatro outros presidentes latino-americanos, do esquerdista Gabriel Boric ao direitista moderado Lacalle Pou, todos reconhecendo que as violações de direitos humanos sob o regime venezuelano não são narrativa, e sim realidade.

Enquanto o mico internacional se desenrolava, na seara doméstica a coisa ficou tão desorganizada que o Palácio do Planalto chegou ao final do prazo de vencimento da MP reconfigurando toda a máquina federal sem saber com quantos votos poderia contar — e sem saber, portanto, quantos ministros teria no final da semana.

No Centrão, proliferavam queixas sobre verbas represadas, pedidos de cargos e chantagens variadas, mas também imperava o diagnóstico de que falta a Lula conversar com os parlamentares. “ O problema está no governo, na falta ou ausência de articulação”, resumiu o presidente da Câmara, Arthur Lira, cara e voz do Centrão.

Diante de tamanha confusão, o que mais se perguntava, tanto no Planalto quanto na oposição, era o que teria levado o presidente da República, do alto da experiência de um terceiro mandato e reconhecido pelo tirocínio político, a cometer tantos erros em série. Como Lula deixou as coisas chegarem a esse ponto?

Da mesma forma que nas tempestades perfeitas, crises assim nunca têm uma única razão ou um único culpado. Mas não estará errado quem disser que, se Lula 3.0 estivesse em plena forma, o cenário provavelmente não seria tão caótico. Tampouco estará enganado quem concluir que, assim como o Lula que assumiu em 2003 era bem diferente da campanha de 2002, não se deve esperar que o Lula de 2023 seja o dos palanques de 2022.

Quem conhece a trajetória do petista sabe que, quando se instala o conflito entre as forças econômicas e as autoridades ambientais, ele costuma desempatar a favor dos empresários. Da mesma forma, apesar de sempre ter respeitado as regras do jogo democrático em seus dois mandatos, nunca se furtou a elogiar os ditadores de países amigos.

E, se o assunto é Centrão, Lula também nunca se furtou a negociar. Em 2004, quando seu governo ficou emparedado pelo mesmo PP hoje comandado por Lira, ele baixou uma ordem na Petrobras para que se entregasse logo a diretoria que o partido queria — e foi governar. O resultado foi o petrolão, mas isso é outra história.

É claro que os tempos hoje são outros. O Centrão se acostumou a Bolsonaro, que lhes entregou o orçamento secreto e a gestão de sua articulação política, e agora quer compensar as perdas. Mas Lula também é outro.

Tem cada vez menos paciência para a política do dia a dia de Brasília e parece convencido de que atingiu um status extraordinário, como se tivesse recebido nas urnas um salvo-conduto para dizer o que pensa sem se preocupar com as consequências, ou para delegar aos auxiliares negociações complexas.

Infelizmente para Lula, o eleitorado está cada vez mais radical, mas a política de cada dia continua necessária, por mais repugnante que possa se apresentar. Negar isso não só não levará seu governo muito longe, como poderá empurrá-lo para novas crises e tempestades.

Malu Gaspar, a autora deste artigo, é comentarista de política d' O GLOBO. Publicado originalmente em 01.06.23.