sexta-feira, 26 de maio de 2023

Bolsonaro é condenado em 2ª instância por ataques à imprensa

Ex-presidente terá de pagar R$ 50 mil em indenização por dano moral coletivo. Ação aberta em 2021 pelo Sindicato de Jornalistas de SP exigia fim das ofensas e condenava falas misóginas e homofóbicas

O ex-presidente Jair Bolsonaro foi condenado em segunda instância na Justiça de São Paulo a pagar indenização no valor de R$ 50 mil por dano moral coletivo à categoria dos jornalistas.

A 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça confirmou a sentença proferida pela 24ª Vara Cível de São Paulo em junho de 2022, mas reduziu pela metade o valor da compensação, que havia sido estabelecido em R$ 100 mil na primeira instância.

O valor da indenização será revertido para o Fundo Estadual de Defesa dos Direitos Difusos.

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) entrou com uma ação civil pública contra Bolsonaro em abril de 2021, exigido que ele parasse de ofender, deslegitimar ou desqualificar a profissão de jornalista ou profissionais da imprensa e de vazar ou divulgar dados pessoais destes.

Para o advogado Raphael Maia, coordenador jurídico do SJSP, Bolsonaro tratava a imprensa "de forma hostil, desrespeitosa e humilhante, com a utilização de violência verbal, palavras de baixo calão, expressões pejorativas, homofóbicas, xenófobas e misóginas".

Tais manifestações "extrapolam seu direito à liberdade de expressão e importam assédio moral coletivo contra toda a categoria de jornalistas, atentando contra a própria liberdade de imprensa e a democracia", considerou.

"Incompatível com a dignidade do cargo"

A defesa de Bolsonaro argumenta que jamais houve censura por parte do ex-presidente e que suas declarações não se referiam à classe dos jornalistas como um todo, mas sim, a "determinados profissionais".

Em junho de 2022, na condenação em primeira instância, a juíza Tamara Hochgreb Matos, da 24ª Vara Cível de São Paulo, considerou que Bolsonaro abusou do direito à liberdade de expressão para ofender profissionais de imprensa.

Segundo a juíza, as ofensas se deram "de forma absolutamente incompatível com a dignidade do cargo" de presidente, "sob alegação de que essa liberdade lhe outorgaria, enquanto instrumento legal e necessário ao livre exercício da liberdade pessoal do Chefe do Poder Executivo Federal, verdadeiro salvo conduto para expressar as suas opiniões, ofensas e agressões".

"Com efeito, tais agressões e ameaças vindas do réu, que é nada menos do que o chefe do Estado, encontram enorme repercussão em seus apoiadores, e contribuíram para os ataques virtuais e até mesmo físicos que passaram a sofrer jornalistas em todo o Brasil, constrangendo-os no exercício da liberdade de imprensa, que é um dos pilares da democracia", afirmou a magistrada.

A juíza também mencionou declarações homofóbicas e misóginas de Bolsonaro contra jornalistas, como a de que "mulheres somente podem obter um furo jornalístico se seduzirem alguém", além de "comentários xenófobos, expressões vulgares e de baixo calão". E apontou que o então presidente ameaçou jornalistas e incentivou seus apoiadores a agredi-los.

"O réu manifesta, com violência verbal, seu ódio, desprezo e intolerância contra os profissionais da imprensa, desqualificando-os e desprezando-os, o que configura manifesta prática de discurso de ódio", concluiu.

Advogados alegam "defesa da reputação"

Ainda em primeira instância, os advogados de Bolsonaro afirmaram que seus comentários constituíam "apenas o seu direito de crítica a reportagens que, na sua visão, não representavam a verdade dos fatos, e que eram ofensivas e atentatórias à sua própria reputação", não sendo, portanto, ilícitos.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) registrou 557 agressões de Bolsonaro aos meios de comunicação e profissionais de imprensa em 2022, ano em que ele disputou a reeleição contra Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2021, foram contabilizados 453 casos, além de outros 130 em 2019.

Dados da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) utilizados pelo SJSP no processo apontam que em 2020 o ex-presidente fez 175 ataques à imprensa.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 26.05.23

Como funcionará programa do governo que pode baratear carros no Brasil

O governo federal anunciou nesta quinta-feira (25/5) que adotará medidas para baixar o preço de automóveis no país

Programa tem potencial de baratear um quarto dos modelos à venda hoje, dizem analistas

Geraldo Alckmin (PSB), vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, afirmou que para isso haverá uma redução de impostos federais para carros de até R$ 120 mil.

A decisão foi comunicada após uma reunião no Palácio do Planalto entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), e representantes da indústria automobilística.

Na mesma ocasião, Alckmin também anunciou que o governo disponibilizará uma linha de crédito de R$ 4 bilhões em dólares para financiamento de exportações, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

A medida, segundo ele, serve como uma proteção cambial e abrangerá não apenas o setor automotivo, mas a indústria como um todo.

Lula já havia reclamado publicamente sobre os preços de veículos no país.

"A fábrica de automóveis não está vendendo bem, mas qual pobre pode comprar um carro popular de R$ 90 mil?", questionou Lula da Silva durante sessão inaugural do Conselho de Desenvolvimento, Econômico e Social, no início de maio.

No entanto, detalhes de como será o programa de fato ainda serão anunciados nos próximos 15 dias, após uma análise da Fazenda sobre o programa.

A BBC News Brasil conversou com analistas sobre o que foi divulgado até agora e os possíveis impactos destas medidas. Entenda a seguir.

O que foi anunciado?

O governo anunciou que fará uma redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), aplicado sobre a fabricação, importação e venda destas mercadorias, inclusive automóveis, e do tributos do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins), que incidem sobre o faturamento das empresas e usados para financiar a saúde pública e Previdência Social.

O índice de redução ainda não divulgado pelo governo, mas o governo afirmou que a porcentagem do desconto será baseada em três critérios: social, eficiência energética e densidade industrial.

Isso significa que, na prática, automóveis mais baratos, menos poluentes e mais econômicos em gasto combustível, assim como os que possuem mais peças nacionais em sua composição, terão mais desconto.

De acordo com Alckmin, quanto mais critérios forem atendidos, maior será a redução no preço. Ele também sinalizou com a possibilidade de desconto maior por venda direta da indústria.

"Isso acontecerá para aqueles que têm um CNPJ de empresa e decidirem usar na hora de comprar o carro. A legislação brasileira permite que a montadora tenha uma taxa menor de impostos vendendo para empresas", explica Paulo Cardamone, presidente da Bright Consulting, especializada no mercado automobilístico.

Algumas duvidas continuam em aberto como por exemplo se a indústria será obrigada a repassar as reduções nos impostos para o consumidor final.

Ou, por exemplo, por quanto tempo essas medidas vão valer, já que o governo afirmou que se trata de um programa transitório que visa reduzir a ociosidade da indústria automobilística brasileira.

O preço dos carros vai cair?

A expectativa do governo é que a redução de impostos faça o preço dos automóveis cair entre 1,5% a 10,79%.

Cardamone avalia que a redução de impostos tem o potencial de baratear mais de um quarto dos modelos à venda atualmente.

"Para se ter uma ideia do tamanho da mudança, hoje nós temos aproximadamente 600 modelos de veículos sendo vendidos e cerca de 160 deles, 25%, estão dentro dessa faixa de preço passível de desconto, e representam 47% do volume de carros no mercado", diz o analista.

Cardamone afirma que, considerando o objetivo de tornar os veículos mais acessíveis para quem tem menor renda, o limite de R$ 120 mil é razoável.

"A redução para faixa de preço mais altas privilegiaria apenas quem tem renda muito alta."

No entanto, detalhes da fórmula que será aplicada ainda não são conhecidos para se poder precisar quanto o preço de cada modelo poderá cair.

Após o anúncio, o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio Lima Leite, pode levar o preço dos modelos mais em conta ficar abaixo de R$ 60 mil.

No entanto, os carros mais baratos hoje no Brasil, Renault Kwid e Fiat Mobi, ficariam acima disso com os índices anunciados pelo governo.

Se eles recebessem a redução máxima prevista, de 10,79%, por exemplo, passariam dos R$ 68.990 atuais para R$ 61.545.

Quais podem ser os outros impactos do programa?

Analistas apontam que uma redução de impostos que barateie os carros tem o potencial de aumentar as vendas e, portanto, reaquecer a produção indústrial.

Isso, por sua vez, aumentaria a oferta de empregos e a renda de parte da população, estimulando o consumo e aumentando a arrecadação do governo, beneficiando a economia de forma geral.

“Se bem desenhado, o programa do veículo acessível poderia trazer, inclusive, um equilíbrio na arrecadação, porque estaria substituindo veículos usados que geram imposto menor, com marginal impacto positivo nos empregos, agradando o governo em termos políticos", avalia Cardamone.

O faturamento do setor, que caiu 43% em dez anos, também é um fator importante por trás da medida.

"O Brasil já produziu cerca de 3,8 milhões de veículos em um ano, e hoje esse número está estagnado em um patamar de 2 milhões de veículos. É uma ociosidade de quase 50% da produção, o que não é normal no setor automotivo, que precisa ocupar ao menos 70% de sua capacidade produtiva", afirma Cardamone.

"O governo olha esse setor, que já teve grande contribuição tributária, e procura uma forma de tentar recuperar isso."

Cardamone aponta que um ponto importante a ser considerado é a duração do benefício. (Getty Images)

"A medida não pode ser eterna porque é uma renúncia fiscal importante. Não se sabe se vai durar seis meses, um ano… Particularmente, eu acho que em um intervalo entre julho a dezembro, por exemplo, funciona."

O analista calcula que o programa teria o potencial de aumentar as vendas em aproximadamente 120 a 130 mil automóveis em seis meses - um crescimento 6% acima do previsto atualmente para o setor.

Por outro lado, aponta o analista, a renúncia fiscal neste mesmo período deve girar em torno de R$ 4 bilhões.

"Se a medida durar um ano, já são R$ 8 bilhões a menos para um governo que não passa por um momento econômico fácil."

Antonio Jorge Martins, coordenador acadêmico dos cursos da área automotiva na Fundação Getúlio Vargas (FGV), aponta que não vê estes impactos acontecendo "da noite para o dia" e acrescenta que pode ser necessário ir além do corte de impostos.

"Talvez não somente a redução dos preços, mas também as melhores condições de obtenção de financiamento, resultem em um cenário melhor para aumentar a produção do setor."

Lula tocou neste ponto horas depois do anúncio, em evento na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), quando voltou a criticar o preço atual dos carros e os altos juros que impedem o consumidor de buscar crédito.

O presidente afirmou que a maioria dos carros vendidos no ano passado foram vendidos à vista, segundo ele, "porque não tem política de crédito para financiar. E a classe média baixa não está comprando mais carro, porque um carro popular de R$ 90 mil não é mais popular".

Martins ressalta ainda que o imposto que mais impacta o preço de veículos atualmente é o ICMS, cobrado pelos Estados.

"Eu não sei exatamente do entendimento do governo federal com os Estados no sentido de propiciar também a redução do ICMS, mas acredito, inclusive, que a redução desse imposto seria mais relevante do que os impostos federais."

O 'carro popular' vai voltar?

Embora haja uma expectativa de redução nos preços, a volta dos carros populares como os brasileiros já conheceram não deve acontecer, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

Isso porque os veículos vendidos com este mote em épocas passadas, quando a indústria tinha números de produção e venda bem superiores aos atuais, se tornaram ultrapassados e não têm mais lugar no mercado hoje.

"O carro popular antes se caracterizava por um baixo nível de segurança e opções bastantes reduzidas de conforto e tecnologia. Não é mais possível usar esse termo - o que teremos daqui para frente são 'carros de entrada'", afirma Martins.

Cardamone explica que o aumento dos preços nos últimos anos se deveu a um processo de modernização dos modelos.

"É importante para o Brasil ter segurança em termos de menos acidentes e ser responsável com o meio ambiente. Ou seja, se juntar a regulação ideal com esse consumidor de maior poder aquisitivo, que quer tudo no carro, conectividade, infoentretenimento, ter o 'iPhone' dos carros, não tem o que fazer - o preço sobe."

Há também outros motivos, mais abrangentes, que afetaram os preços e a capacidade de compra da população.

Custos gerais de logística, frete e acesso à elementos de tecnologia encareceram no Brasil e no mundo afetados pela pandemia da covid-19, conforme apontado em uma reportagem da BBC News Brasil.

"Paralelamente, aqui no Brasil, nós tivemos uma desvalorização cambial e também tivemos a inflação. Isso tudo fez com que as empresas passassem a repassar esses custos aos seus consumidores finais", complementa Martins.

Giulia Granchi, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 25.05.23

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Lula e o ‘piston de gafieira’


As confusões dentro de um governo em disputa são o reflexo da ausência de coordenação

Era 1959 quando Billy Blanco compôs a música Piston de Gafieira. É aquela que retrata o que acontece quando o clima esquenta no salão: “A porta fecha enquanto dura o vai não vai, quem está fora não entra, quem está dentro não sai”. Nada mais parecido com o governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva.

Das confusões do ministro Juscelino Filho, passando pela titular do Turismo e pelas brigas entre as pastas de Minas e Energia e do Meio Ambiente e, agora, entre o Itamaraty e os militares, tudo parece lembrar o samba gravado por Silvio Caldas e Moreira da Silva. E qual o papel de

Lula, o presidente, nessa história? Na hora da confusão, o samba dizia que a orquestra na gafieira sempre tomava a mesma providência: tocava alto para a polícia “não manjar”. E concluía: “E nessa altura, como parte da rotina, o ‘piston’ tira a surdina e põe as coisas no lugar”.

Pela história do PT, Lula devia ser o “piston de gafieira” do governo. Em vez disso, passou cinco meses assistindo – quando não participava – ao vai não vai. Uma hora a briga era pelos juros, noutra por causa da Ucrânia e, por fim, até com quem o ajudou em sua eleição para se ver livre de Jair Bolsonaro. Pior. Quando devia tocar o trompete e mediar a briga entre o seu partido e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o presidente deixou a confusão rolar no governo até a oposição “manjar”.

As intrigas palacianas, os ciúmes e os egos terríveis vão desgastando ministros e secretários como Ariel de Castro Alves (Direitos da Criança e Adolescente), defenestrado após a primeira-dama Janja da Silva ter marcado um reunião com ele sem avisar seu chefe, o ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos). O titular da pasta não aceitava dividir os holofotes com Ariel. E ficou ainda mais contrariado porque teve de se deslocar até o gabinete do subordinado para se encontrar com Janja...

Foi ainda preciso que a disputa entre Marina Silva (Meio Ambiente) e Alexandre Silveira (Minas e Energia) ficasse exposta, sem falar nas consequências no Senado (Alcolumbre e Randolfe que o digam), para que Lula resolvesse ameaçar a tocar o trompete para defender a Petrobras. Mas, quando se tratava de vender blindados Guaranis como ambulância à Ucrânia, o presidente escutou as queixas do Itamaraty. Dará também ouvidos à base industrial da defesa? Qual a política do governo afinal?

No Congresso, petistas se somam a bolsonaristas para emparedar os comandantes das três Forças e o ministro da Defesa, José Múcio. Enquanto isso, Arthur Lira já prepara a campanha de 2026. Nela, talvez, não exista mais Bolsonaro para garantir uns 2 milhões de votos a mais ao PT. E, nessa altura, com o desgaste da rotina, nem o trompete vai pôr as coisas no lugar. •

Marcelo Godoy, ao autor deste artigo é repórter especial d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 24.05.23

Placebo fiscal

Com aumento de despesas e queda nas receitas, governo admite que déficit primário neste ano será pior que o projetado. Nova regra fiscal já parece insuficiente para estabilizar dívida pública

O governo reconheceu que o déficit fiscal deste ano será maior que o inicialmente projetado. A nova estimativa para o saldo negativo entre receitas e despesas subiu a R$ 136,2 bilhões, R$ 28,6 bilhões maior que os R$ 107,6 bilhões previstos em março, o que obrigou o governo a contingenciar um total de R$ 1,7 bilhão em gastos do orçamento. O valor também está muito distante da meta de déficit de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB), escolhida pelo Ministério da Fazenda na apresentação da proposta do arcabouço fiscal.

A piora nos números não surpreende, pois é mero reflexo das escolhas feitas do governo nos primeiros meses deste ano e do Congresso no ano passado. O salário mínimo já havia sido elevado em janeiro, mas o presidente Lula quis conceder um reajuste real a partir de 1.º de maio. Com aposentadorias, pensões, abono salarial e seguro-desemprego vinculados ao piso, era evidente que a projeção de gastos públicos também teria de ser elevada.

O governo também teve de aumentar o repasse a Estados e municípios para resolver o impasse do piso da enfermagem e as transferências para apoio do setor cultural no pós-pandemia, ambos aprovados pela Câmara e pelo Senado no ano passado sem que houvesse indicação das receitas que bancariam as propostas. Além disso, problemas climáticos no Sul do País prejudicaram os produtores rurais e elevaram os desembolsos com subvenções do Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro).

O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, afirmou que o déficit pode cair quando as regras do novo arcabouço fiscal entrarem em vigor. Mas há dúvidas sobre se a proposta terá tanto impacto quanto o governo diz esperar. Na tentativa de construir uma base de apoio sólida no Congresso, em vez de trabalhar para convencer os parlamentares a apoiar suas propostas, o governo tem apelado à liberação de recursos para emendas, o que amplia as despesas da União e, consequentemente, o déficit fiscal.

Para completar, o parecer do relator, Cláudio Cajado (PP-BA), diminuiu o espaço do governo para fazer contingenciamentos e limita os bloqueios a 25% dos gastos discricionários, justamente a rubrica em que as emendas se inserem. Cumprir a meta, portanto, exigirá necessariamente aumentar a arrecadação. Ceron disse que o Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas do 2.º Bimestre ainda não incorporou decisões judiciais favoráveis ao governo na área tributária, que podem agregar receitas de R$ 50 bilhões ao orçamento deste ano, nem as alterações no voto de minerva do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que precisam do aval de um Congresso ainda reticente sobre o tema. Mas, passados os primeiros cinco meses do ano, tudo indica que o otimismo que o governo havia manifestado a respeito sobre a recuperação de até R$ 150 bilhões em receitas neste ano não vai se concretizar.

Apesar de o governo ter elevado a projeção do crescimento da economia de 1,61% para 1,91%, o que tende a aumentar a arrecadação, o relatório, ao contrário, revelou uma piora na projeção de receitas. Isso, por óbvio, fragiliza a credibilidade das metas fiscais e do próprio arcabouço, mas também alimenta as dúvidas a respeito do discurso da Fazenda sobre a reforma tributária. Com esses números, fica ainda mais difícil afirmar que a proposta não resultará em um aumento da carga e que se limitará a corrigir distorções legais e onerar setores que hoje pagam proporcionalmente menos impostos do que deveriam.

Com a estrutura de receitas atual e a rigidez das despesas públicas, a conta não fecha neste ano nem em 2024, o que dirá no médio e longo prazos. Em algum momento o País terá de encarar a realidade e rever o tamanho de suas despesas com reformas estruturais ou aceitar mais um inevitável aumento da carga tributária – quanto antes isso for definido, melhor. Com tantas incertezas, é hora de rever seus números e projeções com pragmatismo e transparência. Do contrário, estabilizar a trajetória da dívida pública, o verdadeiro objetivo do projeto do arcabouço fiscal, continuará a ser uma meta intangível. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 24.05.23

O mistério de Putin

Fora da Rússia, autocrata consegue cativar apoiadores tanto da direita como da esquerda

O presidente russo, Vladimir Putin, e o patriarca ortodoxo da Rússia, Kirill (à direita), participam de um culto ortodoxo de Páscoa na catedral de Cristo Salvador, em Moscou - Oleg Varov - assessoria de imprensa do patriarca ortodoxo russo Kirill/AFP) - AFP

Vladimir Putin é um mistério. Que ele agrade à maioria dos russos é explicado pelo fato de ser um autocrata com um pé fincado no populismo. O que surpreende é que, fora da Rússia, ele seja visto com simpatia tanto pela direita como por setores da esquerda.

O direitista Jair Bolsonaro foi visitá-lo às vésperas de ele ordenar a invasão da Ucrânia; o esquerdista Lula, embora tenha recentemente ajustado suas falas, já passou o pano para o ditador, dizendo que Kiev e Moscou tinham a mesma responsabilidade pela guerra.

O fascínio que Putin exerce sobre a direita tem a ver, acredito, com as bandeiras conservadoras que ele vem empunhando nos últimos anos, com destaque para a defesa da religião e a forte oposição ao chamado globalismo e a causas liberais como os direitos de homossexuais.

No caso da esquerda, parece haver um componente inercial. Os mais saudosistas veem a Rússia como sucessora da URSS, a pátria do socialismo. Mas o que mais pesa, creio, é o fato de Putin colocar-se como contraponto ao propalado imperialismo ianque. Os inimigos de meus inimigos são meus amigos. É fato que os EUA frequentemente agem de forma imperial, mas daí não decorre que estejam sempre errados. Há ocasiões, como a da Guerra da Ucrânia, em que a Casa Branca está do lado moralmente certo.

Procurar coerência nas posições clássicas da esquerda e da direita sempre foi tarefa difícil. Nunca entendi como a direita podia invocar o princípio da sacralidade da vida para condenar o direito ao aborto, mas varrê-lo para baixo do tapete na hora de defender a pena de morte. De modo análogo, tenho dificuldades para acompanhar o discurso da esquerda liberal que se socorre da autonomia individual para propugnar pelo direito de usar drogas, mas rejeita o argumento quando usado a favor da legalização do jogo.

A lição que fica é que devemos sempre desconfiar dos pacotes ideológicos que nos chegam prontos.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo e autor de "Pensando Bem..." Publicado originalmete na FSP, edição impressa, em 23.05.23, às 17h00

terça-feira, 23 de maio de 2023

O simbolismo de um chá de cadeira

Ao faltar a encontro com Lula no G7, Zelenski sugere que, por ora, não considera o Brasil confiável para mediar conflito com a Rússia; para EUA e Europa, este não é o momento para paz


Se algo sobressaiu da participação do presidente Lula da Silva na reunião de cúpula do G7, em Hiroshima, foi o fato de não ter se encontrado com o ucraniano Volodmir Zelenski. Esse episódio reforçou a opção do Brasil pela neutralidade diante do conflito entre Rússia e Ucrânia e pela criação de um grupo para iniciar a mediação de um acordo de paz. A questão de fundo exposta em Hiroshima é se vale a pena o País prosseguir nesse caminho, que inevitavelmente o aproxima de Moscou, por mais que Lula mencione o sofrimento dos civis ucranianos castigados pela guerra.

Para os Estados Unidos e a Europa Ocidental, este não é o momento para conversas sobre paz. A janela se abrirá somente quando os soldados russos forem empurrados fora do território ucraniano, graças, sobretudo, ao armamento fornecido pelos integrantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Os riscos dessa estratégia estão calculados – no limite, o risco de Vladimir Putin responder à derrota nos campos de batalha acionando o arsenal nuclear.

Lula discorda dessa estratégia. Em sua vez de falar no G7, criticou a Rússia, mas insistiu na articulação de um processo de paz. Fora do púlpito, depois de dizer-se chateado com a ausência de Zelenski no encontro supostamente marcado para as 15h15 do último domingo no hotel em que se hospedara, o brasileiro criticou a intenção do Ocidente de forçar a rendição da Rússia. Vaticinou que levará a uma nova guerra fria e cravou que a Ucrânia e seus aliados “não querem a paz” neste momento.

O Brasil não está sozinho ao pregar a neutralidade e o início de um processo de paz. Índia e Indonésia mantêm-se na mesma linha e igualmente foram expostas ao constrangimento diplomático armado no G7 de Hiroshima. A presença de Zelenski não fora antecipada aos países convidados e elevou o grau de pressão das potências ocidentais para as nações neutras tomarem partido contra a Rússia.

O indiano Narendra Modi recebeu Zelenski reservadamente, mas não se dobrou aos seus apelos. O sul-coreano Yoon Suk Yeol manteve sua oposição ao envio de armas à Ucrânia depois de encontro bilateral. A colheita do ucraniano foi farta entre os que já apoiam sua causa. Joe Biden, dos Estados Unidos, prometeu o aporte de mais US$ 375 milhões para a ofensiva militar ucraniana e o treinamento de pilotos para o uso de caças norte-americanos F-16 – o que indica o envio também dos aparelhos.

Índia e Indonésia têm razões próprias para levar a ferro e fogo sua neutralidade e insistir no processo de paz. Em condições distintas da do Brasil, esses países estão no mesmo entorno geopolítico da Rússia na Ásia e mantêm com Moscou interação econômica e comercial em escala bem mais robusta que a brasileira. A neutralidade, para o Brasil, está calcada em princípios – paz a qualquer custo – e em uma indisfarçável resistência em se opor diretamente à Rússia, de quem é sócia no fórum Brics junto com China, Índia e África do Sul.

A ambição do presidente Lula da Silva de se alçar como protagonista de negociações de temas de interesse global não deixa de ter sua cota de relevância. Há de se levar em conta ainda o atual contexto político doméstico. Em certas áreas relevantes, como a econômica, o PT é o principal foco de oposição. É possível imaginar a insatisfação do partido de Lula se o presidente aceitasse se aliar ao esforço de guerra liderado pelos Estados Unidos, o vilão que o lulopetismo ama odiar.

O fato é que a diplomacia presidencial de Lula por ora obteve alcance raso e respostas vagas. No G7, tornou-se claro que sua insistência na neutralidade e na criação de um grupo de paz tem escassa chance de sucesso. O presidente, porém, diz que irá “até ao fim do mundo” pela paz entre Ucrânia e Rússia. Noves fora a loquacidade voluntarista de Lula, há de se pesar o gasto de energia e mobilização diplomática, o isolamento do Brasil de parceiros relevantes e a perda de potenciais benefícios. O deselegante chá de cadeira que Lula levou de Zelenski mostra que o Brasil, por ora, não é visto pela Ucrânia – e, por extensão, pelos aliados de Kiev – como um mediador confiável.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 23.05.23.

Entre o fisiologismo e a ideologia, o que se pode esperar do Congresso?

Apesar do retrospecto negativo, marcado pelo mensalão, pelo petrolão e pelo orçamento secreto, nem tudo é uma “questão de preço” para os parlamentares

Plenário da Câmara dos Deputados: no atual governo, Congresso terá nova oportunidade de mostrar se 'agrados' oficiais passam por cima de convicções de parlamentares 

No momento em que o Congresso se prepara para votar o novo arcabouço fiscal, em meio à instauração das CPIs dos atos de 8 de janeiro e do MST e à derrota sofrida pelo governo na Câmara dos Deputados, ao tentar alterar por decreto o novo marco legal do saneamento, a discussão sobre o fisiologismo dos parlamentares voltou a ganhar os holofotes.

Diante da fragilidade demonstrada no Legislativo pelo governo, que ainda teve de “agasalhar” o adiamento da votação do projeto das fake news e agora enfrenta a possibilidade de criação das CPIs das ONGs e do abuso de autoridade, articuladas pela oposição, prosperou por aí a ideia de que o Planalto terá de abrir ainda mais os cofres para adocicar os congressistas e conseguir ampliar sua base parlamentar – e não é para menos.

Visto pela população como uma das instituições de menor credibilidade no País, segundo as pesquisas de opinião, o Congresso fez do toma lá, dá cá um modo de vida. Do mensalão e do petrolão ao orçamento-secreto, que no governo Lula voltou a ser chamado de “emendas do relator”, seu nome de batismo, para suavizar a conotação negativa da farra promovida com o dinheiro dos pagadores de impostos, o Congresso tem estado no centro dos principais escândalos de corrupção e de mau uso do dinheiro público.

São Francisco de Assis

Ainda que existam as honrosas exceções que confirmam a regra, boa parte dos deputados e senadores, talvez a maioria, pauta suas ações de acordo com as benesses recebidas do Executivo. Como diz a oração atribuída a São Francisco de Assis, encampada pelos parlamentares na época da Constituinte, nos anos 1980, e ainda hoje uma síntese emblemática da relação incestuosa mantida entre o Legislativo e o Executivo, “é dando que se recebe”.

Em geral, os parlamentares de partidos reunidos no chamado Centrão acabam levando a fama sozinhos, mas o fisiologismo do Congresso não tem fronteiras ideológicas. Espalha-se pelas diferentes correntes de pensamento, como mostraram o mensalão e o petrolão, que envolveram o PT e outras siglas de esquerda que, desde sempre, procuram se apresentar como uma espécie de “reserva moral” da Nação.

Agora, mesmo levando isso em conta, será que, no Congresso, é tudo só uma questão de preço? Até onde vai o fisiologismo dos parlamentares e políticos do País? Até que ponto as “bondades” do governo são capazes de “comprar” os votos dos congressistas, fazendo-os passar por cima das ideias que dizem defender?

Considerando o retrospecto da turma, é provável que, para um número considerável de parlamentares, nada seja realmente inegociável. Para eles, qualquer convicção é passível de revisão, pelo devido valor. O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado em três instâncias na Justiça pelo envolvimento direto no mensalão e no petrolão, antes de as ações serem anuladas pelo STF (Supremo Tribunal Federal) por “irregularidades processuais”, parece acreditar que todo mundo está disposto a aceitar um “agrado”, em troca da sustentação do governo no Congresso.

Mas, ao contrário do que se imagina, nem sempre os congressistas agem pensando apenas no próprio bolso e em seus interesses particulares. Por mais ingênuo e inverossímil que possa parecer, diante das práticas pouco republicanas que prosperam no Parlamento, parece haver um limite para o apetite do pessoal em questões cruciais para o País.

Foi assim, por exemplo, com a derrota recente do governo na questão do novo marco do saneamento, que favorece a participação da iniciativa privada no setor e foi aprovado pelo Congresso em 2020, com o objetivo de universalizar o serviço até 2033. O próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), considerado como o grande gestor do orçamento secreto, posicionou-se neste sentido recentemente.

“A principal reforma que o Congresso brasileiro vai ter que brigar diariamente é a reforma de não deixar retroceder tudo que foi já aprovado no Brasil no sentido da amplitude do que é mais liberal”, afirmou Lira recentemente, ao participar de evento em Nova York com lideranças empresariais e investidores estrangeiros.

Voltando no tempo, foi assim também com a tentativa de Lula de prolongar a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras), em 2007, em seu segundo mandato, quando ele sofreu sua maior derrota até então no Congresso, depois de forte mobilização da sociedade contra a medida. Foi assim, ainda, com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, acusada de promover “pedaladas fiscais” para contornar as restrições orçamentárias. Apesar de muitos analistas atribuírem o impeachment à resistência de Dilma em ceder às pressões fisiológicas do Centrão, o Congresso mostrou novamente, com amparo na Justiça, que nem sempre se curva ao Executivo.

Fraudes financeiras

O mesmo aconteceu com o impeachment do ex-presidente Fernando Collor, em 1992, acusado de corrupção e envolvimento em fraudes financeiras, e com a eleição de Tancredo Neves para a Presidência no Colégio Eleitoral, em 1985, ainda durante o regime militar, quando superou o ex-governador paulista Paulo Maluf, que não poupou esforços na época para “agradar” os parlamentares que decidiriam o pleito.

Muitas vezes, é certo, o Congresso age pressionado pela voz rouca das ruas, como na eleição de Tancredo Neves, na tentativa de prolongar a CPMF e nos impeachments de Dilma e de Collor. De um jeito ou de outro, porém, acaba mostrando que nem tudo está à venda e que é capaz de tomar decisões que estão à altura do que se espera dele.

Hoje, dominado pelas forças de centro-direita e de direita, o Congresso terá oportunidade de mostrar mais uma vez se a liberação de verbas bilionárias pelo governo fará os parlamentares deixarem de lado suas convicções para endossar o “revogaço” defendido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e por muitos de seus aliados.

Está nas mãos do Congresso conter – ou não – o “retrocesso” de que fala Lira, com a rejeição de medidas como a liberação de despesas fora do Orçamento, prevista no novo arcabouço fiscal, a revisão da Lei das Estatais, da reforma trabalhista e da autonomia do Banco Central, a retomada do imposto sindical e a ampliação do poder da União na gestão da Eletrobrás, entre outras medidas do gênero.

As cartas estão dadas. Talvez, no fim, o Congresso confirme que o fisiologismo está acima de tudo e que qualquer expectativa em sentido contrário, mesmo em relação a medidas que podem selar o destino do País, condenando-o de vez ao atraso, é pura ingenuidade. Mas, como já mostrou em outras oportunidades, inclusive na rejeição recente do decreto presidencial que mudava o novo marco do saneamento, quem sabe o Congresso não mostre de novo que nem tudo é “uma questão de preço” para os parlamentares, como se tornou voz corrente na sociedade.

José Fucs, o autor deste artigo, é repórter especial do Estadão desde 2017. Jornalista desde 1983, passou por alguns dos principais veículos de comunicação do País. Foi repórter especial e editor de Economia da revista Época, editor-chefe da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios, editor-executivo da revista Exame e repórter do Estadão, da Gazeta Mercantil e da Folha. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 23.05.23, às 13h16

Gabriela Hardt reassume Lava Jato

Juíza próxima de Sérgio Moro volta a atuar nas ações remanescentes da operação por ordem do TRF-4 que afastou Eduardo Appio, desafeto do senador, dos processos da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba

Gabriela Hardt substituiu Moro temporariamente na 13.ª Vara de Curitiba. Foto: Reprodução

A decisão do Tribunal Federal Regional da 4ª Região que afastou o juiz Eduardo Appio da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba colocou a condução da Lava Jato, temporariamente, nas mãos da juíza Gabriela Hardt, que já atuou Operação. A magistrada é substituta do ‘juízo da Lava Jato’ e já despachou ao lado dos dois antecessores de Appio: Luiz Antônio Bonat, alçado a desembargador da Corte Regional; e Sérgio Moro, ex-ministro da Justiça e atual senador.

A magistrada inclusive já proferiu o primeiro despacho na Lava Jato após reassumir a Operação. Na manhã desta terça-feira, 23, determinou que o Ministério Público Federal se manifeste no bojo do processo em que Appio instou a Polícia Federal a apurar a escuta ilegal encontrada na cela do doleiro Alberto Youssef à época em que ele esteve preso na carceragem da corporação em Curitiba.

Se, desde fevereiro, os processos remanescentes da Lava Jato eram conduzidos por um juiz declaradamente crítico aos métodos da antiga força-tarefa, agora as ações passam para uma magistrada que proferiu despachos no auge da Operação e mantém bom relacionamento com Moro, desde o tempo em que ele era titular da 13ª Vara.

Gabriela chegou a sentenciar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenando o petista 12 anos e onze meses de prisão no processo do sítio de Atibaia. Posteriormente, a condenação foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para analisar processos envolvendo o presidente.

Em uma decisão recente, ligada ao ex-juiz da Lava Jato, Gabriela mandou prender núcleo do PCC que planejava o sequestro de Moro. A juíza acolheu pedido da Polícia Federal e autorizou a Operação Sequaz - deflagrada no dia 22 de março pela Polícia Federal.

À época, Gabriela Hardt estava cobrindo férias da juíza Sandra Regina Soares, titular da 9ª Vara Federal de Curitiba. O fato de a Operação ter sido deflagrada por ordem de Gabriela chegou a ser mencionado inclusive pelo presidente Lula, que teve a juíza como um de seus algozes na Lava Jato.

Os processos da Lava Jato, no entanto, podem ficar pouco tempo nas mãos de Gabriela e eventualmente serem analisados por outro magistrado. Isso porque Hardt atualmente participa de um concurso de remoção: seu objetivo primeiro é atuar em outros juízos, fora de Curitiba. O concurso ainda está em trâmite, ou seja, também não há definição sobre a futura atuação da magistrada.

A investigação do TRF-4 sobre Appio não tem data para terminar. Ao determinar o afastamento cautelar do magistrado, o TRF-4  deu 15 dias para que ele apresente defesa prévia sobre as suspeitas que recaem sobre ele - de suposta ligação com 'ameaça' narrada pelo advogado João Malucelli, filho do desembargador Marcelo Malucelli, do TRF-4.

Pepita Ortega, do blog do Fausto Macedo, texto reproduzido n'O Estado de S. Paulo, em 23.05.23, às 12h57

Lula volta do G7 percebido como menos neutro em relação à Guerra da Ucrânia

Pesquisadores veem petista ainda preso à política externa do início dos anos 2000 e apontam outras prioridades

De terno cinza, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva caminha em Hiroshima, no Japão, cercado por figuras como o premiê do Vietnã, Pham Minh Chinh; o premiê do Japão, Fumio Kishida; o secretário-geral da OCDE, Mathias Cormann; o presidente de Comoros, Azali Assoumani; o premiê da Índia, Narendra Modi; o secretário-geral da ONU, António Guterres; e o premiê da Austrália, Anthony Albanese - Takashi Aoyama/Pool - 21.mai.23/Reuters

Ao longo da cúpula do G7 realizada em Hiroshima, no Japão, neste fim de semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ao defender a reforma de órgãos multilaterais —reivindicação histórica de sua política externa—, insistiu que é preciso deixar o passado.

Parte dos analistas ouvidos pela Folha após as declarações do petista afirma que ele está correto. Mas diz também que o mesmo conselho se aplica à sua própria conduta, que precisa atualizar prioridades em relação à política externa de seus outros mandatos.

Para pesquisadores, ao responsabilizar potências do Ocidente pela Guerra da Ucrânia e insistir em um papel de negociação da paz em relação ao qual Kiev e seus aliados mostram desconfiança, Lula perdeu a oportunidade de usar o espaço do G7 para pautar discussões em áreas em que o Brasil pode de fato fazer a diferença, como meio ambiente.

"Lula perde credibilidade e tempo com essa ideia de ser mediador", diz Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper. "Estamos assistindo a uma nova Guerra Fria, um conflito que é muito mais entre Ocidente e Oriente do que entre Sul e Norte. O Brasil está pautando suas ações por uma narrativa do início dos anos 2000 em um momento que pode definir as relações internacionais do século 21. Lula precisa perceber isso, sob a pena de se tornar uma liderança envelhecida."

Para ele, a proposta de Brasília de se apresentar como um mediadora para o conflito no Leste Europeu nunca foi crível, dadas as declarações de Lula culpando também a Ucrânia pela guerra ainda durante a campanha eleitoral e a proximidade do Brasil com a Rússia.

O pesquisador argumenta que, para convencer os países a se sentarem em uma mesa, era preciso alguém com equidistância em relação às partes, característica não atribuível a Lula.

Carolina Pavese, doutora em relações internacionais pela London School of Economics e professora da ESPM, também diz acreditar que qualquer tentativa de negociar na guerra pelo Brasil estaria fadada ao fracasso. Para ela, o motivo é uma "clara incompatibilidade de abordagem e de estratégia" sobre como lidar com esse conflito pelos líderes do G7, que são também aliados de Kiev, e Lula.

Tanto ela como outros especialistas afirmam que o cancelamento da aguardada reunião entre Lula e Zelenski no evento no domingo (21) comprometeu a proposta de mediação de paz do petista —mesmo que o Itamaraty afirme que foi o ucraniano, e não o brasileiro, que não apareceu para o encontro marcado entre os dois.

Nesse sentido, a cúpula do G7 teria representado o fracasso de uma oportunidade de melhorar as relações entre os dois países, chacoalhadas desde que o petista sugeriu que a Ucrânia deveria considerar ceder território para a Rússia para dar um fim à guerra.

Pavese diz que, em especial para Lula, a ocasião seria bastante conveniente, uma vez que permitiria um encontro para o qual sofre pressão para realizar sem que precisasse fazer disso um grande evento.

O revés foi agravado por uma cena da única reunião compartilhada entre os dois chefes de Estado, uma sessão de trabalho sobre paz e prosperidade global dividida com líderes do G7 e convidados da cúpula que mostra que Lula não se levantou para cumprimentar o ucraniano quando este entrou na sala, ao contrário de vários dos presentes.

Em encontro com jornalistas ao fim da cúpula, o petista afirmou que, distraído ao rascunhar ideias para seu discurso, não viu a chegada de Zelenski, e que, quando a reunião terminou, ele já estava atrasado para outro compromisso.

O problema é que política externa é "basicamente simbólica", diz Consentino —embora, pela mesma via, Pavese argumente que o ucraniano tampouco fez qualquer esforço para se aproximar do brasileiro.

O resultado da soma desses eventos é, para alguns dos especialistas ouvidos pela reportagem, uma percepção por parte do Ocidente de que Lula sai do G7 representando não uma posição de neutralidade, como tanto busca enfatizar, e sim mais próxima de Vladimir Putin.

Anedoticamente, nesta segunda (22), o chanceler da Dinamarca, Lars Lokke Rasmussen, pôs o Brasil na mesma categoria que Índia e China, segundo ele países "não aliados" à Ucrânia, ao dizer que pretendia organizar um encontro para discutir opções de paz para o conflito no Leste Europeu às margens de um evento da União Europeia em Bruxelas.

As três nações, que dividem o Brics com a Rússia e a África do Sul, têm alegado neutralidade diante do conflito. Mas Pequim e Nova Déli são aliados estratégicos de Moscou e não condenaram a invasão russa de Kiev no âmbito das Nações Unidas, ao contrário de Brasília.

Vinicius Rodrigues Vieira, professor da Faap, avalia, porém, que é preciso levar em conta que o Ocidente tem uma predisposição a ver as coisas de um modo excessivamente binário e de desconfiar de qualquer um que não adere automaticamente a suas propostas.

Além disso, uma coisa é a narrativa, outra é a realidade: o G7 vem perdendo cada vez mais poderio econômico, e seus países, que somavam mais de metade do PIB global em 1980, este ano veem essa porcentagem corresponder a apenas um terço.

Vieira afirma que o Estados-membros G7 têm consciência disso e que precisam do apoio de países como o Brasil para não se isolar. Ele menciona, por exemplo, as reuniões de Lula com o premiê japonês, Fumio Kishida, que prometeu isenção de vistos para brasileiros e anunciou um empréstimo bilionário para o país para a saúde e outros setores, e com o premiê canadense, Justin Trudeau, que considera como êxitos da gestão do petista nos últimos dias.

Clara Balbi para a Folha de S. Paulo. Publicado originalmente na edição impressa, em 22.05.23, às 20h56.

Os rolos da família Bolsonaro

A impressão é que qualquer pessoa próxima do clã está sob suspeição

Em março de 2021, quando o presidente que se elegera com o discurso de combater a corrupção estava havia quase dois anos e meio no poder, os Bolsonaros bateram um recorde. Seguindo os passos do chefe do clã, os quatro filhos de Jair enfrentavam investigações da Justiça e da Polícia Federal. As rachadinhas de Flávio estouraram no início do mandato.

Hoje, com podres irrompendo a cada instante, a impressão é que qualquer pessoa que tenha tido um contato mais próximo com a família está sob suspeição. Uma amiga da ex-primeira-dama Michelle que emprestava o cartão de crédito a ela. Na hora de pagar a fatura, sempre em dinheiro vivo, entrava em cena o faz-tudo da Presidência, um tenente-coronel que está preso. A desculpa é que Bolsonaro é pão-duro. Mas só quando o capital sai do seu bolso. No cartão corporativo, chegou a gastar R$ 55,2 mil numa única padaria um dia após o casamento de Eduardo.

Segundo a CNN Brasil, o ex-presidente acumula quase 600 processos. Seiscentos, você não leu errado. O levantamento é do partido de Bolsonaro, o PL, que monitora os casos porque cabe aos cofres da legenda custear a defesa em grande parte das ações, que vão de graves crimes eleitorais a multas por não ter usado máscara na pandemia ou capacete nas motociatas. É um custo espantoso —advogados que o digam— para manter viva a estratégia de vitimização.

Talvez com inveja do pai, que trocou os passeios de jet ski por visitas obrigatórias à PF, ou da ex-primeira-dama, que tem conquistado nos rolos do marido um protagonismo tão brilhante como joias árabes, o vereador Carlos resolveu reagir.

A semana passada trouxe novidades ao inquérito que apura o esquema de desvio de dinheiro no gabinete do filho 02. Ana Cristina Valle, ex-mulher de Jair, era a líder de um grupo de nove servidores que movimentou mais de R$ 3 milhões entre 2005 e 2018. Deus, pátria —e a família em primeiro lugar.

Alvaro Costa e Silva, o autor deste artigo, é Jornalista. Atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 23.05.23, às 18h16


Vinicius Jr. defende sua integridade moral, esportiva e humana.

O @vinijr não se conforma com as seguidas manifestações de racismo pelos torcedores em Majorca, em Sevilha, em Madrid, em vários lugares da Espanha destacando uma tendência preocupante que eu gostaria de que a história contradissesse.

Gostaria que o povo espanhol mostrasse acolhimento e respeito a todas as raças, a todos os jogadores que vêm de todos os lugares do mundo. Virou uma queda de braço entre o jogador, um menino de 20 e poucos anos, e uma atitude confortável e intolerante por parte de muitos torcedores na Espanha, uma omissão por parte do próprio clube a que ele pertence, @realmadrid, da liga espanhola @LaLiga, enfim, que estão confortavelmente instalados nas suas posições de importância no futebol espanhol, do futebol mundial, enfim, não querem reconhecer o fato de que é imprescindível que se faça alguma coisa.

Que essas atitudes sejam enfim, desestimuladas através da lei porque já tá muito claro que parte da torcida espanhola vem se manifestando contra o Vinicius Junior, principalmente porque ele segue defendendo sua integridade moral, sua integridade esportiva, sua integridade humana.

É também um sinal dos tempos de hoje. O mundo de hoje tá muito difícil. O facismo ganhou muito espaço, as pessoas não se incomodam com as consequências de atitudes racistas, fascistas, reacionárias e etc. Não têm disposição para compreensão da profundidade desse problema.

É uma falta de responsabilidade dessa turma jovem. Racismo mesmo, racismo, nazismo, facismo, essas coisas que já se conhece muito bem. A história já registrou muito de tudo isso. Tá registrando agora de novo mais um fato ligado a esse lado terrível da humanidade.

Gilberto Gil, o autor deste artigo, é músico e poeta. Ativista das causs do meio ambiente e dos direitos humanos. Membro da Academia Brasileira de Letras. Publicado em sua conta pessoal no Twitter, em 22.05.23

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Anistia a partidos é ataque à democracia

Vemos o avanço de ditaduras plebiscitárias, como Rússia e Hungria, e o crescimento irresistível do modelo chinês

Plenário  da Câmara do Deputados em Brasília.Plenário da Câmara do Deputados em Brasília. Brenno Carvalho / Agência O Globo

Quando Bolsonaro foi eleito, surgiu por aqui uma fornada de livros sobre a decadência da democracia e a ascensão do autoritarismo em várias partes do mundo. “Como as democracias morrem”, “O povo contra a democracia”, os novos títulos se sucediam, e havia neles alguns pontos convergentes. A globalização deixou muita gente para trás, criando ressentimentos. A confiança nas elites políticas se esvaiu diante de líderes preocupados com seu próprio interesse, de costas para a sociedade.

Neste momento, no Brasil, a democracia está próxima de receber um ataque que a enfraquecerá ainda mais. Trata-se de um projeto que anistia as transgressões dos partidos não só quanto ao respeito às cotas minoritárias, mas também quanto à prestação de contas de milhões de reais gastos: compra de avião, toneladas de carne e outras despesas extravagantes.

Os partidos criam regras e as transgridem. O TSE decide puni-los, e eles criam mais uma lei de anistia para suas próprias transgressões. Eles se dotam, simultaneamente, do poder de regular e de perdoar, incluindo no perdão gastos com o fundo eleitoral. Só com as eleições, os partidos em 2022 consumiram R$ 4,9 bilhões. O fundo partidário distribuiu um pouco mais de R$ 1 bilhão.

Interessante observar que a manobra da anistia envolve quase todos os partidos, deixando de fora apenas a coligação Rede-PSOL e o Partido Novo. A mais importante consequência de uma medida como essa é o abismo que se forma entre política e opinião pública, deixando o caminho aberto para oportunistas que eventualmente queiram inventar uma nova política.

O caminho econômico, além de difícil, não é o único. Não há sinais de que as elites políticas brasileiras tenham entendido a mensagem de 2018 e ignorem que soluções autoritárias continuam sendo atraentes à medida que se aprofunda a desilusão com a democracia.

Bolsonaro fez isso em 2018. A “nova política” se desmoralizou com a introdução do orçamento secreto. Os bolsonaristas agrupados no PL apoiam a anistia, logo não teriam condições de se diferenciar num futuro próximo. Mas a existência do abismo é um convite à aventura, e ela não tem de ser vivida necessariamente pelos mesmos personagens.

Num livro recente chamado “A crise do capitalismo democrático”, o jornalista Martin Wolf analisa não somente a globalização e suas lacunas, mas, apesar de sua ênfase na economia, destaca também a questão política. Assim como todos os outros autores, Wolf está longe do otimismo com o futuro da democracia, ressaltado num célebre ensaio de Francis Fukuyama, “O fim da História”.

Ninguém mais acredita que a democracia é para sempre, e muitos duvidam de sua capacidade de encarar as reformas necessárias para sobreviver. O que vemos no mundo é o avanço de ditaduras plebiscitárias, como na Rússia ou na Hungria, e o crescimento irresistível do modelo autoritário chinês.

Como jornalista econômico, Wolf ressalta que está na própria economia a explicação para a fragilidade democrática. Mas não deixa de avançar noutros pontos essenciais:

— Nem a política nem a economia funcionarão sem um substancial nível de honestidade, confiança, autocontenção e lealdade às instituições. Na ausência desses fatores, um ciclo de descrédito corroerá as relações políticas, sociais e econômicas.

Concordo com a ideia de que nenhum sistema político consegue sobreviver sem a prevalência de normas fundamentais de comportamento. Essa ideia, aplicada ao Brasil, mostra que a luta pela democracia está perdida em alguns fundamentos. Melhorar a economia é essencial. Wolf reconhece que as pessoas querem estabilidade e prosperidade para si e para os filhos. Na ausência disso, tornam-se ressentidas.

Há poucos sinais de que as elites políticas tenham aprendido as lições de 2018, não aparece nelas um simples núcleo destinado a salvá-las de suas próprias tendências à autodestruição. Digo autodestruição num contexto democrático; os piores vão sempre se adaptar aos regimes autoritários. Por enquanto, estamos apenas esperando o ataque que virá na forma de anistia.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista e escritor. Publicado originalmente n'O Globo, em 22.05.23

Governar para quem?

Uma minoria petista tenta impor ao governo, ao Parlamento e à sociedade ideias ultrapassadas de uma esquerda que há muito morreu no mundo, salvo em países moribundos


Passados quatro meses da posse do novo governo, não se sabe bem se há governo e a quem ele se destina. Governo significaria um conjunto de ideias e metas coerentes entre si e voltado para o bem do País, para além das clivagens partidárias e ideológicas. Ora, o que se tem visto é o novo presidente fazendo declarações, uma atrás da outra, sem nenhuma coerência, como se estivesse ainda num palanque eleitoral. O seu discurso oscila segundo as circunstâncias e conforme certas ideias – se é que se pode considerar como ideias manifestações que em muito se diferenciam de seu primeiro mandato e, inclusive, de seu segundo. O resultado é que seu governo está sem destino e o País, sem rumo.

Se podemos considerar seu primeiro mandato com tendo primado pela responsabilidade, apesar de certas falas suas se dissociarem do que fazia, agora a situação é completamente distinta, visto que seus discursos só produzem irresponsabilidades, seja na condução da política fiscal, seja no respeito aos contratos, seja na desconsideração da propriedade privada. Muitos liberais e democratas optaram pelo PT não por qualquer adesão a suas ideias, mas simplesmente porque pretendiam se desvencilhar do governo Bolsonaro, que se caracterizou por seu desrespeito à democracia, procurando de todas as maneiras miná-la. Entretanto, não o fizeram para pôr em seu lugar um outro tipo de autoritarismo e arbítrio.

Mesmo assim, Lula ganhou por estreita margem: 1,8% dos votos. Isso já implicaria por si só o humilde reconhecimento de que ele era um desaguadouro de insatisfação generalizada. Deveria buscar traduzir em sua conduta a “Frente Democrática” que dizia representar, tendo sido acreditado por muitos. O programa do PT não foi vitorioso nas urnas, haja vista a minguada representação parlamentar que conquistou no Senado e na Câmara. Com essa representação, não consegue aprovar nada. Deveria, isso sim, realizar em seus atos ideias que deem satisfação a todos os que votaram contra o ex-presidente Bolsonaro.

Todavia, o que estamos testemunhando? Uma minoria petista tentando impor ao governo, ao Parlamento e à sociedade ideias ultrapassadas de uma esquerda que há muito morreu em todo o mundo, salvo em países moribundos do “socialismo do século 21”, como na Venezuela, na Nicarágua, em Cuba ou em outros países latinoamericanos como Argentina. Num vocabulário assaz estranho, são ditos “progressistas”. É esse o nosso espelho?

Isso sem falar dos flertes ideológicos e geopolíticos com a extrema direita russa com Vladimir Putin (será que ele é considerado um comunista?) e com a China comunista, tudo em nome, evidentemente, de uma luta – fictícia – contra a hegemonia do Norte e contra o imperialismo americano. Em todas essas atitudes impera um nítido espírito anticapitalista.

Talvez, na política interna, a manifestação desse espírito resida no revival do MST, que renasce das cinzas graças ao apoio do governo. A recente feira em São Paulo deste movimento, linha auxiliar do PT, contou com forte presença governamental, mostrando todo o seu prestígio entre os novos governantes. O setor mais pujante da economia, o do agronegócio, foi simplesmente desconsiderado, tendo sido colocado, em seu lugar, o pleito por uma “reforma agrária” há muito superada pelas novas condições sociais e econômicas e pela modernização da agricultura, da pecuária, do agronegócio, da agroindústria e das cooperativas.

É bem verdade que certas entidades representativas desses setores se alinharam politicamente ao bolsonarismo, quando, institucionalmente, não o deveriam ter feito. São representantes de um setor perante qualquer governo, de direita ou de esquerda, não devendo engajar-se politicamente. Contudo, nada disso justifica o viés contra todo este setor moderno e condutor da economia.

Outra manifestação importante deste mesmo espírito, em outras de suas facetas, é a irresponsabilidade fiscal. O novo governo assumiu conseguindo fazer aprovar a PEC da Gastança, que em muito prejudicou a economia brasileira. Depois, prometeu um arcabouço fiscal, substitutivo à Lei do Teto dos Gastos, para corrigir o rombo por ele mesmo criado. E o fez sem nenhuma preocupação com corte de gastos e avaliação dos projetos em execução nos diferentes ministérios, tendo como único alicerce o aumento dos impostos. Nessa confusão generalizada, todo “gasto”, num passe de mágica, passou a ser considerado “investimento”. A mudança de palavras não muda a realidade, que logo cobrará o seu preço. E, mesmo assim, setores do PT estão descontentes com este arremedo fiscal, que só é aceito por alguns por medo de algo pior.

Procurando desresponsabilizar-se por seus próprios erros e ausência de ideias, Lula e seu governo investem pesadamente contra o Banco Central e, em particular, o seu presidente, numa nítida confusão de causa com efeito. Se juros são altos, isso se deve à política do novo governo, incapaz de produzir qualquer expectativa segura quanto ao futuro. É um anticapitalismo pueril! •

Uma minoria petista tenta impor ao governo, ao Parlamento e à sociedade ideias ultrapassadas de uma esquerda que há muito morreu no mundo, salvo em países moribundos.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 22.05.23

A revanche como política de governo

Se Lula se inclina cada vez mais a apelar à emoção, ao passado e à polarização, não é só por ressentimento, mas para disfarçar sua falta de rumo, de ideias novas e de base parlamentar

Ogoverno tem imensos desafios, porque o País tem imensos desafios: o desafio conjuntural, de cicatrizar feridas abertas pela pandemia na educação, na saúde ou no mercado de trabalho; o estrutural, de criar condições para um desenvolvimento sustentável; e o político, cuja superação é precondição para enfrentar os outros, de apaziguar as tensões que dilaceram o debate público pelo menos desde 2013.

Há sinais de sensibilidade para esses desafios nos recessos da consciência do presidente Lula da Silva. Sua principal promessa de campanha, recordese, foi governar com uma “frente ampla democrática”. “Nosso governo não será um governo do PT”, disse ainda no segundo turno. “Não existem dois Brasis”, declarou logo depois de eleito. “Não há tempo para vingança, para raiva, para ódio. O tempo é de governar.”

Mas há um abismo entre esta sensibilidade e a ação. Primeiro, porque falta um plano inovador de governo. Mas, sobretudo, porque dos recessos mais obscuros da consciência do presidente brota forte um sentimento que obnubila o planejamento e a articulação política e sufoca os ânimos conciliatórios que ele diz ter: o ressentimento.

Ante a decisão da Justiça Eleitoral de cassar o mandato do deputado Deltan Dallagnol, por supostamente não atender aos requisitos da legislação eleitoral, um lacônico “nada a declarar” seria a única resposta desejável de um governo responsável e cônscio de que não há tempo a perder para congregar forças aptas a enfrentar os desafios do País. Mas, ao invés disso, o governo petista, como se fosse liderado por crianças pirracentas, encontrou tempo para empregar a máquina do Estado para fabricar memes tripudiando seu desafeto.

Ao invés de jogar água na fervura, o governo sopra a brasa. Mas, muito mais que um desabafo, a euforia juvenil ante os revezes de adversários como Dallagnol sugere nervosismo e até mais: uma estratégia calculada. O governo se inclina cada vez mais a apelar à emoção, ao passado e à polarização para justificar sua presença no Planalto como um muro de contenção à barbárie bolsonarista. Mas essa cortina de fumaça não disfarça a realidade da falta de rumo, de ideias novas e de base. Neste vácuo, o revanchismo se consolida cada vez mais como política de governo.

A educação, por exemplo, precisa de planos para compensar o déficit gerado pela pandemia, de soluções para fortalecer a aprendizagem e a formação dos professores e de um sistema de cursos técnicos e profissionalizantes para enfrentar as transformações do mercado de trabalho. Mas a principal medida do governo foi suspender a reforma do ensino médio. A maior chaga social do

Brasil, o saneamento básico, precisa de investimentos e planos consistentes de parcerias público-privadas. Mas o governo empenha-se em desconstruir o Marco do Saneamento.

O revanchismo é flagrante nos ataques à Lei das Estatais ou das Agências Reguladoras, à independência do Banco Central ou ao teto de gastos – marcos criados pelo Congresso justamente para pôr fim à malversação de recursos públicos e à sangria fiscal que grassaram nas gestões petistas, arrebentando a economia e desmoralizando a política.

Ao invés de oxigenar o País com novas políticas, o governo se empenha em reciclar políticas passadas. Ao invés de colocar o País na rota do futuro, enfrentando desafios inéditos do presente, empenha-se em reescrever a história e apagar da memória nacional desmandos como o mensalão, o petrolão ou a recessão, como se fossem mera narrativa e injustiça da oposição. Ao invés de aprender com seus erros e caminhar para frente com o Congresso, empenhase em desconstruir marcos criados pelo Congresso para sanar esses erros. Mesmo sua proposta mais consistente para promover o crescimento sustentável, o marco fiscal é mais ameaçado pelo próprio PT do que pela oposição.

Qual a chance de se discutir a sério políticas públicas que demandam um mínimo de coesão social e articulação política quando a vingança domina os corações e mentes no governo? Se Lula quer que esse mandato seja seu melhor, precisa refrear em si e na militância o rancor e começar a fazer política de fato. Se, como ele mesmo disse, “é tempo de governar”, então que o faça.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 22.05.23

Deltan Dallagnol está na cova dos leões

Religiosização (com perdão do neologismo) da política só interessa a um lado; Direita se move desenvolta nesse léxico

O deputado cassado Deltan Dallagnol, na Câmara - Pedro Ladeira/Folhapress

O pastor pregava numa igreja Batista: "Neemias agiu. Se nós queremos mudar o sistema, precisamos orar, agir e apoiar medidas contra a corrupção".

Era 2015, e Neemias foi do Velho Testamento ao sermão para justificar o avanço religioso sobre a política. Ao murar a cidade sagrada de Jerusalém, servira a dois senhores, o estado terreno (governou a Judeia) e o reino divino. Quem buscou o exemplo foi Deltan Dallagnon, que tinha 35 anos e uma missão.

Como a missão lava-jatista se cumpriu, é prudente atentar para suas profecias.

A mais recente veio em reação ao tuíste digno das narrativas bíblicas, quando o moralizador foi pego de moral curta. Legítima ou espúria, a cassação deu-lhe outro púlpito, o de perseguido.

Em meio a cartazes de "Perseguição política não é justiça", discursou no estilo em que fez carreira, com a Bíblia e a Constituição confundidas.

A retórica cristã tem sido seu trunfo na trajetória curta entre a obscuridade paranaense e a luminosidade de Brasília. Daí equiparar sua sina às de José e Daniel.

O primeiro, vendido pelos irmãos como escravo, permitiu-lhe sintonizar com o grande mote contemporâneo da direita, o da primazia da liberdade.

O segundo lhe deu a camisa do crente, salvo da pena injusta pelo poder da fé. Trata-se de Daniel, acusado de traição ao rei por orar a Deus. O soberano pôs a divindade concorrente à prova, trancando o infiel numa cova com leões. O salvamento foi por graça divina.

Já os acusadores provaram a inclemência terrena, devorados pelos felinos. Uma mensagem de revanche: Dallagnol está na cova, mas quando sair, condenará os inimigos ao suplício.

À diferença de Daniel, vai comboiado à vingança. O protesto contra sua cassação ajuntou do 03 à deputada de tiara de florzinha, a que votou contra a equiparação salarial entre os gêneros e insinuou usar metralhadora contra Lula.

O ato de desagravo exibiu uma arca da aliança, que o pastor chamou de "a direita unida contra a arbitrariedade". Nela cabem muitos pecadores.

A cruzada moral é para salvar um mundo corrompido desde a expulsão do Paraíso.

Exemplos religiosos e ações políticas se embaralham, enraizando a moralidade pública em uma moral privada particular, de tipo religioso. Avoca o monopólio da honra e da correção à sua igreja política, já os adversários seriam todos corrompidos.

Os últimos anos mostraram o poder político desta retórica moralizadora, que opõe impolutos e conspurcados. Suscitou nada menos que paixão nacional. Por isso o "tombo", palavra do caído, serviu para regar o terreno laico da política partidária com os valores de uma seita.

Dallagnol, como Daniel, vive uma provação, mas promete voltar fortalecido, graças à fé em Deus e nas "344 mil vozes caladas", as dos eleitores que o sufragaram. Não na Constituição.

A língua religiosa da oposição acabou na boca do governo, que devia ser laico. O ministro da Justiça se saiu com o evangelho de Mateus: "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!"

Ao adotar a linguagem do inimigo, aceita-se o debate político nos seus termos. E se cai na armadilha de falar mais de moral que dos problemas do país.

A religiosização (com perdão do neologismo) da política só interessa a um lado. A direita se move desenvolta nesse léxico. E, ao fundamentar seus atos em citações sagradas, prossegue a política nos termos de seu velho Messias.

Angela Alonso, a autora deste artigo, é Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 21.05.23, às 23h15

Laico não é ateu

Por vezes falta compreensão sobre a importância da religião como força social

Muçulmanos participam de oração que antecede a quebra do jejum durante o Ramadã em mesquita de São Paulo - Reinaldo Canato/UOL

Precisamos dialogar mais sobre Estado laico. Sobretudo, compreender melhor que dialogar não é somente falar, mas também ouvir com atenção e ter empatia pelas realidades que atravessam o diálogo. O Estado precisa ser o "ente subsidiário" que dialoga com a sociedade, inclusive com o campo religioso. Segundo dados do Censo de 2010 sobre religião no Brasil, cristãos são 86,8%.

Todavia, para o tema, trago aqui um exemplo recente do futebol europeu sobre esse "ente" laico, o Estado. A Federação Francesa de Futebol comunicou seu corpo de arbitragem que não deveria pausar as partidas para permitir que jogadores muçulmanos quebrassem o jejum durante o Ramadã, o mês sagrado. No futebol inglês, a decisão foi inversa e permitiu que as partidas da Premier League possam fazer uma parada técnica para os jogadores muçulmanos cumprirem seus preceitos religiosos.

A resposta oficial da federação francesa foi: "A ideia é que haja um tempo para tudo. Um tempo para fazer esporte, um tempo para praticar a religião", afirmou Eric Borghini, chefe da comissão de arbitragem. Como primeira impressão, diria que a resposta foi coerente. Entretanto, demonstrou pouco conhecimento de religião e, consequentemente, das pessoas religiosas; logo, conhece pouco da humanidade. Borghini primou pela obediência à regra da laicidade francesa, e acrescentou: "Ninguém se importa que eles não façam isso. Porque não estamos em um país muçulmano. Você tem que aceitar o país em que vive".

Liberdade religiosa é direito fundamental. É sem limites? Não. Mas ela está no mesmo contexto que exige de nós capacidade de reconhecer e respeitar a diversidade humana e a pluralidade cultural que compõem o nosso país. Há uma tensão ambivalente entre inúmeros levantes reacionários e capilarizados na sociedade contra conquistas democráticas. Temos agentes públicos, representantes do Estado e tantas outras forças sociais em defesa peremptória da democracia e laicidade do Estado.

Contudo, em meio a esse esgarçamento social, estão muitas pessoas religiosas que não reconhecem, na religião, esse tipo de força a ser disputada, já que muita gente nem alcançou a vida digna. Portanto, exercer a religiosidade significa potência para suportar as agruras da vida, significa estar em rede de apoio mútuo, ter suporte emocional, espiritual, financeiro —mesmo em meio a muitas contradições.

A sociedade brasileira está cansada e adoecida. A religião fornecerá ainda mais sentido de vida e para a vida a muito mais pessoas. Projetos políticos deixaram muita gente com fome ou na insegurança alimentar, desabrigadas, endividadas, desesperadas. O tamanho da orfandade pela pandemia e pelo feminicídio é enorme em nosso país. Passamos por uma grave crise sanitária, na qual fomos jogados como rebanho sem pastoreio.

O Estado laico deve ser o sustentador da pluralidade de credos, opiniões e convicções religiosas —ou da ausência desta na vida de nossa gente. Essa sustentação o diferencia do conceito de um Estado ateu, no qual incorporaria ao regime político a não crença na existência de Deus ou de alguma outra divindade ou entidade espiritual.

Encerro retomando o caso da França. A federação de futebol escolheu ser inflexível, optou pela segurança das regras ao se manifestar contrária ao diálogo. Poderia ter aprendido com a liga inglesa, que negociou e combinou deixar o banco de reservas em prontidão para receber seus colegas muçulmanos com fruta e água —e, assim, poderiam eles entregar o jejum em oração para posteriormente retornarem ao jogo.

Nesse sentido, pergunto: não teriam faltado diálogo e compreensão sobre a importância da religião como força social? Não houve preconceito em entender que a religião pode ser promotora de sentido de vida? Faltou reconhecer que a religião, como qualquer outro aspecto da cultura, molda e media subjetividades.

Valéria Cristina Vilhena, a autora deste artigo, é teóloga, mestra em ciências das religiões e doutora em educação e história da cultura; fundadora do coletivo Mulheres EIG - Evangélicas pela Igualdade de Gênero. Publicado originalmente n'a Folha de S. Paulo, edição impress, em 21.05.23, às 22h00.

Zelensky, 40; Putin, 0

A Rússia proclamou a conquista de Bakhmut no fim de semana, mas o presidente da Ucrânia obteve uma vitória diplomática ao se reunir com cerca de 40 líderes em 48 horas, enquanto Putin está severamente impedido de deixar seu país.

Volodimir Zelensky e os líderes do G-7, ontem, em Hiroshima. (StefanRousseau / AP)

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky, se reuniu no fim de semana com cerca de 40 líderes mundiais durante duas viagens à Arábia Saudita ( cúpula da Liga Árabe ) e ao Japão ( cúpula do G-7 ). O presidente russo, Vladimir Putin, não só não teve uma grande agenda diplomática nos últimos dias, como também não fez nenhuma viagem ao exterior este ano além de algumas visitas à Ucrânia ocupada (que a Rússia considera parte de seu território), de acordo com a compilação do Site do Kremlin dedicado a ele. Significativamente, enquanto Zelensky estava viajando, a mídia russa informou que as autoridades russas emitiram um mandado de prisão para o promotor do Tribunal Penal Internacional que, por sua vez, emitiu um mandado de prisão contra o líder russo meses atrás. O contraste diz algumas coisas sobre a posição internacional dos dois. Você não precisa ampliá-lo. Não o subestime também. Vamos ver.

Putin e a Rússia não estão isolados. Cerca de 140 países apoiaram o voto da ONU condenando a invasão, com 35 abstenções e cinco a favor. Mas apenas cerca de quarenta implementam sanções ou restrições contra a Rússia. A segunda maior economia do mundo, a China, cultiva uma parceria estratégica com Moscou e seu presidente, Xi Jinping, viajou recentemente para a Rússia; a quinta, a Índia, mantém laços estreitos que vêm do passado, mas persistem no presente. Existem muitos países que não aprovam a invasão e, no entanto, não têm problemas em continuar a interagir com a Rússia como antes. Muitos deles censuram os países ocidentais pela hipocrisia do duplo padrão entre o Iraque e a Ucrânia.

Mas é claro que Putin está em uma situação de profunda dificuldade diplomática. Se em algum momento ele pensou que seu desafio frontal à ordem mundial moldada pelo Ocidente teria conquistado o apoio — moral, senão material — de outros países insatisfeitos com ela, seu cálculo estava errado. Apenas quatro países apoiaram a Rússia na ONU. São dezenas que continuam a fazer negócios, que não têm interesse em enfrentar Moscovo, mas que claramente não têm uma vontade especial de tirar fotos com o invasor numa grande guerra que nem se chama assim.

O mandado de prisão emitido por Haia vincula teoricamente os 123 países membros do Estatuto de Roma. Na prática, como já aconteceu em outros casos, eles podem violá-lo sem sofrer consequências porque não existem mecanismos sancionatórios para isso. No entanto, não há dúvida de que essa questão representa um enorme risco que desacelera ainda mais a projeção diplomática de Putin. A mídia sul-africana noticiou recentemente que o governo local teria desaconselhado o líder russo a comparecer pessoalmente à cúpula do BRICS marcada para agosto. Esse problema é bastante simbólico, já que os BRICS encarnam justamente um fórum de contrapeso ao Ocidente.

Em contraste com esta situação, Zelenski conseguiu assistir a uma cimeira da Liga Árabe, organização que reúne 22 países, e outra do G-7 em que, além dos sete sócios e dos líderes da UE, estiveram presentes líderes de oito países convidados e líderes de instituições internacionais como a ONU. Teve assim oportunidade de lhes apresentar os seus argumentos e, em muitos casos, de cultivar ou estabelecer relações pessoais com reuniões bilaterais.

Isso não significa, por si só, conseguir uma mudança nas posições políticas dos outros. Estes, é claro, são baseados em interesses nacionais ou visões ideológicas difíceis de mudar. Não é, portanto, de esperar qualquer reviravolta. Tanto no bloco árabe, no qual a Arábia Saudita há muito está envolvida em estreita cooperação com a Rússia na modulação do mercado de petróleo no âmbito da OPEP+, quanto com o punhado de convidados não alinhados convidados para o G-7. O fracasso do encontro com Lula é um sintoma das dificuldades. Embora a motivação para o desacordo não seja clara, o mesmo fato fala das dificuldades pendentes.

Mas os líderes de países importantes e não alinhados com o Ocidente, como a Arábia Saudita ou a Índia, fizeram reuniões com Zelenski, com uma atitude sorridente e descontraída. Eles o ouviram. E todas as lideranças têm um componente pessoal, humano, no qual o contato direto pode influenciar. Em todo caso, a priori, que seus bons amigos de Riad e Nova Delhi se encontrem sorridentes com o chefe da suposta quadrilha nazista no poder em Kiev —segundo a conhecida retórica do Kremlin— é uma pílula amarga para Moscou.

Tudo isso é relevante em dois planos em que, mesmo sem grandes desvios que não são esperados, pequenas mudanças também podem ser úteis. Primeiro, no que diz respeito ao nível de disponibilidade de países terceiros para se prestarem à medida que as sanções atraem os mercados. Há uma área cinzenta entre não aplicá-los e torná-los fáceis de zombar. A segunda diz respeito ao que podem ser futuras negociações de paz, nas quais um deslocamento, mesmo que moderado, da pressão pode ser favorável. Zelensky aproveitou sua passagem para vender seu plano, explicar seus argumentos, enfatizar que permitir que a soberania e a integridade territorial de outros países sejam violadas é ruim para todos. E que o fato de haver precedentes não significa que um novo caso deva ser aceito sem mais delongas.

O fim de semana mostrou que Kiev tem total apoio das potências ocidentais que desmentem qualquer suspeita de cansaço ao abrir caminho para um projeto de longo prazo como a entrega do F-16 . Também que tem a possibilidade de diálogo direto com partidos não alinhados com os quais Moscou espera cooperar para estabelecer uma ordem alternativa.

A Rússia, por sua vez, conta com o apoio da China, mas claro que isso não é incondicional. Pelo contrário, tem limites enormes e, em certo sentido, é mais uma relação de uso e vassalagem incipiente do que de apoio. Ao mesmo tempo, é claro, Moscou não tem facilidades para implantar seu projeto diplomaticamente.

Nada disso é decisivo. No mesmo fim de semana em que ocorreu esse impressionante descompasso diplomático em favor de Kiev, Moscou anunciou a suposta conquista de Bakhmut após meses de batalha. Zelenski negou. De qualquer forma, o fato é um lembrete de que a máquina de guerra russa ainda é assustadora. Porém, no campo diplomático, é difícil refutar que a vitória foi de Zelenski.

Andrea Rizzi, oo autor deste artigo, foi o enviado especial do EL PAÍS à reunião do G7 em Hiroshima, Japan, É o correspondente de assuntos globais do EL PAÍS e autor de uma coluna dedicada a questões europeias publicada aos sábados. Anteriormente, foi editor-chefe do Internacional e vice-diretor de Opinião do jornal. É licenciado em Direito (La Sapienza, Roma), mestre em Jornalismo (UAM/EL PAÍS, Madrid) e em Direito da União Europeia (IEE/ULB, Bruxelas). Publicado originalmente em 22.05.23

sábado, 20 de maio de 2023

Adeus, reforma!

Com uma estrutura partidária tornada em tragicomédia e o poder parlamentar real exercido pelo Centrão, alguém acredita na instauração da paz e da ordem no País?

“O sistema presidencial de governo só funciona nos Estados Unidos. Em outros países, ele degenera em presidencialismo, ou seja, em ditadura” (Maurice Duverger)

Tivesse tido a oportunidade de acompanhar a eleição norte-americana de 2016 e os desmandos da era Trump, o mestre francês Maurice Duverger por certo teria sido mais sóbrio em sua avaliação do sistema de governo norte-americano.

Aqui, precisamos retroceder ao pleito presidencial de 1960, que deu a vitória ao ex-governador de São Paulo Jânio Quadros, lançado pela minúscula sigla do Partido Trabalhista Nacional (PTN). Consta que Jânio Quadros era um bom dicionarista, mas como político foi um dos mais grotescos espécimes do populismo latino-americano. Espargindo caspa pelos ombros e caprichando em seus dons teatrais, não teve dificuldade em personificar um líder gaiato que o tosco Brasil daqueles tempos acolheria com entusiasmo. Do lado oposto, a União Democrática Nacional (UDN), consciente de sua fragilidade diante da mística getulista – criptografada pela aliança PSD-PTB (Partido Social-Democrático/Partido Trabalhista Brasileiro) –, bandeou-se para o populismo janista. Acrescentemos que a Constituição da época não exigia que os candidatos a presidente e a vice pertencessem a um mesmo partido, e assim Jango, percebendo que Jânio venceria o Marechal Lott por larga margem, em vez de encarnar o evangelho segundo Getúlio, aliou-se por baixo do pano ao Messias da Vila Maria.

O resultado da aliança Jânio-Jango foi o previsível desastre. Tendo cumprido somente oito meses de governo, Jânio Quadros, obviamente tentando efetuar um golpe plebiscitário, enviou ao Congresso Nacional uma carta-renúncia, na intenção de que o povo o levaria nos ombros de volta ao Planalto. Agindo com sabedoria, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, sentenciou: “Uma carta de renúncia não é suscetível de votação. A renúncia do presidente da República é um ato de vontade e não depende do Congresso. Está recebida a carta! Arquive-se!”. Neste momento, Jango, em viagem oficial à China, foi notificado por uma junta militar que tomara o poder de que seria preso assim que pusesse o pé no território nacional.

Decorridos 61 anos, limito-me a lembrar que a possibilidade de uma guerra civil logo se delineou, em razão da resistência do Rio Grande do Sul, hipótese contornada por um improvisado “parlamentarismo” (um típico semipresidencialismo) que radicalizou o País e desembocou diretamente no golpe militar de 1964.

O curioso dessa história é que, na prática, tivemos vários ensaios de “semipresidencialismo” antes mesmo de ele surgir na França – sem maiores consequências até a tentativa de golpe contra o presidente João Goulart, em 1961, que forçou a formalização do sistema sob a falaciosa denominação de parlamentarismo. Até então, uma figura informal semelhante à de um primeiro-ministro já fora investida, com poderes variáveis, ora pelo ministro da Justiça, ora pelo da Fazenda. Durante os governos militares, tivemos no papel o general Golbery do Couto e Silva, Petrônio Portella e o ministro Leitão de Abreu, este chefiando a Casa Civil. Sem esquecer, é claro, que no início dos anos 90 o presidente Itamar Franco retomou o modelo do “semi-informal”, que ganhou seriedade não por suas qualidades intrínsecas, mas porque a função foi entregue ao senador Fernando Henrique Cardoso.

É lógico que a experiência de 1961-1963 nada tinha de parlamentarismo; era um emaranhado de contradições. Em tese, é lícito cogitar que a instauração (ou não) de um sistema parlamentarista mediante plebiscito seria um caminho consistente. E, de fato, chegou a ser voz corrente que o Ato Adicional do referido emaranhado estipulara a realização de um plebiscito cinco anos após o estabelecimento do “parlamentarismo”. Quanto a esse ponto, não há dúvida de que alguém andou vendendo gato por lebre. (A seguir, com grifos meus.) O artigo 22 das Disposições Transitórias apenas autorizava o Legislativo a fazer o que é de sua obrigação: “Poder-se-á complementar a organização do sistema parlamentar de governo ora instituído, mediante leis votadas, nas duas Casas do Congresso Nacional, pela maioria absoluta de seus membros”. À vacuidade do artigo 22, acrescentava-se no artigo 25 uma pérola de engenharia constitucional: “Art. 25. A lei votada nos termos do artigo 22 poderá dispor sobre a realização de plebiscito que decida da manutenção do sistema parlamentar ou volta ao sistema presidencial, devendo, em tal hipótese, fazer-se a consulta plebiscitária nove meses antes do termo do atual período presidencial”.

Nos dias de hoje, com uma estrutura partidária transformada em tragicomédia e o poder parlamentar real exercido por aquela chusma denominada Centrão, alguém acredita na instauração da paz e da ordem no País?

O presidente Charles De Gaulle não disse, mas poderia com plena razão dizer que o Brasil não é um país sério.

Bolívar Lamounier, o autor deste artigo. é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 20.05.23