Parlamentar cassado afirma que decisão do TSE foi uma fraude e teme pelos riscos à democracia no País
Deltan Dallagnol teve o mandato cassado pelo TSE na terça-feira, 16. Foto: Bruno Spada / Câmara dos Deputados
O deputado cassado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) afirmou em entrevista exclusiva ao Estadão que vai recorrer até o fim para manter seu mandato na Câmara. Nesta semana, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou o parlamentar paranaense alegando que ele violou a lei da Ficha Limpa. Deltan disse que a decisão da Corte foi fraudada. “Eu roubei, me corrompi, abusei, torturei? Não”.
Para ele, a preservação de seu mandato depende de uma decisão política do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL, a quem Deltan ainda pretende recorrer para assegurar que a decisão do TSE não seja aplicada automaticamente. “O maior medo que eu tenho é a perda da fé das pessoas na democracia”.
A votação que cassou o mandato de Dallagnol, como mostrou o Estadão, durou um minuto e seis segundos, se considerado o período entre o fim do voto do ministro Benedito Gonçalves - relator do caso - e a proclamação do resultado. O deputado perdeu o cargo por unanimidade, com base na Lei da Ficha Limpa, mas ainda cabe recurso.
“Hoje sou eu, amanhã são outros parlamentares”, afirmou.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista do ex-procurador da Lava Jato e deputado cassado:
O TSE errou ao cassá-lo?
Com certeza o TSE errou. O TSE inventou uma inelegibilidade que não existe na lei. A legislação é objetiva e clara. É inelegível o membro do Ministério Público que sai na pendência de processo disciplinar. Isso não existia no meu caso, não existia nenhum processo disciplinar. A Constituição orienta que restrições de direitos fundamentais não podem ser interpretadas de modo extensivo.
Houve um abuso na interpretação da Lei da Ficha Limpa?
O TSE criou uma hipótese, um caso de inelegibilidade imaginário, que não está previsto em lei, em cima de quatro suposições. A primeira é de que eu teria saído do Ministério Público por conta de um risco de inelegibilidade. A segunda é de que isso aconteceu porque existiam reclamações disciplinares que poderiam se converter em PAD (Processo Administrativo Disciplinar). A terceira é de que PADs poderiam gerar condenação. A quarta é que alguma condenação poderia ser a pena de demissão. Ou seja, é como se eu fosse punido por um crime que eu não cometi, mas poderia cometer no futuro. Ou ainda pior, é como se eu fosse punido por uma possibilidade de que, no futuro, eu fosse acusado.
Como explicar para a sociedade brasileira que Lula, condenado em três instâncias por corrupção, está elegível e com mandato e que Deltan, que não foi investigado, acusado e processado criminalmente, muito menos acusado administrativamente, porque não existia PAD, se tornou inelegível? Como explicar essa absurda contradição? O TSE alegou que eu fraudei a lei, mas está muito claro que quem fraudou a lei foi o TSE. Certamente foi (um julgamento) político.
O ministro Benedito Gonçalves afirma que o senhor teve o “intuito” de manobrar a lei.
O que eles fizeram foi um exercício de leitura de mente e que, por si só, não era suficiente. Teve que ser combinado com uma futurologia. Eles precisaram, primeiro, supor uma intenção e somar a três possíveis desdobramentos cumulativos. Isso não é possível porque não existe essa hipótese prevista na lei. Hipóteses de inelegibilidade não podem ser estendidas, segundo entendimento pacífico das Cortes Superiores, não podem ser alargadas pela interpretação ou pelo julgador.
A Lava Jato, comandada pelo senhor, acusou Lula de ter uma “real intenção” de adquirir o triplex no Guarujá. Por que no caso do presidente a intenção pode ser levada em consideração e, no seu caso, não?
As duas situações são completamente diferentes. Lula foi acusado de praticar um crime e condenado por corrupção e lavagem de dinheiro. Quando você avalia o cometimento de crime por alguém, você avalia se a pessoa agiu com consciência e vontade, o dolo. Algumas pessoas vão traduzir como intenção. A minha situação é completamente diferente. Eu não pratiquei um crime. Nenhuma conduta que eu fiz está prevista na lei como inelegibilidade. É totalmente diferente. O comportamento dele (Lula) se enquadra perfeitamente num crime descrito na lei. No meu caso, o meu comportamento não se enquadra em nenhuma inelegibilidade descrita na lei. Eles (TSE) tiveram que estender a lei. É como se eu estendesse o crime de corrupção para situações que não são corrupção para enquadrar alguém. Essa decisão do TSE cria uma punição para onde o Direito não prevê. Os meus advogados estavam dizendo: “é impossível deixarem inelegível dentro do Direito. Você só vai se tornar inelegível se for uma decisão muito política”. Todo mundo me dizia isso, eu não acreditava que isso pudesse acontecer.
O senhor foi pego de surpresa?
Eu fiquei absolutamente surpreso. Não só pela decisão, mas por ela ter acontecido em 66 segundos e contrariando todas as posições unânimes dos membros do Ministério Público e dos julgadores que tinham atuado antes nesse caso.
Quando o senhor pediu exoneração, havia sindicancias e reclamações que poderiam virar PAD.
É uma espécie de procedimento preliminar que é, simplesmente, uma capa dada a um pedido feito contra mim no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Todas as semanas, nós sofríamos reclamações disciplinares de pessoas e partidos investigados na Lava Jato. Nós respondemos a dezenas, a centenas de reclamações disciplinares. Agora, elas só são convertidas em processo disciplinar quando existe viabilidade e fundamento. Quantos foram convertidos? Dois. Eu roubei, me corrompi, abusei, torturei? Não. Fui punido por críticas ao Supremo Tribunal Federal e ao (senador) Renan Calheiros. Sem excesso de linguagem, sem ofensa. Dentro dos limites da crítica, da democracia.
O senhor pediu exoneração para evitar que esses procedimentos virassem PAD e impedissem sua candidatura?
Não. Essas reclamações já estavam pendentes há meses. Eram remanescentes de mais de 50 reclamações que foram arquivadas paulatinamente no CNMP. Algumas ficaram, por exemplo, porque eram baseadas em notícias do The Intercept. Se alguma pudesse conduzir à minha demissão, a minha exoneração não poderia ter ocorrido. Existe uma regra que diz que quando um servidor responde a um procedimento que pode gerar sua demissão, ele não pode se exonerar. Eu pedi minha exoneração depois de receber um convite do (ex-senador) Álvaro Dias para lutar por mudanças no Brasil ao lado de Sérgio Moro que voltava ao Brasil para ser candidato à Presidência da República. A minha entrada na política dependia de uma série de negociações com os partidos. Conversei com o Novo, o Republicanos, o Podemos e o União Brasil. Isso não podia ser feito enquanto eu estava no Ministério Público, porque existe uma vedação de atividade político-partidária. Eu saí para poder manter conversas partidárias e isso precisava acontecer antes do prazo de filiação que era 6 meses antes da eleição. Além disso, existia uma narrativa de que promotores ou procuradores se afastavam da carreira muito perto das eleições quando se deveria existir uma quarentena maior. A tudo isso, se somou a reflexão que eu fiz com a minha família em que a gente entendeu que depois de toda a reação do sistema corrupto, eu não conseguiria mais lutar contra a corrupção dentro do Ministério Público.
Vai recorrer ao Supremo?
Sim.
Nesta semana?
Essa questão está sendo definida pelos nossos advogados. Estão estudando as possibilidades, redigindo as peças. Nós vamos recorrer até o fim, vamos lutar até o fim. Não se trata de Deltan, se trata de três causas: a defesa da democracia, do voto e da soberania do povo. A segunda é conter a juristocracia, (que é) o avanço judicial sem base na lei nas competências de outros poderes ou sobre as liberdades. A terceira é garantir que o combate à corrupção não vai ser enterrado no Brasil.
O senhor agora está sofrendo com uma interpretação abrangente da lei, que era algo muito criticado nos métodos da Lava Jato?
Na Lava Jato, as críticas sobre supostos excessos eram que as pessoas discordavam sobre onde exatamente estava a linha da lei. Alguns achavam que estava um pouco para cá, outros achavam que estava um pouco para lá. Nessa discussão, sujeita à interpretação sobre onde está a linha da lei, algumas pessoas falaram: “olha, eles pisaram na linha, eles foram um pouco para lá”. Naturalmente, os advogados sustentavam isso. Contudo, neste tipo de situação, de abuso de Direito, como definiu (o jurista) Miguel Reale (Jr.), de risco à democracia, como disse a Transparência Internacional, de decisão combinada, como disse (o ex-ministro do STF) Marco Aurélio (Mello), você não questiona se passou um pouco do limite da lei. A lei ficou lá atrás, ficou lá longe. Está completamente fora da lei.
O senhor volta a trabalhar na Câmara nesta semana?
A partir da decisão (do TSE), da comunicação que foi feita ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral do Paraná) e à Câmara, o procedimento será da minha notificação. Em seguida, terei prazo de cinco dias para apresentar uma defesa sobre aspectos formais. Isso vai para o corregedor da Câmara, que vai apresentar um parecer. Esse documento será submetido à Mesa (Diretora). Estima-se que isso aconteça nos próximos 10, 15 dias. Contudo, a implementação da decisão pode ser imediata ou pode demorar meses ou anos. Isso depende muito da vontade e da visão política, especialmente, do presidente (da Casa).
O presidente da Câmara, Arthur Lira, não defendeu o senhor publicamente nem se manifestou contrariamente à decisão do TSE.
Estou buscando marcar um encontro com ele para eu apresentar as razões pelas quais eu entendo que, não só é uma decisão injusta, mas que não deve ser executada de imediato pela Câmara dos Deputados antes de um posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Especialmente, quando você está tratando de algo tão sagrado da democracia que é a soberania popular e o voto de 345 mil pessoas. É preciso que o Parlamento defenda os parlamentares, defenda a soberania do voto.
Se a Mesa Diretora cumprir a decisão e o senhor tiver que deixar o mandato, o que fará daqui para frente?
Eu não estou traçando um plano B agora. Muitas pessoas vieram expressar sua solidariedade e abrir portas, trazer possibilidades. Mas a única possibilidade que eu vejo hoje é lutar com unhas e dentes para honrar a confiança das 345 mil pessoas que votaram em mim. O TSE passa o ano inteiro das eleições falando sobre o valor e a importância do voto. No ano passado, em especial, defendeu firmemente a segurança das urnas eletrônicas. Contudo, agora, fora da lei, o que eles fazem é anular 345 mil votos. O maior medo que eu tenho é a perda da fé das pessoas na democracia.
O TSE vai cassar o senador Moro?
Seria um exercício de especulação. O que eu vejo sendo pavimentado é um caminho para cassação não só de Sérgio Moro, mas de vários outros parlamentares. O que se fez esta semana foi ultrapassar as linhas para cassar alguém que é visto como um adversário político do atual governo e alguém contra quem o atual presidente queria vingança. Hoje sou eu, amanhã são outros parlamentares.
O senhor conversou com Moro?
Sim. Ele expressou solidariedade, irresignação e se colocou à disposição para ajudar e apoiar a mim e à minha família de modo pessoal e profissional naquilo que a gente precisasse. Respondi que, neste momento, nós estamos focados em construir uma solução para o mandato possa ser preservado. Ele se colocou à disposição para ajudar.
Entrevista concedida a Julia Affonso para O Estado de S. Paulo. Pubicada originalmente em 20.05.23, edição online, atualizada às 16h32