terça-feira, 16 de maio de 2023

Agenda da esquerda do PT não foi eleita

Imaginava-se que Lula se calava sobre seu programa para não desmobilizar a esquerda, mas ele queria era não afastar o centro

Flexibilizar a Lei das Estatais. Derrubar o Marco Legal do Saneamento. Reestatizar a Eletrobras. Elevar a meta de inflação e baixar os juros na marra. Retomar o imposto sindical.

Será que Luiz Inácio Lula da Silva teria sido eleito com esse programa econômico? A pergunta é retórica, pois é impossível voltar ao passado, mas trata-se de dúvida pertinente, já que ele venceu com 50,9% dos votos.

Ouvi de influente economista liberal que teria votado em Lula mesmo que ele tivesse anunciado Guido Mantega como ministro da Fazenda, porque o que estava em jogo eram os ataques de Jair Bolsonaro à democracia com ameaças de subjugar o Judiciário. Mas que tinha esperanças de que Lula seria pragmático.

Muitos brasileiros compartilhavam a mesma esperança, estimulados pelo próprio candidato, que oferecia como garantia seus mandatos anteriores de controle das contas públicas e respeito a contratos.

Na campanha, imaginavase que Lula se calava sobre o programa econômico para não desmobilizar a militância da esquerda. Hoje, só quatro meses depois do início do governo, fica claro que o que ele queria era não afastar o centro. E que acreditava que bastava não se comprometer para ter um cheque em branco para a agenda econômica da esquerda do PT.

Ignorando a legitimidade do Congresso, o Executivo tenta agora impor medidas por decreto e pelo Judiciário. Só que a democracia tem pesos e contrapesos que começam a demonstrar que essa agenda não foi eleita porque não era conhecida. O primeiro exemplo foi a derrubada na Câmara do decreto do governo que revogava o Marco Legal do Saneamento.

A reestatização da Eletrobras também não deve prosperar no Supremo Tribunal Federal (STF), a despeito de que lá o governo conta com mais simpatia que no Congresso. Mesmo a flexibilização da Lei das Estatais, que foi implementada na prática por meio de liminares e pedidos de vistas de alguns ministros, ainda não foi derrubada no plenário do Supremo. Tampouco foi votada no Senado, que recusa o ônus político.

Uma parte do PT já entendeu o recado e sabe que é preciso buscar consenso, e não ruptura. O arcabouço fiscal e a reforma tributária são prioridades dos moderados do governo, de lideranças do Congresso e de quem deseja a modernização do País. Só não parecem ser prioridades de Lula, que insiste em negar a frente ampla que o elegeu.

Resta saber se ele vai mudar de rumo ou passar os próximos quatro anos copiando Bolsonaro e culpando o sistema que não o deixa governar. A julgar pelos ataques ao Banco Central, as perspectivas não são animadoras. 

Raquel Landim, a autora deste artigo, é Jornalista, e analista da CNN Brasil. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.05.23

Gestão Bolsonaro comprou pescoço de galinha a R$ 260 o quilo

Valor é 24 vezes maior que o preço do mesmo produto em outros contratos; compra destinada a indígenas foi feita sem licitação

Produto, que seria distribuído a indígenas, pode ser encontrado em supermercados por até R$ 5 o quilo.

O governo Jair Bolsonaro (PL) comprou, no ano passado, sem licitação, pescoço de galinha para indígenas na Amazônia por um preço 24 vezes maior que o valor médio do produto. O item custou R$ 260 o quilo; o preço médio do mesmo produto adquirido em outros contratos fechados no mesmo período pelo governo foi de R$ 10,70. Em grandes redes de supermercados, a carne de pescoço pode ser encontrada por R$ 5 o quilo.

O Estadão revelou que o governo Bolsonaro comprou 19 toneladas de bisteca para o Vale do Javari que nunca foram entregues e gastou R$ 4,4 milhões para fornecer sardinha enlatada e linguiça aos indígenas yanomamis, contrariando a dieta local recomendada.

O pescoço de frango foi comprado para indígenas da etnia mura e funcionários da antiga Fundação Nacional do Índio (Funai) – hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas – numa missão em Manicoré, na Floresta Amazônica. O gasto total com as compras de carne chegou a R$ 927,5 mil, entre 2020 e 2022. Deste valor, R$ 5,2 mil foram para adquirir o lote de 20 quilos de carne de pescoço a R$ 260 o quilo. Não há registros da entrega do produto nesse período.

Com R$ 5,2 mil seria possível comprar meia tonelada de pescoço de galinha se o governo tivesse seguido o preço do produto pago em outros contratos. Para efeito de comparação, o quilo da picanha num dos maiores supermercados do País custava ontem R$ 70.

A empresa selecionada para vender a carne de pescoço, sem concorrência, fica em Humaitá (AM) e tem como dono Herivaneo Vieira de Oliveira Junior, de 23 anos. Ele é filho do ex-prefeito Herivaneo Vieira de Oliveira (PL), que cuida do negócio. Por telefone, o exprefeito primeiro se recusou a falar. “Eu não sei de nada, não”, disse, encerrando a ligação. Depois, retornou, pediu desculpas e relatou que tudo foi entregue conforme as notas fiscais emitidas e os preços levantados pela Funai. Questionado sobre o preço cobrado, afirmou: “Carne de pescoço? Não existe isso aqui. Eu sei que é uma carne ruim demais. Só pode ter sido um erro das notas de pagamento.”

CESTA. Responsável pela compra, a coordenação regional da Funai no Rio de Madeira (AM) adquiriu também mais de uma tonelada de charque, maminha, coxão duro, alcatra e latas de presunto que nunca chegaram às aldeias na época da pandemia de covid-19. Na região onde a carne deveria ter sido distribuída, indígenas enfrentam fome e desnutrição.

A empresa Loja do Crente Rei da Glória foi contratada para entregar as cestas básicas que deveriam conter as carnes diversas, mas os itens não foram incluídos. “A carne não chegou. Aquilo que era adquirido não chegava ao território”, disse o coordenador da Funai no Rio de Madeira, Raimundo Parintintin. Na época das compras, quem comandava o órgão era o capitão do Exército Claudio da Rocha.

O atual comando da Funai e a gestão do órgão no governo Bolsonaro não se posicionaram. Samuel de Souza Matos, dono da Loja do Crente Rei da Glória, e Claudio da Rocha não responderam. 

Daniel Weterman, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 16.05.23

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Áudios sobre golpe provocam fratura entre comando do Exército e militares bolsonaristas

Não há mais convívio entre generais contrários à intentona do dia 8 de janeiro e os envolvidos na aventura; Exército pode abrir processo interno para expulsar acusados por meio do chamado Conselho de Justificação

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acompanhado do geneneral Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, comandante do Exército, participa da cerimônia em homenagem ao dia do Exército, no Quartel General, em Brasilia, no mês passado. Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO CONTEUDO

Deslealdade. Esse é o mais educado dos adjetivos usados por generais para qualificar o comportamento de integrantes do governo de Jair Bolsonaro que planejaram aliciar comandantes de batalhões e até mesmo de brigadas para passar por cima dos integrantes do Alto Comando do Exército (ACE) que se recusavam a dar um golpe de estado e impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. Quatro meses após a intentona do dia 8 de janeiro, a fratura criada na instituição não cicatrizou.

Expoentes do bolsonarismo continuam malvistos e desprezados pelos colegas, que se sentem constrangidos a cada nova descoberta feita pela Polícia Federal envolvendo militares da ativa e da reserva que assessoraram o ex-presidente. Na semana passada, a cúpula do Exército se reuniu em Brasília. Tratava-se de uma reunião administrativa, onde a chefia da Força tratou de seu orçamento e de operações que serão feitas com Argentina, Paraguai e Estados Unidos. Um outro tema, porém, pairava sobre os generais: a situação do tenente-coronel Mauro Cesar Cid.

Para os integrantes do Alto Comando, tudo o que o Exército não precisava agora era de mais problemas. A nomeação do general Marcos Amaro para a chefia do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) parecia normalizar a relação entre o atual governo e a caserna, inclusive com o retorno da segurança presidencial para as mãos do GSI. Amaro é visto pelos colegas como um oficial inteligente e íntegro. Foi instrutor da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e conhece a área de informações.

Mesmo a atabalhoada inclusão do general Marcelo Goñes Sabbá de Alencar entre os militares excluídos na “faxina” do gabinete já parecia superada – Sabbá estava havia 9 dias no GSI quando se viu entre os afastados em razão da queda do general Marco Edson Gonçalves Dias, o G. Dias, então ministro-chefe do GSI. Havia entre os generais até mesmo a ideia de mandar Sabbá de volta ao GSI para corrigir a injustiça, mas, por fim, optou-se pela sua nomeação para a 2.ª Subchefia do Estado-Maior, responsável por orientar e avaliar o Sistema de Informações do Exército e sua área digital.

Foi quando chegaram ao comando do Exército as informações encontradas nos telefones celulares do tenente-coronel Cid e do ex-major Ailton Barros, ambos presos pela Polícia Federal sob a suspeita de terem participado de um esquema de falsificação de cartões de vacina contra a covid-19. Um diálogo revelado pela CNN mostrou o coronel Élcio Franco tramando um golpe de estado com o ex-major Barros.

Élcio Franco, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde durante coletiva sobre o combate ao coronavírus Foto: Júlio Nascimento/PR

Este último diz que era preciso convencer o general Carlos Alberto Rodrigues Pimentel, do Comando de Operações Especiais (COpEsp), com sede em Goiânia, a mobilizar 1,5 mil homens para prender o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). O COpEsp é subordinado ao Comando Militar do Planalto (CMP), então ocupado pelo general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, outra figura-chave nos eventos do dia 8. Dutra era um dos generais que os conspiradores designavam como “melancia” e pretendiam “bypassar”.

Franco, então assessor da Casa Civil, onde trabalhara com os ministros Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto, não demonstra nenhuma contrariedade à proposta do amigo. Antes, Franco trabalhara com Eduardo Pazuello, no Ministério da Saúde. Em comum com Ramos, Pazuello e outros expoentes do bolsonarismo, ele também é um Força Especial (FE), um militar formado no COpEsp, conforme mostrava o broche da caveira com um punhal que Franco costumava exibir no paletó.

A coterie dos Forças Especiais forneceu à intentona do dia 8 alguns dos principais expoentes no campo militar. O tenente-coronel Cid fazia parte dela e estava designado para comandar o 1.º Batalhão de Ações de Comandos, do COpEp. Foi da mesma brigada de Goiânia que saiu o coronel José Placídio Matias dos Santos, que no dia 8 convocou os colegas para o golpe: “Onde estão os briosos coronéis com tropa na mão?” A exemplo de Franco, Barros e outros, Placídio defendia que os colegas passassem por cima dos generais.

Seu modelo era o dos coronéis gregos que deram um golpe em 1967 e instalaram uma ditadura que durou sete anos sob a direção de Georgios Papadopoulos, para impedir a eleição do socialista Andreas Papandreou. Placídio ofendeu o comandante da Marinha, almirante Marcos Olsen, qualificando-o como “prostituta do ladrão” e o desafiou a puni-lo. O FE Placídio trabalhava no GSI com o general Augusto Heleno, outro oficial que saiu chamuscado do governo Bolsonaro, assim como Ramos, Pazuello e Braga Netto.

Todos, em maior ou menor medida, tornaram-se párias para os colegas em razão da deslealdade e da campanha de difamação e ataques movida contra integrantes do Alto Comando. Não há mais convívio entre os dois grupos. A fratura entre os bolsonaristas e a instituição está longe de acabar.

Por enquanto, nenhum dos golpistas é alvo de Conselho de Justificação, que pode declarar o acusado indigno para o oficialato, cassando o posto e a patente. O ACE decidiu aguardar as investigações da Polícia Federal e o processo no STF – o caso de Placídio estão nas mãos de Moraes. Em caso de condenação a mais de dois anos de prisão, os conselhos serão abertos e o militar, ainda que na reserva, será expulso.

O tenente-coronel do Exercito, Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens do presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia em Brasília  Foto: Dida Sampaio/Estadão

Na avaliação dos generais, os integrantes da ativa envolvidos nos fatos são poucos. Nenhum comandante de organização aderiu à intentona do dia 8. Quem se moveu nas redes sociais ficou apenas nos chamados “atos preparatórios”, sem ultrapassar o limite que qualificaria seus atos como tentativa de crime contra o estado democrático de direito. Pelo menos é o que mostram, por enquanto, as investigações. Todos seriam somente valentões de WhatsApp. “Queria ver botar a cara aqui na frente”, disse à coluna um dos generais do ACE.

Mesmo o caso do coronel Cid é visto com cautela. Os generais negam que o pai do preso, o também general Mauro César Lorena Cid, que fora colega de turma de Bolsonaro na AMAN, esteja contrariado com o Alto Comando. O coronel não foi destratado nem humilhado. O comandante da Força, general Tomás Paiva, considera que Cid deve responder pelo que fez. Mas nada será feito contra o coronel de maneira açodada. As consequências do governo Jair Bolsonaro e da contaminação ideológica ainda incomodam. E cada vez que novos fatos surgem, uma frase começa a ser repetida: “Nunca mais”. A lição foi aprendida.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 15.05.23. Atualizado às 14h30.

domingo, 14 de maio de 2023

Entre mandar e governar

Empenhado em buscar a paz entre Rússia e Ucrânia, Lula também tenta mandar nos juros e rever decisões do Congresso, mas cuida pouco da obrigação de administrar seu país

Lula quer mandar, muito mais do que governar, como tem demonstrado em quase cinco meses de mandato. Quer mandar nos juros, na Eletrobras, na política de pessoal das estatais, no Orçamento e nos serviços de utilidade pública. Seu desejo pode conflitar com alguma lei sancionada, mas isso pouco importa. De forma desaforada, tentou mudar com dois decretos o marco legal do saneamento, atropelando uma legislação aprovada em 2020. De forma grosseira e indigna, tem atacado pessoalmente o presidente do Banco Central (BC), acusando-o de trabalhar sem compromisso com o Brasil. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, também tem criticado os juros, mas sem as baixarias presidenciais. De forma civilizada, já apontou dois nomes para vagas na diretoria do BC. Pode ser uma forma de introduzir a opinião do Executivo nas discussões de crédito e juros. Mas o risco de intervenção permanece, mesmo com as boas maneiras de um ministro conciliador.

Também conciliador e discreto, o economista Gabriel Galípolo, indicado para a Diretoria de Política Monetária do BC, já é visto como possível sucessor do presidente da instituição, Roberto Campos Neto. Por enquanto, Galípolo permanece como secretário executivo do Ministério da Fazenda, posto equivalente ao de viceministro. Sua transferência para a nova função, disse Galípolo, poderá facilitar a harmonização das políticas monetária e fiscal. O discurso parece atraente, mas a palavra “harmonização” é um tanto estranha.

Banco Central e Ministério da Fazenda têm funções diferentes. Se a Fazenda, isto é, o Executivo, administrar com prudência as finanças públicas, a autoridade monetária terá maior facilidade para reduzir os juros, favorecendo o consumo, o investimento e a produção e barateando, talvez, o financiamento do Tesouro. Mas o componente básico desse jogo é a política fiscal seguida pelo governo. Além disso, o crescimento da atividade produtiva depende mais da política econômica, no longo prazo, do que de estímulos monetários. Com a política monetária mais frouxa deste século, o mandato da presidente Dilma Rousseff terminou com o País atolado em recessão e inflação.

Mas política econômica é ação de governo, e governar tem ocupado pouco espaço na agenda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mostrandose pouco propenso a administrar, o presidente cuidou, até agora, muito mais da imagem externa do Brasil do que da retomada do crescimento. Será difícil, no entanto, manter alguma importância externa com uma economia estagnada por longo tempo. Mesmo na América do Sul o País perderá relevância, se passar a ser visto como um grandalhão incompetente e fracassado.

De fato, alguma perda já tem ocorrido, como efeito da crescente presença chinesa nos mercados sul-americanos, incluído o Mercosul. Recompor um quadro mais favorável ao Brasil dependerá basicamente do aumento da competitividade, uma questão ligada a produtividade, qualidade e financiamento. Diplomacia pode ajudar, mas, sem os dados prosaicos dos preços, da qualidade e das condições de pagamento, o trabalho de persuasão pode ser menos eficaz em portunhol do que em qualquer língua com sotaque chinês.

Detalhes como esse poderiam ser pouco importantes no mundo bolsonariano. São familiares e relevantes, no entanto, para o pessoal em torno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os ministros da Fazenda, do Planejamento, do Desenvolvimento e da Agricultura estão preparados para pensar questões ligadas à modernização e à expansão do sistema produtivo. Mas essa capacidade faria pouca diferença, se o chefe do governo fosse incapaz de pensar os problemas do desenvolvimento. Não é o caso do presidente Lula.

Também ele já se mostrou capaz de entender condições essenciais para a promoção de grandes mudanças, como a educação, a pesquisa, a infraestrutura e a capacidade produtiva das empresas. Mais que isso, ele parece perceber com clareza os vínculos entre a prosperidade econômica e a busca da equidade social. Mas avanços concretos envolvem – é preciso insistir no óbvio – fixação de prioridades, avaliação de custos, estratégias de financiamento, definição de rumos e de etapas e um esforço de articulação de tarefas.

Tem faltado, no entanto, o trabalho de liderança e de articulação. O presidente Lula tem-se declarado disposto a ouvir sugestões de empresários, sindicalistas, dirigentes de organizações civis e quaisquer fontes capazes de colaborar com ideias. Para mostrar sua disposição de contato com a sociedade, mandou remover as cercas do Palácio do Planalto. Mas falta ir além do simbolismo.

Em termos simples, falta meter a mão na massa e cuidar de questões concretas e próximas. O presidente brasileiro tem-se empenhado mais na promoção da paz entre Rússia e Ucrânia do que na revitalização econômica de seu país. Lula pouco pode fazer por ucranianos e russos, mas pode fazer muito por milhões de brasileiros, e até por seus vizinhos, se voltar à realidade e cuidar de sua obrigação principal, governar o Brasil. Isso é muito diferente de simplesmente mandar. •

Rolf Kuntz, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 14.05.23

O primeiro inverno do governo Lula

Dada a nossa história, não teria qualquer credibilidade um governo que se limitasse a ‘afirmar’ seu compromisso com a responsabilidade fiscal

“É perfeitamente legítimo a qualquer pessoa expressar de público suas ‘memórias do futuro’, para usar a bela expressão de Borges para caracterizar desejos, expectativas, sonhos e planos – quer se realizem, quer não.” Assim abri meu artigo de 14/12/2014 neste espaço. O comentário vinha a propósito de discurso feito por Lula durante a campanha eleitoral de 2014, no qual afirmou que já se imaginava em 2022, nas comemorações de nossos 200 anos de Independência, defendendo, com Dilma, tudo o que haviam conquistado “nos últimos 20 anos”.

O primeiro discurso de Lula eleito para seu terceiro mandato, na noite de sua vitória, parecia indicar uma clara percepção do grau de polarização a que havíamos chegado e, principalmente, o reconhecimento de que uma legião de eleitores havia votado nele porque não queria mais quatro anos de Bolsonaro. Ali Lula afirmou que governaria para 215 milhões de brasileiros, e não apenas para seus eleitores.

Mas Lula é Lula. “Quando completarmos 100 dias, teremos voltado com todas as políticas públicas que criamos e que deram certo neste país” é apenas uma numa sucessão de declarações recentes que evocam um passado glorioso, em modo campanha eleitoral. Mas objetivos meritórios exigem ações eficazes, consistentes e compatíveis com as restrições sob as quais qualquer governo deve operar. Mesmo aqueles que acham que um governo que emite a própria moeda tem amplo espaço de manobra reconhecem que existe uma “restrição da realidade” imposta pela capacidade de resposta da oferta doméstica, existente ou a ser criada pelo governo em articulação com o setor privado, um programa consistente e eficiente de investimentos. Alguns dos adeptos do amplo espaço de manobra reconhecem também que há, sim, restrições orçamentárias a que qualquer governo está – ou deveria estar – submetido no curto e médio prazos.

O projeto de lei do Novo Marco Fiscal encaminhado ao Congresso pelo ministro Fernando Haddad representa o reconhecimento de que há necessidade de respeitar tais restrições; de mostrar que o governo tem regras consistentes para a relação entre gastos, receitas, resultado fiscal e dívida pública, com números críveis para mostrar as respectivas trajetórias.

Dada a nossa história, não teria qualquer credibilidade um governo que se limitasse a afirmar seu compromisso com a responsabilidade fiscal. Principalmente quando muitos na cúpula do PT afirmam, ao mesmo tempo, que há gastos que não são “gastos” e que, portanto, deveriam estar fora da regra que os define.

Da mesma forma, na política monetária não teria qualquer credibilidade um governo que se limitasse a afirmar que envidaria o melhor de seus esforços para preservar a inflação sob controle – mas que teria objetivos mais importantes a perseguir. E que, portanto, a inflação seria a possível nas circunstâncias.

Ambos, regime fiscal e regime monetário, precisam ter discricionaridades restringidas por regras estabelecidas com clareza e acompanhadas pelo Congresso e pela opinião pública. Deverá ser resolvido o atual descompasso entre política monetária restritiva e uma política fiscal que é e será expansionista no que depender do presidente da República; possivelmente por meio da inclusão no Novo Marco Fiscal, pelo Congresso, da exigência de relatórios bimestrais ou trimestrais detalhados sobre a evolução dos gastos e receitas no bimestre (ou trimestre) e projeções para o ano à luz do resultado (e das metas definidas pelo governo). Também por meio da redução das exceções de gastos que estariam fora dos gastos a serem controlados, mas que não deixam por isso de ser gastos. Por último, é preciso indicar na lei o que deveria ser feito, em prazo hábil, se os números se distanciarem demasiadamente das metas estabelecidas. Avanços críveis na área fiscal permitem reduções nas taxas de juros.

O governo deverá demonstrar – na prática, não no discurso – que conseguirá realizar as receitas necessárias e que, ao mesmo tempo, controlará as pressões por expansão das despesas que surgem da sociedade e que certamente existem no âmbito do próprio governo.

Desde 2003, e passando pelas confiantes declarações de Lula na campanha de 2014, o mundo mudou. E também mudou o Brasil, que é hoje ainda mais complexo e difícil de governar. O período inicial deste governo que chega em breve a seu primeiro inverno mostra, por meio de derrotas recentes, que o Poder Executivo não tem (ainda?) uma base de sustentação consistente num Congresso cuja musculatura é hoje muito maior. Aumentou sua parcela de controle sobre a execução do Orçamento por meio de emendas parlamentares impositivas, cresceu seu poder político por meio de vultosos recursos para os fundos eleitoral e partidário. A entrevista do presidente Arthur Lira ao jornal O Globo em 8/5/2023 deixa claro que os tempos são outros.

Concluo com Raymond Aron, “a sociedade moderna precisa ser vista sem arroubos de indignação ou de entusiasmo”; e com Eduardo Giannetti, “a lâmina da serenidade precisa de dois gumes para eliminar excessos de otimismo e de pessimismo”. São as sábias lições que me vêm à mente nestes tempos difíceis.

Pedro S. Malan, o autor deste artigo, foi Ministro da Fazenda (Governo FHC). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 14.05.23

Governo Bolsonaro comprou 19 toneladas de bisteca nunca entregues para indígenas na Amazônia

Uma das firmas contratadas para fornecer a carne congelada tem como atividade principal venda de roupas. O sumiço das bistecas foi confirmado ao Estadão pelos indígenas que deveriam receber o produto e por um comerciante que deveria enviá-lo. A compra foi contestada até pela funcionária da Funai que assinou a compra. “Desperdício de dinheiro público”, diz ela. Contrato segue em vigor

Indígenas de diferentes regiões do País que participaram do Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasilia, relataram ao Estadão que entrega de cesta básica em aldeias não é frequente, apesar de gastos do governo. “Matis não comeu bisteca”, relatou um deles Foto: WILTON JUNIOR

O governo federal comprou 19 toneladas de bisteca para compor cestas básicas que deveriam ser enviadas ao Vale do Javari, no Alto Solimões (AM), mas a carne congelada nunca chegou às comunidades indígenas. Mesmo se o produto tivesse sido entregue, não haveria local de armazenamento e conservação para acomodar o alimento. Os contratos foram assinados no governo Bolsonaro entre 2020 e 2022 e seguem em vigor na atual gestão do petista Luiz Inácio Lula da Silva.

A bisteca seria dividida com os funcionários da Funai – agora Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Como os indígenas dizem que não receberam o alimento, se fossem comer tudo, os 32 servidores que se revezam por lá teriam um quilo de bisteca no prato por dia, o ano inteiro. Isso sem contar que a maioria passa a maior parte do tempo na floresta ao lado dos indígenas, bem longe da base da Funai.

O sumiço das bistecas foi confirmado ao Estadão pelos indígenas que deveriam receber o produto e por um comerciante que deveria enviá-lo. Até a funcionária da Funai que assinou o contrato de compra fala em desperdício de dinheiro público, mas alega que seguia ordens de seus superiores. “Nem tudo que constitui a cesta básica contempla uma alimentação específica desses indígenas. Era um desperdício, realmente, do dinheiro público”, admitiu Mislene Metchacuna Martins Mendes, atual diretora de administração e gestão da Funai. “Parte dos alimentos chegava sem condições para consumo, mas a ordem era entregar”, disse ela.

Procurados, os presidentes da Funai no governo Bolsonaro e no governo Lula não se manifestaram.

Nem tudo que constitui a cesta básica contempla uma alimentação específica desses indígenas. Era um desperdício, realmente, do dinheiro público.”

Mislene Metchacuna Martins Mendes, que assinou os contratos enquanto era coordenadora substituta do órgão no Vale do Javari.

As cestas que efetivamente chegaram para os 13.330 marubos, matises, kanamaris e korubos continham apenas produtos secos, como arroz, farinha e sabão. Os contratos no valor de R$ 568,5 mil foram assinados pela Funai, antiga Fundação Nacional do Índio, de 2020 a 2022, durante o mandato do então presidente Jair Bolsonaro. Parte deles continua em vigor no atual governo.

Bushe Matis, coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), relata que cestas básicas com carne não foram entregues em aldeias

Ao longo de um mês, o Estadão investigou 5,5 mil compras de alimentos para terras indígenas em todo o País e constatou que, a pretexto da pandemia de covid-19, metade foi feita sem licitação. O dinheiro gasto chegou a empresas recém-criadas e não houve comprovação de entrega de lotes de cestas básicas completas.

A reportagem conversou com lideranças e famílias tanto do Javari quanto de outras etnias do País, que estiveram reunidas em Brasília no Acampamento Terra Livre, no mês passado. O relato foi sempre o mesmo: a entrega de cestas básicas não é algo comum nas aldeias.

O Vale do Javari, em especial, é uma das regiões mais isoladas do mundo. Do tamanho do Estado de Santa Catarina, o território indígena tem 8,5 milhões de hectares e é o segundo maior em extensão do País. A área concentra o maior número de povos de língua e tradições desconhecidas. Foi num dos rios que cortam a região que ocorreram os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, em junho do ano passado.

Após selecionar as empresas para fornecer a carne no Vale do Javari, o governo efetuou pagamentos que somaram R$ 13,4 mil para a compra de meia tonelada de bistecas. Duas empresas que ganharam as licitações ficam em Manaus (AM), a mais de 1 mil quilômetros das cidades que dão acesso ao território indígena.

A principal organização indígena do Vale do Javari questiona o paradeiro das bistecas. “Nós não recebemos alimentação. Fazer a aquisição e enviar para a aldeia não existe”, afirmou o coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Bushe Matis.

O indígena Walciley Duarte, que trabalhava em uma base da Funai desde o fim de 2021, corrobora que “a entrega de bistecas congeladas nunca aconteceu para os indígenas”. Em abril deste ano, ele foi nomeado como coordenador regional do órgão no Vale do Javari.

Matis não comeu bisteca.”

Duarte destacou que só na metade de 2022 o local recebeu um gerador de energia elétrica para armazenar produtos perecíveis. O governo Bolsonaro, porém, fez empenhos para a compra de bistecas congeladas e outros produtos resfriados antes disso. Ainda em dezembro de 2020, a Funai liberou recursos para comprar 285 quilos de bisteca bovina congelada para o Vale do Javari.

Carnes e roupas

Uma das empresas contratadas admite que a bisteca pode não ter chegado aos indígenas. A S B Freire, de Manaus, que tem a venda de roupas como principal atividade, está registrada em nome de Sigrid Beleza Freire. O marido de Sigrid, Jorge Rodrigues, é quem cuida dos contratos. Ele afirmou ao Estadão que não pode garantir que o produto chegou ao Javari. “Não sei dizer se ele entregava. Os indígenas não tinham onde armazenar alimento perecível”, afirmou.

“Ele” é o comerciante José Carlos Costa, dono da empresa “Irmãos Costa”, sediada em Benjamin Constant (AM), que também ganhou um lote da licitação das cestas básicas. Jorge Rodrigues conta que fez um acordo “por fora” com esse empresário para fornecer as bistecas.

O dono da “Irmãos Costa” é o único que atesta a entrega das bistecas. “Eles têm freezer, vão de barco, tem uma logística”, afirmou. O Estadão constatou, entretanto, que até o ano passado sequer havia congeladores no Javari.

Esse contrato específico com a S B Freire foi encerrado pela Funai pela não entrega das bistecas e outros alimentos previstos na cesta básica.

Não sei dizer se entregava. Eles (indígenas) não tinham onde armazenar alimento perecível.”

Jorge Rodrigues, representante da empresa de roupas que recebeu pela venda de bistecas congeladas para a Funai

Na última licitação, feita no ano passado, uma terceira empresa, a H A de Aguiar, foi selecionada pelo governo como fornecedora de bisteca porque ofereceu o menor preço, de R$ 29 o quilo. A quantidade de carne aumentou, porém, na assinatura do contrato, tornando a compra mais cara do que a estimada inicialmente. Dessa forma, o contrato pulou de R$ 175 mil para R$ 197,2 mil. É esse contrato que foi mantido pelo governo Lula, embora as entregas não tenham ocorrido ainda.

O empresário Humberto Abrão de Aguiar, dono do estabelecimento, disse estar pronto para efetuar todas as entregas neste ano, mas já fala em pedir ao governo Lula o reajuste dos valores para dar conta da distribuição das bistecas. “Se você souber o tanto de índio que tem”, argumentou Aguiar.

Dinheiro para compra de cestas básicas foi gasto pela antiga Fundação Nacional do Índio (Funai), hoje Fundação Nacional dos Povos Indigenas. Na foto, indígenas de diversas etnias durante o Acampamento Terra livre (ATL) em Brasília Foto: WILTON JUNIOR

Procurada pelo Estadão, a Funai – agora Fundação Nacional dos Povos Indígenas – não se pronunciou. A direção atual do órgão evitou até mesmo responder se irá analisar os contratos em vigor.

O ex-presidente da Funai no governo Bolsonaro, delegado Marcelo Xavier, que respondia pela instituição durante a assinatura dos contratos, também foi procurado, mas não se manifestou.

A servidora Mislene Metchacuna Martins Mendes, que assinou os contratos enquanto era coordenadora substituta do órgão no Vale do Javari, disse que o fez porque foi determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que a Funai entregasse cestas básicas a todos os povos indígenas na pandemia.

“Na ocasião, foi feito uma Informação técnica e enviada à Presidência da Funai, destacando as diferenças culturais e especificidades alimentares dos povos indígenas do Vale do Javari, mas nunca foi considerada. Então, a ordem da gestão anterior era que os servidores entregassem cestas básicas”, justificou.

Daniel Weterman para O Estado de S. Paulo, em 14.05.23

Presidencialismo de comercialização

A reciclagem do orçamento secreto para garantir apoio a projetos ruins em troca de gastos ruins expõe a hipocrisia de Lula e derruba os mitos do ‘grande articulador’ e da ‘frente ampla’

O presidente Lula da Silva liberou R$ 9 bilhões em emendas negociadas pelo antecessor, Jair Bolsonaro, a serem repassadas sem transparência e a conta-gotas, conforme o resultado das votações e a fidelidade dos parlamentares. Em outras palavras, trata-se da reciclagem do orçamento secreto.

O esquema consistiu na hipertrofia das emendas do relator do Orçamento (RP9). Originalmente uma parcela marginal de recursos para ajustes contábeis, a RP9 cresceu para R$ 19 bilhões, distribuídos a aliados sem critérios técnicos nem transparência.

É uma violência aos princípios da publicidade, da impessoalidade e da eficiência. Só quem vota com o governo é beneficiado e os municípios sem padrinho no Congresso são punidos. Além de distorcerem a competição eleitoral e a representação democrática, os recursos não só são mal distribuídos, como, repassados abaixo do radar, abrem margem à corrupção. Há muitos indícios de gastos superfaturados.

A ampliação, a imposição e a diversificação das emendas parlamentares cresceram exponencialmente nos governos Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro. Ambos iniciaram seus mandatos tentando impor seu voluntarismo ao Congresso. À medida que sua credibilidade derretia, as hostes clientelistas farejaram uma oportunidade de chantageá-los e o Orçamento foi loteado em troca de sustentação. As emendas individuais e de bancadas foram engordadas e tornaram-se impositivas. Mas essas ao menos são distribuídas com algum controle e equidade. Já as emendas de relator e as “transferências especiais” (ou “cheque em branco”), realizadas diretamente pelos parlamentares a seus currais eleitorais, são repassadas de maneira totalmente arbitrária e opaca.

Nas eleições, Lula disse que o orçamento secreto foi o “maior esquema de corrupção da história”. Numa tacada, sua reciclagem expõe a hipocrisia do chefão petista e deita por terra dois mitos sobre ele: o do “grande articulador” e o do líder da “frente ampla democrática”. Fosse um líder sincero e um articulador competente, Lula reconheceria que a margem de votos nada ampla que lhe deu a vitória sinaliza menos um endosso ao programa petista que o receio de um novo mandato de Bolsonaro. Tanto que os partidos de sua base eleitoral conquistaram pouco mais de 130 cadeiras na Câmara. Uma articulação republicana implicaria fazer concessões e negociar projetos com a maioria conservadora no Congresso, distribuindo condizentemente o poder.

Lula, porém, concentrou o núcleo do poder no PT, acreditando que garantiria a governabilidade mercadejando cargos de segundo escalão na Esplanada dos Ministérios. Mas justamente os poderes orçamentários acumulados pelo Parlamento tiraram poder dos ministérios, que hoje são uma desvalorizada moeda de troca. Longe de matizar seu voluntarismo ideológico e negociar conteúdos programáticos, Lula tenta enfiar goela abaixo do Congresso as ideias fixas e retrógradas do PT, revertendo decisões do Parlamento (como o Marco do Saneamento ou a privatização da Eletrobras) à base de decretos e ações judiciais. A retaliação veio a galope e o custo da governabilidade aumentou.

“O povo brasileiro vai escolher se quer orçamento feito pelo relator, distribuído pelos deputados e senadores, ou a volta do mensalão”, disse com assustadora franqueza, no ano passado, o presidente da Câmara, Arthur Lira. “São as duas maneiras de cooptar apoio no Congresso.” O povo não precisa fazer essas escolhas, pois ambas são inconstitucionais, como já determinou o Supremo. Já o governo, prisioneiro do voluntarismo de Lula e submetido à lógica desse presidencialismo de comercialização descrito por Lira, pode começar a trabalhar de verdade para construir uma base confiável, unida por propósitos políticos comuns, ou pode se deixar submeter a esse presidencialismo de comercialização, em que cada voto deve ser comprado com emendas parlamentares sem controle nem transparência. Aparentemente, Lula já fez sua escolha.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.05.23

"A esquerda deve oferecer uma visão positiva do patriotismo"

O pensador americano, Michael Sandel,  autor do aclamado ensaio 'The Tyranny of Merit', sustenta que os progressistas devem articular um senso de comunidade em torno de conceitos como assistência médica universal ou justiça fiscal

Michael Sandel, filósofo e professor da Harvard Law School, na sede do IE em Madri em 24 de abril. (Jaime Villanueva)

Há quase 30 anos, o professor de Harvard Michael J. Sandel (Minneapolis, 1953) arranhou a superfície dourada dos anos 1990 e, logo abaixo daquela camada de prosperidade e euforia que se seguiu ao fim da Guerra Fria, encontrou um burburinho de ansiedade . Ouviu lá embaixo uma rejeição incipiente ao projeto globalizador das elites. Um projeto que se impôs como inevitável e foi extraído, portanto, do debate cívico democrático. O professor coletou esse desconforto em Descontentamento democrático (1996), que logo se tornou um clássico com conotações premonitórias.

Hoje Sandel é a pessoa mais próxima de uma estrela do rock da filosofia. Suas palestras enchem o público e suas ideias sobre como resolver a incômoda coexistência entre capitalismo e democracia estão no centro do debate em que a social-democracia ocidental está imersa, de Joe Biden a Olaf Scholz, o chanceler alemão que não escondeu a influência que exerceu teve em seu projeto o livro de Sandel A Tirania do Mérito(Debate, 2020), em que desmonta a teoria da meritocracia pela ausência de igualdade de condições entre os cidadãos que a torna possível. Depois de abordar naquele volume aquela venenosa cultura do mérito, que semeou ressentimentos legítimos com consequências desastrosas nas classes trabalhadoras, Sandel agora retorna ao seu livro de 1996 para atualizá-lo após três décadas que explodiram aquele incipiente descontentamento democrático sobre o qual ele escreveu.

A entrevista é no arranha-céu de Madri da Universidade IE, onde foi convidado a oferecer aos sortudos alunos uma de suas palestras sobre justiça que se tornaram famosas. É uma experiência e tanto ver ao vivo como Sandel gera com os alunos o tipo de debate cívico apaixonado que ele exige para toda a sociedade. Antes, contemplando as vistas avassaladoras da cidade de um 29º andar, filósofo e jornalista relembram seu último encontro, no porão sem alma do Carpenter Center for Visual Arts que Le Corbusier construiu na Universidade de Harvard. Uma estranha entrevista três anos atrás, com dois metros de distanciamento social, com máscaras, numa realidade distópica que hoje parece distante, e que Sandel também consegue girar em sua história. A pandemia, a guerra, a luta contra a crise climática, tudo acaba se encaixando no discurso esclarecedor que Sandel vem tecendo sobre as causas da profunda decepção que pesa sobre a vida pública no Ocidente. Para sair daí, o pensador deixa duas mensagens incômodas para a esquerda confusa: uma, reconfigure a economia para torná-la suscetível ao controle democrático; e dois, abrace o patriotismo. Mas não o patriotismo que a direita populista construiu sobre muros e medo, mas outro que articula o sentimento de comunidade em torno de conceitos como saúde universal ou justiça fiscal.

PERGUNTA. O descontentamento democrático com o qual ele lidou há quase 30 anos era então um boato, ele escreve na nova edição do livro, e agora é um som alto e estridente. Tem acontecido?

RESPOSTA. Durante a década de 1990, havia confiança, mesmo com certa arrogância, por parte de políticos e economistas de que a versão americana do capitalismo democrático havia vencido. E que, consequentemente, as principais questões políticas já eram meras questões tecnocráticas. Adotou-se a versão neoliberal da globalização que incluía a terceirização de empregos para países de baixos salários, a desregulamentação do setor financeiro, tudo em nome de uma certa concepção de eficiência econômica. O que eles perderam foi o efeito que tal projeto teria sobre as comunidades trabalhadoras e as crescentes desigualdades de riqueza que ele produziria.

P. Você adverte que parte das pessoas que votaram em Trump , assim como em outras opções populistas de direita em outras partes do mundo, o fizeram porque concordaram com certas ideias xenófobas, mas outra parte do apoio se deve a reclamações legítimas construídas ao longo de quatro anos décadas de governos neoliberais. Como estão essas reclamações agora, quando podemos enfrentar um segundo turno de Trump contra Biden?

R. Essas queixas são basicamente as mesmas de quando Trump deixou o cargo, e é por isso que a maioria dos eleitores republicanos aceita a grande mentira de que a eleição foi roubada. Grande parte dos trabalhadores vê a esquerda mais alinhada com os valores e interesses das classes profissionais bem-educadas do que com os da classe média e dos trabalhadores. Essas foram as queixas às quais Trump apelou. E persistem, infelizmente, porque o lado progressista ainda não encontrou uma resposta alternativa para essas reclamações. O populismo de direita é historicamente um sintoma do fracasso da política progressista.

P. Mas vimos políticas progressistas claras da Casa Branca nestes dois anos.

R. Você tem que dar crédito a Biden. Seu governo fez mais do que qualquer um esperava para começar a romper com a versão neoliberal da globalização. Por exemplo, não promoveu acordos de livre comércio. O primeiro candidato democrata em 36 anos sem um diploma de uma universidade da Ivy League, ele era menos apegado à fé meritocrática do que seus predecessores. E ele é um pouco mais cético em relação aos economistas que aconselharam governos democratas e republicanos anteriores.

P. Por que a direita populista continua se conectando mais com a classe trabalhadora?

R. Em parte, a resposta é que a política não trata apenas de questões redistributivas. Também está ligado ao patriotismo. As pessoas precisam de um forte senso de identidade e comunidade. E a esquerda falhou em oferecer sua própria versão positiva de patriotismo como alternativa ao hipernacionalismo estreito, fanático e xenófobo oferecido pela direita populista. Já na primeira edição do Descontentamento DemocráticoExpressei minha preocupação com o fato de as pessoas sentirem que o tecido moral da comunidade está se desfazendo ao seu redor, nas famílias e nos bairros, mas também em nível nacional. A globalização, ou pelo menos a globalização liderada pelo mercado, ignorou o significado de comunidade nacional. E isso é algo que os progressistas ainda não souberam abordar. Para a direita, para Trump, a fronteira e a imigração são uma forma de apelar a esse desejo de identidade nacional. A esquerda quer outra abordagem para a imigração. Mas precisa oferecer uma ideia alternativa do que nos mantém unidos como país, como comunidade, como nação.

P. Os defensores da globalização, você explica em seu livro, desprezavam o patriotismo como algo quase atávico. Por isso foi um patriotismo tóxico, como o de Trump ou o do Brexit, que prevaleceu. Como construir essa outra versão saudável de patriotismo que você defende?

R.Podemos começar perguntando o que devemos uns aos outros como concidadãos. E isso entra em debates como o da saúde pública. O debate sobre a saúde universal, na melhor das hipóteses, é um debate sobre obrigações mútuas entre os cidadãos. Se você reparar, a reforma da saúde de Obama foi defendida principalmente com argumentos tecnocratas: que era mais eficiente e assim por diante. Mas o sentimento subjacente de comunidade nacional ainda não foi articulado. É um debate moral e cívico, não de eficácia tecnocrática. E isso é apenas um exemplo. Também é uma questão da comunidade nacional decidir se as empresas podem se mudar para outros territórios para pagar menos impostos. Isso também pode ser enquadrado como uma questão de chauvinismo econômico. Evite alíquotas de impostos em um país transferindo as operações para outro país com alíquotas mais baixas. Isso não é apenas uma falha. É um problema de patriotismo.

P. A esquerda tem medo de falar sobre patriotismo?

R. Sim. Por causa desse medo, quase dessa alergia, o monopólio do patriotismo como argumento político foi dado à direita. Grande erro, a direita explorou muito bem.

P. Quando conversamos pela última vez, quase três anos atrás, eu esperava que a pandemia ajudasse a tornar as desigualdades visíveis. Mostrou até que ponto dependemos de trabalhadores que, na lógica meritocrática, tínhamos menosprezado. Até começamos a chamá-los de “trabalhadores essenciais”. Você viu sinais de uma mudança na forma como valorizamos a dignidade do trabalho. Tem sido assim?

R. Temo que o tempo tenha passado sem uma reflexão séria sobre os trabalhadores essenciais, sobre como alinhar seu reconhecimento e pagamento com a importância de sua contribuição.

P. Outra coisa que a pandemia mostrou é a importância do Estado e da política. Isso também foi esquecido?

R. Não creio que tenhamos esquecido a importância do Estado. As limitações fiscais características da era da austeridade em muitos países foram rejeitadas. Os governos realizaram estímulos fiscais em larga escala e itens de gastos que seriam inconcebíveis nos anos após o crash de 2008. Outra coisa é o papel da política. A era da globalização nos ensinou que não há alternativa senão a fé no mercado. Eles insistiram que a versão neoliberal da globalização é como um fenômeno climático. Não é algo sujeito ao controle humano e, portanto, não deve ser aberto ao debate democrático. Mas a crise financeira e as crescentes desigualdades foram produto de decisões políticas deliberadas que poderiam ter sido diferentes. Olhando para trás, é o espaço da política que foi eliminado.

P. Enfrentamos agora o grande desafio que, como sociedade, devemos pensar juntos: a transição verde, a luta contra a crise climática . Como fazer isso sem repetir erros, sem aumentar novamente a distância entre vencedores e perdedores?

R.A forma como lidamos com as alterações climáticas será o teste mais importante daquilo de que falamos, no âmbito de um verdadeiro debate político. Há uma tendência de encarar a mudança climática como um problema tecnocrático, de acertar o alvo com incentivos econômicos, mecanismos de mercado. Mas é mais do que um problema tecnológico e econômico. Fundamentalmente, é uma questão política. Precisamos de uma política climática de baixo para cima, não de projetos abstratos ou soluções tecnocráticas. Você precisa começar conversando com as pessoas, especialmente em comunidades onde vidas e empregos dependem de combustíveis fósseis. Isso exigirá liderança política e ativismo. A razão para a resistência a políticas que levariam a uma economia verde é que existe um profundo ceticismo por parte dos trabalhadores. Milhares de empregos foram perdidos em vastas áreas industriais em nome da globalização econômica. Foi-lhes dito: haverá perdedores, sim, mas os ganhos dos vencedores compensarão as perdas dos perdedores. Isso funcionou em teoria. Mas a compensação nunca aconteceu. Agora eles vão se perguntar se o mesmo não vai acontecer com eles. E é uma questão legítima.

P. Em uma conversa com Yuval Noah Harari, você disse que o debate sobre a mudança climática não é sobre conhecer os fatos, que não é sobre educação.

R. Costuma-se dizer que a razão da oposição à transição verde é que essas pessoas não sabem o suficiente sobre ciência. O que devemos ensinar a eles? E quando tentamos fazer isso, ficamos frustrados porque eles não sabem o suficiente para adotar nossas políticas. Mas é que não se trata de ciência e não se trata de educação. Isso não é uma palestra sobre os perigos do aquecimento global. É sobre confiança, fundamentalmente. É uma questão política e, como tal, requer um tipo genuíno de engajamento e discussão cívica de base.

P. Na Espanha, estamos em ano eleitoral, como os políticos poderiam encontrar o caminho dialético intermediário entre a tecnocracia e o grito?

R. Políticos e partidos devem ampliar os termos da conversa política para incluir questões como as que estamos discutindo. Mas não é realista esperar que eles façam isso por conta própria. Temos que entender que o tipo mais amplo de conversa pública só pode vir de dentro da sociedade civil.

P. As redes sociais são um fórum adequado para essa conversa?

R. Precisamos desafiar a forma como a mídia social funciona. Precisamos criar plataformas para conversas públicas que não aceitem simplesmente o modelo de negócios baseado em anúncios das empresas de tecnologia. Um modelo de negócios que depende da mercantilização do cuidado, de manter as pessoas por perto o maior tempo possível para que possam coletar cada vez mais dados pessoais para vender-lhes coisas que reforcem esse ciclo de consumismo, que é a antítese do tipo de conversa pública de que precisamos. É urgente cultivar a arte perdida da conversa pública democrática.

P. Se a social-democracia, com líderes como Biden ou Scholz, está encontrando um discurso econômico que olha novamente para a classe trabalhadora, onde estão as diferenças entre a centro-esquerda e a esquerda mais radical agora?

R. Acho que a relação entre os partidos de centro-esquerda e os de esquerda mais populista está agora em processo de redefinição.

P. Onde eles devem começar?

R. A combinação mais poderosa para rejuvenescer a centro-esquerda é conectar os valores ostensivamente conservadores de patriotismo e identidade compartilhada com um projeto criativo de reconfiguração da economia para torná-la passível de controle democrático, algo tradicionalmente associado à esquerda populista. Noções poderosas de comunidade, que parecem beber do pensamento conservador, e um poder econômico controlado pelos cidadãos. Conectar essas duas ideias é o projeto futuro da política progressista.

P. A guerra na Ucrânia foi deixada de fora das páginas de seu livro nesta resenha. Uma guerra na Europa hoje , como isso se encaixa no seu pensamento?

R. Acho que a guerra na Ucrânia é o exemplo mais dramático do absurdo da globalização neoliberal. Que os laços comerciais tornariam a guerra obsoleta era uma ideia central do globalismo liberal. Embora remonte a Montesquieu, que falava de doux commerce. Quanto mais as nações comercializam umas com as outras, menos provável é que lutem umas contra as outras, porque os laços comerciais lhes darão interesse na paz. Ouvimos isso repetidas vezes na década de 1990 e no início dos anos 2000 como um argumento para admitir a China na OMC, por exemplo, e certamente na Alemanha por desenvolver uma dependência energética da Rússia. Bem, é evidente que este não foi o caso. A Ucrânia tem sido um lembrete de que a política e as fronteiras nacionais não vão desaparecer. Devemos desenvolver padrões de negociação com alguma noção de quem são os parceiros confiáveis, não apenas movidos pela busca de uma suposta eficiência. Essa é outra ideia que acho que a guerra ucraniana trouxe: a ideia de que a economia não é autônoma. Não é um fato da natureza.

Pablo Guimon, o autor deste artigo, é o editor-chefe da seção Society do jornal global EL PAÍS.  Foi correspondente em Washington e Londres, lugares onde cobriu os últimos anos da presidência de Trump, assim como o referendo e o choque do Brexit. Antes disso, foi responsável pela secção de Madrid do El País Semanal, e foi chefe da secção de Cultura e do suplemento Tentaciones.Publicado originalmente em 14.05.23.

sábado, 13 de maio de 2023

Lula está atrapalhando o governo

Em menos de cinco meses no cargo, o petista destratou o agronegócio, desrespeitou o BC e desmoralizou decisões do Congresso. Assim fica mais difícil arranjar apoio ao governo

É ocioso esperar que o sr. Lula da Silva desça do palanque e, enfim, saia do “modo eleição” e entre em “modo governo”, vale dizer, que fale e aja com um tanto mais de responsabilidade. Se isso acontecesse, estar-se-ia diante de um fenômeno tão espantoso como o nascer do Sol a oeste. Mas o presidente da República poderia ao menos tentar conter a sua natureza de eterno candidato e se comportar como o chefe de Estado e de governo que carrega sobre os ombros o peso de conduzir um país com 215 milhões de habitantes e problemas extremamente complexos a serem resolvidos. Se não por vontade genuína, por interesse político. Lula precisa conquistar apoios na sociedade e articular uma base congressual sólida que hoje, definitivamente, ele não tem.

Boquirroto, desagregador e por vezes arrogante, Lula tem se comportado como se tivesse vencido a eleição por uma margem confortável de votos. Não que o placar final do pleito importe para sua legitimidade no cargo – afinal, ganhar por diferença de um voto ou de 10 milhões de votos é rigorosamente a mesma coisa. A questão é que Lula é incapaz de compreender que, para governar bem o Brasil, precisa, necessariamente, conquistar o apoio de parcela significativa da sociedade que não faz parte do seu cercadinho ideológico e que só votou no petista para evitar a tragédia que seria a reeleição de Jair Bolsonaro.

O presidente, no entanto, tem agido no sentido de repelir os cidadãos que não se ajoelham no altar da seita que ele lidera, não de atraí-los para um esforço nacional de construção de um discurso de pacificação e de um plano de governo mais moderado e responsável, que seja capaz de recolocar o País nos trilhos do crescimento sustentável e, assim, melhorar as condições de vida da população, sobretudo dos brasileiros que dependem diretamente da ação do Estado para ter uma vida digna.

Num único dia, a quinta-feira passada, a matraca de Lula atacou as privatizações, classificando como “sacanagem” a privatização da Eletrobras, e o agronegócio, chamando de “fascistas” os produtores rurais que não lhe nutrem simpatia. Não são expressões dignas de um presidente da República. Os sabujos petistas podem argumentar que o antecessor de Lula, Jair Bolsonaro, fazia muito pior. Mas, ora vejam, onde está o Lula que, na campanha eleitoral, se apresentou como a antítese da truculência bolsonarista, na tal “frente ampla pela democracia”?

A natureza, já se vê, é implacável. Lula não sabe, e a esta altura não vai aprender mais, como se comportar fora do palanque e longe dos comícios. Tudo o que faz, cada palavra raivosa que pronuncia, tem propósitos eleitoreiros. Na sua eterna disputa por votos, trata como inimigos todos os que ousam não ser vassalos de seu projeto de poder. Nessa conta entram desde os congressistas que aprovaram matérias que Lula despreza até o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, que faz valer a autonomia do BC, prevista em lei, para resistir às estocadas petistas contra a prudente política monetária.

Com esse tipo de atitude leviana, Lula se torna o principal responsável pelas agruras por que tem passado o governo nesses meses iniciais. Até o momento, o presidente parece empenhado em fazer um balanço reverso, elencar tudo o que foi feito no País enquanto o PT não esteve no governo e simplesmente destruir. Assim é com a privatização da Eletrobras, com a autonomia do BC, com a Lei das Estatais e até, pasme o leitor, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, sob risco de virar letra morta se o projeto de arcabouço fiscal do governo for aprovado tal como foi apresentado.

Não será animado pelo espírito de revanche que Lula fará deste o “mandato da sua vida”, como não se cansa de dizer. Se quiser arregimentar apoio de quem não reza pela cartilha carcomida do lulopetismo, Lula faria muito bem se falasse menos. Para um país cansado de tanta parolagem irresponsável, que nada produz além de barulho e divisão, seria um alívio.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 13.05.23

Zelensky se encontra em Roma com o Papa, Mattarella e Meloni

O encontro com o Pontífice busca revigorar o plano de paz que o Vaticano vem tentando ativar entre a Rússia e a Ucrânia há algum tempo

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelenski, cumprimenta a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, neste sábado, no Palácio Chigi, em Roma. (Alberto Pizzoli, AFP)

O presidente da Ucrânia, Volodímir Zelenski , desembarcou em Roma nesta manhã, primeira parada de uma pequena turnê europeia que o levará à Bélgica no domingo. O líder ucraniano reuniu-se pelas 12h00 com o Presidente da República, Sergio Mattarella. "É uma visita importante para a nossa vitória", afirmou assim que chegou à capital italiana. Uma afirmação que contrasta com a ideia que ele planeja no contexto daquele que seria seu terceiro encontro do dia no Vaticano com o Papa Francisco. A Santa Sé, disse o próprio Pontífice, há meses trabalha em uma missão de paz para chegar a um acordo que ponha fim à escalada de violência. O problema, segundo o ministro das Relações Exteriores do Vaticano, Paul Gallagher, é que ainda não parece ter chegado a hora.

Zelenski, em seu habitual traje verde militar, foi recebido no aeroporto de Ciampino pelo vice-presidente do governo e ministro das Relações Exteriores, Antonio Tajani . Foi então conduzido ao hotel onde está alojado (Parque des Princes) e posteriormente transferido para o Palácio do Quirinal, onde foi recebido por Mattarella e cantou o hino nacional ucraniano com a mão no peito. O chefe de Estado italiano sempre foi um atlantista convicto, um ferrenho defensor da posição da Ucrânia neste conflito e da necessidade de prestar apoio através da força militar da NATO. “É uma honra recebê-lo em Roma. Eu pedi para poder encontrá-lo novamente após nosso colóquio anos atrás nesta condição diferente. Estamos totalmente ao seu lado."

Após o encontro com Mattarella, Zelenski se reunirá com a primeira-ministra Giorgia Meloni. É a segunda vez que os dois dirigentes se encontram - a primeira foi em Kiev - e têm a oportunidade de mostrar a sua plena sintonia. Meloni, aliás, é hoje um dos maiores defensores do envio de armas à Ucrânia para promover a vitória contra a Rússia. Ou, pelo menos, como ele sempre aponta, para permitir que ocorra uma negociação em condições de igualdade.

No final da aparição conjunta de Meloni e Zelenski, o líder ucraniano deveria se encontrar com o Papa Francisco no Vaticano. O encontro ocorre em meio à missão de paz do Vaticano para a Ucrânia, anunciada pelo pontífice no voo de volta de sua recente viagem à Hungria, e cujos detalhes ainda não são conhecidos, embora uma fonte do Vaticano tenha dito à mídia russa que o encontro "não está diretamente relacionado" a ela e que Zelensky solicitou o encontro com Francisco "há apenas alguns dias".

Será a primeira entre os dois desde o início da guerra, embora já se conheçam porque Francisco recebeu Zelensky em audiência no dia 8 de fevereiro de 2020 e já naquela ocasião falaram sobre "a situação humanitária e a busca pela paz" no contexto do conflito que, desde 2014, continua a assolar a Ucrânia.

A capital italiana está blindada, com mil agentes mobilizados, uma zona de exclusão aérea e várias equipes de atiradores localizadas nas áreas por onde Zelenski passará. O impressionante aparato de segurança, que inclui rígidos controles nas estações de trem e aeroportos da capital, inclui unidades antiterror, cães farejadores e esquadrões antibomba. "E também serão feitos controles subterrâneos, com vistorias nas redes de esgoto", informou a sede da Polícia.

Daniel Verdu, o autor deste artigo, é jornalista. Nasceu em Barcelona em 1980. Aprendeu seu ofício na seção Local Madrid de El País. Passou pelas áreas de Cultura e Reportagem, de onde também foi enviado para vários ataques islâmicos na França ou para Fukushima. Hoje é correspondente em Roma e no Vaticano. Toda segunda-feira ele assina uma coluna sobre os ritos do 'calcio'. Publicado originalmente no EL PAÍS,em 13.05.23

O terremoto político chileno, um alarme para o Brasil de Lula

Em um país ainda dominado pelo atraso cultural, pelo racismo que se recusa a morrer e pela miséria, o perigo de reproduzir a dinâmica chilena tornou-se real.

O presidente do Chile, Gabriel Boric, no dia 1º de janeiro durante a posse de Lula em Brasília. (Ricardo Moraes - Reuters)

O Brasil de Lula recebeu com preocupação a notícia de que no Chile a extrema direita se tornou a força dirigente do país, o que Rocío Montes descreveu neste jornal como um “terremoto político”. Isso significa que a nova Constituição, que deveria suplantar a de Augusto Pinochet, será dominada pelas forças de direita, destruindo as ilusões da esquerda progressista.

O mundo político do Brasil que pretende derrotar, com a volta de Lula ao poder, o desastroso golpe de extrema direita de Bolsonaro vai ter que se olhar no espelho da surpresa chilena para não cair nos mesmos erros. A possibilidade de o Lula ressuscitado, uma espécie de Sansão bíblico para derrotar o Golias da direita, cair nos erros da esquerda chilena não é apenas uma quimera. É um medo legítimo que começa a se incrustar na ainda turbulenta política pós-bolsonarista.

Os primeiros sintomas começaram a aparecer dias atrás, quando Lula se dedicou de corpo e alma à política externa, viajando nos primeiros 120 dias de mandato para 11 países, entre eles Argentina, Estados Unidos, China, Egito, Emirados Árabes, Portugal , Espanha, Inglaterra, além de quem já tem programa para visitar. E é que enquanto Lula se exibia como um líder mundial, capaz até de acabar com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia , no Congresso, onde se acumula a verdadeira política local, seu governo ainda não conseguiu aprovar um único projeto de lei.

A grande preocupação das forças progressistas de um país gravemente ferido em seus valores democráticos até ontem, ainda atordoado por políticas extremistas e neofascistas no mandato anterior, é que o novo governo, considerado de centro-esquerda, não consiga tornar-se protagonista de um Congresso no qual o bolsonarismo conseguiu se enraizar e até dominá-lo.

Enquanto Lula é aplaudido no exterior, onde ainda mantém o prestígio que seus dois governos anteriores lhe deram, no Brasil começam a se temer que suas excursões planetárias deixem espaço para que o Congresso, onde se joga a verdadeira política, reforce um direito ala que cresceu e se animou com Bolsonaro. Uma direita não golpista, mas que começa a se tornar um muro que impede o novo Executivo de implementar sua nova política de abertura democrática e reformas de fundo.

Não é mais uma questão da presença ou não de Bolsonaro. É a direita e a extrema-direita propriamente dita que fazem o partido num Congresso que se apresenta como um muro difícil de derrubar pelo novo governo reformista.

Tão encorajados estão os timoneiros do Parlamento e do Senado que até agora não permitiram que o novo Gabinete aprovasse uma única de suas reformas. E já se fala em mais um passo, vislumbrando uma possível mudança de regime, dando vida a um verdadeiro parlamentarismo com um primeiro-ministro. E tudo isso dominado pelos três grandes grupos de pressão dentro do Congresso, como os evangélicos, o grupo das armas e o grupo dos fazendeiros, que nos quatro anos de gestão extremista de Bolsonaro não só cresceram como se fortaleceram politicamente. São eles que começam a distribuir as cartas da nova política.

Lula vai ter que entender que o Brasil de hoje, principalmente do pós-bolsonarismo, que não saiu embora seu líder esteja sob a lupa da justiça, é muito diferente daquele que presidiu nos últimos oito anos e fez parte dos governos de sua colega de partido, Dilma Rousseff.

É verdade que Lula teve a intuição desta vez de concorrer às eleições apoiado não apenas por seu partido, o PT, cercado por forças do centro e até da direita moderada, que foi o que lhe deu a vitória, ainda que estreita. A receita deu certo e ele conseguiu arrastar às urnas a seu favor muitos que não queriam voltar a votar em Bolsonaro, mas também não queriam votar na esquerda de Lula.

E nesse jogo de balanças políticas, que foi uma novidade para o Brasil, principalmente depois do desaparecimento da social-democracia, do PSDB, que durante anos foi a balança contra a extrema direita.

O perigo que ameaça o Brasil hoje, que pode ser espelhado na surpresa chilena, é que a extrema direita, já despojada das estridências vulgares do bolsonarismo, pode estar mais inserida no Congresso do que o próprio Lula pensava.

E aí está a grande incógnita: até que ponto a direita não golpista, eu diria menos deselegante, machista e até o nazismo de Bolsonaro, já tem assento no Parlamento e nos governos regionais e locais. Uma direita sem os resquícios extravagantes do incapaz e histriônico Bolsonaro, amigo íntimo de Trump, mas disposta a não deixar espaço para o retorno de uma esquerda que chamam de comunista.

Num Brasil ainda dominado pelo atraso cultural, pelo racismo que se recusa a morrer, por milhões de pessoas ainda pobres e semi-analfabetas, que pouco se comovem com os gritos de democracia e os valores da modernidade e que preferem dar ouvidos aos slogan ambíguo da extrema direita de Deus, Pátria e Família como escudo e defesa, o perigo de imitar o Chile tornou-se real.

Que o Lula continue viajando. É importante que o mundo sinta com as mãos que o Brasil do atraso e das tentações dos golpes militares morreu nas urnas. Mas não se esqueça, ao mesmo tempo, que os demônios do atraso e da direita política e moral ressuscitados pelo bolsonarismo vulgar ainda não foram enterrados. Fique vivo como um lobo em pele de cordeiro.

Juan Arias, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 09.05.23

Ministério Público peruano pede 35 anos de prisão para ex-presidente Pedro Pablo Kuczynski pelo 'caso Odebrecht'

Economista é acusado de lavagem de dinheiro e de formar esquema corrupto para arrecadar 12 milhões de dólares da construtora brasileira

O ex-presidente peruano Pedro Pablo Kuczynski, no momento de sua prisão em 2019. (Luka Gonzales - AFP)

Em um país como o Peru, onde a maioria dos dirigentes tem o fatídico destino de acabar atrás das grades, na época Pedro Pablo Kuczynski tentou usar seu histórico de trabalho como garantia de sua honra. “Eles destruíram a reputação de um homem que trabalhou por 60 anos (...) ser emitido contra ele. O economista tinha pedido demissão da Presidência da República há um ano, mas estava sob investigação desde 2017 pelo suposto crime de lavagem de dinheiro em prejuízo do Estado. Segundo a tese tributária, o PPK, como é coloquialmente conhecido, favoreceu a construtora brasileira Odebrechte às suas empresas associadas à concessão de diversas obras em troca de propinas milionárias que arrecadou através de serviços de consultoria e assessoria, quando foi ministro da Economia e Finanças durante o mandato de Alejandro Toledo entre 2001 e 2006 .

Por fim, PPK foi colocado em prisão domiciliar, medida que cumpriu até julho de 2022, quando o Judiciário a modificou por aparência com restrições. Em todos esses anos, à medida que o caso avançava, PPK ganhou as manchetes por seu estado de saúde. Em 2019, um marca-passo foi colocado por insuficiência cardíaca. No ano seguinte foi transferido para uma clínica de sinusite crônica e em 2022 foi internado por pneumonia. Na ocasião, sua filha, Alexandra Kuczynski, implorou à justiça peruana pela humanidade, alegando que um enfermo, com mais de 80 anos, não poderia fugir. “Ele não será capaz de sobreviver a uma prisão. Seria uma sentença de morte", afirmou.

A Promotoria da Equipe Especial no caso Lava Jato no Peru pediu nesta sexta-feira a pena de 35 anos de prisão para o ex-líder do grupo político Peruanos Por el Kambio por lavagem de dinheiro com a agravante de ter formado uma suposta organização criminosa que teria recebido mais de 12 milhões de dólares da Odebrecht. O empresário chileno e sócio do PPK Gerardo Sepúlveda também foi incluído na acusação fiscal, para quem também se pede 35 anos. Para a secretária e braço direito do PPK, Gloria Kisic, foi pedida 23 anos, enquanto para seu motorista José Luis Bernaola, 11 anos e seis meses.

Julio Midolo, advogado do economista que governou o Peru entre 2016 e o ​​primeiro trimestre de 2018, afirmou que seu cliente recebeu a notícia com tranquilidade e que tem certeza de que se sairá bem. “O Sr. Pedro Pablo Kuczynski está ciente da informação. Ele está bastante calmo e confia que vamos provar sua total inocência ao final de tudo isso. A linha de defesa é a mesma que propusemos desde o início (…) Eles não têm nenhuma prova que determine lavagem de dinheiro”, indicou Midolo.

Jorge Barata, ex-diretor da Odebrecht, afirmou ter contribuído com dinheiro para a campanha presidencial do PPK em 2011. Fato que o ex-presidente negou reiteradamente. Por outro lado, em 2021 foi denunciado constitucionalmente por ter indultado o ex-presidente Alberto Fujimor i em 2017 , mas o processo foi arquivado. A última coisa que se sabia sobre o PPK foi em fevereiro passado, quando ele se pronunciou sobre os protestos enfrentados pelo atual governo. "Todo esse caos destruiu a maioria dos partidos políticos no Peru (...) deve haver uma explicação para que apareçamos como um país civilizado, não um país de massacres", disse novamente sem perder a honra.

Renzo Gomes Vega, o autor deste artigo, é Jornalista e escritor. Escreveu para os meios de comunicação peruanos 'El Comercio', 'La República', o semanário 'Hildebrandt en sus Trece' e 'Salud con Lupa'. Fundador da revista digital 'Sudor'. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 13.05.23

Guerreiro Ramos, pioneiro nos estudos do racismo no Brasil

Novo livro reúne textos inéditos de sociólogo negro. Pensador que teve trajetória marcada pelo Golpe de 1964 defendia a necessidade de descolonizar o conhecimento e, assim, também as relações étnico-raciais no Brasil.

Não foram poucas as controvérsias protagonizadas, em vida, pelo sociólogo e político Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), no âmbito das discussões étnicas no país. Negro, ele chegou a ser chamado de "preto racista" e comumente era visto como alguém que debochava do tema; em relatório produzido pelo regime militar, ao qual ele teve acesso em 1965, foi definido como "mulato metido a sociólogo". 

Lançamento da editora Zahar, o livro Negro Sou ajuda a compreender a importância de sua visão para o entendimento da questão racial no Brasil. Trata-se de uma seleção de textos sobre a temática, escritos entre 1949 e 1973, muitos deles inéditos em livro, que abordam o assunto. De forma pioneira — mas que, aos olhos de hoje, podem soar racistas. Principalmente por conta de uma ideia presente de que o Brasil vivia uma democracia racial.

"Negro Sou" reúne textos escritos entre 1949 e 1973

"[Esses textos] têm de ser entendidos dentro do jogo político do Guerreiro”, explica à DW Brasil o historiador e sociólogo Muryatan Santana Barbosa, professor na Universidade Federal do ABC e organizador do livro recém-lançado. "O que se pretendia era construir um pacto da democracia racial que enfrentasse o racismo realmente existente."

Conforme explana Barbosa na própria introdução do livro, primeiramente é preciso interpretar essa visão de "democracia racial” sem anacronismos. Naquele contexto, em que havia segregação racial explícita nos Estados Unidos, apartheid na África do Sul e outros exemplos do tipo pelo mundo, o racismo existente no Brasil era entendido como algo menos rígido. "Ou seja, apesar de haver discriminação e preconceito, a visão é de que no Brasil não haveria ódios raciais. Guerreiro deve ser entendido nesse contexto", escreve o historiador.

Racismo estrutural

O outro aspecto é que um dos pilares da teoria sociológica de Guerreiro Ramos, em sua proposta de criar um projeto nacional, era a necessidade de descolonizar o conhecimento e, assim, também as relações étnico-raciais no Brasil. Nesse sentido, como aponta Santana no texto que consta do livro, Ramos foi pioneiro "na percepção de que o ‘problema racial' seria parte da reprodução de uma lógica colonial no país […] tanto em relação ao negro quanto em relação ao branco".

Atualizando para a visão e a terminologia contemporâneas, ele foi o precursor daquilo que hoje se entende como "racismo estrutural”. "Nesse sentido, negros, brancos e ‘brancoides', no Brasil, eram todos vítimas da condição colonial que por aqui se instalou", comenta à DW Brasil o sociólogo e engenheiro Ariston Azevêdo, autor do projeto de extensão Vida e Obra do Sociólogo Alberto Guerreiro Ramos e professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Ele explica que, na teoria de Ramos, o negro acabou marginalizado na sociedade brasileira por conta, de um lado, da "mentalidade colonial” e, de outro, "o modo subserviente […] como o Brasil se integra ao mundo moderno eurocêntrico”. "Assim, para compreensão da sociedade brasileira, haveríamos de partir dessas características, pois elas nos foram estruturantes”, diz ele.

Ramos defendia que a condição do negro só melhoraria se o Brasil saneasse a situação colonial, alterando a própria estrutura social. "A principal contribuição de Guerreiro Ramos para essa questão está nessa vinculação direta entre nossa situação colonial e o problema de relações raciais que aqui instituímos desde séculos. Nesse sentido, ele foi, de fato, pioneiro", argumenta Azevêdo.

"Poderíamos, sim, entendê-lo como um precursor dessa problemática do racismo estrutural", afirma Santana. "Depende do que entendemos por racismo estrutural, qual estrutura do racismo de que estamos falando."

"Guerreiro Ramos foi bastante pioneiro na interpretação do racismo como uma consequência da relação que se estabeleceu e entre povos conquistadores e conquistados", enfatiza o pesquisador.

Cassado pela ditadura

Nascido em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, Alberto Guerreiro Ramos graduou-se em ciências pela antiga Faculdade Nacional de Filosofia, do Rio de Janeiro, em 1942. No ano seguinte, bacharelou-se em Direito, também no Rio. Como professor, atuou no Instituto Superior de Estudos Brasileiros e nos cursos promovidos pelo Departamento Administrativo do Serviço Público.

"Ele pertenceu à primeira geração de sociólogos do Brasil", comenta em vídeo divulgado no YouTube da Universidade Federal de São Carlos o sociólogo Alan Caldas, cuja tese de doutorado, defendida na instituição, foi sobre a obra de Ramos. "Como homem negro vivendo no pós-abolição, sua vida foi uma espécie de improviso jazzístico: foi poeta, ensaísta, crítico literário, servidor público, assessor do presidente Getúlio Vargas, intelectual orgânico de um dos principais movimentos negros do Brasil, o Teatro Experimental do Negro. […] Foi ensaísta e articulista político e também deputado federal."

Para os especialistas em sua obra, a carreira de Ramos como um pensador influente no Brasil acabou interrompida pelo golpe militar de 1964. Da primeira leva de políticos cassados pelo regime ditatorial, ele acabou se radicando nos Estados Unidos, onde lecionou na University of Southern California.

E aí, o seu projeto sociológico ficou em segundo plano, frente àquele que era principalmente desenvolvido pelos intelectuais da Universidade de São Paulo. "Quando ele retornou ao Brasil, no início dos anos 1980, tudo havia mudado. O protagonismo da sociologia e ciência política praticados no Rio de Janeiro foi obliterado totalmente pela sociologia e ciência política da USP”, pontua Azevêdo. "Aliás, é bom lembrar que, desde o início dos anos 1950, Guerreiro Ramos sempre se posicionou contra a sociologia acadêmica da USP, em especial àquela protagonizada por Florestan Fernandes."

Para Ramos, era uma questão que opunha os produtores de uma legítima sociologia brasileiro aos, em sua visão, consumidores de uma sociologia estrangeira enlatada.

Para Azevêdo, isso foi um dos pontos que fez de Guerreiro Ramos um sociólogo esquecido - vítima de um "proposital esquecimento", em suas palavras. Além de sua "conexão a uma tradição de homens de ação, pensadores não vinculados a instituições universitárias".

"Em minha opinião, o esquecimento de Guerreiro Ramos se deve mais ao projeto de nação e de ciências sociais que ele abraçou do que à cor de sua pele”, acrescenta Azevêdo. "Obviamente que sua negritude incomodava a brancos e a ‘brancos' entre aspas, afinal somos um país racista. Por diversas vezes sofreu enxovalhos públicos de seus desafetos. Mas, ao fim e ao cabo, eram suas ideias e suas posições políticas que causavam mais incômodos, tanto à direita quanto à esquerda."

Santana ressalta que outro motivo para esse esquecimento foi o fato de que Ramos "foi um defensor de um nacionalismo brasileiro, um projeto nacional brasileiro, e isso fico ufora de moda por um tempo". "O fato de ele ser negro pode ter alguma importância, mas acho que é uma questão menor”, argumenta. "Ele era um autor bastante polêmico e isso trouxe animosidades também à sua época, e pode ter insuflado um racismo contra ele, mesmo que velado."

Edison Veiga, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 13.05.23 

(NR: o editor deste blog conheceu, pessoalmente,  Guerreiro Ramos quando Deputado Federal em Brasília - DF, no ano legislativo de 1963. Um parlamentar combativo, um orador inflamado, um homem cordial. Teve o mandato cassado e os direitos políticos suspensos logo começo do regime militar, em 1964.)

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Presidencialismo de confusão

As chances de uma relação produtiva entre governo e Congresso, dentro dos limites do sistema político-partidário do País, ainda existem

Um dos temas da análise política hoje é a formação da base do governo no Congresso. Aliás, esse é um tema permanente em nossa democracia e já foi objeto de estudo específico, resultando dele o conceito de presidencialismo de coalizão. 

Desde quando formulado pelo cientista político Sérgio Abranches, em 1988, a relação governo com o Congresso já passou por inúmeras controvérsias, do mensalão ao orçamento secreto.

Na aparência, ao menos, é um problema insolúvel. O governo precisa formar uma coalizão de partidos para realizar seus objetivos, dando em troca cargos e recursos.

Um obstáculo para contentar esta coalizão é o fato de que os partidos não são estruturados em torno de um programa político claro. Em muitos casos, sobretudo agora, tornaram-se partidos após a fusão de forças diferentes. Oferecer um cargo a um determinado partido nem sempre significa alinhamento, porque muitos setores e indivíduos dentro do próprio partido não se sentem contemplados.

Da mesma forma, a distribuição de recursos por meio de emendas parlamentares é uma tarefa difícil. O orçamento secreto resolveu o problema, mas criou outros muito maiores. Por meio dele, os deputados eram contemplados pessoalmente e destinavam o dinheiro com liberdade. O resultado foi não só uma dispersão perdulária, como também um atentado à Constituição, pela falta de transparência.

Existe um outro fator importante neste presidencialismo de coalizão: o fator simbólico, no sentido de que, além de cargos e dinheiro, os congressistas exigem atenção do próprio presidente. Nos termos da situação confusa brasileira, o caminho ideal era não somente sistematizar o encontro com parlamentares, mas também tentar definir um caminho mais produtivo para a distribuição de cargos e verbas.

Os cargos deveriam ser distribuídos, mas com uma condição: a de que o novo ocupante tivesse alguma intimidade com o tema. De um modo geral, esse quesito é desprezado sob o argumento – um pouco onipotente – de que o quadro político se adapta a qualquer situação.

Da mesma forma, o uso das emendas parlamentares não deveria ser pulverizado. Se todo esse dinheiro fosse de alguma forma articulado com os gastos dos programas nacionais do governo, a eficácia seria muito maior. Neste caso, governo e Congresso investiriam na mesma direção, conseguindo muito mais qualidade no gasto.

Interessante acentuar que, mesmo em condições ideais de distribuição de cargos e recursos, além da corte aos congressistas, o governo tem limites claros. Mesmo com a formação ideal de uma base, o Congresso não funciona como uma página em branco na qual o governo pode inscrever qualquer roteiro.

Ninguém mais do que Bolsonaro abriu mão dos recursos colocando-os, em grande parte, nas mãos dos presidentes da Câmara e do Senado, por meio do orçamento secreto. No entanto, Bolsonaro jamais conseguiu avançar sua pauta comportamental no Congresso. Havia uma barreira intransponível.

Isso não significa que uma pauta comportamental simetricamente oposta à de Bolsonaro consiga abrir caminho, sobretudo agora, com a nova composição. Significa apenas que existem limites e que o Congresso, ainda que não defina com clareza, acaba funcionando como uma espécie de baliza.

A situação do governo atual parece que pode esbarrar também em alguns limites. Mesmo distribuindo cargos e recursos, há temas que se tornam tabus. Um deles é reverter processos como o Marco do Saneamento ou a privatização da Eletrobras. Aparentemente, os limites impostos à pauta comportamental de Bolsonaro podem surgir, agora, como limites a projetos reestatizantes na economia.

Não se sabe claramente qual o peso que os deputados deram ao conteúdo do decreto sobre o Marco do Saneamento ao derrotá-lo na Câmara. O que pesou mais: a tendência a fortalecer as estatais ou o fato de um decreto ter alterado o trabalho de todos os parlamentares?

Ainda há um tempo para decantar essas decisões de uma legislatura que apenas começa. Naturalmente que a forma de decreto teve um peso na rejeição. Mas o conteúdo estatizante, a julgar pelo resultados das urnas, pode viver o mesmo drama que a pauta comportamental de Bolsonaro viveu no passado.

Ainda é muito cedo para cravar uma interpretação sobre o futuro. As dificuldades de trabalhar com os partidos tornaram-se mais ásperas depois que alguns deles se fundiram. O costume do orçamento secreto, no qual cada um usava o dinheiro das emendas como queria, ainda é uma herança maldita.

O que parece, no entanto, mais promissor é exatamente o leque dos grandes projetos econômicos, como o arcabouço fiscal e a reforma tributária. Neste campo, pode haver algumas divergências, mas o impulso geral é o de resolver logo para que o País volte a crescer.

As chances de uma relação produtiva entre governo e Congresso, dentro dos limites do sistema político-partidário do País, ainda existem. Caberá ao governo localizar exatamente onde é possível avançar e onde quebrar a cabeça representa apenas um desgaste inútil. Apesar de muito confusa, existe uma correlação de forças e não se deve nunca deixar de analisá-la com cuidado.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12.05.23