quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Rosa Weber diz que orçamento secreto opera ‘à margem da legalidade’ e vota para derrubar esquema

Ministra afirma que orçamento secreto “cria circunstâncias favoráveis para que ocorram delitos, como já vistos no passado”

Ministra iniciou sessão citando que esquema foi revelado em reportagens do 'Estadão'. Imagens: TV Justiça/Reprodução

A presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Rosa Weber, defendeu em sessão plenária nesta quarta-feira, 14, a derrubada do orçamento secreto, esquema operado a partir das emendas de relator-geral do orçamento (RP-9) e revelado pelo Estadão.  Em duro voto, a ministra disse ver um ‘verdadeiro regime de exceção ao orçamento da União, em burla à transparência e a distribuição isonômica de recursos públicos’. Na avaliação de Rosa, a execução do orçamento secreto pelo governo federal acontece ‘à margem da legalidade’. O esquema montado no governo Jair Bolsonaro para compra de apoio no Congresso ‘mostra-se incompatível com a ordem constitucional, democrática e republicana’, ponderou a ministra.

“Julgo procedentes os pedidos para declarar incompatíveis com a ordem constitucional brasileira as práticas orçamentárias viabilizadoras do chamado ‘esquema do orçamento secreto’, consistentes no uso indevido das emendas de relator-geral do orçamento para efeito de inclusão de novas despesas públicas ou programações no projeto de lei orçamentária anual”, registrou a Rosa ao finalziar a leitura de seu voto.

O julgamento sobre o orçamento secreto será retomado na tarde desta quinta-feira, 15. Os demais ministros devem apresentar seus posicionamentos, acompanhando ou não a presidente da Corte.

Impropriedade

No início da sessão plenária desta quarta-feira, 14, a ministra Rosa Weber informou que os ministros receberam do Congresso um ofício com informações sobre o projeto de resolução que pretende impor novas regras para a distribuição das emendas utilizadas no esquema do orçamento secreto.

A ministra cumprimentou os parlamentares pela iniciativa que, segundo a ministra, demonstra a 'abertura ao saudável e democrático diálogo interinstitucional'. Por outro lado, a magistrada destacou que a 'louvável' preocupação do Congresso em se debruçar sobre o tema para ampliar a transparência das emendas, estabelecendo critérios de proporcionalidade e impessoalidade na destinação dos valores, 'confirma a adequação' da decisão liminar do Supremo que chegou a suspender os pagamentos até que fosse dada publicidade aos recursos repassados.

Ainda de acordo com Rosa, a movimentação também 'confirma a impropriedade do sistema até então praticado'. A ministra destacou que a iniciativa do Congresso não prejudica o julgamento das ações apresentada ao STF pelos partidos de oposição ao governo Bolsonaro (PV, PSB, PSOL e Cidadania), ainda mais considerando que o projeto de resolução é uma 'proposta legislativa em tramitação e para o futuro'.

Segundo as informações passadas à ministra, a proposta do Congresso suprime a possibilidade de indicação de emenda por usuário externo, um mecanismo que dificulta ainda mais a identificação do parlamentar responsável pela indicação do recurso. O texto apresento ao Supremo ainda estabelece a destinação obrigatória de 50% das emendas para ações de saúde ou assistência social, e trata da observância de critérios de proporcionalidade nas indicações.

O Congresso ainda destacou no texto que as emendas utilizadas no orçamento secreto não serão tornadas impositivas (obrigatórias), com o objetivo de preservar a prerrogativa do governo de decidir quando executar o pagamento das demandas parlamentar.

A possibilidade de as emendas se tornarem impositivas chegou a ser discutida pelo Congresso durante as negociações da Proposta de Emenda á Constituição (PEC) da Transição, que amplia o teto de gastos para custear o pagamento de R$ 600 aos beneficiários do Bolsa Família, numa tentativa de pressionar o futuro governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a não agir junto ao STF contra o fim do esquema.

Em um primeiro momento da leitura de seu voto, Rosa defendeu a rejeição de questões preliminares suscitadas pelo Congresso, destacando que o julgamento do orçamento secreto no STF trata dos 'direitos dos entes federativos eventualmente prejudicados na distribuição de recursos orçamentários da União, dos direitos dos membros das casas a distribuição equitativa no ajuste do orçamento e dos direitos dos cidadãos ao uso racional e eficiente dos recursos públicos e a luz da transparência'.

O parecer da ministra sobre o caso tem 90 páginas e traz ponderações sobre orçamento público, processo legislativo orçamentário, o chamado 'orçamento secreto' - suas características e consequências - , princípios da publicidade e transparência aplicados à gestão fiscal.

Críticas ao esquema

Em sua fundamentação, Rosa Weber lembrou que foi só a partir de 1988 que o Congresso retomou um papel ativo no orçamento. A ministra também destacou que a ciência das finanças estabeleceu mecanismos para impedir, por meio de controle financeiro, que a 'vontade política venha dar liga ao patrimonialismo e atos de captura do poder com grave subversão dos interesses públicos em favor dos projetos de poder inoficiosos'.

Segundo Rosa, as emendas parlamentares têm autorização constitucional e funcionam como um instrumento legislativo que da oportunidade a reivindicações mais urgentes da população. A ministra citou as modalidades de emenda previstas no regimento interno do Congresso - as de bancadas estaduais, as individuais e as de relator. Com relação a essa última, a ministra afirmou que elas têm a finalidade de 'corrigir erros e omissões', não contemplando a 'inclusão de novas despesas ou programações'.

Em seu voto, Rosa Weber relembrou casos de captura do orçamento federal, como o esquema PC Farias, o escândalo dos Anões do Orçamento e a Máfia das Ambulâncias. A ministra reproduziu trechos de investigações feitas pelo próprio Congresso sobre os casos, destacando medidas adotadas pelos parlamentares para prevenir novos desvios. No entanto, segundo a ministra, a 'experiência legislativa revela que normas regimentais não foram capazes de evitar a preponderância dos poderes não institucionais do relator geral do orçamento'.

A ministra então estabeleceu ligações entre os esquemas identificados ao longo dos anos e o orçamento secreto. Ela ainda destacou que, em 2019, a legislação orçamentaria restabeleceu a hegemonia do relator geral no processo orçamentário, ampliando o valor das emendas de relator. O esquema de tomada do orçamento por congressistas da base do governo no Congresso foi revelado pelo Estadão, conforme destacou Rosa em seu voto.

"Tal como já observado em tempos passados, a figura do relator-geral do orçamento, restabelecidos os poderes que o congresso nacional, após a CPMI dos (anões) do orçamento, buscou, sem sucesso abolir, emerge uma vez mais como pivô das articulações entre o executivo e congresso nacional e guardião da caixa preta orçamentária", afirmou.

Rosa destacou que, ainda 'mais alarmante do que a amplitude do orçamento posto sob um domínio de um único parlamentar sobre o mistério das negociações em torno do destino a ser dado a esses recursos'. "Não apenas a identidade dos efetivos solicitadores, mas o destino desses recursos acha-se encoberto por um manto de névoas", ponderou. Segundo a relatora, a 'prática político institucional' do orçamento secreto 'cria circunstâncias favoráveis para que ocorram delitos, como já vistos no passado'.

Reportagens do Estadão já expuseram indícios de sobrepreço e superfaturamento em compras de prefeituras por meio das emendas destinadas por parlamentares envolvidos no esquema. As suspeitas de desvios entraram inclusive na mira da Polícia Federal (PF), que já abriu operações para apurar eventuais fraudes.

Rosa destacou ainda que emendas de relator se tornaram 'o novo locus destinado a negociações reservadas a construção da base de apoio do governo no Congresso'. "A crise nas relações entre Executivo e Legislativo tornou ainda mais caros e dispendiosos a manutenção de uma base presidencial de apoio parlamentar no Congresso e o custo da governabilidade no contexto do que é denominado de presidencialismo de coalização".

Irregularidades

A ministra chegou a dizer que o a distribuição de emendas por meio do orçamento secreto transformou os padrinhos desses recursos em "vereadores federais" por concentrarem a alocação de verbas em políticas públicas de impacto "meramente local", com interesses eleitorais, em vez de focar em medidas estruturantes regionais.

"A utilização indevida das emendas parlamentares para a satisfação dos interesses eleitorais representa grave ameaça a consecução dos objetivos fundamentais da República, em promover o desenvolvimento nacional equilibrado e sustentável, reduzir as desigualdades sociais e regionais e erradicar a pobreza e a marginalização", destacou.

Na retomada da sessão plenária, após intervalo, Rosa Weber destacou irregularidades envolvendo a execução das emendas de relator. A ministra apontou 'demonstração da falta de coerência e planejamento no uso de verbas federais e categórico descumprimento dos deveres de transparência com emprego do dinheiro publico'.

Rosa citou uma série de indícios de corrupção por meio orçamento secreto que foram revelados na série de reportagens do Estadão, como o esquema das escolas fakes e do tratoraço - este último consistiu na compra de veículos agrários com sobrepreço por meio da Companha de Desenvolvimento do Vale São Francisco (Codevasf).

A ministra vê 'descaso sistemático do Congresso e dos órgãos centrais do sistema de orçamento e administração financeira do governo federal com os princípios orientadores da atuação da administração publica, com as diretrizes de governança, com o controle interno e da transparência das ações governamentais e com a participação ativa na promoção da eficiência publica e no combate a corrupção'.

A avaliação de Rosa é a de que o orçamento secreto consiste em um 'sistema anônimo', no qual o relator-geral é uma 'figura interposta', vez que são deputados e senadores que indicam os repasses. Destacando o 'caráter obscuro' do esquema, a relatora destacou que o modelo 'viola o principio republicano e transgride os postulados da transparência'.

"Cuida-se de uma rubrica orçamentária envergonhada de si mesmo, instituída com o objetivo de esconder atrás da figura do relator-geral do orçamento uma coletividade de parlamentares desconhecida favorecida pelo privilégio pessoal de poder exceder os limites de gastos a que estão sujeitos no tocante às emendas individuais em manifesto desrespeito ao postulado da execução equitativa, da igualdade entre parlamentares, da observância de critérios objetivos e imparciais na dotação orçamentária e, sobretudo, ao primário do ideal republicano e ao postulado da transparência nos gastos públicos", ressaltou.

Transparência

Na avaliação de Rosa, as emendas de relator 'representam violação direta do direito de acesso a informação, ao primado da transparência e e ao da máxima divulgação dos dados de interesse publico'. "Insere-se em um contexto de mitigação do controle social sobre o gasto publico e desconstrução dos sistemas de fiscalização e de prestação de contas pelos gestores públicos", ressaltou.

A ministra disse que o Congresso não cumpriu a determinação da Corte para dar ampla publicidade ao esquema. Rosa mencionou que apenas 70% dos deputados e 85% dos senadores assumiram o apadrinhamento das emendas do orçamento secreto e, quando o fizeram, apresentaram informações esparsas sobre o destino, a finalidade e a necessidade dos recursos. Para Rosa, os documentos levados ao STF 'não satisfazem critérios mínimos de exadidão e confiabilidade'.

A relatora também apontou 'absoluta insubsistência' na alegação do Congresso de que não existia qualquer obrigação legal ou regimental para que a indicação de que beneficiários de recursos dos RP-9 fosse acompanhada de documento que formalizasse o pedido. "A alegação contem equivocado silogismo", afirmou sobre argumentos apresentados pelo presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco.

Rosa ainda criticou as medidas adotadas pelo Congresso a pretexto de dar publicidade ao orçamento secreto - ações promovidas após o Supremo Tribunal Federal chegar a suspender os repasses dos recursos. A ministra chamou de redundante o ato conjunto das mesas da Câmara e do Senado que criaram o sistema de publicização das emendas. Segundo ela, a justificativa e o padrinho dos recursos continuavam ocultos.

Para a relatora, as normas 'se mostram insuficientes para traduzir a verdadeira dinâmica de poder envolvendo os reais interessados, pessoas que intercedem junto ao relator geral ou junto aos órgãos executivos e aquelas que realmente detêm a capacidade de influenciar a decisão do relator geral'.

"As despesas da emenda de relator não satisfazem os critérios informações da transparência fiscal. Longe de prestigiarem a participação popular e o controle social sobre o objeto dos gastos, decorrem de acordo políticos secretos que inauguram uma pauta de interesses paralela ao plano de interesses de relevância nacional. A divulgação ocorre sempre de maneira incompleta tardia e pouco acessível", ressaltou.

O que está em jogo

Como mostrou o Estadão, há uma expectativa de que, na sessão desta quarta-feira, 14, Rosa Weber defenda que a falta de transparência do orçamento secreto é inconstitucional. O posicionamento foi ventilado entre assessores próximos da magistrada. Além disso, a ministra deve avaliar em sua manifestação a forma com que os recursos públicos são distribuídos entre os parlamentares por meio do relator do orçamento - atualmente, tal distribuição se dá sem qualquer critério técnico.

Na sessão da última quarta, 7, o governo Jair Bolsonaro e o Congresso se uniram na defesa do instrumento montado em 2020, em troca de apoio dos parlamentares. Agora, os ministros do Supremo dão início à efetiva discussão sobre as ações que questionam o orçamento secreto, com a apresentação do voto da relatora, ministra Rosa Weber.

O ministro Luiz Fux, que presidiu a Corte até setembro deste ano, disse nesta quarta ao se encaminhar para o plenário que a votação terminará amanhã. Servidores do Supremo acreditam que são baixas as chances de algum magistrado pedir vista neste processo. Caso o julgamento não se encerre, de fato, amanhã os ministros ainda terão a sessão extraordinária da próxima sexta-feira, 16, quando será realizado o evento de encerramento do ano no Poder Judiciário.

O que o Supremo analisa são os questionamentos feitos por quatro partidos da oposição ao esquema que distribuiu R$ 53,5 bilhões desde 2020, quando foi montado. As legendas apontam violação de uma série de princípios fundamentais - impessoalidade, eficiência, moralidade, legalidade, transparência, controle social das finanças públicas e isonomia - além de lesão às próprias regras constitucionais das emendas parlamentares.

Desde que as primeiras ações aportaram no Supremo, em junho de 2021, o Supremo já proferiu decisões sobre o orçamento secreto. A corte chegou a suspender os repasses, exigindo transparência na distribuição dos recursos. Depois, a corte máxima liberou as verbas, após o Congresso editar normas a pretexto de dar publicidade aos pagamentos.

Um ano após os questionamentos, agora o Supremo vai decidir se derruba ou não o esquema, analisando o mérito dos pedidos feitos pela oposição. As legendas reforçaram as alegações de inconstitucionalidade do esquema. Do outro lado, o Congresso já começou a se precaver e começou a articular projeto para mudar as regras do orçamento secreto, prevendo a distribuição dos recursos proporcionalmente ao tamanho dos partidos na Câmara e no Senado.

Logo antes de ser iniciada a primeira sessão oficial do julgamento sobre o orçamento secreto - marcada por sustentações orais - o Congresso sustentou que as emendas de relator não violam qualquer preceito fundamental, alegando que as indicações dos repasses ‘representam a síntese de decisões de política orçamentária no âmbito do Congresso Nacional que observam os pressupostos constitucionais, legais e regimentais.’

Pepita Ortega e Weslley Galzo para O Estado de S. Paulo, em 14.12.22, na edição onlibe, às 19h15.022 |05h15

Tasso diz que mudar Lei das Estatais foi ‘burrice’ do PT e alerta para loteamento do Centrão

Senador tucano foi o relator do texto que dificultou indicações políticas para as empresas estatais; com apoio do PT, Centrão e de bolsonaristas, deputados aprovaram projeto que flexibiliza medidas

O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) criticou, em entrevista publicada pelo O Estado de S. Paulo, nesta tarde, a iniciativa da Câmara de aprovar um afrouxamento na Lei das Estatais. O tucano, que relatou o texto que originou a lei que dificulta o loteamento político das empresas, classificou como “burrice” o fato de o PT ter apoiado a iniciativa, declarou que a mudança deixa a “porta aberta para todo tipo de coisas não republicanas” e reclamou que “é um retrocesso histórico na vida das estatais brasileiras rumo à República das Bananas”.

A Lei das Estatais foi sancionada pelo ex-presidente Michel Temer após investigações comprovarem o uso politico de empresas públicas em administrações anteriores, em especial governos petistas. Os principais pontos da nova norma dizem respeito a mecanismos para blindar as estatais de ingerência política.

A mudança nesse arcabouço legal foi aprovada pela Câmara dos Deputados poucas horas depois de o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ter confirmado o ex-ministro Aloizio Mercadante na presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Para Tasso, Mercadante não precisava da mudança na lei para exercer o cargo. “É uma burrice porque o Aloizio Mercadante no caso, se foi feito para beneficiá-lo, acho que prejudicou. Como o Aloizio é doutor em economia, tem toda a credencial, não tinha mandato, não fazia parte do diretório do PT, não participava de eleições há muito tempo, ele tinha toda uma narrativa para o conselho do banco apreciar. Não é assim que se vai, não precisava disso, foi um tiro no pé dele”, afirmou o senador. Quase toda a bancada do PT votou favorável ao texto. Apenas o deputado Marcon (PT-RS) votou contrário.

Em nota, a assessoria do futuro presidente do BNDES negou que o caso dele se enquadraria na atual lei das estatais. “Mercadante não exerceu qualquer função remunerada na campanha vitoriosa do Presidente Lula, não tendo sido vinculado a qualquer atividade de organização, estruturação ou realização da campanha”, afirmou.

Tasso criticou não só o fato do projeto aprovado ontem diminuir de três anos para 30 dias a quarentena que indicados que tenham participado de campanhas políticas tem de submeter, como também alertou para o trecho que aumenta de 0,5% para 2% da receita operacional o limite das despesas com publicidade e patrocínio de empresa pública e de sociedade de economia mista. Contratos de publicidade com estatais são recorrentemente vistos em casos de corrupção envolvendo apadrinhados políticos.

O que o senhor achou da Câmara ter aprovado a mudança na Lei das Estatais?

É um retrocesso histórico na vida das estatais brasileiras rumo à República das Bananas. Do outro lado, é uma burrice porque o Aloizio Mercadante, no caso, se foi feito para beneficiá-lo, acho que prejudicou. Como o Aloizio é doutor em economia, tem toda a credencial, não tinha mandato, não fazia parte do diretório do PT, não participava de eleições há muito tempo, ele tinha toda uma narrativa para o conselho do banco apreciar. Não é assim que se vai, não precisava disso, foi um tiro no pé dele.

Quais alterações mais o preocupam?

Tem outra coisa mais séria ainda que é a liberação dos recursos de propaganda das estatais. Essa liberação é porta aberta para todo tipo de coisas não republicanas, estranhíssimo ter entrado nesse momento. É absolutamente surpreendente que a gente possa ter um retrocesso desse tamanho. Não é só a questão da vinculação do Aloizio, tem outra mais grave, que é liberação da publicidade. Não é um jabuti, é um elefante colocado e pendurado na árvore.

A medida atendeu a interesses de quem?

Evidentemente que todos os partidos, principalmente os mais fisiológicos adoram isso. Sempre quiseram mudar a lei das estatais, foi preciso uma ocasião muito especial para a gente aprovar (em 2016), foi logo em cima da Lava Jato, a gente tinha todo um clima em que esses partidos se retraíram. De lá para cá, existe todo um sonho para acabar com essa legislação, que é um ganho da sociedade brasileira.

O projeto foi aprovado logo depois de Lula confirmar Mercadante e, no mesmo dia, o presidente eleito se reuniu com o presidente da Câmara, Arthur Lira. Vê possibilidade de o governo eleito ter articulado isso?

Não posso dizer. Claro que teve muita articulação para ser feito de maneira tão rápida e de surpresa, tudo foi não republicano. Não acompanhei de perto o que aconteceu, mas como ninguém esperava essa votação, foi tudo feito na noite de supresa e muito bem articulado.

Há chance de o Senado barrar a mudança?

Se for seguir pela Câmara, só o PSDB e o Novo votaram contra. Você vê que há uma articulação bem feita e um interesse maior nisso aí. Por isso que não acredito que foi para o Aloizio, porque eu acho ele foi até prejudicado, ele tinha uma discussão aberta para fazer, com muito bons argumentos. Quando acaba com esses dois pontos (quarentena e publicidade), é tiro no pé.

Como vê a aliança de Lula com o Centrão?

Isso é uma aliança que está sendo montada e que tem se repetido no Brasil. Quanto mais tiver orçamento secreto, mais vai se repetir.

E o senhor considera isso ruim?

Ruim não, é péssimo.

Entrevista concedida a Lauriberto Pompeu para O Estado de S. Paulo, publicada originalmente na edição online, em 14.12.22, às 17h08.

Há muita gente para prender por atos antidemocráticos e fake news, diz Moraes

Ministro cita detenções nos EUA por invasão no Capitólio e americano multado em US$ 1,4 bilhão por fake news

Alexandre de Moraes no TSE no dia da diplomação do presidente eleito Lula - Pedro Ladeira-12.dez.22/Folhapress

O ministro Alexandre de Moraes afirmou nesta quarta-feira (14) que "ainda tem muita gente para prender e muita multa para aplicar" em relação a atos antidemocráticos e disseminação de fake news.

O magistrado do STF (Supremo Tribunal Federal) e atual presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) é relator de inquéritos que atingem o presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados investigados por espalhar notícias falsas e atentar contra as instituições.

Nesta quarta, Moraes participou de evento ao lado do ministro Dias Toffoli e comentou os dados citados pelo colega relativos a condenações nos Estados Unidos de pessoas que invadiram o Capitólio para tentar impedir a posse de Joe Biden e outras responsáveis por propagar fake news.

"Fiquei feliz com a fala do Toffoli porque comparando os números ainda tem muita gente para prender e muita multa para aplicar", afirmou.

Moraes não mencionou Bolsonaro nem outro ator específico. Na palestra, ele citou o nazismo e afirmou que tribunais constitucionais, como o STF, são fundamentais para conter investidas autoritárias.

"Todos os cientistas políticos dizem que jurisdição constitucional, se existentes fossem, seriam obstáculo a mais, obviamente ninguém fala que não teria porque é impossível analisar retroativamente, mas seria obstáculo a mais."

Toffoli disse que a invasão ao Congresso dos EUA no início de 2021 já levou à detenção de 964 pessoas em 50 estados diferentes daquele país.

Afirmou ainda que as penas podem chegar a 20 anos de reclusão e cobrou do STJ (Superior Tribunal de Justiça) um endurecimento na jurisprudência relativa a indenizações.

Como exemplo, citou que um americano acusado de fake news por afirmar que uma chacina não havia acontecido foi multado em US$ 1,4 bilhão (R$ 8 bilhões)....

Moraes prometeu em discurso durante a diplomação de Lula responsabilizar grupos que promovem atos antidemocráticos e discurso de ódio.

A cerimônia, ocorrida na segunda (12), reforça a vitória eleitoral em meio a atos antidemocráticos de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL), derrotado na tentativa de reeleição.

O ministro, que é relator de investigações no Supremo, disse que grupos responsáveis por atos antidemocráticos e discurso de ódio serão punidos. "Garanto serão integralmente responsabilizados. Para que isso não retorne nas próximas eleições."

No mesmo dia dessa fala, uma ordem de prisão expedida pelo ministro contra o indígena bolsonarista José Acácio Serere Xavante acabou em atos de violência em frente à sede da Polícia Federal e em vias de Brasília.

Com a presença do preso no prédio da PF, apoiadores de Bolsonaro tentaram invadir o local. Após serem repelidos pela polícia, os manifestantes foram para outras vias da cidade e atearam fogo em ônibus e em carros. Eles ainda depredaram postes de iluminação e tentaram derrubar um ônibus de um viaduto.

Matheus Teixeira para a Folha de S. Paulo, em 14,12.22

Militares já esperam ordem de Lula para acabar com atos em quartéis

Retirada de bolsonaristas golpistas terá risco de confronto, avaliam comandantes

Ônibus incendiado por bolsonaristas no protesto após a diplomação de Lula em Brasília, na segunda (12) - Pedro Ladeira - 12.nov.22/ Folhapress

Os comandantes de unidades militares sitiadas por manifestantes bolsonaristas que pedem um golpe que impeça a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já se preparam para dispersar os atos em frente a quartéis pelo país assim que o novo presidente assumir o cargo, em 1º de janeiro.

Essa é a expectativa sinalizada por seus superiores, que estão em contato com o futuro ministro da Defesa, José Múcio Monteiro. Os episódios de violência ocorridos na capital federal na segunda (12), após a diplomação de Lula como mandatário máximo pela primeira vez, consolidaram essa percepção.

O petista queixou-se na terça (13) de que o presidente Jair Bolsonaro (PL) está incitando "fascistas" a promover vandalismo.

O futuro presidente não transmitiu tal ordem para os novos comandantes das Forças Armadas, mas, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, comentou que o fará em uma reunião com políticos do Avante. Seja como for, alguma ordem nesse sentido é dada como certa.

Há um certo desconforto entre os militares, dado que os três comandantes ainda no cargo assinaram nota logo após a eleição dizendo que os atos eram legítimos e insinuando críticas ao que consideram perseguição do Judiciário contra bolsonaristas.

Os manifestantes restantes que estão na frente do quartel-general do Exército na capital ou que frequentam a rua de acesso ao Comando Militar do Sudeste, em São Paulo, estão sob jurisdição dos fardados.

Como são áreas militares, a segurança é feita pela PE (Polícia do Exército). Mesmo que quisessem, os governadores de estado só poderiam enviar a Polícia Militar para dispersar os atos se houvesse uma requisição do Exército.

Em São Paulo, por exemplo, os soldados estão junto aos portões do comando, ao lado do parque Ibirapuera (zona sul), mas não saem às ruas. Uma alta autoridade estadual afirmou à Folha que "gostaria" de fazer algo, mas que está "de mãos amarradas".

Até aqui, o crime cometido pelos manifestantes é o previsto pelo artigo 286 do Código Penal, o de incitação das Forças Armadas contra outros Poderes —no caso, com os pedidos de intervenção para evitar a posse de Lula.

É um delito brando, com pena máxima de seis meses e de difícil tipificação. Geralmente, orientados pela fábrica de narrativas do bolsonarismo, os manifestantes dizem querer que o golpe seja dado sob a égide do artigo 142 da Constituição, que regula o papel dos militares

A leitura feita por eles é aberrante, mas sempre será possível alegar que pensavam ser legal sua ilegalidade proposta.

A coisa muda de figura quando se veem cenas como as de Brasília, que se aproximaram do terrorismo político. O mesmo comandante regional avalia que a ideia disseminada entre os militares que os atos são pacíficos e legítimos foi abalada.

Mesmo que haja dúvidas sobre isso, esse oficial-general diz que assim se a ordem vier dos novos comandantes escolhidos por Lula, será cumprida. Ele admite que há sempre o risco residual de alguma insubordinação, mas ele é visto como mínimo e talvez isolado à ponta, a algum soldado insatisfeito.

Fácil o processo não será. Um coronel da linha de frente comenta que seria péssimo o governo Lula começar com militares reprimindo adversários políticos, avaliação semelhante à de um político muito próximo da área da Defesa.

Ambos dizem torcer para que a dispersão ocorra de forma natural, mas a resiliência dos atos não parece permitir tal otimismo.

Há questões ideológicas. Como desenhou em seu livro-depoimento o mentor da volta dos militares à política, o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, em 2018 houve uma identificação natural do estamento fardado com o bolsonarismo —centrado na comunhão de valores conservadores e do antipetismo.

É história conhecida: generais da reserva achavam ser possível voltar ao poder pelo voto em um capitão reformado indisciplinado, visto como de fácil manipulação. Em troca, Bolsonaro militarizou a administração e concedeu benesses.

Não foi um processo harmônico, como a crise que derrubou toda a cúpula da Defesa em 2021 mostrou, e agora o sentimento prevalente nos Altos-Comandos é o de buscar uma acomodação com a nova realidade.

Não que algum oficial-general tenha virado petista ou admirador do ministro do Supremo Alexandre de Moraes, visto de forma quase unânime entre eles como alguém que age com força excessiva na condução de sua cruzada contra os atos antidemocráticos.

Mas a crispação, avaliam os fardados, tem que acabar. Retirar manifestantes com camisas da CBF e cartazes dizendo "SOS Forças Armadas" da frente quartéis será um primeiro teste para tal disposição.

Igor Gielow para a Folha de S. Paulo, em 14.12.22

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Lula e a esquerda jurássica

O Brasil de 2023 é muito diferente do de 2003. Se Lula precisou ser pragmático no 1.º mandato, distanciando-se da esquerda retrógrada, esse movimento é agora ainda mais necessário

Em 2003, ao assumir pela primeira vez a Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva precisou ser pragmático na condução do governo, afastando e ignorando velhas bandeiras da esquerda. A atitude realista de Lula – que se manifestou em várias áreas, especialmente na política econômica – foi fundamental para os resultados obtidos em seu primeiro mandato. Sem responsabilidade fiscal e sem a reforma da Previdência de 2003 articulada pelo governo do PT – para citar apenas dois tópicos –, o desempenho do primeiro governo Lula teria sido inteiramente diferente.

Agora, 20 anos depois, é de reconhecer que o País a ser governado por Lula está ainda mais incompatível com os dogmas e práticas de uma esquerda jurássica: inchaço da máquina pública, desleixo com a inflação, economia moldada pela estatização, hostilidade à atividade empresarial, especialmente ao agronegócio, submissão a um sindicalismo atrasado e ao corporativismo de setores do funcionalismo público. Se, em 2003, o Brasil não tinha nada a ganhar com essa compreensão asfixiante de sociedade e de Estado, agora é que precisa dela menos ainda.

Ao voltar ao Palácio do Planalto 20 anos depois da posse de seu primeiro mandato, Lula encontrará um país diferente. Certamente, há muitos desafios que permanecem: a pobreza e a miséria, as desigualdades sociais, a baixa qualidade da oferta educativa para tantas crianças e jovens, o racismo em suas diversas modalidades e expressões, problemas de infraestrutura, limitações da rede pública de saúde, entraves ao crescimento econômico, entre outros pontos. Muita coisa foi feita nessas duas décadas, houve avanços significativos em algumas áreas, mas também se observam retrocessos, como a volta da fome, e problemas que ainda estão longe de ser resolvidos satisfatoriamente, como a falta de saneamento básico para muitas famílias.

De toda forma, o Brasil de 2023 é muito diferente daquele de 2003. Basta pensar, por exemplo, no atual agronegócio e em sua relevância para a economia brasileira. O desenvolvimento econômico do campo produziu mudanças sociais importantes: novas situações de vida, novas dinâmicas sociais, novas demandas políticas. Até agora, a esquerda mostrou-se alheia a tudo isso, como se o campo não fizesse parte de seu horizonte – como se fosse outro país.

A grande questão é que, na Presidência da República, Lula não pode ignorar essa nova realidade social e econômica. E aqui a defasagem é gritante. Ao longo dessas duas décadas, a esquerda não mudou sua visão sobre o campo, não tendo produzido nenhuma proposta séria de política pública para o setor. O movimento parecia justamente o oposto. Além de não ter afinidade política com o agronegócio, o PT tratou muitas vezes com desdém e hostilidade quem empreende no campo.

O anacronismo de parte da esquerda também é patente no que se refere às relações trabalhistas. Durante a campanha eleitoral, em vez de apresentar uma proposta minimamente articulada sobre o mundo contemporâneo do trabalho, esquerdistas pareciam estar pregando para funcionários sindicalizados dos anos 60 do século passado. Em vez de apresentar soluções para as questões reais que afligem o trabalhador brasileiro, o PT falava em revogar a reforma trabalhista de 2017, aquela que, entre outros avanços, extinguiu o imposto sindical.

Mesmo nas áreas em que continua havendo grandes deficiências, como educação e saúde, os desafios agora são em boa medida diferentes dos de duas décadas atrás. A população mudou, envelheceu. Não há nenhum tempo a perder. A educação das novas gerações é ainda mais decisiva. Novas políticas públicas foram implementadas, e mais do que nunca é preciso aproveitar o que deu certo.

Verifica-se também outro panorama internacional. A visão geopolítica da guerra fria, tão cara à esquerda, está ainda mais ultrapassada, ainda mais distante dos interesses nacionais.

Se Lula quer governar para o Brasil real, seu terceiro mandato precisará ser ainda mais pragmático. Não é uma questão de implicância com a esquerda. Parte dela simplesmente parou no tempo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 12.12.22.

domingo, 11 de dezembro de 2022

Raspando o tacho

Bolsonaro se dedica, entre choros e queixas, a cometer desmandos onde ainda é possível

Ministério da Educação vive penúria (Foto de Cristiano Mariz / O Globo)

Final de ano no nosso planetinha é o atropelo de sempre — uma insana correria atrás do tempo perdido. É como se a virada do calendário demandasse um acerto com todas as contas deixadas em aberto. Atarefados em zerar assuntos pendentes (imaginários ou reais), corremos o dobro para não chegar a lugar algum. Com governantes não é diferente. Tome-se o exemplo do ainda presidente Jair Bolsonaro. Com a ampulheta de seu tempo regulamentar no poder já quase esvaziada, ele se dedica, entre choros e queixas, a cometer desmandos onde ainda é possível — a possível extinção da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a nomeação do capitão da PM baiana André Porciuncula para a Secretaria Especial da Cultura brasileira, com mandato de 14 dias úteis, e a condenação à mendicância terminal do Ministério da Educação são exemplos desta semana.

É a raspa do fundo do tacho de um desgoverno funesto — mas que tem seguidores à altura de seu desvario. Não são lobos solitários. Estão e permanecerão em concertação, numa vigília ostensiva que não dá conta de suas ramificações. Até agora apenas um empresário, Milton Baldin, teve prisão decretada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). No momento da prisão, Baldin estava no acampamento bolsonarista montado em frente ao Q.G. do Exército, em Brasília, participando de atos antidemocráticos e abertamente golpistas. Semanas antes, já usara as redes sociais para convocar abertamente a turma armada dos CACs, como são chamados os “colecionadores, atiradores desportivos e caçadores”:

—[Vocês que] têm armas legais, hoje nós somos, inclusive eu, 900 mil atiradores, venham aqui mostrar presença.

No mesmo dia, a mais de 9.500 quilômetros de Brasília, uma operação policial em 11 dos 16 estados da Alemanha resultou na prisão de 25 suspeitos de planejar um golpe de Estado armado contra as instituições. À primeira vista, a notícia soou como algo ainda mais estapafúrdio que o autogolpe chinfrim tentado nesta semana pelo então presidente — agora presidiário — Pedro Castillo no Peru. À segunda vista, também. Um dos chefes dos “Reichsbürgern” (Cidadãos do Império Alemão), grupo extremista desmantelado pela polícia, tem 71 anos de idade e outros 700 anos no nome tão aristocrata quanto obsoleto: Heinrich XIII, Príncipe de Reuss. Seu parceiro no topo da pirâmide da conspiração, Rüdiger von Pescatore, também já é quase septuagenário.

Mas, entre 1993 e 1996, Rüdiger comandara o batalhão de paraquedistas #251, que, segundo a Deutsche Welle, viria a compor o KSK, tropa de elite das Forças Armadas da Alemanha. Dentre os 150 endereços vasculhados pela polícia na operação, um deles foi justamente o quartel do Comando das Forças Especiais no sudoeste do país. Em mais de 50 propriedades foram encontradas armas.

Cidadãos civis com treinamento militar ou acesso a armas envolvidos em organizações extremistas como a Reichsbürger, que nega a legitimidade do Estado alemão moderno, devem mesmo ser levados cada vez mais a sério — tanto nos Estados Unidos e na Europa quanto no Brasil. Segundo o Serviço de Inteligência Interna (BKI) da Alemanha, o grupo desmantelado contava com perto de 21 mil simpatizantes. Entre os detidos nesta semana está uma juíza federal e ex-parlamentar do partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD). Uma forte convergência do grupo alemão com operadores na Rússia, além de sua afinidade ideológica com as teorias conspiratórias da QAnon, sugerem que o extremismo de direita em países democráticos do Ocidente encontra terreno fértil.

Vale registrar mais uma informação divulgada pela Deutsche Welle: o cidadão Rüdiger, expulso da carreira militar por ter traficado armas dos estoques do Exército da antiga Alemanha Oriental, tem empresas registradas em seu nome em Santa Catarina e passava parte do seu tempo no Brasil. Também aqui temos um “príncipe” da Casa de Orléans chegado a uma conspiração. Além de um capitão que em breve estará mais ocioso do que nunca.

À primeira vista, nada a ver. À segunda também não, nem à terceira. Nazistas, porém, aqui não faltam. Pensando bem, melhor virar logo o calendário.

Dorrit Harazim, a autora deste artigo, é Jornalista e documentarista. Publicado originalmente n'O Globo, em 11.12.22.


Golpismo é crime

Convocar manifestantes armados para contestar as eleições não é liberdade de expressão. É crime

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), mandou prender um empresário de Mato Grosso acusado de incitar atos violentos contra a democracia. Em vídeo publicado nas redes sociais, esse empresário havia conclamado caminhoneiros e atiradores a participarem de protestos contra o resultado das eleições presidenciais. Fez bem o ministro Alexandre de Moraes, pois, à luz do Estado Democrático de Direito, liberdade de expressão não é liberdade para cometer crime – e, nesse caso, a convocação de atiradores, para “mostrar presença”, como disse o empresário, não parece ter nenhum propósito pacífico.

A ordem de prisão foi expedida no âmbito de um procedimento sigiloso em trâmite no STF. Ainda que seja questionável a competência do Supremo sobre o caso – não parece razoável, funcional ou condizente com a legislação processual que essa ordem de prisão tenha de ser expedida pela Corte constitucional –, é inquestionável que a ação de convocar pessoas armadas à capital do País para resistir ao resultado das eleições exigia a pronta atuação do Estado, em concreto do Poder Judiciário. Não se pode assistir passivamente a tão grave incitação ao crime.

Ao elencar os crimes contra as instituições democráticas, o Código Penal refere-se a “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, e a “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Ou seja, tentar impedir por meio de violência ou grave ameaça que o presidente eleito tome posse não é exercício da liberdade de expressão. É ato criminoso.

O episódio em Mato Grosso mostra que o Ministério Público e o Poder Judiciário têm de estar vigilantes. Há hoje no País gente planejando impedir, até mesmo com o uso de armas de fogo, o livre funcionamento das instituições democráticas. Isso nada tem a ver com o livre exercício da crítica. Uma coisa é criticar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por exemplo, por ter assumido o papel de interventor das redes sociais no período eleitoral e por continuar a fazê-lo depois das eleições – afinal, o poder estatal, seja qual for a esfera, não tem a função de ser árbitro do debate público. Outra coisa, muito diferente, é achar que o fim do período eleitoral torna legais as ameaças à democracia por parte de movimentos golpistas.

Seja ou não período eleitoral, pessoas e grupos golpistas, que tentam obstruir o livre funcionamento das instituições democráticas, devem ser impedidos, pelos meios legais, de realizarem seus planos criminosos. Não há liberdade para delinquir. No caso, o crime afeta diretamente e em várias dimensões toda a coletividade.

Ao pedir a presença de manifestantes armados, o tal empresário confirma que a pauta do bolsonarismo não é a defesa das liberdades e garantias constitucionais. É a imposição de suas vontades pela violência. A democracia brasileira não pode estar refém desses liberticidas.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 09.12.22

Diplomação de Lula no TSE terá esquema de segurança maior do que a posse de Moraes

Policiamento será ampliado nas áreas interna e externa da Corte, que terá barreiras de proteção, uso de detectores de metal e varredura de grupo antibomba da PF


Lula durante o anúncio de ministros na sexta-feira, 9.  Foto: André Borges/EFE

A cerimônia de diplomação do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nesta segunda-feira, 12, contará com esquema reforçado de segurança, que superará até mesmo o megaevento realizado pela Corte para a posse do atual presidente do órgão, Alexandre de Moraes, em agosto. A área externa do TSE terá policiamento reforçado por oficiais da Polícia Militar e até varredura de grupo antibomba da Polícia Federal.

As vias de acesso ao TSE serão interditadas pela PM, que só autorizará a passagem de servidores públicos e convidados credenciados para participar da diplomação. O tribunal, que já fica numa área distante da Esplanada dos Ministérios, vai reforçar a segurança predial com o uso de grades de proteção nas imediações. O perímetro da Corte ainda contará com o monitoramento de agentes especiais da PF, que cuidam da preparação de grandes eventos com a presença do presidente em exercício ou do presidente eleito.

Dentro do tribunal, o grupo antibomba da PF deverá fazer, como de costume, uma varredura na área para garantir a segurança das autoridades presentes. Além de Lula e do vice-presidente, Geraldo Alckmin (PSB), a cerimônia de diplomação deve reunir os principais nomes do poder em Brasília, como os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL); do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG); e do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber.

Também devem estar presentes todos os ministros do TSE, a futura primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, e os futuros ministros do governo Lula, como Fernando Haddad (Fazenda), Flávio Dino (Justiça), José Múcio (Defesa), Rui Costa (Casa Civil) e Mauro Vieira (Itamaraty).

Apenas Lula e Moraes devem discursar, de acordo com o protocolo previsto pela Justiça Eleitoral para o ato de diplomação. O presidente eleito deve falar após ser formalmente diplomado e, em seguida, haverá um pronunciamento do presidente do TSE.

Os convidados de Lula e Alckmin precisarão passar por mais de uma barreira de detectores de metal antes de entrar no plenário do TSE para acompanhar a cerimônia. O primeiro ponto de detecção de metais ficará posicionado logo na saída do estacionamento subterrâneo. A outra barreira estará na entrada do plenário, como já ocorre nos dias normais de julgamento. O cerimonial e a área de segurança da Corte ainda realizaram um rígido protocolo de credenciamento para dar acesso ao prédio no dia da diplomação.

Weslley Galzo, de Brasília - DF para o Estado de S. Paulo, em 11.12.22, às 17h06

Bolsonaro deve ter salário de R$ 39 mil do PL e morar em Brasília após governo

Presidente ficará na capital por família e oposição a Lula; com contas bloqueadas, sigla pode ter dificuldade de honrar compromissos

Jair Bolsonaro e o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, em cerimônia no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira/Folhapress

O presidente Jair Bolsonaro decidiu que continuará em Brasília após deixar o governo e deverá morar em uma casa bancada por seu partido, o PL, do qual será presidente de honra.

Integrantes do PL disseram reservadamente que a intenção do presidente da legenda, Valdemar Costa Neto, é pagar a Bolsonaro um salário equivalente ao teto constitucional do setor público, que hoje está em R$ 39,2 mil.

Dessa forma, a previsão é que Bolsonaro tenha uma renda mensal próxima de R$ 85 mil a partir de 2023. Isso porque ele também tem direito a aposentadorias de militar (R$ 11.945,49) e de deputado federal, no valor de R$ 33.763.

Os planos que envolvem os gastos bancados pelo partido, contudo, enfrentam um obstáculo: o bloqueio de contas do PL pelo presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Alexandre de Moraes, após a sigla ter sido multada em R$ 22,9 milhões por litigância de má-fé pela ação golpista que visava invalidar votos depositados em parte das urnas no segundo turno das eleições.

O PL entrou com recurso, que ainda não foi julgado. Segundo integrantes da legenda, o partido está enfrentando dificuldades em alguns diretórios para pagar salários de funcionários e demais contas. Assim, se não houver desbloqueio no julgamento do TSE, o aluguel da casa do presidente pode ficar prejudicado.

Uma portaria publicada pelo governo Bolsonaro em maio deste ano permitiu uma espécie de teto duplo. Ela estabelece que o abatimento só será aplicado para cada rendimento e não mais para a soma de tudo que a pessoa recebe do governo federal.

Com isso, militares da reserva puderam somar as aposentadorias aos seus salários da ativa. Além disso, os rendimentos que Bolsonaro receber do PL não entram no teto, porque são de origem privada.

Integrantes do partido dizem ainda que o mandatário deve ter sua própria equipe dentro da sigla, inclusive com uma assessoria de comunicação própria.

O candidato a vice na sua chapa, general Braga Netto, também terá um cargo, salário e funcionários contratados pelo PL. Segundo interlocutores, ele deve levar cerca de quatro assessores para a sigla.

De acordo com aliados, o chefe do Executivo quer permanecer perto de sua família.

Eles dizem que a filha mais nova do mandatário, Laura, já está ambientada no colégio em Brasília. Além disso, três de seus filhos —o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e Jair Renan—moram na capital.

Diferentemente da maioria dos parlamentares, que ficam em Brasília apenas em dias de semana, eles costumam permanecer na cidade aos finais de semana.

Apesar de ser vereador pelo Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro também morou em Brasília por boa parte deste ano. Ele tirou licença da Câmara Municipal para ajudar o pai na campanha. A primeira-dama Michelle Bolsonaro e sua família são do Distrito Federal. Ela também pretende seguir na capital.

Além das questões familiares, interlocutores já defendiam que Bolsonaro ficasse em Brasília para tentar se manter como principal líder da direita no país.

Com esse objetivo, aliados de Bolsonaro passaram a visitar casas em condomínios para servir de residência ao chefe do Executivo quando ele deixar o Planalto. Uma das preocupações é com a segurança. Há ainda um temor de protestos em frente ao imóvel escolhido para abrigar Bolsonaro no próximo ano.

O martelo ainda não está batido, mas o local mais provável é uma casa no Jardim Botânico, região que fica a cerca de 20 km da Esplanada dos Ministérios. No mesmo local mora o ministro da Justiça, Anderson Torres.

A ideia é que Bolsonaro fique perto do Congresso Nacional e possa manter reuniões com frequência com parlamentares que estarão na linha de frente da oposição a Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Além disso, o plano do PL é que o presidente ajude nas articulações para a eleição municipal de 2024. Na análise de líderes da legenda, o presidente será fundamental para o partido ampliar o número de prefeitos e vereadores, fortalecendo sua base para 2026.

O mandatário terá ainda um gabinete em uma sala ao lado da sede nacional do partido, em Brasília. O local já está alugado e também deve ter um ambiente para a primeira-dama. As reformas ainda não começaram para receber a família no próximo ano.

Bolsonaro tem evitado falar com aliados se pretende disputar novamente a Presidência no próximo pleito nacional. Pessoas próximas, no entanto, acham improvável que ele saia totalmente de cena e não trabalhe para voltar ao poder.

Eles apostam que Lula enfrentará uma oposição muito mais dura do que nos seus dois primeiros mandatos e que o petista poderá chegar desgastado em 2026. Além disso, a avaliação é que dificilmente surgirá uma liderança no campo conservador com a mesma força que Bolsonaro.

Assim, o plano do PL é que Bolsonaro permaneça ativo nas articulações para se manter como grande nome da direita e seguir com chances reais para a próxima eleição.

Apesar de estar recluso e de ter evitado declarações públicas após a vitória de Lula, interlocutores do presidente dizem acreditar que ele não se manterá em silêncio por muito mais tempo e que retomará o perfil verborrágico em 2023 para atacar o governo do PT.

Aliados já têm pressionado o presidente a iniciar as articulações de olho no próximo ano. Uma ala do PL quer, por exemplo, que Bolsonaro seja ativo na discussão sobre a PEC da Transição proposta por Lula.

O objetivo do projeto é garantir a Lula permissão para gastar acima do teto e cumprir promessas de campanha, entre elas a manutenção do Auxílio Brasil —que voltará a se chamar Bolsa Família— de R$ 600.

Bolsonaristas acusam o PT de não ter responsabilidade fiscal e afirmam que o montante requerido é muito superior ao necessário para pagar o benefício.

Marianna Holanda e Matheus Teixeira, de Brasília para a Folha de S. Paulo (edição impressa), em 08.12.22.

O segredo da volta por cima

Como Bolsonaro passou de persona non grata nos quartéis ao poder de acoelhar generais

"Entre o Exército e o militarismo, vai um despenhadeiro. O militarismo é a canceração do Exército. Está para o Exército como o clericalismo para a religião, o demagogismo para o governo popular, o egoísmo para o eu. O militarismo pode trazer vantagens a militares esquecidos do voto profissional. Mas, para o Exército, é o descrédito, a ruína, o ódio público. Ora, a política no Exército leva fatalmente ao militarismo. Entre o Exército e a política se deve, portanto, levantar a mais alta muralha."

Quem disse isso? Um solerte esquerdista? Não —Rui Barbosa, em 21 de junho de 1893, no Jornal do Brasil. Se vivesse em nosso tempo, o baiano ficaria estarrecido ao ver como o Exército brasileiro entregou-se a um presidente que militarizou a política e politizou as Forças Armadas a grau jamais concebido. E, mais incrível, como esse presidente foi um elemento que, entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990, era persona non gratissima na corporação —militar expulso por terrorismo e, já como político, proibido por ela de entrar nos quartéis.

O longo caminho de Jair Bolsonaro para reverter tamanho opróbrio e tornar-se chefe supremo dessas mesmas Forças Armadas, com poder para acoelhar generais, tratá-los como recrutas e insuflá-los ao golpismo, está no livro "Poder Camuflado", de Fabio Victor, de que falei aqui na quinta-feira (8). Os detalhes de como isso se deu não cabem neste espaço. É ler para crer como um sujeito aparentemente tão tosco pôs a seus pés homens que se pretendem estudiosos, responsáveis e justos.

Talvez Bolsonaro não fosse tão tosco. Talvez tenha aprendido a ler a cabeça dos militares que, no passado, estabanadamente desafiara. Talvez os tenha convencido de que, no poder, botaria em prática as ideias deles. Talvez por isso os militares passassem a ver nele o messias cuja volta esperavam.

Não tem como errar. Todas as opções acima estão corretas.

Ruy Castro, o autor deste artigo, é Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues. Membro da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 08.12.22

A ultra mancha na Alemanha: um problema subestimado que traz à tona o plano golpista

Radicais de extrema direita são a maior ameaça à segurança do país, que até recentemente minimizava sua periculosidade

Ministério Público alemão diz que organização planejava usar "meios militares" para tomar o poder

A polícia alemã transfere um dos detidos na operação antiterrorista de um helicóptero, em 7 de dezembro de 2022. (Michael Probst - AP)

A trama do príncipe Heinrich XIII e seus veteranos correligionários para dar um golpe na Alemanha pode parecer risível se permanecermos na superfície. O que eles queriam - derrubar um governo democrático - não correspondia aos meios nem aos apoios de que dispunham. No entanto, isso não diminui um pingo de perigo para um bizarro grupo humano.composta por um aristocrata, ex-comandantes militares e de polícia, um ex-vice-juiz do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha e uma série de profissionais (um cozinheiro, um tenor, um médico) que tinham em comum a crença em uma conspiração delirante teorias . Eles tinham acesso a armas, sabiam como usá-las e estavam dispostos a pegá-las. Por isso, o desmantelamento dessa suposta rede terrorista colocou mais uma vez sobre a mesa um problema que a Alemanha ignorou por muito tempo: o extremismo de direita.

Ofuscado por anos pelo terrorismo islâmico, em 2020 o então ministro do Interior, o conservador Horst Seehofer, anunciou uma mudança de atitude em relação a esse perigo interno. “O extremismo de direita é a maior ameaça que nosso país enfrenta atualmente ”, proclamou. Apenas alguns meses antes, um atirador de extrema-direita havia assassinado nove pessoas de origem estrangeira em Hanau . O ataque mais sangrento, mas não o único, ao qual se somaram uma série de escândalos de infiltração de extrema-direita no exército e na polícia. A mais contundente obrigou à dissolução de uma das companhias de uma unidade de elite cujos soldados e comandantes haviam roubado armas e trocado apetrechos nazistas.

“Os extremistas de direita são justificadamente classificados como a maior ameaça porque estão dispostos a usar a violência para atingir seus objetivos antidemocráticos. Bastam alguns para causar grandes estragos”, adverte Alexander Yendell, pesquisador da Universidade de Leipzig especializado em extrema direita e autoritarismo. Além disso, seu número está crescendo. O Gabinete para a Proteção da Constituição, os serviços secretos internos alemães, detetou em 2021 mais elementos potencialmente violentos do que em 2020 entre os Reichsbürger (cidadãos do Reich), o movimento que nega a legitimidade do moderno Estado alemão, ao qual vários dos 25 presos esta semana .

Prisão de Heinrich XIII em sua casa em Frankfurt. (DPA Via Europa Press)

Na Fundação Amadeu Antonio, que leva o nome de um trabalhador angolano assassinado por neonazistas em 1990, eles monitoram o ambiente do Reichsbürger há mais de uma décadae detectamos uma crescente radicalização. “Eles eram considerados estranhos, marginais, que queimam passaportes e não querem pagar impostos e fingem viver em seu próprio reino. Mas as crenças que os unem foram subestimadas: ao não aceitarem a existência do Estado alemão, tornam-se muito violentos com os representantes do Estado”, diz seu porta-voz, Lorenz Blumenthaler. Embora algo tenha passado despercebido na época, um de seus integrantes assassinou um policial das forças especiais (SEK) durante uma operação em 2016. O homem, que havia se radicalizado online, havia comentado em um bar que sabia que estava sendo vigiado e que planejava levar "alguns policiais" na frente se fossem procurá-lo.

Os golpistas liderados pelo aristocrata pretendiam iniciar uma guerra civil antes do Natal. Eles planejaram atacar a rede de energia, invadir o Bundestag e criar o caos no país para estabelecer uma "nova ordem" com um exército recém-criado. Eles falaram sobre submeter promotores e juízes a um julgamento que chamaram de "Nuremberg 2.0".

Os especialistas concordam que a Alemanha subestimou o problema por muito tempo. Para Blumenthaler, a explicação deve ser buscada, em parte, na história, em uma “falta de desnazificação” que permitiu a sobrevivência de comunidades de extrema direita. Durante anos, “o problema da violência da extrema-direita foi minimizado porque seus alvos eram principalmente as minorias: moradores de rua, imigrantes, esquerdistas, judeus ou deficientes”, diz ele. A sua fundação documentou 219 vítimas desde 1990, ano da reunificação alemã, enquanto os números oficiais "continuam a ser significativamente mais baixos hoje", sublinha.

Os assassinatos de Kebab

O melhor exemplo é o que foi apelidado de “assassinatos de kebab” na época, porque dois deles ocorreram em restaurantes de fast food turcos. Uma série de 10 mortes inexplicadas de imigrantes foi atribuída a máfias estrangeiras e acertos de contas até que a polícia descobriu, anos depois, que um grupo terrorista neonazista chamado NSU estava por trás disso. O chefe dos serviços secretos teve de renunciar devido aos erros monumentais cometidos durante a investigação. Blumenthaler aponta que agora que o terrorismo de direita tem como alvo o Estado e seus representantes, "o assunto adquiriu um novo grau de relevância política".

A Alemanha sofreu vários ataques sangrentos realizados por radicais de direita nos últimos anos. A mais recente é a de Hanau, em 2020 , quando um ultradireitista com ideias "profundamente racistas" misturadas com teorias da conspiração, disparou indiscriminadamente em dois bares frequentados pela comunidade turca. Em 2019, um neonazista atirou e matou o político Walter Lübcke , um conhecido defensor da política de refugiados de braços abertos da Alemanha. Meses depois, outro ultradireitista tentou entrar armado na sinagoga de Halle e, não conseguindo, matou duas pessoas que passavam na rua .

Birgit Malsack-Winkemann durante um discurso no Parlamento alemão em 8 de dezembro de 2020. (Stringer Reuters)

O desmantelamento da quadrilha golpista também trouxe à tona a conexão entre os radicais violentos e a Alternativa para a Alemanha (AfD), um partido legal que entrou pela primeira vez no Bundestag em 2017 levantando críticas à política alemã de refugiados após a crise migratória em 2015. Entre A detida é Birgit Malsack-Winkemann, ex-deputada do partido que se dizia ministra da Justiça da nova ordem resultante do golpe. Apesar do fato de que esta legislatura não entrou nas listas, Malsack-Winkemann manteve a permissão para acessar o Bundestag. Ele planejou usá-lo para introduzir duas dúzias de assaltantes armados no histórico prédio do Reichstag e fazer os deputados como reféns.

“Sempre que um grupo de extrema direita é preso, há links para o AfD ou seus membros”, diz Blumenthaler. O chanceler, Olaf Scholz, garantiu que a presença de políticos na lista de presos "é obviamente um caso mais do que notável e muito grave". Além da ex-deputada, que até sua prisão na quarta-feira era juíza em um tribunal de Berlim, Christian Wendler, que fazia parte de um grupo local da AfD na Saxônia, está sob custódia. “Será necessário ver o quão próximas são as conexões e quem mais está envolvido, mas há outro problema: a operação mostrou que o Reichsbürger lida com dinheiro. Sabemos que existem empresários ricos que financiam grupos de extrema direita e será importante monitorar os fluxos de dinheiro”, acrescenta Yendell.

Em um país teoricamente vacinado pela história do século 20, a mancha da extrema direita se espalhou nos últimos anos por meio do exército e das forças de segurança. Vários governos regionais tiveram que intervir depois de descobrir grupos de bate-papo de funcionários com mensagens racistas e anti-semitas. No ano passado, a Defesa teve que retirar um pelotão inteiro de uma missão da OTAN na Lituânia por entoar cânticos anti-semitas e dedicar parabéns a Adolf Hitler em uma festa. Os exemplos estão se acumulando. Um relatório recente do Gabinete para a Proteção da Constituição contabiliza mais de 300 casos entre julho de 2018 e julho de 2021 de membros das forças de segurança com atitudes de extrema-direita (insultos racistas, gritos de Sieg Heil, a saudação de Hitler com o braço levantado) ou conexões com os cidadãos do Reich ou partidos neonazistas.

A secretária do Interior, Nancy Faeser, há muito trabalha em um projeto de lei para expulsar rapidamente os extremistas das instituições. Agora, os arquivos levam em média quatro anos. A macrooperação contra o Reichsbürger — com 54 suspeitos em 11 dos 16 estados alemães, Áustria e Itália — deu nova urgência a este texto, noticia o Der Spiegel , que adianta o rascunho do texto, onde se lê: "Funcionários cujos comportamento que contradiz abertamente os valores básicos da democracia parlamentar são inaceitáveis ​​no funcionalismo público”.

Elena G. Sevillano, a autora desta reportagem, é correspondente do EL PAÍS na Alemanha. Antes, lidava com informações judiciais e econômicas e fazia parte da equipe de Investigação. Como especialista em saúde, acompanhou a crise do coronavírus e co-escreveu o livro Estado de Alarma (Península, 2020). É formada em Tradução e Jornalismo pela UPF e mestre em Jornalismo pela UAM/El País. Publicada originalmente por EL PAÍS, em 11.12.22

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Mais respeito à Constituição

País tem de sair da arapuca montada por Bolsonaro. Relação entre civis e militares não é mais nem menos delicada do que a relação entre civis com quaisquer outras instituições de Estado

É espantoso o rumo que tomou o debate público sobre a relação entre as autoridades civis e militares no País. É como se o que está escrito na Constituição – que determina em português cristalino quais são os papéis de uns e de outros na República – tivesse virado letra morta. Eis mais um legado nocivo do presidente Jair Bolsonaro. Nos últimos quatro anos, o atual mandatário instrumentalizou politicamente as Forças Armadas em seu benefício pessoal, inclusive dando voz a uma interpretação extravagante do artigo 142 da Lei Maior, e tentou por diversas vezes minar o poder dos governadores sobre as Polícias Militares.

Toda essa celeuma criada em torno da nomeação do futuro ministro da Defesa é o exemplo mais recente desse debate totalmente desarrazoado que se instalou no País.

Desde a criação do Ministério da Defesa, em 1999, a escolha do titular da pasta nunca despertou tanta atenção da sociedade nem tampouco gerou tanta apreensão como agora. É como se, a depender do nome escolhido pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, os militares fossem se insurgir ou permanecer leais ao seu futuro comandante em chefe.

Ora, no Estado Democrático de Direito, o poder militar (armado) submete-se ao poder civil (político). As Forças Armadas, portanto, não são atores institucionais com ingerência sobre atos próprios da vida civil nem muito menos sobre as prerrogativas constitucionais do presidente da República. Diálogo ou até mesmo negociação jamais devem ser confundidos com chantagens ou ameaças, veladas ou explícitas.

O Estadão apurou que, no dia 28 passado, Lula convidou José Múcio Monteiro, ex-ministro de Relações Institucionais (2007-2009) e ex-presidente do Tribunal de Contas da União (2019-2020), para assumir o comando da Defesa. Tido e havido como um hábil negociador, Múcio foi incumbido pelo presidente eleito de criar “um ambiente de diálogo” entre o futuro governo e a caserna.

Consta que a escolha de Lula teria desagradado aos dirigentes de partidos políticos aliados e aos parlamentares petistas, que pugnavam por outro nome à frente do Ministério da Defesa. Nos bastidores, os críticos de José Múcio Monteiro dizem que ele seria “o candidato do Forte Apache”, em referência ao quartel-general do Exército, como se isso fosse uma mácula por si só. De fato, Múcio é figura benquista no meio militar; e o momento tormentoso que o País atravessa impõe diálogo e temperança às autoridades constituídas.

Mas a questão fundamental é a seguinte: a rigor, o apreço ou a antipatia de lideranças civis ou militares em relação a José Múcio Monteiro – ou a qualquer outro ministro escolhido por Lula – são sentimentos absolutamente irrelevantes à luz da Constituição.

Cabe única e exclusivamente ao presidente da República, convém lembrar, “nomear e exonerar os ministros de Estado” e “exercer o comando supremo das Forças Armadas, nomear os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, promover seus oficiais-generais e nomeá-los para os cargos que lhes são privativos” (artigo 84, incisos I e XIII, da Constituição, respectivamente).

Portanto, Lula da Silva pode estabelecer os critérios que julgar mais convenientes não apenas para nomear seus ministros, como também os comandantes das Forças Armadas. Esse poder deriva da legitimidade conferida aos mandatários pelas urnas. E todos devem respeitar a decisão do presidente eleito, seja qual for. É o que determina a Constituição.

Do mesmo modo, não tem qualquer cabimento discutir projetos que ampliem ou reduzam o poder de governadores de Estado sobre as Polícias Civil e Militar. A Constituição também é de uma clareza solar nessa matéria.

O País tem de se desvencilhar da arapuca montada por Bolsonaro. A relação entre autoridades políticas constituídas e as Forças Armadas não é mais ou menos delicada do que a relação com quaisquer outras instituições de Estado. Trata-se de uma relação pautada, antes de tudo, pelos termos da Constituição e pelo interesse público. Qualquer coisa fora disso serve a desejos de poder e veleidades, não ao Brasil.

Editorial / Notas e Informações / O Estado de S.Paulo, em 05.12.22

Uma conta insustentável

Subsídios embutidos na conta de luz chegaram a quase R$ 26 bi neste ano. Governo eleito precisa enfrentar o tema e manter benefícios apenas aos grupos que realmente façam jus a eles

No apagar das luzes da atual legislatura, tramita na Câmara um projeto de lei que prorroga os benefícios de consumidores que instalam painéis solares em suas residências. Para que os donos dessas estruturas se livrem do pagamento de todas as taxas de transmissão e distribuição por 30 anos, o texto repassa esse custo aos consumidores que não possuem painéis em suas casas. Se aprovada, a proposta deve ampliar o volume de subsídios embutidos na conta de luz em R$ 40 bilhões, segundo a Frente Nacional dos Consumidores de Energia.

O projeto é um exemplo claro de políticas que transferem renda dos mais pobres para os mais ricos, mas não é o único. Neste ano, os consumidores já pagaram quase R$ 26 bilhões em subsídios, como mostra uma ferramenta lançada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o “subsidiômetro”. Não fossem esses descontos para tantos grupos de interesse, as tarifas poderiam estar 12,59% mais baixas.

Esse assunto se tornou uma das questões centrais do gabinete de transição do governo eleito, de acordo com Mauricio Tolmasquim, coordenador do grupo de energia da equipe. Ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Tolmasquim defendeu um pacto entre os agentes do setor elétrico para frear o avanço de uma rubrica que está a ponto de tornar a conta de luz impagável. “Cada associação tenta passar a sua medida. É a lei da selva, e quem paga é o consumidor. É um drama que esse país está vivendo”, disse. “Até quanto os consumidores vão aceitar pagar a conta?”, questionou.

Tolmasquim tem razão. Nos últimos anos, não houve uma única proposta a tramitar no Legislativo que tenha passado incólume de tentativas de criar ou ampliar subsídios e outros custos do setor elétrico por meio de “jabutis” – emendas que tratam de assuntos que nada têm a ver com o texto original. A proposta que permitiu a privatização da Eletrobras foi uma das mais recentes, ao obrigar o governo a contratar termoelétricas a gás em locais sem reservas nem gasodutos. No caso dos painéis fotovoltaicos, seus defensores diziam que o pagamento das tarifas que todos são obrigados a pagar seria o mesmo que “taxar o sol”. É um evidente caso de greenwashing, em que empresas recorrem a um discurso pretensamente verde como desculpa para defender a rentabilidade de seus próprios negócios.

Ao longo dos anos, a conta de luz se tornou um meio de financiar um orçamento paralelo. Diferentemente do Orçamento-Geral da União, no entanto, não há nem mesmo um esburacado teto de gastos para conter o avanço dos subsídios. Não há mecanismos de fiscalização e controle sobre o uso dos recursos. Não há avaliação dos resultados das políticas que as tarifas custeiam. Criar uma nova despesa na conta de luz não requer nem mesmo encontrar uma fonte para financiá-la. Basta aumentar as tarifas e deixar o desgaste político com a Aneel.

A energia é uma das variáveis mais importantes de uma economia. Uma conta de luz muito alta compromete a renda das famílias e reduz sua capacidade de consumo. Para a indústria, o custo da eletricidade é um dos indicadores a definir se um país oferece condições para receber novos investimentos. Se na teoria todos concordam com essas afirmações, a prática dos parlamentares e das associações tem sido muito diferente. O governo, por sua vez, tem sido convenientemente leniente nos debates sobre esse assunto para não ter de arcar com algo que tem sobrado para o consumidor.

A disparada do custo da energia em toda a Europa em razão da guerra entre Rússia e Ucrânia abre oportunidades de desenvolvimento para o Brasil, que já detém uma matriz majoritariamente limpa. Para aproveitá-las, no entanto, o governo eleito precisará enfrentar o Congresso e as associações, mantendo subsídios apenas para aqueles que realmente façam jus aos benefícios, como as famílias de baixa renda e projetos como o Luz para Todos e o Mais Luz para a Amazônia. O diagnóstico já existe e não vem de hoje, mas exige mais do que discurso. É preciso haver vontade, liderança e articulação política.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 05.12.22

A perna de Bolsonaro

O vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) usou um canal no aplicativo de mensagens Telegram para divulgar uma foto da perna do presidente Jair Bolsonaro (PL) no domingo (4).


De acordo com ele, a foto foi "tirada poucos dias atrás" e o presidente está com erisipela, um tipo de infecção bacteriana que atinge a pele e causa uma inflamação.

"Fui informado que nesta fase já estava em processo de recuperação e tudo corre muito bem", informou.

As notícias de que o presidente estava se recuperando de uma ferida na perna começaram a circular logo após o segundo turno das eleições de 2022, em que Bolsonaro foi derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Entenda a seguir o que é erisipela, quais são os principais sintomas da doença e como os médicos costumam diagnosticar e tratar esse problema

Invasão bacteriana

A Associação de Dermatologistas Britânicos explica que o quadro começa com algum ferimento na perna.

É justamente através dessa brecha que algumas bactérias vão entrar no organismo e se instalar nas camadas superficiais de pele e gordura.

E o início da enfermidade não depende de um machucado muito grande: um arranhão, uma picada de inseto ou uma injeção já podem servir como porta de entrada para esses micro-organismos.

Outras possíveis causas da enfermidade são:

Frieiras;

Micoses;

Dermatite atópica;

Úlceras na pele;

Inchaços nos vasos linfáticos (conhecidos como linfedemas);

Consumo excessivo de álcool;

Doenças que afetam o fígado;

Obesidade;

Diabetes mal controlado;

Problemas imunológicos decorrentes da idade, de doenças ou do uso de medicações específicas.

O Manual MSD informa que as bactérias mais comuns na erisipela são os Streptococcus do grupo A.

Outros agentes que também podem estar por trás do quadro são: Staphylococcus aureus, Klebsiella pneumoniae, Haemophilus influenzae, Escherichia coli, entre outros.

A erisipela costuma aparecer nas pernas, na região acima dos tornozelos Getty Images)

Os sintomas

O Ministério da Saúde explica que os primeiros sinais de erisipela "podem ser aqueles comuns a qualquer infecção: calafrios, febre alta, fraqueza, dor de cabeça, mal-estar, náuseas e vômitos".

As alterações na pele não demoram a aparecer. Nos casos mais simples, elas se manifestam a partir de vermelhidão, inchaço e dor.

Mas alguns pacientes desenvolvem bolhas escuras (amarelas e marrons) ou feridas por necrose (a morte das células da região).

Outro sinal comum de erisipela é um inchaço localizado na virilha, conhecido popularmente como íngua.

A enfermidade costuma aparecer com mais frequência nas pernas, especialmente na região logo acima dos tornozelos, e no rosto.

A Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular calcula que a doença afeta até 15% da população mundial em algum momento da vida.

A enfermidade é mais comum em pessoas acima dos 60 anos, que têm uma maior taxa de problemas de circulação nos vasos sanguíneos e linfáticos.

Vale reforçar ainda que a erisipela não é uma doença contagiosa.

Diagnóstico e tratamento

As características da lesão já são suficientes para um médico reconhecer a erisipela durante a avaliação no próprio consultório.

Em algumas situações, o quadro pode ser confundido com a celulite bacteriana, que também é uma infecção cutânea. A diferença é que o segundo problema acomete camadas mais profundas da pele.

A Sociedade Brasileira de Dermatologia sugere que "o tratamento deve ser instituído o mais breve possível".

Antibióticos como a penicilina são a base para acabar com as bactérias que estão infectando a pele.

A prescrição depende de uma receita médica — e o tratamento deve ser seguido à risca para evitar recaídas ou a volta da infecção depois de uma melhora inicial.

Além dos remédios, os profissionais de saúde costumam indicar repouso e manter a perna acometida em elevação. Essas táticas são importantes para diminuir o inchaço e acelerar a recuperação.

Em situações mais graves, quando a lesão na pele está muito complicada, os especialistas precisam apelar às cirurgias para remover e drenar as áreas com pus e necrose.

Outro aspecto fundamental do tratamento é lidar com o fator desencadeante da infecção.

Ou seja: o paciente precisa cuidar e controlar frieiras, micoses, inflamações e as outras portas de entrada dos micro-organismos, para evitar novas erisipelas no futuro.

A erisipela também pode aparecer no rosto (Getty Images)

Formas de prevenção

O Ministério da Saúde informa que "crises repetidas de erisipela podem ser evitadas através de cuidados higiênicos locais".

A principal dica é sempre manter os espaços entre os dedos limpos e secos, tratar adequadamente as freiras e evitar ou cuidar bem dos ferimentos que eventualmente aparecerem na pele.

Por fim, a Sociedade Brasileira de Dermatologia acrescenta que o controle adequado de doenças que podem afetar diretamente a pele ou o processo de cicatrização — como a dermatite atópica e o diabetes — também é fundamental para evitar a erisipela.

André Biernath - @andre_biernat da BBC News Brasil em Londres, em 05.12.22 -(Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63860257)

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Xandão é o ‘Filho do Século’ do Estado de Direito

“Xandão” não se impressionou com os blefes golpistas e suas ameaças de morte. Não tremeu de medo nem vacilou, sem ter vínculos ideológicos com a esquerda

Ministro Alexandre de Moraes, em sessão plenária do TSE. (Foto: Abdias Pinheiro/SECOM/TSE)

Muitas pessoas de dentro das instituições do Estado – aqui quero me referir a estas sem compará-las com aquelas que na sociedade civil e nos partidos lutaram heroicamente para sustar o avanço do fascismo – merecerão serem lembradas ao longo da nossa história por não desistirem da democracia, num momento de avanço do fascismo em nosso pais. São merecedoras de destaque, pela sua coragem e determinação de denunciar e resistir aos assédios do mal, à ira do seu mito e inclusive aos apelos de moderação da sua conduta.

Estes apelos à moderação para resistir eram e são feitos como se estivéssemos enfrentando adversários políticos normais da democracia, não uma grupo criminoso organizado no Estado para dissolver o Estado de Direito e subordinar todos os seus aparatos à direção unívoca e arbitrária do seu líder – megalômano sem projeto – e também diretor criminoso de um grupo político familiar e não familiar, totalmente fora da lei e radicalmente contra a ordem democrática de 88.

O deputado socialista Giacomo Matteotti, radical na luta antifascista, democrata de esquerda e igualmente de oposição à linha dos comunistas italianos, na fervilhante disputa sobre o futuro da Itália no Século XX, apresentara ao Parlamento (sessão de 30 de maio de 1924) provas das ilegalidades, financiamentos criminosos, violências e assassinatos cometidos por Mussolini e suas esquadras na campanha eleitoral. Era o dia em que Matteotti fora à Tribuna fazer mais uma acusação contra o Duce, afirmando que ele “usaria da força” para – a partir da maioria eleitoral obtida mediante violências e fraudes eleitorais – impor uma ditadura à República Italiana.

Mussolini furioso – no ato e ainda no recinto parlamentar – ordenou então aos seus que castigassem Matteotti “por sua insolência”. Depois de pronunciar sua oração, em 30 de maio de 1924 o deputado ameaçado dissera aos seus colegas de bancada: “Agora podem preparar minha oração fúnebre”. Em 10 de junho de 1924, em Roma, ele é assassinado a punhaladas, depois de ter sido espancado por seus múltiplos assassinos. Assassinatos análogos a este, já ocorreram no país e mais ocorreriam não fossem a resistência popular e a coragem de algumas pessoas de dentro e de fora do próprio aparato de Estado.

Prestemos atenção em dois pequenos fatos que caracterizam todo um período neste ciclo: um cidadão indicado como líder de um grupo neonazista em Casca, no Rio Grande do Sul, sente-se à vontade para entrar com violência num escritório de advocacia, neste 23 de novembro de 2022 e espancar uma advogada que denunciara ameaças neonazistas na cidade, seguindo-a até a rua, onde abertamente prossegue com sua explosão de ódio. O cidadão – evidentemente de extrema periculosidade – vai à Polícia, é ouvido e a seguir liberado. No dia da eleição, nas regiões em que o candidato Lula, tem apoio maciço, ônibus são bloqueados, as pessoas são obrigadas a postar-se como presas, com as mãos à cabeça, num processo de intimidação pública à cidadania, que não se via nem nas eleições rituais durante o Regime Militar.

Contraponto: em pleno ano da graça de 1972 em que a ditadura civil-militar no Brasil estava em alta, mas sob a chancela do Ministério da Educação – com a anuência do Conselho Federal de Educação e Cultura – é republicado o livro antológico de Djacir Menezes “O Brasil no pensamento brasileiro” (de 1956), composto por textos lapidares da nossa elite intelectual, das mais variadas origens ideológicas. Parte da esquerda ainda tentava resistir de forma armada à ditadura -sem sucesso por falta de meios e apoio popular – e Golbery ainda não tinha entrado em ação de forma aberta, para encaminhar a distensão “lenta, gradual e segura.”

Na obra estão Moysés Vellinho, José Honório Rodrigues, Alceu de Amoroso Lima, Anísio Teixeira, Pontes de Miranda, José de Alencar, Victor Nunes Leal, Josué de Castro, Gustavo Corção e Caio Prado Júnior, para mencionar apenas alguns dos “grandes” que foram selecionados. Concluam sobre a diferença com o tempo presente: de um lado, nos idos de 70, uma ditadura que tem um projeto autoritário de país, integrado no campo imperialista e antissoviético, que publica textos de diferentes visões de mundo, no auge da sua força.

De outro lado -hoje – num Governo de medíocres incultos, sectários e extremistas de direita, indica-se para Ministério de Educação um tal de Weintraub, que cultuava como seu líder intelectual e moral um “astrólogo” facínora, tido por ele como referência ética e cultural. É o mesmo Governo que designa como Ministro de Relações Exteriores um tipo ignorante como Ernesto Araújo, que aposta que o melhor para o seu país é ser um pária mundial! A identificação do nosso país com Olavo de Carvalho e com a vontade retrógada e medieval de nos tornarmos um país pária mundial vai custar muito para ser superada nos países civilizados, independentemente dos seus Governos, mais ou menos acessíveis à democracia política moderna.

Como isso foi possível? Quando foi implantado o Regime Militar de 64 os militares já tinham uma elite política a seu serviço na sociedade civil, promovendo a organização do Golpe e formando, depois, um poderoso partido político servil ao Governo, cujo funcionamento disciplinado ocorreu por no mínimo dez anos, até desgastar-se, processualmente com as crises sucessivas do modelo econômico. É importante salientar que no Golpe de 64 os militares tinham um projeto para o país e tinham uma representação política forte nos partidos da direita conservadora, que interagiam com a intelectualidade da academia e fora dela e com as lideranças mais proeminentes da sociedade civil orientada para o conservadorismo e o ritualismo democrático.

No golpismo bolsonárico o “líder” se apressou em montar estruturas paralelas junto ao crime organizado e armar civis para disputar o monopólio da força e das armas com as próprias instituições militares. No episódio atual, portanto, Bolsonaro – o “mito” – tentou formar o “partido militar” depois da eleição, buscando cooptar centenas de militares para cargos de Governo, mas sem conseguir dominar a caserna. Sua pobreza moral e intelectual, sua incapacidade de formular um projeto de nação, por mais tacanho que fosse, impediu que ele se tornasse um verdadeiro líder das corporações Armadas, o que impediu a tentativa de mais um golpe clássico, de caráter militar, na América Latina, que poderia ter sucesso se conseguisse acolhimento no exterior.

Talvez aquele volume de Djacir Menezes seja pouco lembrado pelos nossos jovens pensadores da política e da sociologia no Brasil, embora ele possa fazer toda a diferença para marcar a especificidade, entre o que ocorreu no Brasil nos anos do Regime Militar – à época associado plenamente aos desígnios imperialistas dos Estados Unidos – e aquilo que ocorreu de distópico e duplamente decadente, no regime político representativo do nosso país, que redundou na eleição de um Capitão reformado que veio “para destruir”, como ele mesmo declarou em várias oportunidades.

A decadência da nossa representação liberal-democrática ocorreu, de uma parte, primeiramente porque no próprio exercício democrático da política (que se mantém à beira do precipício infinito) a ordem passou a ser rompida sem que fosse rasgada formalmente a Constituição; num segundo momento, tal ruptura processual tornou-se hegemônica, por um largo tempo, com o apoio dos principais meios de comunicação, esperançosos – junto com a maioria dos empresários que os financiam – que Bolsonaro destruísse a proteção social e trabalhista, depois de obter uma ampla maioria popular.

A maioria delegante outorga nas eleições, então, um mandato legítimo para a extrema direita expandir tranquilamente seu ódio assassino, abrigada dentro das instituições do Estado, que estão divididas e vacilantes, entre o oportunismo adesista ao fascismo, como ocorrera na Alemanha e na Itália e a manutenção da legalidade democrática do Pacto de 88. Feitas as principais reformas, todavia, vem o Orçamento Secreto, que traz à tona um projeto de poder que desloca do poder orçamentário as elites capitalistas para fora das “regras do jogo” previsto na Lei Maior, quando estas passam a buscar na chamada “terceira via” uma solução para sua crise de hegemonia política.

A instituição militar, portanto, não gerou de forma organizada uma situação eleitoral favorável para Bolsonaro ser reeleito, nem se entregou em massa para sua defesa incondicional, diferentemente do que ocorrera em 64. As formas de ilegalidade cometidas em 64 – pronunciamento militar seguido da destruição do tecido constitucional legítimo para tentar legitimar outro – foi gerada por militares e civis que se rebelaram “nos idos de março” contra a “causa” comunista, com a defesa de um projeto de Estado-nação forte e autoritário, que – segundo seus líderes civis e militares – integraria o país (por uma ditadura datada) no “mundo ocidental e cristão”.

Já no caso do ascenso do “regime bolsonárico” – um político medíocre que disse ser adepto do assassinato dos seus adversários e ter afirmado que viria para “destruir”, há uma corrosão do sistema “por dentro” das instituições. E ele o faz com o apoio majoritário do Congresso e ergue o fascismo – sem o apoio expresso ou o estímulo das instituições militares – à condição de uma alternativa política concreta, quase consagrada num processo eleitoral de reeleição, no qual ele lutou até o fim para fraudar. Os tempos já eram outros, a grande imprensa e as elites burguesas saturaram da sua vulgaridade e temeram que a destruição do país, que ele já estava executando, pudesse chegar aos seus negócios de uma maneira avassaladora.

“M. o filho do Século”, é o livro de Antonio Scurati, que narra a ação política de Mussolini entre o período que vai de 1919 e 1925, narrativa calcada numa vasta documentação da época, que mostra o ascenso da vontade contra a força das instituições. Aponta os namoros dos velhos políticos liberais italianos com o autoritarismo, a cínica postura dos monárquicos, a tentativa de cooptar os intelectuais – no que M. foi bem-sucedido em parte – a grandeza épica da fala do “mito”, reinventando o passado e redesenhando as promessas para ao futuro, junto aos ouvidos das massas cansadas do liberal–democratismo retórico, sem resultados na sua vida cotidiana.

O filho do século, no protofascismo brasileiro, todavia, não estava próximo às estruturas do Estado, nos lugares onde se reproduzia o golpismo bolsonárico (Congresso e Executivo), nem na sociedade civil, que as lideranças fascistas tentavam se organizar com dinheiro e com as promessas utópicas da volta ao passado medieval. Nem era um partido de oposição, nem um mito, nem um grupo; nem era um político de vulto e de responsabilidade como Lula. O filho do século não estava fascinado em observar diretamente o “fascismo societal” em curso, pois era “por dentro do Estado”, submetendo Executivo e as representações do Parlamento que o golpe poderia prosperar. Não tremeu de medo nem vacilou: usou e usa capa preta e não tem vínculos ideológicos com a esquerda.

“Xandão”, sem se impressionar com os blefes golpistas e suas ameaças de morte, é o nosso Filho do Século nas instituições do Estado, de modo inverso ao de Mussolini, descrito por Scuratti: sua arma foi e é a Constituição e sua vontade corajosa dentro do STF, foi a maior de todas, desde que a Constituição de 88 foi proclamada por Ulysses Guimarães, que tinha ”nojo da ditadura” e de todos os ditadores. Provisoriamente, a democracia venceu, mas agora temos que vencer o ódio que os fascistas disseminaram como uma peste medieval, cuja vacina – desdobrada no tempo – deve ser mais democracia, mais comida na mesa, mais educação, liberdade e reconciliação com um futuro de segurança e paz: sem armas e sem gangues de assassinos daqueles “filhos do século” que cultuam a morte e a violência infinita.

(*) Tarso Genro, o autor deste artigo, foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. / Nota do editor do blog: o título mais aplicável à personagem deste artigo, o Ministro Alexandre de Moraes, tirado do primeiro volume de Antonio Scurati, seria "o homem da providência" (segundo volume da trilogia de Scurati.) E não "o homem do século". Falei hoje sobre esse artigo do Ministro Tarso Genro com o Ministro Alexandre de Moraes no TSE e ele me disse que gostou muito.

Os inimigos do Estado

Dados reunidos pela equipe de transição sobre o governo Bolsonaro expõem mais que cortes orçamentários: trata-se de profunda desestruturação do Estado em suas várias dimensões

Passeando de moto no horásrio de trabalho

A derrota de Jair Bolsonaro parece ter livrado o País das amarras que o modus operandi do presidente impunha ao funcionamento das instituições de Estado. Já se sabia dos efeitos do descalabro bolsonarista em políticas públicas voltadas ao meio ambiente, educação, ciência e cultura, mas o que surpreende é o quão bem-sucedido o governo foi em destruir áreas que não pareciam estar na mira presidencial, como saúde e assistência social.

Ainda na campanha, a apresentação do Orçamento de 2023 já era um prenúncio de tempos difíceis, com tesouradas brutais em programas como o Farmácia Popular e a ausência de recursos para garantir o piso do Auxílio Brasil. O gabinete de transição do futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no entanto, tem sido alimentado com relatos diários sobre o caos generalizado que terá de enfrentar no que diz respeito ao provimento de serviços públicos essenciais.

Com quase 700 mil mortes, uma nova onda de casos e cobertura vacinal insuficiente, o País pode ter de descartar 13 milhões de doses de imunizantes contra a covid-19 com prazo de validade prestes a expirar. O prejuízo, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), pode chegar a quase R$ 2 bilhões. Alegando tratar-se de informações reservadas, o Ministério da Saúde resiste ao pedido de informações dos integrantes do governo eleito sobre o estoque de medicamentos na rede pública, desde analgésicos a antirretrovirais para o tratamento de HIV. A pasta tampouco apresentou dados sobre a fila de pessoas em busca de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre a previsão de aquisição de vacinas do Programa Nacional de Imunizações (PNI).

A equipe de transição recebeu a informação de que há 5 milhões de processos referentes a benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) com análise atrasada. O jornal Valor mostrou que beneficiários do Auxílio Brasil têm tido os pagamentos bloqueados sem motivo aparente. Solucionar o problema exige meses de espera para agendar um atendimento presencial nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) – filas que devem explodir com a tardia investigação sobre o crescimento de famílias unipessoais no Cadastro Único (CadÚnico), convenientemente iniciada somente depois do segundo turno.

Há muitos outros casos a confirmarem o quadro, e talvez não seja por acaso que o gabinete de transição tenha reunido mais de 400 pessoas – a imensa maioria trabalhando sem remuneração – dispostas a fazer um diagnóstico das urgências a serem enfrentadas em 2023. A substituição da figura agressiva, vingativa e desagregadora de Bolsonaro pelo vulto apático que o revés eleitoral evidenciou parece ter encorajado muitos servidores até então silenciados a colaborar na descrição das consequências práticas da balbúrdia a que o País foi submetido nos últimos quatro anos.

Toda a prioridade do governo eleito tem sido dada à construção de acordos pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, solução escolhida para recompor a verba de programas prioritários do Orçamento de 2023. As informações reunidas pelo gabinete de transição revelam mais do que simples cortes de verbas e necessários remanejamentos orçamentários, mas uma profunda e generalizada desestruturação do Estado em suas mais diversas dimensões – em especial das raras políticas públicas que venciam todos os obstáculos até chegar efetivamente às famílias mais carentes.

“Quanto mais Estado, pior”, vaticinou o presidente, em uma entrevista que concedeu à revista Veja entre o primeiro e o segundo turno da eleição. Em vez de proporcionar mais foco, prioridade, eficiência e qualidade ao gasto público, o bolsonarismo apostou em uma sociedade quase feudal, em que cada um deve lutar pela sobrevivência literalmente com suas próprias armas. Diante dos péssimos resultados que o País colheu, cabe perguntar como Bolsonaro conquistou quase metade dos votos na disputa presidencial, bem como refletir sobre o que isso revela sobre as noções brasileiras de cidadania e coesão social.

Editorial / Notas e Informações - O Estado de S. Palo, em 30.11.22