quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Como 13º salário surgiu de greve geral após vitória do Brasil na Copa de 1962

Mas pouca gente conhece a história de uma outra conquista daquele ano: a do 13º salário, benefício garantido em lei sancionada pelo presidente João Goulart em 13 de julho de 1962.

Benefício completa 60 anos em 2022 e foi conquistado sob protesto de empresários e do mercado financeiro (Reprodução O Globo / Acervo Digital)

Em 1962, o Brasil conquistou o bicampeonato na Copa do Mundo. O título veio num 3 a 1 de virada contra a Tchecoslováquia, com Garrincha jogando com febre de 38 graus e o time desfalcado de seu principal craque — Pelé havia se lesionado ainda no segundo jogo.

"O 13º salário é um desses casos de reivindicação surgida no chão da fábrica, legitimada nas relações costumeiras entre patrões e empregados em algumas firmas, transformada em lei às custas de greves, demissões, abaixo assinados, prisões e cuja memória é depois ofuscada pelo brilho da lei que supõe-se, como toda lei, deve ter sido iniciativa de algum presidente, deputado ou senador", escreve o historiador Murilo Leal Pereira Neto.

1ª greve geral do país, em 1917, foi iniciada por mulheres e durou 30 dias

Conheça a história de como, num ano de inflação em alta e embates aguerridos entre direita e esquerda na política, trabalhadores foram à greve geral 18 dias após o bicampeonato mundial e conquistaram o benefício que deve injetar R$ 250 bilhões na economia este ano.

Tudo isso aconteceu sob protestos dos empresários e do mercado financeiro da época, conforme registrou o jornal O Globo, que no dia 26 de abril de 1962 estampou na sua manchete: "Considerado desastroso para o País um 13º mês de salário".

O desastre não veio e hoje 85,5 milhões são beneficiados com o rendimento adicional, segundo o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).

Origem do abono de Natal e início da luta no Brasil

A gratificação de Natal é uma tradição que tem origem em países de maioria cristã, onde alguns patrões tinham o costume de presentar seus funcionários com cestas de alimentos na época das festas de fim de ano.

Essa doação antes voluntária se tornou obrigatória na Itália em 1937, durante o regime fascista de Benito Mussolini, quando o acordo coletivo de trabalho nacional passou a prever um mês adicional de salário para os empregados das fábricas.

Em 1946, o benefício seria estendido às demais categorias de trabalhadores italianos, sendo consolidado através de decreto presidencial em 1960.

No Brasil, os primeiros registros de greves e demandas pelo abono de Natal são de 1921, na Cia. Paulista de Aniagem e na indústria Mariângela, ambas empresas do setor têxtil.

Sob inspiração da Carta del Lavoro (1927) da Itália fascista, o Brasil aprovaria em 1943 sua Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas dela não constava o 13º salário.

Greves e pedidos de demissão em massa: o movimento que pode resultar em ‘CLT’ nos EUA

Naquele mesmo ano, no entanto, o abono de Natal foi conquistado pelos trabalhadores da fabricante de pneus Pirelli, o que levaria a uma greve geral no ano seguinte em Santo André (SP) pelo pagamento do benefício.

"Na onda de greves que se alastrou de dezembro de 1945 a março de 1946, a luta pelo prêmio de final de ano era a principal reivindicação na maioria delas, envolvendo categorias como ferroviários da Sorocabana, trabalhadores da Light, tecelões, metalúrgicos, gráficos e químicos em São Paulo", lembra Pereira Neto, em sua tese de doutorado A reinvenção do trabalhismo no 'vulcão do inferno': um estudo sobre metalúrgicos e têxteis de São Paulo.

'Exigimos o 13º salário para todos os ferroviários', diz faixa em manifestação dos ferroviários de Bauru (SP), em greve pela gratificação natalina

Ferroviários de Bauru (SP) em greve pela gratificação natalina (Acervo do Museu Ferrroviário Regional de Bauru)

"Os patrões ganhavam aquele dinheiro no fim do ano, tudo, chegava e dava um panetone e dava um vinho ruim pro cara. Então nós mostramos a realidade: o trabalhador também precisava passar um Natal melhor", conta João Miguel Alonso, líder metalúrgico, em depoimento recuperado por Pereira Neto, sobre os argumentos usados com os patrões à época.

"Nós sempre levantávamos esse problema desde antes: o trabalhador, no fim de ano, precisava comprar um sapato melhor pro filho, precisava comprar um vestido pra mulher. 'Oh, meu deus do céu, vocês têm que entender, vocês não vão dar a empresa para eles, vocês vão dar apenas o essencial para esse coitado viver, passar um Natal melhor com a família'."

Benefício pago em laranjas

Larissa Rosa Corrêa, professora do Departamento de História da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), observa que a luta dos trabalhadores brasileiros por uma gratificação de Natal não começou já conquistando um salário extra logo de cara.

No artigo Abono de Natal: gorjeta, prêmio ou direito? Trabalhadores têxteis e a justiça do trabalho, ela resgata o relato do líder sindicalista Antonio Chamorro. Ele conta que, quando era operário numa fábrica têxtil em 1946, a primeira vez que os trabalhadores reivindicaram ao patrão uma gratificação de fim de ano, receberam em troca sacos de laranja.

No ano seguinte, pediram cortes de tecido no lugar das laranjas, mas receberam panos considerados de má qualidade e muito quentes para o final de ano. No ano seguinte, os trabalhadores reivindicaram um tecido mais leve e adequado ao verão.

"Aí ele [o patrão] cedeu. Foi uma outra vitória nossa", contou Chamorro, em depoimento ao Centro de Memória Sindical, recuperado pela historiadora.

O líder sindical têxtil Antonio Chamorro em recorte do jornal Voz Operária (RJ), de 1954 (Reprodução "Voz Operária" / Acervo Biblioteca Nacional)

"É interessante observar como os trabalhadores organizados aproveitavam todas as brechas deixadas pelos patrões", observa a professora da PUC-Rio, no estudo. "No caso relatado, o empregador cedeu uma vez; na próxima ele não teve argumentos para não fornecer o benefício novamente, e, desta vez, a gratificação teria que ser melhor, e assim por diante."

A luta pelo abono de Natal atravessaria a década de 1950 e chegaria fortalecida nos anos 1960, em meio ao avanço da inflação, empoderamento dos sindicatos e contexto político inflamado pelas disputas ideológicas da Guerra Fria.

O Brasil dos anos 1960

Naquele início dos anos 1960, uma série de fatores contribuíam para uma crise econômica profunda. Entre eles: um endividamento externo crescente, herdado das políticas desenvolvimentistas do governo Juscelino Kubitschek (1956-61); elevados déficits comerciais; e um aumento da inflação que se agravava desde o final dos anos 1950.

Em 1960, a inflação acumulada foi de 30,5%; no ano seguinte, de 47,8%. Em 1962, ano da conquista da lei do 13º salário, a alta de preços chegaria a 51,6%.

Inflação no Brasil nos anos 1950 e 1960. Variação acumulada no ano, em %.  .

"É um momento de alta inflação e os trabalhadores sentiam que o custo de vida vinha aumentando drasticamente", diz Larissa Rosa Corrêa, em entrevista à BBC News Brasil.

"É um Brasil que estava enfrentando a dívida externa, todas as dívidas provocadas pelo governo Juscelino, com a construção de Brasília", lembra a professora da PUC-Rio.

"Ao mesmo tempo, a indústria nacional passava por um processo de expansão. Então, de um lado os trabalhadores estavam perdendo poder de compra, lutando pela melhoria do custo de vida e, do outro, observavam o lucro das empresas. Embora, no discurso patronal, os empregadores reclamassem sistematicamente da dificuldade de sobrevivência do empresariado brasileiro, sempre argumentando incapacidade financeira."

Na conjuntura internacional, o mundo estava bipolarizado entre Estados Unidos e União Soviética, com um anticomunismo crescente que, no Brasil, se desdobraria no golpe militar de 1964, observa a historiadora.

"Por outro lado, temos a ascensão do movimento sindical e dos movimentos sociais, tanto no campo como no espaço urbano, com sindicalização crescente e muitas greves que marcaram esse período", diz Corrêa, citando como exemplos a Greve dos 300 mil de 1953, a Greve dos 400 mil em 1957 e a Greve dos 700 mil em 1963.

É nesse contexto que João Goulart chega à presidência em 1961, sucedendo Jânio Quadros, que renunciou após apenas sete meses. Jango assume, porém, destituído de parte dos poderes presidenciais, sob um regime parlamentarista, com Tancredo Neves como primeiro-ministro.

"O contexto aí era de embate entre um governo reformista nacionalista e as forças da UDN [União Democrática Nacional, partido conservador], da direita, que resistiam aos projetos das reformas de base", lembra Murilo Leal Pereira Neto, atualmente professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Pressionado pelo conservadorismo, Jango fortaleceu o sindicalismo e os movimentos sociais como base de apoio para seu projeto reformista, o que se configurou num ambiente propício às conquistas trabalhistas.

Mobilização pelas reformas de base teve sempre forte vigilância das Forças Armadas (Arquivo Nacional / Correio da Manhã)

A greve pelo abono de Natal de 1961

Em 1951, um projeto do deputado Muniz Falcão (PSP-AL) sobre a gratificação natalina foi considerado inconstitucional pela Comissão de Constituição da Câmara, que avaliou que a Constituição Federal não permitiria "a interferência do Estado nos encargos financeiros de particulares".

Em 1959, um novo projeto sobre o tema foi apresentado pelo deputado Aarão Seteinbruch (PTB-RJ), já num cenário de acúmulo de lutas por esse direito no chão de fábrica. Assim, já a partir de 1960, a mobilização se concentra em pressionar o Congresso pela aprovação da lei.

Em 13 de dezembro de 1961, os trabalhadores vão à greve pelo abono de Natal, com a mobilização puxada pelos sindicatos dos metalúrgicos e dos têxteis de São Paulo.

"A greve foi um resultado de um processo de luta que durou cerca de oito anos. Durante todos os anos passados, o abono de Natal tinha constado das listas de reivindicações nos dissídios coletivos e sido pauta nas assembleias dos sindicatos", escreve a professora da PUC-Rio.

"Os trabalhadores tinham consciência de que a gratificação jamais seria fruto das negociações com os patrões e muito menos de uma decisão da Justiça do Trabalho", aponta Corrêa, citando avaliação de Afonso Delellis, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, cassado pelo golpe militar de 1964.

A greve foi duramente reprimida, com ao menos 1.300 presos, 50 sindicalistas detidos e o Sindicato dos Metalúrgicos cercado e mantido incomunicável pela polícia.

Cerco policial ao Sindicato dos Metalúrgicos na greve deflagrada por metalúrgicos e têxteis em São Paulo para lutar pelo 13º salário (Memorial da Democracia)

Já no dia 12, o ministro da Justiça, Alfredo Nasser, declarou o movimento grevista ilegal. A Câmara dos Deputados, que havia aprovado o projeto em primeira votação, entrou em recesso, alegando estar sendo coagida e adiando a segunda votação, relata Pereira Neto

Após a greve, a Fiesp recomendou que seus membros pagassem voluntariamente o abono, em um boletim de dezembro de 1961, mas não admitia a aprovação do projeto de lei, acusando o governo de demagogia por apoiá-lo, lembra o professor da Unifesp.

O projeto só viria a ser aprovado em segundo turno na Câmara em 24 de abril de 1962 e no Senado, em 27 de junho daquele ano. Mas ainda faltava a sanção presidencial.

E então veio a greve geral de 5 de julho de 1962.

A greve geral de 1962 e a conquista do 13º salário

Em meio à pressão crescente, o primeiro-ministro Tancredo Neves renuncia e João Goulart indica San Tiago Dantas para substituí-lo. Dantas tinha o apoio da esquerda do Congresso e do movimento sindical, mas sua indicação foi vetada pelos conservadores.

Em resposta ao veto e à indicação para o cargo do conservador Auro de Moura Andrade, o movimento sindical convoca a greve geral de 5 de julho.

Manifestação de bancários grevistas no Rio de Janeiro, em 1961 (Crédito: Memorial da Democracia

"A greve, deflagrada 18 dias após o Brasil conquistar o bicampeonato mundial de futebol — o que desmente análises rasteiras que vinculam os sucessos no futebol a uma 'apatia sócio-política' da população —, afetou sobretudo empresas estatais ou sob controle do governo, embora o setor privado não tenha passado incólume", escreve Rubens Goyatá Campante, doutor em sociologia pela UFMG e pesquisador do Núcleo de Pesquisas da Escola Judicial do TRT-3ª Região, no artigo O 13º veio de uma greve geral.

No Rio de Janeiro, a greve teria sérios impactos. Diante da paralisação dos trens, em meio ao avanço da fome e à crise econômica, a Baixada Fluminense explodiu em uma onda de saques, que deixaria 42 mortos, 700 feridos e mais de 2 mil estabelecimentos atingidos.

"Enquanto a greve se desenrolava no Rio de Janeiro, e em outras unidades da Federação, uma comissão de líderes do comando nacional de greve se encaminhou para Brasília, com o objetivo de manter conversações com João Goulart sobre a crise política nacional e pressionar pelas reivindicações da greve, ocasião em que o presidente também se comprometeu a assinar a lei do 13º salário, que fora aprovada no Senado alguns dias antes (em 27 de junho)", relata o pesquisador Demian Bezerra de Melo, na tese de doutorado Crise orgânica e ação política da classe trabalhadora brasileira: a primeira greve geral nacional (5 de julho de 1962).

Goulart cumpriria o compromisso alguns dias depois, em 13 de julho, quando foi sancionada a Lei 4.090 de 1962.

'Sancionado o projeto do 13º mês de salário', noticiava o jornal O Globo em 14 de julho de 1962 (Reprodução O Globo / Acervo Digital)

Inicialmente, a lei só dava direito ao 13º aos empregados urbanos do setor privado. Trabalhadores rurais e servidores públicos não eram contemplados, lembra o Dieese.

Em 1963, João Goulart estende o direito aos aposentados. E em 1965, já em plena ditadura, lei sancionada pelo presidente Castello Branco estabelece o pagamento em duas parcelas, sendo a primeira entre fevereiro e novembro, e a segunda até 20 de dezembro de cada ano.

A Constituição de 1988 garante o 13º a todos os trabalhadores urbanos e rurais, direito formalmente estendido aos servidores públicos por meio da Emenda Constitucional 19 naquele mesmo ano.

"Para nós hoje, o processo de conquista do 13º causa estranheza", avalia Larissa Corrêa, da PUC-Rio.

"Estamos vivendo um contexto de alta precarização do trabalho e aquelas lutas dos anos 1960 parecem quase um outro mundo para a gente, haja visto a reforma trabalhista e todo o processo de terceirização das relações de trabalho. Mas é curioso também que, na reforma trabalhista de 2017, a lei do 13º permaneceu intocada. Isso diz muito sobre o patrimônio das leis trabalhistas e o que elas representam até hoje", acrescenta a historiadora.

Os aprendizados da luta pelo 13º salário

Para Pereira Neto, da Unifesp, o principal aprendizado da conquista do 13º salário é que as leis trabalhistas "não nascem no Congresso".

"Temos uma ideia no Brasil de que as conquistas trabalhistas não são conquistas, são um favor. Há um modelo interpretativo de que o Estado ou a classe dominante fazem concessões, ao invés de reconhecer direitos", diz o pesquisador.

"O que a luta pelo 13º mostra é que essas pautas até podem começar como um favor [das empresas aos funcionários], mas elas se constituem como um direito no percurso da experiência. E esse direito, antes de se transformar em lei, vai sendo legitimado na sociedade. Então existe uma construção política do direito", avalia o professor da Unifesp.

Para Larissa Corrêa, da PUC-Rio, a estratégia dos sindicatos na luta pelo 13º também deixa um aprendizado.

"O movimento sindical naquele contexto atuava nas duas frentes: tanto na parte jurídica, parlamentar, quanto nas greves e nos movimentos de rua. Eles não apostavam no projeto de lei sem deixar de fazer greve. Isso era uma estratégia muito importante e, de fato, foi bem sucedida", avalia a historiadora.

Para Miguel Torres, atual presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e Mogi das Cruzes, da CNTM (Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos) e da Força Sindical, a conquista do 13º salário é uma referência para a luta os trabalhadores até hoje.

"Essa conquista ensina que temos sempre que estar lutando e que, se tem organização suficiente, a possiblidade de êxito é muito maior", diz Torres.

"Para os trabalhadores, a luta faz a lei. Foi o que aconteceu em 1962 — a luta fez a lei, que vigora até hoje."

Thais Carrança - @tcarran da BBC News Brasil em São Paulo, em 30.11.22. / Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63802323

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Estados e empresas de um homem só estão arruinando o mundo

Uma década atrás, as bandas de um homem só tinham saído de moda; então vieram Putin, Xi Jinping, Zuckerberg e Musk

Elon Musk, acionista majoritário do Twitter, é quem manda agora

"Comprar o Twitter é um acelerador para a criação do X, o aplicativo de tudo", explicou Elon Musk em 4 de outubro, no Twitter. Quatro semanas depois, quando o escritor Stephen King se recusou a pagar US$ 20 por mês para ser autenticado pelo Twitter, Musk estava em retirada. "Que tal US$ 8?", ele tuitou de sua "sala de guerra" na sede da empresa em San Francisco, na Califórnia. Desde então, o Twitter interrompeu a verificação paga.

Às vezes, Musk se parece cada vez mais com uma versão abençoadamente sem sangue de Vladimir Putin. A compra do Twitter por ridículos US$ 44 bilhões lembrou a oferta de aquisição muito hostil de Putin pela Ucrânia, na qual o autocrata daria uma lição à sua presa. Mas enquanto Musk destrói sua própria empresa, o exército de Putin foge da recém-anexada Kherson, lugar que deveria ser a Rússia "para sempre".

As duas formas organizacionais dominantes de hoje são praticamente as mesmas: o estado autocrático de um homem só e a empresa autocrática de um homem só. Ambos têm a mesma vulnerabilidade: a idiossincrasia de um solitário superestimado.

As bandas de um homem saíram de moda há muito tempo. A China e a Rússia passaram décadas sob liderança coletiva depois que os governantes solitários Mao e Stalin mataram milhões de pessoas. Nos negócios há uma década, nenhuma das dez empresas mais valiosas do mundo ainda era administrada por seus fundadores.

Mas nessa altura Putin, Xi Jinping, a Meta de Mark Zuckerberg, a Tesla de Musk e a Amazon de Jeff Bezos já estavam em ascensão. Então Mohammed bin Salman tornou-se o único governante da Arábia Saudita e controlador de fato da segunda empresa mais valiosa do mundo, a Saudi Aramco. Seu colega herdeiro, Donald Trump, tentou administrar os Estados Unidos como uma imobiliária familiar.

Estados e empresas de um homem só têm ciclos semelhantes. A princípio, mesmo que o objetivo do autocrata seja o autoenriquecimento, ele quer aprovação, então evita a autossabotagem. Livre de regras, ele parece mais ágil do que seus rivais governados coletivamente. Com sucesso, ele adquire uma aura. Ele estabilizou a Rússia/inventou o Facebook/construiu carros elétricos. Ora, ele é um gênio! Se ele quiser se tornar presidente vitalício ou atribuir a si mesmo ações com dez vezes os direitos de voto de outras ações, bem, o que pode dar errado?

Mas o sucesso inicial se deveu geralmente a uma confluência única de sorte, pessoa e momento. Poucos humanos têm mais de uma habilidade. Pior, a arrogância toma conta. Tendo desafiado os pessimistas na primeira vez, o autocrata os ignora na segunda. "Mova-se rápido e quebre coisas" foi o lema inicial de Zuckerberg, mas acabou se tornando o de Putin também. Além disso, o autocrata fica entediado. Depois de administrar a Rússia ou o Facebook para sempre, cada dia começa a parecer igual. Presumivelmente, foi por isso que Bezos saiu. Ele colocou Andy Jassy no comando da Amazon, disparou para o espaço e agora está apostando num time de futebol.

Musk, Zuckerberg e Putin permaneceram no cargo, mas, como Bezos, buscaram novos estímulos. Embora os acionistas ou os policiais secretos russos imaginassem que o autocrata ainda era totalmente dedicado a ganhar dinheiro para eles, na verdade ele havia progredido para coisas mais elevadas. Zuckerberg, por exemplo, parece ter decidido que seria muito legal construir um "metaverso" de realidade virtual, sem pensar em custos.

A pandemia provavelmente acelerou esses processos de desenvolvimento pessoal. Enquanto Putin passou o bloqueio estudando a história ucraniana, Musk parece tê-lo passado no Twitter: sua média de tuítes por dia disparou. Enquanto isso, o isolamento se instalou. O investidor Chris Sacca tuitou na semana passada: "Um dos maiores riscos de riqueza/poder é não ter mais ninguém ao seu redor que possa recuar... Uma visão de mundo cada vez menor, combinada com isolamento intelectual, leva a uma merda fora de alcance... Recentemente, observei as pessoas ao seu redor se tornarem cada vez mais bajuladoras e oportunistas... Concordar com ele é mais fácil e há mais vantagem financeira e social". Sacca estava falando sobre Musk, mas poderia muito bem estar se referindo a Putin.

Ex-apoiadores horrorizados não conseguem conter o autocrata. Zuckerberg está livre para queimar o dinheiro dos acionistas porque controla os direitos de voto da Meta, assim como Putin efetivamente controla os da Rússia, enquanto Musk dissolveu o conselho do Twitter. Se tudo isso é assustador, espere até que o mais poderoso autocrata, Xi Jinping, descubra uma paixão.

As organizações não precisam ser tão disfuncionais. Para um modelo alternativo, veja a Apple. Seu governante, Steve Jobs, provavelmente preservou sua reputação ao morrer antes que a arrogância o atacasse. A Apple hoje não é muito inovadora, mas se tornou a empresa mais valiosa do mundo ao monetizar sucessos do passado, principalmente o iPhone. Sua liderança coletiva está atenta aos riscos. Quando a Apple faz besteiras, como o teclado borboleta de 2015, acaba se autocorrigindo. Um dia, Tim Cook abrirá espaço para um novo e desinteressante CEO. Na verdade, a Apple é administrada como a Alemanha. "Feliz é a terra que não precisa de heróis", escreveu o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Feliz é a companhia, também.

Simon Kuper, o autor deste artigo é colunista do Financial Times. Publicado em portugues do Brasil pela Folha de S. Paulo - Folha Mais, em 28.11.22. / Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

Qatar busca se consolidar como potência regional com diplomacia agressiva

Ascensão do pequeno país do Golfo resulta de décadas de estratégias ousadas, aliadas a um esforço de relações públicas

Prédios modernos no centro de Doha, a capital do Qatar - Wang Dongzhen - 15.jun.22/Xinhua

Sediar a Copa do Mundo representa o passo mais largo do Qatar na tentativa de consolidar uma política externa diversificada, projetando globalmente o pequeno país do Golfo para colocá-lo no caminho de se tornar uma potência geopolítica na região, mesmo em cenário considerado adverso.

O Qatar tem 11,5 mil quilômetros quadrados, metade da área de Sergipe, e menos de 3 milhões de habitantes, similar ao Mato Grosso do Sul. Geograficamente, enfrenta limitações em função de a única fronteira terrestre se dar com a Arábia Saudita —mas o país conseguiu ganhar importância a ponto de, em certa medida, rivalizar com o vizinho.




A ascensão no xadrez geopolítico resulta de décadas de estratégias diplomáticas ousadas, aliadas a um esforço de relações públicas, com o propósito de não deixar o país restrito à esfera de influência saudita.

O projeto é liderado pelo atual emir, Tamim bin Hamad al-Thani, no poder desde 2013. Ele dá continuidade ao trabalho do pai, Hamad bin Khalifa, que comandou o regime a partir de 1995 —o Qatar é uma monarquia absolutista na qual o emir concentra todo o poder.

O país tem boas relações com potências da Otan, abrigando bases militares de EUA e Turquia, ao mesmo tempo que dialoga com o Irã, rival dos americanos, e grupos fundamentalistas como a Irmandade Muçulmana e o Talibã, que tem até uma representação em Doha —o que leva a acusações de que o regime apoia extremistas, entre os quais o Estado Islâmico e a Al-Qaeda.

Lá fora

Ativa e diversificada, essa política externa visa garantir segurança e evitar o isolamento político em função do tamanho e da posição territorial, diz Danny Zahreddine, pesquisador libanês e professor de relações internacionais da PUC Minas.

"A Arábia Saudita, grande potência, esperava de todos os demais membros do Conselho de Cooperação do Golfo [organização econômica da qual o Qatar faz parte] uma relação de quase tutelagem", explica. "As políticas de Riad, dos Emirados Árabes Unidos e do Bahrein são convergentes; o Qatar diverge por sentir que a diversificação da política externa cria mais segurança."

Essa posição catariana aparentemente dúbia é também considerada estratégica para Washington, que usa o país como ponte para diálogos com grupos rivais e discussões de temas sensíveis à região. Do outro lado, o preço se fez cobrar na forma de atritos com os sauditas.

Foi numa tentativa de aproximação com Riad que Doha, em 2015, passou a reforçar a coalizão militar liderada pelos vizinhos que atua no Iêmen com o objetivo de evitar o avanço do grupo rebelde houthi, apoiado pelo Irã e que participou da derrubada do governo local.

Três anos depois, porém, a relação entre Arábia Saudita e Qatar azedou, com o hoje anfitrião da Copa expulso da aliança. Al-Thani foi acusado de dar declarações em apoio a grupos terroristas —o que autoridades catarianas negam, apontando que os sauditas levaram em conta fake news divulgadas em uma ação de hackers na Qatar News Agency, a agência estatal do país.

China, terra do meio

A ruptura foi seguida por outros países, como Egito, Bahrein e Emirados Árabes, numa tentativa de isolar o Qatar. Doha conseguiu driblar os efeitos de embargos diplomáticos, comerciais e de viagens graças às relações construídas ao longo das últimas décadas, segundo Zahreddine. Durante o período de bloqueios, Turquia e Irã foram algumas das nações que providenciaram suprimentos.

Com o fracasso da tentativa de asfixiar o Qatar, a ação da diplomacia fez com que as sanções fossem suspensas e as relações, retomadas. A reabertura foi mediada pelo ex-presidente dos EUA Donald Trump —o republicano concentrou esforços em buscar acertos na região para aproximar os países árabes de Israel e, assim, isolar ainda mais o Irã.

Ato simbólico da reaproximação se deu na terça-feira (22), quando o emir catariano colocou uma bandeira da Arábia Saudita sobre os ombros para comemorar a histórica vitória do país sobre a Argentina.

Se as relações exteriores são complexas, internamente a relativa estabilidade se dá às custas do absolutismo hereditário, com restrições à atividade democrática. Observadores apontam violações sistemáticas aos direitos humanos e supressão de liberdades civis, especialmente para mulheres e grupos LGBTQIA+ —a homossexualidade é passível de prisão.

A demonstração de força em relação à Fifa, no veto à venda de bebidas alcoólicas durante partidas do Mundial, foi um lembrete do peso que tem a sharia, a lei islâmica, no país. Acusações de descaso, remuneração ruim e abusos trabalhistas com operários que atuaram nas obras dos estádios acenderam o alerta para a desigualdade.

Isso apesar de o país se vender como cosmopolita e de alto nível de renda. Segundo o Banco Mundial, o PIB per capita é de US$ 61,2 mil (R$ 327,4 mil), um dos mais altos do mundo; no Brasil, é de US$ 7.518 (R$ 40,2 mil).

Rico em petróleo, o Qatar tem aumentado os investimentos na produção de gás natural liquefeito nos últimos anos —condensado, o produto é transportado em navios, eliminando a necessidade de gasodutos. Beneficia o país o fato de o gás do Oriente Médio estar cada vez mais cobiçado devido à crise energética que atinge a Europa após a redução no fornecimento russo no contexto da Guerra da Ucrânia.

Não só. No último dia 21, China e Qatar anunciaram um acordo de 27 anos para levar gás do Oriente Médio ao gigante asiático. Parte dos lucros é revertida nas ações de soft power, segundo Monique Sochaczewski, especialista em Oriente Médio e professora do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa).

Doha investe em estádios e times de futebol europeus, como o francês PSG, de Neymar. Mantém ações com marcas famosas e hotéis de luxo. Despeja recursos em infraestrutura e educação ao redor do mundo.

Só nos EUA, o Qatar Investment Authority, fundo soberano do país, investiu mais de US$ 30 bilhões (R$ 160,5 bilhões), mais da metade disso nos setores imobiliário e de infraestrutura, segundo o Departamento de Estado americano —a cifra deve alcançar US$ 45 bilhões (R$ 240,7 bilhões) com ações já planejadas.

Ainda mais importante é a emissora Al Jazeera, criada por um decreto do emir em 1996. Principal canal de notícias do mundo árabe, ela consegue transmitir a visão catariana para o mundo.

Zahreddine afirma que o diálogo da linha editorial da rede com o Ocidente é fundamental na boa aceitação. "No caso da Ucrânia, o tom é muito mais favorável a Kiev, não a uma visão russa ou chinesa", diz. "Mas isso não é considerado positivo por autocratas do Oriente Médio, que em alguns casos se sentem atacados."

Não à toa, durante a crise de 2017, uma das exigências para a retomada das relações era o fechamento da Al Jazeera, o que foi ignorado por Doha. Com a Copa, o país agora consegue a maior projeção em âmbito global de sua história.

Renan Marra para a Folha de S. Paulo (edição impressa), em 28.11.22

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

‘Não adianta apelar para os quartéis, para extraterrestres’, diz Barroso sobre manifestações

Ministro do STF criticou protestos contra resultado das eleições em evento no Tribunal Regional Eleitoral da Bahia

Ministro Luís Roberto Barroso diz que ‘humanamente perdeu a paciência’ após ser seguido e questionando em Nova York. Foto: Carlos Moura/SCO/STF

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), criticou nesta sexta-feira, 25, os protestos antidemocráticos organizados próximo a instalações das Forças Armadas por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) inconformados com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

“Não adianta apelar para os quartéis, apelar para extraterrestres”, ironizou o ministro ao pregar o respeito ao resultado das eleições.

Barroso também disse que “humanamente perdeu a paciência” com o bolsonarista que o seguiu em Nova York e fez questionamentos sobre a segurança das urnas eletrônicas.

Manifestantes protestam contra o resultado da eleição presidencial próximo ao Comando Militar do Sudeste. Foto: Felipe Rau/Estadão Conteúdo

A resposta “Perdeu, mané. Não amola” viralizou nas redes sociais. O ministro afirmou que a reação veio após uma série de abordagens agressivas durante a viagem. Ele chamou os manifestantes de uma “horda de selvagens”. O ministro contou que, naquele dia, o celular da filha foi invadido e ela sofreu ameaças.

“Sim, eu falei ‘Perdeu, mané. Não amola’. Gostaria de dizer que só perdi a paciência depois de três dias em que uma horda de selvagens andava atrás de mim, me xingando de todos os nomes que alguém possa imaginar, e exatamente no dia em que os mesmos selvagens tinham invadido o telefone celular da minha filha com ameaças e grosserias que essa gente considera normal. Portanto eu humanamente perdi a paciência”, explicou em evento no Tribunal Regional Eleitoral da Bahia.

Outro vídeo que circula nas redes sociais mostra o ministro sendo seguido por uma brasileira na Times Square.“Nós vamos ganhar esta luta. Cuidado! Você não vai ganhar o nosso País. Foge!”, grita a mulher enquanto filma Barroso, que retruca: “Minha senhora, não seja grosseira. Passe bem.”

Barroso disse que “respeita” os eleitores de Bolsonaro, mas que “os humanos têm o direito de perderem a paciência em alguns momentos da vida”.

“Eu, como todas as pessoas, tenho o maior respeito e consideração pelos 58 milhões de pessoas que votaram em um candidato. Porque, como eu disse antes, a democracia não é um modelo de alguns, é o governo de todos e, portanto, todos merecem respeito e consideração”, afirmou.

Barroso também disse que a liberdade de expressão não pode servir de proteção para discursos de ódio e fake news. “A mentira não é uma forma legítima de defender qualquer posição. Tudo o que é bom, justo e legítimo pode ser defendido com educação, com respeito ao outro, aceitando a divergência”, concluiu.

Rayssa Motta / O Estado de S. Paulo, em 25.11.22, à 19h40

Trump, Bannon e aliados aconselharam Bolsonaro a contestar eleição, diz jornal

Segundo Washington Post, ex-presidente americano se encontrou com Eduardo Bolsonaro em resort na Flórida

Donald Trump e Eduardo Bolsonaro durante encontro nos Estados Unidos em 2019 - Joyce N. Boghosian-30.ago.19/White House

O ex-presidente americano Donald Trump teria aconselhado a família Bolsonaro a contestar o resultado da eleição à Presidência no Brasil, segundo o jornal The Washington Post, dos Estados Unidos. Ele chegou a se encontrar com o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro (PL).

Segundo o jornal, em reportagem publicada nesta quarta (23), Eduardo Bolsonaro fez reuniões depois do segundo turno da eleição no resort de luxo Mar-a-Lago, que pertence a Trump, em Palm Beach, na Flórida. Ele também teria conversado com outros aliados políticos por telefone.

Ao jornal o ex-estrategista de Trump e organizador da ultradireita global Steve Bannon confirmou que se encontrou com o deputado, no estado americano do Arizona, e discutiu com ele o poder dos protestos pró-Bolsonaro e os desafios relacionados ao resultado da eleição —da qual Luiz Inácio Lula da Silva (PT) saiu vencedor.

Em julho, Bannon foi condenado à prisão pela Justiça dos Estados Unidos por se recusar a entregar documentos e a depor à comissão da Câmara americana que investiga a invasão do Capitólio.

Outro ex-assessor de Trump, Jason Miller, também confirmou ao Washington Post que almoçou com Eduardo Bolsonaro, na Flórida, para debater "censura digital e liberdade de expressão".

O texto também destaca as manifestações antidemocráticas pelo país, que questionam o resultado das eleições, e diz que os aliados de Bolsonaro estão divididos em relação a como agir após a derrota nas urnas. Bannon, diz o jornal, é a favor da contestação do resultado, que "provavelmente falhará, mas pode encorajar apoiadores".

Outros aliados preferem centrar os esforços em ações que podem ter maior apelo internacional. Entre eles, estaria o ataque à legitimidade das supremas cortes do país.

Nem Trump nem Eduardo Bolsonaro responderam aos contatos do Washington Post.

Lucas Brêda para a Folha de S. Paulo, em 24.11.22

"Candidatura de Bolsonaro era a melhor opção", diz Moro

Em entrevista à DW (Deutsche Welle Brasil), o ex-juiz fala da sua reaproximação com o bolsonarismo, defende reforma no Judiciário que imponha mandatos para novos ministros do STF e diz que protestos devem servir de alerta para o governo Lula.

Ex-juiz federal, ex-ministro, ex-consultor e ex-pré-candidato à Presidência, Sergio Moro vai estrear em 2023 em um novo papel: o de senador pelo estado do Paraná.

Eleito com pouco menos de 2 milhões de votos, Moro garantiu no primeiro turno de 2022 sua primeira vitória pessoal desde que deixou o governo Jair Bolsonaro de maneira bombástica em 2020, acusando o presidente de interferir politicamente na Polícia Federal e ganhando a pecha de "traidor" entre a base de extrema direita do Planalto.

Nos dois anos seguintes, Moro ainda veria o Judiciário anular parte significativa das decisões da Operação Lava Jato, que investigou um esquema bilionário de lavagem e desvio de dinheiro envolverendo a Petrobras, grandes empreiteiras e políticos. As decisões anuladas incluíram a condenação contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), abrindo caminho para que o petista disputasse e vencesse a eleição presidencial de 2022.

O Supremo Tribunal Federal (STF) ainda entendeu, com base nas mensagens vazadas pelo caso Vaza Jato, que Moro atuou de maneira parcial no processo contra o político de esquerda.

Após atuar de maneira controversa como consultor para a empresa Alvarez & Marsal, Moro ensaiou uma pré-candidatura à Presidência. Seu nome não chegou a decolar nas pesquisas, e ele acabou se contentando em disputar o Senado.

Para garantir sua eleição, a antiga estrela da Lava Jato liderou uma campanha que mesclou nostalgia pela operação, críticas ao PT e afagos no eleitorado bolsonarista do Paraná.

Mesmo após ser eleito, continuou a se reaproximar do bolsonarismo, chegando a assessorar o atual presidente nos debates televisivos com Lula no segundo turno.

Em entrevista à DW, Moro afirma que continua a enxergar que Bolsonaro era a melhor opção eleitoral em 2022, considerando como a corrida se afunilou. Ele diz que ainda "mantém" as razões para seu rompimento com o governo, mas que era preciso "fazer uma escolha".

Agora no Senado, Moro ainda afirma que não pretende fazer uma oposição "irracional" ao futuro governo Lula. Entre os projetos que pretende promover estão antigas bandeiras da Lava Jato, como a execução de penas em segunda instância e o fim do foro privilegiado.

Há outras bandeiras, que se aproximam do bolsonarismo, como a defesa de uma reforma no Judiciário, especialmente no STF, com a imposição de mandatos para novos ministros da corte mais alta do país. Moro, no entanto, afirma que eventuais reformas não devem ser feitas em "confronto com o Judiciário".

Durante protesto no Rio de Janeiro, onde se vê pessoas vestidas de verde e amarelo com árvore ao fundo, apoiador do presidente Jair Bolsonaro levanta cartaz dizendo Durante protesto no Rio de Janeiro, onde se vê pessoas vestidas de verde e amarelo com árvore ao fundo, apoiador do presidente Jair Bolsonaro levanta cartaz dizendo 

Para Moro, "protestos revelam uma grande insatisfação com o resultado das eleições e uma oposição à proposta do PT para o país" e deveriam servir de alerta para o novo governo "buscar posições moderadas"Foto: Silvia Machado/TheNEWS2/ZUMA/picture alliance

O senador eleito também diz ser contra protestos golpistas que tentam contestar o resultado da eleição presidencial fazendo uso de bloqueios em rodovias. Por outro lado, afirma que faz "parte de uma democracia as pessoas poderem protestar" e que as manifestações devem servir de "alerta" para o novo governo ser "cauteloso" e "buscar posições moderadas".

DW: Em janeiro, quando ainda contemplava disputar a Presidência, o senhor disse que "eleger Lula ou Bolsonaro" seria um "suicídio". No entanto, meses depois o senhor passou até mesmo a assessorar Bolsonaro em debates. Por que o senhor se reaproximou do presidente? 

Sergio Moro: Desde o início eu me coloquei como um defensor da terceira via, até coloquei uma pré-candidatura presidencial, porque acredito que essa polarização é ruim para o país, que ela leva a radicalismos. E a gente precisa de uma posição moderada, de centro. Mas não se viabilizou – nem a minha candidatura, no final, mas também a candidatura de outros da terceira via. Tanto que o resultado, mesmo daqueles que mantiveram as candidaturas, foi muito tímido. 

E aí nós tivemos num segundo turno apenas duas opções: Bolsonaro e Lula. E tem que se fazer uma escolha. Não seria nenhum deles o meu candidato a presidente.

Mas, tendo que fazer uma escolha, eu me coloquei ao lado do presidente Bolsonaro. Não mudo minha opinião sobre o passado. Mantenho as razões do meu rompimento com o governo. Mas, dentre as opções que estavam ali à disposição, entendo que a candidatura de Bolsonaro seria a melhor.

Não seria uma base do governo necessariamente. Por exemplo, eu acho que há falhas gritantes em matéria de preservação ambiental. Tínhamos que avançar também em outras pautas, em uma agenda de reformas mais ambiciosas para o Brasil. 

Mas, entre as duas opções, Bolsonaro ainda seria melhor. Não vejo o Lula com essa agenda modernizante ou algo positivo para a própria democracia brasileira.

Por que o Brasil falha no combate à corrupção

Como será sua atuação sob Lula presidente? 

Eu vou ser oposição. Claro que não é uma oposição irracional. O que nós entendermos que é bom para o país, não é porque veio do governo a que a gente se opõe, que nós vamos necessariamente rejeitar.

Agora, é claro que não vejo vindo desse governo [de Lula a partir de 2023] propostas na área anticorrupção. Então pretendo ser um senador vigilante. É um pouco numa linha de guardião da República, como tem que ser o Senado.

Como o senhor encara os protestos de bolsonaristas que contestam o resultado das eleições? 

Acho que esses protestos revelam uma grande insatisfação com o resultado das eleições e uma oposição à proposta do PT para o país.

Quem ganhou, no final das contas, não foi tanto o PT, mas essa rejeição ao governo Bolsonaro – [que] fez coisas boas também, a gente tem que destacar isso. A economia não estava numa situação exatamente ruim, o desemprego estava caindo, mas existia uma série de falhas que acabaram comprometendo a reeleição.

Essas manifestações, desde que elas não sejam violentas, sendo elas pacíficas – não concordo também lá, com algumas coisas, como os bloqueios –, revelam essa insatisfação. Faz parte de uma democracia as pessoas poderem protestar. 

As manifestações deveriam ser interpretadas da forma apropriada, no sentido de alertar o novo governo de que ele requer cautela, prudência e buscar posições moderadas, já que existe uma grande oposição e insatisfação da população em relação ao resultado das eleições. 

A eleição resultou na chegada de uma bancada "lavajatista" ao Congresso, que inclui sua esposa, Rosângela, e o ex-procurador Deltan Dallagnol. Quais projetos vocês pretendem defender?

Nós temos que buscar no espaço político possível a retomada do combate à corrupção, dos instrumentos, das condições necessárias, para que a gente tenha não só prevenção, mas também repressão qualificada contra a corrupção – porque ela continua sendo um grande problema.

Eu tenho defendido o fim do foro privilegiado: o privilégio para os agentes políticos, que não se justifica mais numa República e acaba sendo uma blindagem para pessoas que fazem coisa errada. Agora, como senador, eu terei esse foro privilegiado, mas eu acho que é um mal para o país, e defendo a supressão desse mal.

[Também defendo] a volta da prisão em segunda instância, que é uma forma de você dar uma resposta à sociedade para aqueles casos intermináveis na Justiça.

Além disso, existe uma série de medidas pontuais que podem ser feitas, por exemplo, criar programas de whistle-blowing, como existem em outros países, e que aqui no Brasil ainda são muito precários.  Medidas, por exemplo, como a gente resguardar autonomia da Polícia Federal. Então eu defendo, por exemplo, mandato fixo para o diretor da Polícia Federal, assim como existe no de diretor do FBI.

Entre esses projetos há alguma ideia sobre reformar o STF? Essa é uma pauta cara ao eleitorado bolsonarista que ajudou a eleger o senhor. 

Eu acho que é um tema importante. Discutir reforma da Justiça é sempre positivo. O que não deve ser feito, no entanto, é uma discussão de reforma da Justiça em confronto com o próprio Judiciário.

Se a gente for olhar o próprio STF, vários ministros defendem, por exemplo, o fim do foro privilegiado; vários ministros defendem uma limitação da sua competência para que a competência fique mais restrita a casos constitucionais. São discussões saudáveis que podem ser feitas em qualquer democracia, sem que isso necessariamente implique alguma espécie de confronto com o STF.

No fundo, o que a gente precisa no Brasil é de mais diálogo. Por exemplo, eu sou contra a discussão de ampliar o número de ministros do Supremo. Sempre achei que isso não era o caminho, mas você [pode] discutir, por exemplo, a fixação de mandatos, como existem nas cortes constitucionais europeias, para ministros do Supremo – especialmente para os novos que forem nomeados.

Você estabelecer mandatos fixos de 10 a 12 anos é uma discussão saudável – e sequer os ministros do Supremo atuais são refratários a esse tipo de proposta, pelo menos até onde eu sei.

Durante a sua campanha ao Senado, o senhor adotou uma postura bastante próxima do bolsonarismo em temas como aborto e o que a direita chama de "ideologia de gênero". O senhor pretende manter essa postura de alinhamento ao bolsonarismo em temas da pauta dos costumes no Congresso? 

Eu me qualifico como um político de centro-direita. Então, de algumas dessas pautas eu compartilho. Outras, nem tanto. Eu tenho um compromisso com o eleitorado.

Eu sou particularmente contra a ampliação das hipóteses que autorizam a prática do aborto no Brasil. Isso não é uma pauta, por exemplo, de extrema direita ou necessariamente de um eleitor bolsonarista. Existem eleitores que se identificam com Bolsonaro, que têm essa pauta, mas essa pauta transcende essa questão personalista. 

Após a anulação das sentenças contra o presidente eleito Lula e com o escândalo da Vaza Jato, a Operação Lava Jato perdeu credibilidade. Como o senhor avalia esses desdobramentos? 

São duas lições que nós temos que extrair desse episódio: nós temos uma tradição histórica de impunidade no Brasil, do crime de colarinho branco e da grande corrupção. Então, vários escândalos criminais se sucederam no tempo. E a Lava Jato mostrou que o combate à corrupção é possível, sim, num país como o Brasil. Que nós não estamos fadados a ser um país corrupto. É preciso ter vontade política e vontade institucional.

A outra lição que se extrai disso é que tem que ser uma luta perene, e nessa luta perene nós podemos ter avanços e podemos ter também retrocessos. Mas a Lava Jato revelou um sistema de corrupção que estava entranhado na administração pública, não só no governo federal, mas em governos estaduais, e é algo que impactava o nosso desenvolvimento econômico e erosionava (sic) a fé que as pessoas tinham na democracia.

Mas gerou uma onda anticorrupção mundial: teve impactos aqui na América Latina e na África, principalmente, enormes. Nós tivemos aí quatro presidentes do Peru que foram processados por corrupção, por provas que nós descobrimos na Lava Jato e compartilhamos. Tivemos reflexos em países como Equador, Colômbia, em maior ou menor grau também ali na região da América Central, além de termos também reflexos em países como os EUA, Suíça e Luxemburgo.

Então a corrupção foi real, é talvez o maior caso de corrupção descoberto na história, e o Brasil deu uma lição ao mundo naquela época, mostrando que mesmo um país com uma tradição de impunidade pode ter a capacidade de mudar a sua história. O que veio depois foi uma reação política que, claro, nos entristece, mas ela é a causa e motivo apenas de nós retomarmos na luta e seguirmos adiante. 

A condenação, a prisão e a consequente inelegibilidade de Lula alteraram os rumos da eleição presidencial de 2018.

Foi uma consequência indesejada porque, no fundo, o Judiciário aplica a lei. Eu apliquei a lei naqueles casos, a própria condenação do ex-presidente, ela foi exarada não só por mim, mas por outros juízes. Foi mantida no tribunal de apelação em Porto Alegre, foi mantida em Brasília, o próprio STF na época autorizou a prisão do ex-presidente.

Então foi uma consequência, no fundo indesejada, mas uma consequência decorrente não da aplicação da lei, mas da prática dos crimes descobertos na Operação Lava Jato. 

Em março de 2021, o STF anulou as condenações de Lula, com base nos entendimentos da Corte de que os casos tramitaram fora da jurisdição correta. Depois o tribunal entendeu que o senhor foi parcial, comprometendo o direito da defesa a um julgamento justo. Qual é sua opinião sobre a decisão do STF? 

Para mim foi um erro judiciário a anulação das condenações, mas é aquele momento que a gente tem que olhar para frente. Vamos olhar para frente e vamos ver como é que a gente consegue construir depois disso, retomar as condições necessárias para que a gente tenha prevenção e repressão qualificada à corrupção no Brasil, que é um objetivo de qualquer país.

Não tem nenhuma democracia moderna que se sustenta baseada em corrupção, não tem nenhuma economia que se mostra eficiente se você tem o desperdício inerente ao suborno disseminado. Mas tudo isso significa que agora teve uma eleição e a gente tem que olhar para frente, não adianta a gente ficar remoendo esse passado.

Eu tenho a minha consciência tranquila em relação àquilo que eu fiz e a minha decisão na época, ela foi confirmada por outros juízes de outros tribunais, mas agora é o momento da gente olhar para a frente. 

Sua pré-candidatura à Presidência em 2022 não chegou a avançar de maneira decisiva, levando o senhor a se candidatar ao Senado. Suas pretensões políticas vão se limitar a esse mandato no Congresso? Pensa em voltar a concorrer à Presidência algum dia? 

Não. Eu vou ser franco com você, eu nunca pensei num cargo cogitando o seguinte. No fundo, a minha intenção é fazer um bom mandato como senador.

Então não penso no que a gente vai fazer daqui a quatro, daqui a oito anos. Então, não tem essa cogitação em mente.

Marina Oliveto, de Curitiba - PR e Jean-Philip Struck para Deutsche Welle Brasil, em 25.11.22

Mais ausente que 'pato manco': a reclusão de Bolsonaro após derrota para Lula

Pato manco é a tradução para lame duck, expressão usada nos Estados Unidos para se referir ao presidente em final de mandato — ou seja, um mandatário que ainda está no cargo, mas com seu poder e prestígio esvaziados.

Bolsonaro no Palácio do Alvorada, em 1° de Novembro: em fala curta, não reconheceu vitória de Lula (Reuters)

Em quatro semanas após fracassar em sua tentativa de reeleição, o presidente Jair Bolsonaro (PL) pouco apareceu em público ou em suas redes sociais.

De 31 de outubro, dia seguinte à vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), até a manhã desta sexta-feira (25/11), o presidente havia feito apenas dois pronunciamentos, que somaram menos de cinco minutos, e ido três vezes ao Palácio do Planalto, que é o seu local oficial de trabalho.

No sábado (26/11), deve sair de Brasília pela primeira vez. Há expectativa de que participe da cerimônia de formação dos aspirantes da Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ).

A postura mais reclusa contrasta com o estilo nada discreto de governar que marcou seu mandato.

Nos últimos quatro anos, o Brasil acompanhou diariamente declarações e aparições, seja na porta do Palácio do Alvorada, sua residência oficial, em motociatas pelo país ou em lives nas redes sociais.

No entanto, até mesmo a tradicional transmissão ao vivo que fazia toda quinta-feira de noite foi interrompida em novembro.

Alguns críticos têm desconfiado do silêncio. Acusam Bolsonaro de tentar costurar nos bastidores uma espécie de conspiração para tentar anular a eleição.

Essas críticas ganharam fôlego quando Bolsonaro apresentou na terça-feira (22/11), junto com seu partido, o PL, um pedido para invalidar 59% dos votos do segundo turno.

A reação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), porém, foi dura. O presidente da Corte, ministro Alexandre de Moraes, aplicou uma multa de R$ 22,9 milhões ao PL e aos outros dois partidos que integraram a coligação que apoiou a tentativa de reeleição, Republicanos e PP.

Na avaliação de Moraes, não foram apresentados indícios suficientes de irregularidades que justifiquem o pedido para anular os votos.

'Pato manco'

Por causa desse esvaziamento de força política, é natural que o o governo de um presidente em final de mandato perca ritmo, explica a cientista política Beatriz Rey, pesquisadora visitante da Universidade Johns Hopkins, em Washington.

Ela considera, porém, que a ociosidade de Bolsonaro nas últimas semanas é anormal e ainda pior que o comportamento do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que também não reconheceu a derrota em 2020 para o atual presidente americano, Joe Biden.

Na sua avaliação, a ausência de Bolsonaro está relacionado a um inconformismo com a derrota e a dificuldade em reconhecer publicamente a vitória de Lula.

Até o momento, o presidente não parabenizou o adversário pela eleição, postura que é praxe em regimes democráticos.

"O que essa reclusão mostra é que realmente ele não é digno do cargo que ocupa. Porque ocupar a Presidência da República significa respeitar a instituição da Presidência da República. Essa reclusão dele é um desrespeito, na minha visão", afirma Rey.

Para além do cenário político adverso, Bolsonaro foi diagnosticado com erisipela, uma infecção bacteriana nas pernas, logo após a eleição, segundo relatos da imprensa brasileira.

O diagnóstico não foi confirmado oficialmente pelo Palácio do Planalto, mas, de acordo com seu vice, o general Hamilton Mourão, a doença o impedia de vestir calças e seria o motivo de o presidente ter passado quase 20 dias sem sair do Palácio do Alvorada, sua residência.

No dia 16 de novembro, por exemplo, Mourão assumiu a tarefa de receber cartas credenciais de embaixadores estrangeiros no Brasil, protocolo que costuma ser realizado pelo presidente.

Dois dias depois, o general Braga Netto, que concorreu neste eleição a vice na chapa de Bolsonaro, disse a apoiadores que o presidente estaria bem, recebendo visitas no Alvorada.

Seja pelo abatimento pós-derrota ou por questões de saúde, o fato é que Bolsonaro teve, em média, menos de duas horas de compromissos oficiais por dia útil desde 31 de outubro. É o que mostra levantamento a partir de sua agenda pública.

E todos esses compromissos foram reuniões fechadas com integrantes do governo ou aliados políticos, quase sempre no Alvorada.

O presidente esteve apenas três vezes no Palácio do Planalto, primeiro em uma reunião com Paulo Guedes em 31 de outubro. Depois, no dia 3 de novembro, quando se encontrou brevemente com o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, fora da agenda oficial. E voltou só no dia 23, quando sua agenda registrou apenas um encontro com seu ex-ministro e agora senador eleito, Rogério Marinho.

Fora isso, fez duas aparições públicas no dia primeiro de novembro. Primeiro, para um pronunciamento de cerca de dois minutos, em que não mencionou diretamente Lula nem reconheceu a derrota. E, depois, em um encontro com ministros do Supremo Tribunal Federal na sede da Corte.

Protesto contra a eleição de Lula em Anápolis, Goiás, no feriado de 2 de novembro Ueslei Marcelino / Reuters)

No curto pronunciamento, Bolsonaro legitimou protestos que bloqueavam estradas pelo país ao dizer que aqueles movimentos populares eram "fruto de indignação e sentimento de injustiça, de como se deu o processo eleitoral".

Esses atos, porém, têm viés antidemocrático, pois os manifestantes costumam pedir intervenção militar contra o resultado das eleições.

Por outro lado, Bolsonaro repudiou em sua fala práticas como "invasão de propriedade, destruição de patrimônio e cerceamento do direito de ir e vir".

No dia seguinte, 2 de novembro, fez outro rápido pronunciamento nas redes sociais, com teor semelhante.

Disse que entendia os manifestantes, que também estava triste, afirmou que os protestos eram legítimos, mas pediu a liberação das estradas para não afetar a economia e o direito de ir e vir da população. Mais uma vez, não reconheceu a vitória de Lula nem repudiou a contestação do resultado eleitoral.

Nesse período de reclusão, o presidente faltou, inclusive, a dois grandes encontros internacionais: a Cúpula do Clima realizada pela ONU no Egito, da qual Lula participou com destaque. E também deixou de ir à Indonésia para a Cúpula do G20, reunião das maiores economias do mundo.

Não é de hoje, porém, que Bolsonaro é criticado por ter uma agenda pouco carregada de compromissos oficiais.

Um levantamento liderado por Dalson Figueiredo, professor de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco, divulgado em abril, mostrou que, desde sua posse até fevereiro deste ano, o presidente havia trabalhado, em média 4,8 horas por dia útil, considerando os compromissos públicos divulgados em sua agenda.

Isso não incluía lives nas redes sociais nem compromissos de campanha, que não havia começado naquela época.

No passado, live até do hospital

Bolsonaro não reduziu apenas os compromissos públicos. Se em outras ocasiões em que teve questões de saúde, o presidente fez transmissões ao vivo de dentro do hospital, dessa vez sua presença nas redes sociais, vista como um trunfo político, também despencou.

O presidente interrompeu, por exemplo, o hábito de realizar uma live todas as quintas-feiras à noite, momento em que comentava medidas do governo e temas da semana, além de atacar adversários.

Crítico do papel da imprensa, ele usava essa transmissão como um canal direto de comunicação com seus apoiadores, sem precisar responder perguntas de jornalistas sobre temas incômodos.

Até a manhã de 25 de outubro, foram apenas três mensagens compartilhadas no feed do Twitter, duas no do Instagram e quatro no do Facebook, redes que o presidente costumava atualizar quase todos os dias.

Desde a derrota, Bolsonaro tem priorizado outros canais, como o Tik Tok, em que vem compartilhando basicamente vídeos com imagens suas em fundo musical.

Apesar de não haver qualquer fala do presidente, apoiadores tentam desvendar nas imagens possíveis mensagens subliminares. Em um desses vídeos, por exemplo, em que Bolsonaro aparece abraçado com pessoas fantasiadas de Power Rangers, personagens de um programa infantil, uma pessoa sugere que isso representaria o apoio dos "super-heróis das Forças Armadas".

Já no Telegram, desde 7 de novembro ele tem feito atualizações diárias, com mensagens focadas em divulgar feitos do seu governo. O mesmo na sua conta no Linkedin, rede voltada para o mercado de trabalho. Lá, atualizações frequentes também destacam ações da sua gestão.

Sua presença mais forte no Linkedin até provocou piadas de que estaria procurando um novo emprego. Seu futuro, porém, já estaria acertado com a direção do PL, seu partido.

Segundo notícias da imprensa brasileira, Bolsonaro terá um cargo remunerado na sigla, que bancará com recursos do fundo partidário também o aluguel de uma casa e de um escritório para ele em Brasília. O valor do salário não foi divulgado.

Sua renda deve ser complementada com duas aposentadorias que Bolsonaro tem direito a acumular e somam R$ 42 mil.

Uma ele já recebe, de quase R$ 12 mil, como capitão reformado do Exército. A outra, de cerca de R$ 30 mil, Bolsonaro tem direito pelos quase trinta anos que atuou como deputado federal. Ele já disse que pretende solicitar essa aposentadoria quando deixar a Presidência.

Tentativa de anular urnas

A reclusão, para alguns aliados, seria "estratégica", para organizar a oposição ao futuro governo Lula, ao mesmo tempo que tenta reverter a derrota, repetindo os argumentos de que as urnas eletrônicas não seriam seguras - apesar de a lisura das eleições ter sido confirmada por entidades como o Tribunal de Contas da União, a Ordem dos Advogados do Brasil e observadores internacionais, como a Organização dos Estados Americanos.

Na última semana, o PL, partido de Bolsonaro, ingressou com uma ação no Tribunal Superior Eleitoral pedindo a invalidação de 59% dos votos do segundo turno das eleições.

O principal problema detectado pela consultoria contratada pelo partido foi o fato de que as urnas de modelos anteriores a 2020 não gerariam arquivos de log que permitam saber, pelo nome do arquivo, a qual urna ele se refere.

"Arquivo log" é um arquivo de texto que contém uma espécie de "biografia" da urna. Ele informa, por exemplo, dados sobre quantas vezes ela foi ligada, desligada e em que momento os programas foram inseridos. Esse arquivo é considerado importante porque qualquer tentativa de acesso irregular à urna ficaria registrada nele.

Segundo a petição do PL, as urnas fabricadas antes de 2020 não estariam gerando arquivos log com um nome individualizado e, por isso, não seria possível relacionar um arquivo log específico a uma determinada urna.

No entanto, especialistas em segurança eleitoral ouvidos pela BBC News Brasil, dizem que o relatório do PL é falho. Segundo eles, bastaria abrir os arquivos de log para encontrar outras informações precisas que também permitem identificar a qual urna ele pertence. Além disso, afirmam que a questão apontada no relatório não significa que houve qualquer adulteração ou erro de contagem de votos.

"É como se, em vez de cada urna diferente dizer seu nome no arquivo de log, todas elas dissessem o nome 'Enzo'. Porém, elas ainda assim dizem seu RG e CPF, que permitem a sua identificação", explica Marcos Simplício, professor de Engenharia de Computação da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Ele é pesquisador nas áreas de cybersegurança e criptografia, e vice-coordenador do convênio USP-TSE que analisa a segurança do sistema de votação brasileiro.

Esses especialistas também criticaram o PL por ter focado seu pedido apenas na votação do segundo turno, sendo que as mesmas urnas foram usadas no primeiro turno das eleições, quando 99 deputados federais do próprio partido foram eleitos, formando a futura maior bancada da Câmara.

Em decisão desta quarta-feira (23/11), Moraes afirmou que coligação de Bolsonaro demonstrou 'má-fé [...] em seu esdrúxulo e ilícito pedido' (Reuters)

O ministro Alexandre de Moraes, inclusive, reagiu ao pedido do PL dizendo que a ação só teria validade se abrangesse também o primeiro turno. O partido, porém, manteve a solicitação apenas para o segundo turno.

Com isso, o presidente do TSE multou o PL e os outros dois partidos da coligação que apoiou a reeleição de Bolsonaro — o PP e o Republicanos — em R$ 22,9 milhões e suspendeu o fundo partidário das três legendas.

A justificativa é que teria havido litigância de má-fé no pedido do PL, ou seja, a Justiça teria sido acionada de forma irresponsável pelo partido.

É bastante improvável que o pedido do PL invalide o resultado das eleições de 30 de outubro, então talvez você esteja se perguntando qual é o cálculo do partido ao questionar as urnas.

Apesar do fracasso na tentativa de reverter o resultado eleitoral, a ação do PL pode servir de combustível para manter os apoiadores mais fiéis de Bolsonaro engajados.

Para críticos do presidente, essa seria a principal finalidade da iniciativa: manteria uma base de apoio mobilizada, seja para liderar a oposição a Lula, seja manter seu poder de barganha político, algo que pode ser útil tanto em em possíveis batalhas futuras na Justiça.

Atualmente, há quatro inquéritos autorizados pelo STF em que o presidente é investigado por suspeitas de diferentes crimes. Bolsonaro também enfrenta as acusações de crimes feitas pela CPI da Covid, que estão em apuração pela PGR.

No entanto, a partir do momento em que deixar a Presidência da República, Bolsonaro passa a responder por todas essas suspeitas na Justiça Comum. Ou seja, a Polícia Federal pode continuar as investigações sem autorização do Supremo, as apurações que estão sendo feitas pela PGR passam para a competência de instâncias inferiores do Ministério Público e os processos no TSE passam para o TRE da região onde houve a suspeita.

Se o Ministério Público decidir fazer uma denúncia contra Bolsonaro, ele será julgado por um juiz de primeira instância.

Mariana Schreiber - @marischreiber de Brasília - DF para a BBC News Brasil, em 25.11.22, 16h:00

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Molecagem

O PL mostra-se tacanho e golpista ao defender que as urnas cujos votos rejeitaram Bolsonaro não devem ser computadas no resultado final. Não cabe na democracia tal molecagem

Neste ano, o PL elegeu 99 deputados federais e 8 senadores. Com o resultado, a legenda de Valdemar Costa Neto terá, a partir de 2023, a maior bancada da Câmara e do Senado, com 14 senadores ao todo. No entanto, o partido parece não apenas indiferente ao apoio recebido nas urnas, como também alheio à responsabilidade que o voto confere em uma democracia, portando-se como um grupo golpista. Na terça-feira, o PL pediu ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a anulação dos votos de 279,3 mil urnas eletrônicas no segundo turno, sob a alegação de “mau funcionamento” do sistema.

A ação do PL é um deboche do início ao fim. No sábado passado, ao anunciar a propositura do pedido de anulação, Valdemar Costa Neto reconheceu a lisura e a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro. “Eu disputo eleições desde 1990 e as urnas estão aí desde 94. Nunca tive preocupação com isso”, disse. No entanto, a “insistência de Bolsonaro para ver esse assunto” teria levado o partido a descobrir algum possível questionamento perante a Justiça Eleitoral.

“Eles insistiram comigo, aí insisti com o pessoal, eles foram lá e descobriram isso aí”, disse o presidente do PL, escancarando a seriedade e a motivação da descoberta do suposto problema envolvendo 279,3 mil urnas eletrônicas. E qual foi o gravíssimo problema encontrado pelo PL a justificar a anulação de todos os votos depositados nessas urnas? Não se sabe. A rigor, não foi apresentado nenhum problema ou fraude. A legenda disse apenas que as urnas anteriores a 2020 têm o mesmo número de patrimônio. Como isso pode ter interferido no resultado do pleito a justificar o extravagante pedido de anulação dos votos, ninguém explicou.

Eis a irresponsabilidade do PL. Um devaneio golpista de Jair Bolsonaro é suficiente para que a legenda peça à Justiça Eleitoral a anulação dos votos de 279,3 mil urnas eletrônicas, urnas estas que funcionaram perfeitamente nas eleições de 2018 e no primeiro turno de 2022. Segundo o pedido do PL, o problema nas urnas – que ninguém sabe exatamente qual foi – teria ocorrido apenas e tão somente quando o candidato do PL à Presidência da República perdeu.

Perante tão evidente disparate, o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, determinou que o PL apresentasse um relatório completo sobre as eleições, e não apenas sobre supostas irregularidades no segundo turno. Afinal, como menciona o despacho da Justiça Eleitoral, as urnas foram usadas nos dois turnos e, portanto, o pedido deve, por princípio, abranger todo o pleito, sob pena de indeferimento.

A pronta resposta do TSE ao PL foi muito oportuna. Não cabe dar nenhuma margem a esse tipo de golpismo, cujo objetivo é criar confusão e instabilidade. Neste momento, o País precisa justamente do oposto. Todos, muito especialmente as autoridades e lideranças políticas, têm o dever de respeitar plena e incondicionalmente a voz da população manifestada nas urnas.

A resposta do PL à demanda da Justiça Eleitoral é irrelevante, pois a iniciativa do partido, em si mesma, não passa de uma rematada farsa, arquitetada para satisfazer a psicopatia golpista do bolsonarismo, movimento liberticida do qual o PL se tornou hospedeiro. Antidemocrática e irresponsável, a ação do PL revela, de forma cristalina, o valor que o bolsonarismo confere ao voto do eleitor. Quando os votos não são favoráveis a Jair Bolsonaro, então não valem nada.

É desolador que o presidente da República – eleito precisamente pelo voto depositado nas urnas que agora contesta – e o maior partido do Congresso manifestem tamanho descompromisso com o regime democrático e com o interesse público. Revelam-se assim não apenas tacanhos, incapazes de reconhecer uma derrota eleitoral, mas inaptos a funções públicas num regime democrático. Não cabe no Estado Democrático de Direito tal molecagem, tal desprezo pelo eleitor, tal indiferença com a lei.

Em sua inépcia, a ação do PL reitera uma vez mais a lisura das urnas eletrônicas. Não há rigorosamente nada a contestar. O que falta a alguns é a honradez de aceitar a vitória do adversário – mas isso não é um problema técnico, e sim de caráter.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 24.11.22, às 03h00

Decisão de Moraes contra o PL: Entenda o cálculo da multa e o suposto crime Foto: Redação

Ministro determinou que partido e demais integrantes da coligação de Bolsonaro paguem quase R$ 23 milhões após não apresentar provas que sustentem ação pedindo anulação de votos de determinadas urnas, o que configura ‘litigância de má fè'

O presidente Jair Bolsonaro (PL) participou da solenidade de posse dos ministros Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski à frente do TSE, apesar das recorrentes críticas do atual chefe do Executivo à Justiça Eleitoral e ao próprio Moraes. Foto: Isac Nóbrega/PR

Nesta quarta-feira, 23, o ministro Alexandre Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), condenou o Partido Liberal e as demais siglas da coligação que propôs a candidatura à reeleição do presidente Jair Bolsonaro a pagar uma multa de R$ 22,9 milhões por “litigância de má-fé”, após a tentativa de anular os votos de 279,3 mil urnas eletrônicas. O cálculo do valor da multa teve como referência a própria quantidade de urnas citadas na ação apresentada à Justiça.

Segundo o documento de decisão, a causa representa um valor total de R$ 1,1 bilhão. Para chegar nesse número, o ministro multiplicou a quantidade de urnas eletrônicas citadas na ação do PL (aquelas diferentes do modelo UE2020 - um total de 279.383 equipamentos) atribuindo o custo unitário de cada máquina adquirida pelo TSE: R$ 4.114,70.

Nos termos do § 3º do art. 292 do CPC, arbitro o valor da causa no valor de R$ 1.149.577.230,10 (um bilhão, cento e quarenta e nove milhões, quinhentos e setenta e sete mil, duzentos e trinta reais e dez centavos), que é, exatamente, o valor resultante do número de urnas impugnadas, ou seja, todas aquelas diferentes do modelo UE2020 havido no parque de urnas do TSE e utilizadas no 2º Turno (279.383) multiplicado pelo custo unitário das últimas urnas eletrônicas adquiridas pelo TSE (R$ 4.114,70).

Petição Cível (241) - Nº 0601958-94.2022.6.00.0000 (PJe)

Entretanto, segundo o artigo 81 do Código Penal Civil, o valor de uma condenação por litigância de má-fé, quando o autor, por exemplo, propõe um processo “para conseguir objetivo ilegal” (leia abaixo), “deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa” que, no caso, é o valor de R$ 1,1 bilhão calculado anteriormente. No tocante da ação do PL, a porcentagem escolhida por Moraes foi de 2%, chegando ao valor de R$ 22,9 milhões

Assim, nos termos do art. 81, caput, do CPC, CONDENO A AUTORA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ, À MULTA DE R$ 22.991.544,60 (vinte e dois milhões, novecentos e noventa e um mil, quinhentos e quarenta e quatro reais e sessenta centavos), correspondentes a 2% (dois por cento) do valor da causa aqui arbitrado.

Petição Cível (241) - Nº 0601958-94.2022.6.00.0000 (PJe)

No documento assinado por Moraes, o ministro classifica os argumentos do PL como “absolutamente falsos”, uma vez que a rastreabilidade das urnas eletrônicas de modelos antigos são possíveis de serem feitas. “Como bem destacado pelo Secretário de Tecnologia de Informação do TSE, ‘é descabida qualquer afirmação de que todas as urnas possuem o mesmo número ou que não possuem patrimônio que as diferencie umas das outras’, uma vez que, ‘cada urna possui um número interno identificador único que permite a identificação do equipamento em si’”, descreve no documento.

Reação

O pedido de anulação foi enviado ao TSE pelo PL na última terça-feira, 22. Segundo o documento do partido, houve “mau funcionamento” em 279,3 mil urnas eletrônicas. Para o partido de Jair Bolsonaro, o presidente teve 51,05% dos votos no segundo turno e venceu a disputa contra Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no último dia 30.

Em resposta, Moraes determinou que, em 24 horas, a coligação de Bolsonaro apresentasse um relatório completo sobre as eleições, incorporando informações do primeiro turno. A determinação não foi cumprida pelo PL.

Além da multa, o ministro do TSE também determinou o bloqueio imediato dos fundos partidários da coligação bolsonarista até o pagamento da dívida. Contrariados com a penalidade, os presidentes do PP e do Republicanos, siglas que formalizaram a aliança com o PL na coligação que registrou a candidatura à reeleição, disseram não ter sido consultados pelos liberais e anunciaram que vão recorrer da multa.

Litigância de má-fé

O crime apontado na decisão de Alexandre de Moraes está previsto no artigo 80 do Código Penal Civil (Lei nº 13.105 de 16 de Março de 2015). De acordo com a legislação, considera-se litigante de má-fé aquele que:

I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II - alterar a verdade dos fatos;

III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

VI - provocar incidente manifestamente infundado;

VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.

Natália Santos / O Estado de S. Paulo, em 24.11.22, às 11h08

PP e Republicanos rejeitam ação do PL e dizem que vitória de Lula não pode ser contestada

Após partido de Bolsonaro pedir anulação de votos de certas urnas, Moraes determinou que contas da coligação sejam bloqueadas para pagar multa; PP e Republicanos disseram não concordar com ação do PL e vão recorrer ao TSE

O deputado Marcos Pereira é uma das figuras de maior relevância na Câmara, à frente do Republicanos e ligado à bancada evangélica.  Foto: Dida Sampaio / Estadão Conteúdo

Os presidentes do Republicanos, deputado Marcos Pereira (SP), e do PP, deputado Cláudio Cajado (BA), afirmaram nesta quinta-feira, 24, que os partidos não foram consultados sobre a ação do PL que pede a anulação de votos de determinadas urnas no segundo turno da eleição presidencial. As três siglas formaram uma coligação para lançar o presidente Jair Bolsonaro à reeleição.

O PL, ao qual Bolsonaro é filiado, sustenta, sem provas, que a eleição não foi vencida por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas, sim, pelo atual presidente.

“Não fomos consultados. Reconheci o resultado publicamente às 20:28 do dia da eleição”, declarou Pereira ao Estadão. Cajado, que administra interinamente o PP enquanto Ciro Nogueira exerce o cargo de ministro da Casa Civil, foi na mesma linha. “Não fui consultado e eles falavam em nome do PL e não em nome da coligação”, declarou.

Além do PL, a ação foi protocolada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em nome da coligação eleitoral de Bolsonaro, da qual Republicanos e o PP também faziam parte. O presidente do TSE, Alexandre de Moraes, solicitou que a demanda também incluísse as urnas de primeiro turno, quando o PL elegeu 99 deputados e oito senadores, mas o partido se recusou a fazer isso.

Em resposta, Moraes considerou que a coligação e o partido acionaram a Justiça indevidamente e determinou o pagamento de multa e o bloqueio das contas das três legendas enquanto o valor não for recolhido. Os presidentes do Republicanos e do PP disseram que vão entrar com um recurso para excluir seus partidos do bloqueio. “Será protocolizado hoje ainda”, afirmou Pereira. “Faremos em conjunto”, completou Cajado.

Para reforçar sua posição de distância da iniciativa adotada pelo PL de Valdemar Costa Neto, condenado pelo escândalo do Mensalão no governo de Lula, mas hoje aliado de Bolsonaro, o presidente do Republicanos divulgou um vídeo gravado logo após o resultado da eleição de segundo turno.

“Tivemos a eleição do ex-presidente Lula. Reconhecemos o resultado. Apoiamos o presidente Bolsonaro até o último minuto, trabalhamos, mas as urnas, o povo escolheu, as urnas são soberanas. Não há porque duvidar do resultado das urnas, não há porque questioná-los”, declarou ele.

Impossível dissociar primeiro turno

Contrariando a ação do PL, que visa a apenas questionar o resultado presidencial do segundo turno, Pereira reconhece que não dá para dissociar a disputa que Lula venceu das outras, inclusive as que os candidatos do Republicanos venceram.

“Senão, nós teríamos que questionar a eleição do Tarcísio (eleito governador de São Paulo pelo Republicanos), a eleição do senador Mourão, a eleição da senadora Damares, a eleição do nosso governador, que foi reeleito em primeiro turno lá em Tocantins, Wanderley Barbosa, a eleição dos 41 deputados federais”, enumerou. “Não, o resultado está aí, nós não apoiamos o candidato eleito, mas agora precisamos continuar trabalhando em prol do Brasil”, completou.

O deputado Claudio Cajado (PP-BA) é presidente interino do Progressistas; ele assumiu o comando da sigla após Ciro Nogueira se tornar ministro no governo Bolsonaro. Foto: Billy Boss/Agência Câmara

Já o presidente interino do PP chamou a atenção para fato de Ciro Nogueira comandar a transição para o governo Lula pelo lado do atual governo. De acordo com o dirigente, é “claro” que o partido reconhece a vitória de Lula. “Se o chefe da transição pelo atual governo é o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, presidente do Progressistas, e que já praticou os atos da transição, sim, claro (o PP reconhece o resultado da eleição)”.

O Republicanos declarou que vai adotar postura de independência durante o próximo governo Lula, sem se classificar como base ou oposição. Já o PP ainda não decidiu a postura que será tomada.

Lauriberto Pompeu / O Estado de S. Paulo, em 24.11.22, às 10h54

Área técnica do TSE classificou como ‘inequivocadamente falsos’ argumentos do PL sobre urnas

Secretário de Tecnologia da Informação da corte eleitoral rechaçou, uma a uma, as três alegações feitas pelo partido do presidente Jair Bolsonaro para pedir a anulação dos votos de 279,3 mil urnas; ministro Alexandre de Moraes barrou a ofensiva e multou a legenda em R$ 22,9 milhões por má-fé

Servidores da Justiça Eleitoral preparam urnas eletronicas. Foto: Dida Sampaio / Estadão

Ao barrar a mais recente ofensiva do presidente Jair Bolsonaro contra o sistema eletrônico de votação nesta quarta-feira, 23, o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, tomou como base parecer da área técnica da Corte que rechaçou as alegações do PL sobre ‘mau funcionamento’ de 279,3 mil urnas. O Secretário de Tecnologia da Informação do TSE Júlio Valente Da Costa Júnior classificou como ‘inequivocadamente’ falsos os argumentos do partido do chefe do Executivo.

O laudo de 16 páginas foi produzido com o objetivo de ‘esclarecer o conjunto de informações equivocadas’ que constam do requerimento do PL e o ‘motivo pelo qual não há razão técnica para invalidar ou levantar suspeição sobre as votações registradas nas urnas de modelos 2009, 2010, 2011, 2013 e 2015’. A avaliação do servidor da Corte eleitoral foi a de que os argumentos apresentados pelo PL ‘não encontram respaldo nos fatos’, consistindo ‘interpretações equivocadas que não prosperam frente às reais funcionalidades do processo eletrônico de votação’.

Bolsonaro e seu partido pediam ao Supremo a anulação dos votos apenas do segundo turno contabilizados em 279,3 mil urnas eletrônicas de modelos anteriores a 2020 – equipamentos usados quando o presidente foi eleito em 2018. O Secretário de Tecnologia da Informação frisou como ‘não há motivo técnico minimamente razoável’ para ignorar tais votos.

“Não há nenhum motivo técnico minimamente razoável para ignorar os votos de urnas de modelos anteriores ao modelo 2020 ou, ainda, fazê-lo somente para o 2º turno. Ainda que fosse encontrada falha grave em algum conjunto de urnas, considerando que o ecossistema de hardware e software é idêntico entre turnos, não há sentido em salvaguardar um em detrimento de outro”, indicou Júlio Valente Da Costa Júnior.

O relatório foi citado na decisão em que o ministro Alexandre de Moraes classificou o pedido do presidente e de seu partido como “inconsequente”, “esdrúxulo”, “ilícito” e “ostensivamente atentatório ao Estado Democrático de Direito”. “Os partidos políticos, financiados basicamente por recursos públicos, são autônomos e instrumentos da democracia, sendo inconcebível e inconstitucional que sejam utilizados para satisfação de interesses pessoais antidemocráticos e atentatórios ao Estado de Direito”, escreveu o presidente do TSE.

No relatório técnico, o secretário de Tecnologia da Informação listou os três pontos suscitados pelo partido de Bolsonaro, rebatendo as alegações uma a uma. O PL sustentou, por exemplo, que urnas de modelos anteriores a 2015 teriam a rastreabilidade prejudicada. Em resposta, a área técnica do TSE ressaltou que é ‘descabida qualquer afirmação de que todas as urnas possuem o mesmo número ou que não possuem patrimônio que as diferencie umas das outras’.

A Corte esclareceu que cada urna possui um número identificação único, usado pelo software do equipamento em diversos momentos, além de ter um certificado digital que a distingue das demais. Júlio Valente explicou como cada urna ‘chancela tudo o que produz, garantindo a identidade das informações produzidas em três documentos principais: o log de eventos, o registro digital do voto e o boletim de urna’. Além disso, o servidor listou uma série de outros mecanismos que ‘asseguram a resiliência e a robustez do sistema eletrônico de votação’.

O Secretário de Tecnologia da Informação do TSE também afastou as alegações de supostas violação do sigilo do voto e discrepâncias de votação. Com relação à primeira, Júlio ressalta que o software de votação não registra qualquer tipo de identificação do eleitor, não sendo possível rastrear as escolhas de determinada pessoa. Já quanto ao segundo argumento, o servidor da Corte eleitoral explicou como ele não encontra ‘respaldo estatístico’.

O documento que deu base à decisão de Alexandre de Moraes ainda listou informações adicionais sobre as eleições, dando destaque às etapas de conferência e fiscalização do processo. No ciclo 2021-2022 foram disponibilizadas pela Corte 40 oportunidades de fiscalização do sistema eletrônico de votação, que contaram com a participação de diversas instituições e missões de observação.

Entre as entidades que participaram da fase de acompanhamento e especificação do desenvolvimento dos sistemas eleitorais, por exemplo, estão a Polícia Federal, o Ministério da Defesa, o PTB, o Senado Federal, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o Ministério Público Eleitoral, a Controladoria-Geral da União, e o PV. O PL também consta na lista de participantes da atividade, mas, segundo o TSE, apesar de comparecer à Corte em data marcada, ‘não exerceu as atividades de inspeção dos códigos-fonte no TSE’.

Pepita Ortega e Rayssa Motta / O Estado de S. Paulo, em 24.11.22, às 0905

Lula se aproxima de generais demitidos por Bolsonaro, mas ainda enfrenta dificuldades com militares

Oficiais que integraram cúpula das Forças Armadas no atual governo estão na lista do grupo que tratará da Defesa no gabinete de transição



Fernando Azevedo e Silva foi o primeiro ministro da Defesa de Jair Bolsonaro; ele deixou o governo no primeiro semestre do ano passado. Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

O gabinete de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva buscou contato direto com oficiais-generais que passaram por cargos de chefia nas Forças Armadas, não só em governos petistas, mas também na antiga cúpula militar da gestão de Jair Bolsonaro. Interlocutores do presidente eleito já estabeleceram canais com ex-comandantes, como Edson Leal Pujol, do Exército, e com o ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva.

Um conselheiro de Lula que atua nas tratativas disse ao Estadão que todos os demais ex-comandantes estão sendo procurados. A lista inclui os últimos comandantes-gerais da Força Aérea Brasileira (FAB), brigadeiro Antônio Carlos Moretti Bermudez, e da Marinha, almirante Ilques Barbosa Junior.

O ex-ministro e os três oficiais-generais da reserva deixaram o governo Bolsonaro em março de 2021, numa intervenção sem precedentes do Palácio do Planalto sobre a cúpula militar. Todos foram exonerados após cobranças de apoio político feitas por Bolsonaro. Na ocasião, Azevedo e Silva afirmou ter preservado as Forças Armadas como instituição de Estado.

O Estadão apurou que, embora os generais Pujol e Azevedo e Silva tenham se mostrado dispostos a opinar em consultas informais, a tendência é de que eles não aceitem ser efetivamente nomeados na equipe da transição. Existe, porém, uma tentativa do futuro governo de articular ao menos uma reunião com os generais de quatro-estrelas.

Os antigos comandantes que chefiaram o Exército, a Aeronáutica e a Marinha nos governos do PT também voltaram a ser consultados por interlocutores de Lula. Entre eles estão o general Enzo Peri, o brigadeiro Juniti Saito e os almirantes Julio Soares de Moura Neto e Eduardo Bacellar Leal Ferreira.

Além dos militares, há outros nomes sugeridos que compõem uma lista já esboçada, inclusive civis, como o atual presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde), Roberto Alves Gallo Filho.

Impasse

Lula vive um impasse na formação da equipe que deverá se relacionar com as Forças Armadas, uma das únicas ainda não designada. Como mostrou o Estadão na semana passada, os ex-comandantes já estavam sendo consultados por emissários de Lula para opinar sobre a formação da equipe e temas da área, mas uma ala argumentava que os contatos deveriam se restringir apenas a ex-integrantes de governos do PT. Outros defendiam apenas civis no núcleo da Defesa.

Coordenadores da transição de governo dizem que caberá a Lula arbitrar a formação do grupo da Defesa, que terá civis e militares, como disse o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin. Havia a expectativa de que Lula anunciasse os integrantes da equipe nesta semana, mas os planos foram alterados porque ele não viajou a Brasília, por recomendação médica, para poupar a voz após cirurgia.

Um dos interlocutores do gabinete de transição é o general da reserva do Exército Marcos Edson Gonçalves Dias, que foi chefe da segurança presidencial durante os mandatos de Lula. G. Dias, como é conhecido, tem sido a principal ponte de contato com os militares.

O general estava cotado para o grupo de Inteligência Estratégica, assim como o delegado da Polícia Federal Andrei Passos. Esse núcleo temático não chegou a ser anunciado ainda e já houve sugestões para que fosse integrado ao grupo da Defesa, também pendente. Há dúvidas, porém, sobre como seria o seu funcionamento e formato.

O próprio G. Dias avalia que não seria viável receber relatórios com informações sigilosas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) ou do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Mesmo assim, ele já recebeu um telefonema do Palácio do Planalto para tratar da transição com a equipe do general Augusto Heleno, ministro do GSI.

Lula também vem sendo aconselhado pelos ex-ministros da Defesa Jaques Wagner, Celso Amorim e Nelson Jobim e por parlamentares com trânsito na caserna. O ex-ministro Aloizio Mercadante, filho do ex-general Oswaldo Muniz Oliva, afirmou haver um problema institucional com as Forças Armadas, mas minimizou o adiamento na escolha da equipe.

Desde a campanha, Lula passa por dificuldades de acesso às cúpulas militares, principalmente as da ativa. Enfrenta resistências ideológicas e reconhece nos quartéis uma simpatia por Bolsonaro, que foi capitão do Exército. Bolsonaro deu inédito protagonismo político aos militares, que ocuparam cerca de 6 mil cargos na Esplanada dos Ministérios. Lula já disse que pretende reverter o aparelhamento.

Saída antecipada

Além da indefinição sobre a equipe, Lula pode ter de lidar em breve com um ato potencialmente polêmico. Como mostrou o Estadão, os atuais comandantes das Forças Armadas já sinalizaram que planejam deixar os cargos às vésperas da posse de Lula. Não se trataria de uma renúncia coletiva, mas da passagem de comando, em datas e cerimônias distintas. Essa saída antecipada não ocorreu em trocas de governo anteriores.

O brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, comandante da Aeronáutica, disse a integrantes de sua equipe que deseja deixar o cargo em dezembro. Ele chegou a convidar oficiais-generais para sua futura passagem de comando, que deve ocorrer às vésperas do Natal, em 23 de dezembro. Seria dias depois de outra cerimônia importante da Força Aérea: a entrega e entrada em operação de quatro caças novos Gripen ao 1º Grupo de Defesa Aérea, em Anápolis (GO).

Oficiais-generais da ativa com conhecimento do assunto dizem que o gesto deve se repetir no Exército e na Marinha. As Forças não confirmam. Generais que trabalham com o comandante Marco Antônio Freire Gomes alegam que “nada foi definido”. A assessoria do almirante Almir Garnier Santos não respondeu.

A saída antecipada seria uma forma de prestigiar o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, para que ele fosse a autoridade a participar das cerimônias e recebesse homenagem. Segundo um general, não seria um ato deliberado para atingir Lula. A possibilidade ainda é vista com desconfiança na transição de governo.

O atual ministro da Defesa da gestão Bolsonaro, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira 

Militares falam em possível pressão vinda dos Altos-Comandos. Auxiliares de Lula afirmam ver no caso uma jogada política do Planalto. A atitude demonstraria apoio a Bolsonaro, já manifestado pelos comandantes da FAB e da Marinha às vésperas da eleição, em postagens nas redes sociais.

Nas palavras de um oficial da Defesa, eles “entrariam para a história” como militares que não quiseram transmitir o comando para colegas de farda, não para rivais políticos. É uma comparação com a recusa de Bolsonaro em se comprometer a passar a faixa a Lula.

Embora as cúpulas militares se digam legalistas, os atuais comandantes-gerais das Forças Armadas emitiram nota conjunta, recentemente, em defesa de manifestações, na frente dos quartéis, que tinham como principal pauta o protesto contra a eleição de Lula e um pedido de intervenção militar.

Caso a saída antecipada se confirme, o militar mais antigo de cada Força assumiria interinamente. Diante desse cenário, o Estadão ouviu de um dos mais importantes conselheiros de Lula, sob reserva, que o ideal seria a indicação, o quanto antes, de quem será o ministro da Defesa – um civil – e dos próximos comandantes-gerais. A aposta é a de que Lula escolherá quem está há mais tempo no topo da carreira.

Esse mesmo integrante da transição afirmou que transmissões de cargos de comando militar costumam demorar algumas semanas. Não seria ruim para o presidente eleito, portanto, ter os próximos comandantes já em atuação em 1.º de janeiro de 2023. Já a transição no âmbito político envolve apenas o Ministério da Defesa.

Emissários do governo eleito ouviram de generais que não agradaria às cúpulas militares repetir na Defesa a fórmula de embaixadores no comando da pasta. Além disso, eles também não veem com bons olhos a indicação de um nome oriundo do Supremo Tribunal Federal (STF), que é, atualmente, alvo de críticas na caserna.

Felipe Frazão / O Estado de S. Paulo, em 24.11.22, às 08h50