sexta-feira, 23 de setembro de 2022

EUA têm alertado secretamente a Rússia sobre consequências no caso do uso de uma arma nuclear

Tentativa da Casa Branca de cultivar o que é conhecido como ‘ambiguidade estratégica’ ocorre enquanto Putin continua aumentando sua retórica sobre o possível uso de armas atômica 

Os presidentes da Rússia, Vladimir Putin (E), e dos EUA, Joe Biden, durante cúpula EUA-Rússia em Genebra, Suíça, em 16 de junho de 2021  Foto: Saul Loeb/Pool via Reuters - 16/06/2021

 Os Estados Unidos vêm há vários meses enviando comunicações privadas a Moscou alertando a liderança da Rússia sobre as graves consequências que se seguiriam ao uso de uma arma nuclear, segundo autoridades americanas citadas pelo jornal The Washington Post. As mensagens, segundo as fontes, ressaltam o que o presidente Joe Biden e seus assessores articularam publicamente.

O governo Biden decidiu manter os alertas sobre as consequências de um ataque nuclear deliberadamente vagos, para que o Kremlin se preocupe com a forma como Washington poderia responder, disseram as autoridades, falando sob condição de anonimato para descrever deliberações delicadas.

A tentativa da Casa Branca de cultivar o que é conhecido no mundo da dissuasão nuclear como “ambiguidade estratégica” ocorre enquanto a Rússia continua aumentando sua retórica sobre o possível uso de armas nucleares em meio a uma mobilização doméstica destinada a estancar as perdas militares russas no leste da Ucrânia.

O Departamento de Estado esteve envolvido nas comunicações privadas com Moscou, mas as autoridades não disseram quem entregou as mensagens ou o alcance de seu conteúdo. Não ficou claro se os EUA enviaram novas mensagens privadas depois que o presidente russo, Vladimir Putin, emitiu sua última ameaça nuclear velada durante um discurso anunciando uma mobilização parcial na quarta-feira. Um alto funcionário dos EUA disse, porém, que a comunicação vem acontecendo de forma consistente nos últimos meses.

Dmitri Medvedev, vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, escreveu na quinta-feira em um post no Telegram que o território no leste da Ucrânia seria “integrado à Rússia” após a conclusão dos “referendos” que começarão a ser votados nesta sexta-feira e prometeu fortalecer a segurança dessas áreas.

Para defender essa terra anexada, disse Medvedev, a Rússia pode usar não apenas suas forças recém-mobilizadas, mas também “qualquer arma russa, incluindo armas nucleares estratégicas e aquelas que usam novos princípios”, uma referência às armas hipersônicas. “A Rússia escolheu seu caminho”, acrescentou Medvedev. “Não há caminho de volta.”

O comentário veio um dia depois de Putin sugerir que a Rússia anexaria terras ocupadas no sul e leste da Ucrânia e incorporaria as regiões formalmente ao que Moscou considera seu território. Ele disse que não estava blefando quando prometeu usar todos os meios à disposição da Rússia para defender a integridade territorial do país – uma referência velada ao arsenal nuclear do país.

Para Entender

Vehicles drive past advertising boards, including panels displaying pro-Russian slogans, in a street in the course of Russia-Ukraine conflict in Luhansk, Ukraine September 20, 2022. REUTERS/Alexander Ermochenko

O que está por trás dos referendos em províncias da Ucrânia ocupadas pela Rússia

Votações podem preparar terreno para a anexação das áreas em uma forte escalada da guerra de quase sete meses

Autoridades do governo Biden enfatizaram que esta não é a primeira vez que a liderança russa ameaçou usar armas nucleares desde o início da guerra, em 24 de fevereiro, e disseram que não há indicação de que a Rússia esteja movendo suas armas nucleares em preparação para um ataque iminente.

Ainda assim, as recentes declarações da liderança russa são mais específicas do que comentários anteriores e ocorrem em um momento em que a Rússia está cambaleando no campo de batalha por conta de uma contraofensiva ucraniana apoiada pelos EUA.

Enquanto as declarações anteriores do Kremlin pareciam ter como objetivo alertar os EUA e seus aliados sobre ir longe demais na ajuda à Ucrânia, os comentários mais recentes de Putin sugeriram que a Rússia está considerando usar uma arma nuclear no campo de batalha para congelar ganhos e forçar Kiev e seus apoiadores à submissão, disse Daryl Kimball, diretor executivo da Associação de Controle de Armas, um grupo de defesa da não proliferação em Washington.

“O que todos precisam reconhecer é que este é um dos episódios mais graves, se não o mais grave, em que armas nucleares podem ser usadas em décadas”, disse Kimball. “As consequências até mesmo de uma chamada ‘guerra nuclear limitada’ seriam absolutamente catastróficas.”

Durante anos, os especialistas nucleares dos EUA se preocuparam que a Rússia pudesse usar armas nucleares táticas menores, às vezes chamadas de “armas nucleares de campo de batalha”, para encerrar uma guerra convencional favoravelmente em seus termos – uma estratégia às vezes descrita como “escalar para diminuir”.

Na quinta-feira, Vadim Skibitski, vice-chefe da inteligência militar ucraniana, disse à ITV News do Reino Unido que é possível que a Rússia use armas nucleares contra a Ucrânia “para interromper nossa atividade ofensiva e destruir nosso estado”. “Esta é uma ameaça para outros países”, disse Skibitski. “A explosão de uma arma nuclear tática terá impacto não apenas na Ucrânia, mas na região do Mar Negro.”

Os ucranianos tentaram sinalizar que mesmo um ataque nuclear russo não os forçaria à capitulação – e de fato poderia ter o efeito oposto. “Ameaçar com armas nucleares… aos ucranianos?”, escreveu Mikhailo Podoliak, conselheiro do presidente ucraniano Volodmir Zelenski, no Twitter. “Putin ainda não entendeu com quem está lidando.”

Em entrevista ao programa “60 Minutes” da CBS News que foi ao ar no domingo, Biden foi questionado sobre o que ele diria a Putin se o líder russo estiver considerando usar armas nucleares no conflito contra a Ucrânia. “Não. Não. Não”, disse Biden. “Você mudará a face da guerra como nada antes desde a 2ª Guerra.”

Crise

Biden se recusou a detalhar como os EUA responderiam, dizendo apenas que a reação seria “consequencial” e dependeria “da extensão do que eles (russos) fizerem”.

O governo Biden enfrentaria uma crise se a Rússia usasse uma pequena arma nuclear na Ucrânia, que os EUA não estão obrigados a defender por nenhum tratado. Qualquer resposta militar direta dos EUA contra a Rússia arriscaria a possibilidade de uma guerra mais ampla entre superpotências com armas nucleares – evitá-la tornou a prioridade ‘número 1′ do governo Biden em todas as suas políticas para a Ucrânia.

Matthew Kroenig, professor de governo da Universidade de Georgetown e diretor do Centro Scowcroft para Estratégia e Segurança do Conselho Atlântico, argumentou que a melhor opção para o governo, se confrontado com um ataque nuclear russo limitado na Ucrânia, pode ser apoiar a Ucrânia e realizar um ataque convencional limitado às forças ou bases russas que lançaram o ataque.

“Se foram as forças russas na Ucrânia que lançaram o ataque nuclear, os EUA poderiam atacar diretamente essas forças”, disse Kroenig. “Seria calibrado para enviar uma mensagem de que esta não é uma grande guerra, este é um ataque limitado. Se você é Putin, o que você faz em resposta? Eu não acho que você diga imediatamente vamos lançar todas as armas nucleares nos Estados Unidos.”

Putin anuncia ‘mobilização parcial’ de russos em idade de combate

Medida foi tomada no país pela última vez na 2ª Guerra, quatro regiões controladas por Moscou na Ucrânia anunciaram referendos para integração a Rússia

Mas mesmo um ataque convencional limitado dos militares dos EUA contra a Rússia seria visto como imprudente por muitos em Washington, que argumentariam contra o risco de uma guerra em grande escala com uma Rússia com armas nucleares.

James M. Acton, codiretor do programa de política nuclear do Carnegie Endowment for International Peace, disse que não faz sentido neste momento descartar as respostas dos EUA porque há uma ampla gama de ações russas possíveis – de um teste nuclear subterrâneo que não faz mal a ninguém até uma explosão em grande escala que mata dezenas de milhares de civis - e não há sinais de que Putin esteja perto de cruzar o limiar.

“Se ele estivesse realmente pensando muito seriamente em usar armas nucleares muito em breve, ele quase certamente gostaria que soubéssemos disso”, disse Acton. “Ele prefere ameaçar o uso nuclear e nos obrigar a fazer concessões do que realmente ter de seguir o caminho do uso nuclear.”

Autoridades dos EUA intensificaram os esforços na Assembleia-Geral da ONU nesta semana para impedir a Rússia de considerar seriamente o que seria o primeiro uso de uma arma nuclear em um conflito desde os bombardeios atômicos do Japão pelos Estados Unidos em 1945.

O USS Ronald Reagan, um porta-aviões movido a energia nuclear da classe Nimitz da Marinha dos EUA, chega a um porto na cidade costeira de Busan, no sudeste da Coreia do Sul Foto: Jeon Heon-Kyun/EFE - 23/09/2022

O secretário de Estado Antony Blinken, falando em uma reunião do Conselho de Segurança da ONU na quinta-feira, disse que as “ameaças nucleares imprudentes da Rússia devem parar imediatamente”.

“Esta semana, o presidente Putin disse que a Rússia não hesitaria em usar, e cito, ‘todos os sistemas de armas disponíveis’ em resposta a uma ameaça à sua integridade territorial – uma ameaça que é ainda mais ameaçadora dada a intenção dos russos de anexar grandes áreas da Ucrânia nos próximos dias”, disse Blinken. “Quando isso estiver completo, podemos esperar que o presidente Putin reivindique qualquer esforço ucraniano para libertar esta terra como um ataque ao chamado território russo”.

Blinken observou que a Rússia em janeiro se juntou a outros membros permanentes do Conselho de Segurança na assinatura de uma declaração conjunta dizendo que “a guerra nuclear nunca pode ser vencida e nunca deve ser travada”.

Paul Sonne e John Hudson originalmente para o Washington Post (USA). Reproduzido no Brasil pelo O Estado de S. Paulo, em 23.09.22.

Missão da ONU conclui que crimes de guerra foram cometidos na Ucrânia

As Nações Unidas revelam sinais de tortura, execuções sumárias e casos de violência sexual em pessoas entre quatro e 82 anos, em áreas ocupadas por tropas russas

Exumação de um corpo em uma cova encontrada em Izium, no nordeste da Ucrânia, nesta sexta-feira. (Sergey Bobok - AFP)

A missão de apuração da ONU na Ucrânia concluiu esta sexta-feira, depois de visitar aquele país em junho, que crimes de guerra foram cometidos em áreas ocupadas por tropas russas durante a invasão . Isso foi confirmado por Erik Mose, presidente do grupo, em seu comparecimento perante o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra (Suíça). "Ficamos chocados com o grande número de execuções perpetradas nas áreas que visitamos", disse este especialista, que explicou que a missão está investigando esse tipo de assassinato em 16 cidades ucranianas nos primeiros meses da ofensiva russa, apesar de ter recebido relatórios de crimes desse tipo em muitos outros lugares do país invadidos.

Muitos dos executados eram pessoas detidas anteriormente cujos corpos foram encontrados com as mãos amarradas nas costas, ferimentos na cabeça e cortes no pescoço, segundo Mose. Tudo isso representa indícios de que foram execuções sumárias, acrescentou o especialista. Mose também denunciou a violência sexual e de gênero dos soldados de Vladimir Putin contra vítimas "entre as idades de quatro e 82 anos" e que, em alguns casos, os parentes das vítimas foram forçados a ver como foram maltratados ou torturados.

Esta missão da ONU, também composta pelo colombiano Pablo de Greiff e pela bósnia Jasminka Dzumhur, documentou casos em que crianças foram “estupradas, torturadas e detidas ilegalmente”. Há casos em que alguns deles acabaram sendo mortos pelos soldados russos. Várias testemunhas disseram à missão das Nações Unidas que foram espancadas, eletrocutadas e despidas à força durante as detenções ilegais em que foram transferidas da Ucrânia para o território russo.

Mose também destacou o uso repetido de artefatos explosivos em áreas civis, que afetaram escolas, residências, hospitais e outras infraestruturas. Esses ataques mataram cerca de 6.000 civis em sete meses de conflito, de acordo com o escritório de Direitos Humanos da ONU. "Uma parte dos ataques que investigamos foi lançada sem distinção entre civis e combatentes", disse Mose.

Estas conclusões são as primeiras a serem tornadas públicas desde a criação da missão em março passado. É responsável por investigar os atos perpetrados apenas nos primeiros dois meses da ofensiva russa nas áreas ao redor de Kiev, Chernihiv, Kharkov e Sumi. “ A recente descoberta de mais valas comuns ilustra a gravidade da situação”, alertou Mose, que esclareceu que a missão que preside também recolheu dois incidentes de maus tratos a soldados russos por parte das forças ucranianas, um tipo de crime no qual a ONU vai continuar a prestar atenção, ele assegurou.

Dois corpos de civis, um deles com as mãos amarradas nas costas, em uma rua de Bucha, uma cidade nos arredores de Kyiv, em abril. (Sergei Supinsky / AFP)

Agência EFE, de Genebra para o EL PAÍS, em 23.09.22 

Irregularidades marcam o início dos pseudo referendos de Putin para anexar territórios ocupados da Ucrânia

Kyiv denuncia que as votações, sem reconhecimento oficial e organizadas às escondidas da comunidade internacional, são realizadas com a presença de homens armados que coagem a população

Um membro do serviço da autoproclamada República Popular de Lugansk caminha com um rifle depois de votar no referendo para se juntar à Rússia na sexta-feira. (Alexander Ermochenko / Reuters)

A partir desta sexta-feira, véspera do aniversário de sete meses da invasão, até a próxima terça-feira, as autoridades pró-russas de ocupação realizam consultas sobre a anexação à Rússia em quatro regiões da Ucrânia. Nenhum deles está totalmente sob seu controle e os combates acontecem em todos eles. O primeiro dia se passou entre as denúncias das autoridades de Kiev sobre a imposição do voto à população, mesmo com a presença de homens armados junto com as pessoas que carregavam as urnas e que foram às casas, aos locais de trabalho ou aos hospitais alegando os votos.

O governo do presidente Volodímir Zelenski divulgou um vídeo em que uma mulher com um megafone na mão caminha pela rua se aproximando de diferentes casas para pedir aos moradores que participem. O governador ucraniano da região de Lugansk, Sergei Gaidai, um dos territórios onde as consultas são realizadas, denunciou que aqueles que não abrem a porta de sua casa ou pretendem dizer não à união com a Rússia são ameaçados.

Não há observadores que assegurem o bom andamento de um processo que a comunidade internacional considera ilegal e ao qual nenhum órgão concede reconhecimento oficial. A intenção do Kremlin é estabelecer suas posições nesses territórios, como fez em 2014 na península da Crimeia.. Poucos duvidam que os plebiscitos de Donetsk, Lugansk —duas províncias quase inteiramente ocupadas—, Zaporizhia e Kherson —parcialmente controladas— produzirão um resultado favorável aos interesses dos organizadores. O objetivo de Moscou ao buscar a anexação desses territórios é ter a possibilidade de aumentar a resposta militar de seu Exército em caso de agressão: no momento em que a Rússia considerar que essas regiões fazem parte de seu território, considerar-se-ia no direito de responder com todas as a dureza diante de possíveis ataques de forças leais a Kyiv.

Esses referendos ocorrem em um momento delicado para o presidente russo, Vladimir Putin, que teve que se mexer diante das derrotas que acumulou no campo de batalha nas últimas duas semanas. O presidente anunciou uma polêmica mobilização da população para enfrentar o conflito , que levou milhares de jovens a fugir do país para evitar a guerra . O avanço das tropas ucranianas forçou a retirada rápida de dezenas de milhares de soldados russos implantados há meses no nordeste da Ucrânia. A troca de prisioneiros ucranianos e russos realizada na quinta-feira também não foi bem recebida em Moscou.

Votação de Menores

Para aumentar a participação nos pseudo-referendos das regiões ucranianas, os organizadores estão permitindo que cidadãos menores, com idades entre 13 e 17 anos, acompanhados por seus pais ou responsáveis, votem, revelaram as autoridades de Kyiv nesta quinta-feira por meio de informações de os serviços secretos. Além disso, acrescenta a mesma fonte, está previsto trazer famílias da região de Donetsk que vivem na Rússia.

"Você apóia a incorporação da república na Federação Russa com os direitos de uma entidade da Federação Russa?", aparece escrito em russo na cédula dos centros de votação habilitados em Donetsk e Lugansk, segundo a agência Eph. Em Zaporizhia e Kherson pode-se ler em ucraniano e russo: "Você é a favor da região deixar a Ucrânia, criar um estado soberano e ingressar na Federação Russa?"

Marina, uma ex-professora de 56 anos da região de Kherson, diz que não tem intenção de votar no que ela chama de “uma performance teatral terrível”. “Suponho que eles vão acabar nos obrigando a nos posicionarmos, isso é, basicamente, para isso; é claro que o resultado é fraudado”, diz a mulher por meio de um aplicativo de mensagens, que decidiu ficar apesar da ocupação russa para cuidar de seus pais muito idosos. Em Melitopol, uma mulher que, por medo de ser identificada, pediu para não se identificar, explica que funcionários ligados às autoridades impostas pelo Kremlin estão indo às casas com as cédulas para que os cidadãos votem ali mesmo, na presença deles. "Dizem que é por segurança", diz a mulher , relata María Sahuquillo.Na verdade, as escolas só vão abrir no último dia de consultas, terça-feira, 27 de setembro, acrescenta a Efe. A partir desta sexta-feira, as autoridades vão recolher as cédulas nas casas devido à guerra que está a ser travada no país.

O governador de Lugansk denunciou que muitos cidadãos estão sendo obrigados a votar, conforme publicado em seu perfil na rede social Telegram. Gaidai, a autoridade legítima daquela região ucraniana quase inteiramente controlada por Moscou, acrescenta ainda que os russos prepararam equipamentos de vídeo para "filmar histórias de propaganda" sobre a votação.

“Em uma empresa em Bilovodsk, o chefe anunciou a todos os funcionários que a presença era obrigatória. Os que não participarem na votação serão automaticamente despedidos e as listas dos que não comparecerem serão entregues aos serviços de segurança da República Popular de Lugansk [como se autodenomina a autoridade pró-Rússia]”, adverte Gaidai. Num segundo caso, em Starobilsk, continua este governador ucraniano, “as autoridades de ocupação proibiram a população local de deixar a cidade entre 23 e 27 de setembro [datas entre as quais se estende a consulta]. De acordo com as informações disponíveis, os ocupantes estão formando grupos armados para patrulhar as casas e obrigar a população a participar do chamado referendo”, explica Gaidai.

Um militar vota em Lugansk, um território no leste da Ucrânia controlado pela Rússia.

Gaidai assegura que as comissões eleitorais são acompanhadas por homens armados que recolhem os votos casa a casa e aproveitam ainda para verificar se há homens em idade de combate na casa para os mobilizar para a guerra. "Eles estão procurando bucha de canhão", diz o governador dependente do governo de Kyiv.

Antes de um único boletim de voto ser introduzido nas urnas, a comunidade internacional já anunciou que o resultado daqueles referendos considerados ilegais não será reconhecido. Isto foi afirmado pelas Nações Unidas, NATO, União Europeia ou Estados Unidos. Além disso, as autoridades de Kyiv dizem que não pretendem alterar seu objetivo de manter a contra-ofensiva implantada no nordeste do país que lhes permitiu recuperar a região de Kharkov e que melhorou suas posições no campo de batalha para desocupar posições russas em Donetsk. e Luhansk.

As consultas são realizadas em um território que representa aproximadamente 15% dos 600.000 quilômetros quadrados da Ucrânia. É lá, nessas quatro regiões do leste e do sul do país vizinho, que a Rússia está agora concentrando seus esforços.

Em 21 de fevereiro, Putin assinou um decreto para, segundo ele, dar status oficial às duas autoproclamadas repúblicas populares independentes de Donetsk e Lugansk . Ao mesmo tempo, anunciou o envio de tropas de “manutenção da paz” para aqueles territórios. Esse foi o prólogo da invasão que ele ordenou logo depois e que começou na madrugada do dia 24.

Antes da agressão que começou naquele dia, a zona industrial de Donbas, que é ocupada pelas duas províncias de Donetsk e Lugansk, no leste da Ucrânia, já havia sido palco de uma guerra entre milicianos pró-russos apoiados por Moscou e o Exército ucraniano desde 2014. . O fato de as tropas leais a Kiev terem conquistado mais de 8.000 quilômetros quadrados em Kharkov desde o início de setembro permite que se posicionem nos portões do cobiçado Donbas. É lá que os militares ucranianos esperam continuar abrindo uma brecha nos dias de hoje; e onde Putin espera reformar sua presença militar com as últimas medidas anunciadas.

Luís de Vega, enviado especial à Ucrania, trabalhou como jornalista e fotógrafo em mais de 30 países por 25 anos. Chegou à seção Internacional do EL PAÍS depois de reportar por um ano e meio em Madri e arredores. Antes disso, trabalhou por 22 anos no jornal Abc, oito dos quais foi correspondente no norte da África. Foi duas vezes finalista do Prêmio Cirilo Rodríguez. Publicado originalmente em 23.09.22.

A ameaça nuclear de Putin: bravata ou real possibilidade?

Presidente russo voltou a ameaçar utilizar armas atômicas. Mas é provável que um ataque nuclear de fato aconteça? A Otan e o Ocidente estariam preparados?

O discurso é abertamente uma retórica de guerra: "Gostaria de lembrar àqueles que fazem afirmações sobre a Rússia que o nosso país também dispõe de vários meios de destruição e que, em alguns casos, eles são mais modernos do que os dos países da Otan. Se a integridade territorial russa for ameaçada, utilizaremos todos os meios disponíveis para proteger a Rússia e o nosso povo."

Foi isso que o chefe do Kremlin, Vladimir Putin, comunicou à população russa – e mundial – nesta quarta-feira (21/09). O líder russo acusa o Ocidente de chantagem nuclear. E não deixa dúvidas sobre a sua posição: "Isso não é um blefe. E aqueles que tentam nos chantagear com armas nucleares devem saber que a direção dos ventos pode mudar e apontar para eles."

Em seu discurso, Putin não apenas ameaçou o Ocidente por meio do uso de armas nucleares, como também anunciou a mobilização parcial de 300 mil reservistas.

"Desde o início da guerra, temos ouvido repetidamente ameaças do tipo, que podem ser interpretadas como uma ameaça de uso de armas nucleares", aponta o coronel da reserva da Bundeswehr (Forças Armadas alemãs) e especialista em política de segurança Wolfgang Richter, em entrevista à DW.

"A ideia por trás disso é possivelmente [enviar] um recado aos Estados ocidentais: se vocês [o Ocidente] interferirem na guerra ou mesmo atacarem o território russo, um ataque nuclear torna-se mais provável", acrescenta.

Em entrevista à BBC, a ex-secretária-geral adjunta da Otan Rose Gottemoeller não descarta a possibilidade de que a Rússia possa, de fato, utilizar armas nucleares: "Receio que, agora, eles possam atacar de maneira imprevisível. E de uma forma que poderia envolver até mesmo o uso de armas de destruição em massa", advertiu.

Richter, por outro lado, não vê a situação de maneira tão dramática e aponta para a doutrina nuclear russa, que prevê o uso efetivo de armas nucleares em apenas dois casos: "Primeiramente, se a própria Rússia for atacada por armas nucleares ou de destruição em massa. Em segundo lugar, se a existência e a sobrevivência do Estado russo estiverem em jogo". No entanto, caso áreas invadidas forem anexadas pela Rússia e posteriormente declaradas como parte do território russo, tais cenários previstos na doutrina não teriam força na legislação internacional, argumenta o especialista.

Rússia tem o maior arsenal nuclear do mundo

Com 6.375 ogivas, a Rússia tem o maior arsenal nuclear do mundo. Dos integrantes da Otan, os Estados Unidos têm o maior poderio, com cerca de 5.800 ogivas. Estima-se que a França possua 290, e o Reino Unido, por volta de 215. Os números exatos não estão disponíveis, já que os países mantêm diversas informações sobre seus programas nucleares sob sigilo.

Ainda que se fale sobre uma "proteção nuclear" dos EUA, um ataque nuclear contra a Europa não poderia ser evitado, militarmente falando. A proteção, neste caso, baseia-se mais na suposição de que um rival militar não se atreveria a atacar porque teria de contar com um contra-ataque.

Uma resposta militar para um suposto ataque russo poderia ser organizada e executada pelas potências nucleares da Otan: EUA, França e Reino Unido. Todas as três têm armas estratégicas que poderiam ser lançadas a partir de submarinos nucleares, por exemplo, o que permitiria um contra-ataque em qualquer cenário possível.

Quem decide sobre o uso de armas nucleares?

O primeiro a decidir e depois autorizar o uso de armas nucleares americanas estocadas na Alemanha, Itália, Bélgica e Holanda é o presidente dos Estados Unidos. Depois, o país onde os armamentos estão alocados precisa concordar com o lançamento a partir de seus próprios caças. Antes, porém, é provável que ocorram consultas com outros membros da Otan no Conselho do Atlântico Norte, o principal órgão de decisões políticas da organização.

Sobre o uso de armas nucleares da França, a decisão cabe exclusivamente ao presidente francês. No Reino Unido, quem decide é o primeiro-ministro.

Os três países, EUA, França e Reino Unido, compõem, portanto, três centros distintos de tomadas de decisões, o que pode ser considerado um elemento de dissuasão, a fim de dificultar aos adversários um cálculo preciso de como a Otan reagiria em caso de ataque.

A imagem mostra um caça Tornado da Força Aérea Alemã no solo, a partir da parte dianteira da aeronave. As janelas estão abertas, e dois pilotos acenam, com os braços erguidos.A imagem mostra um caça Tornado da Força Aérea Alemã no solo, a partir da parte dianteira da aeronave. As janelas estão abertas, e dois pilotos acenam, com os braços erguidos.

Caças Tornado seriam utilizados em caso de lançamento de armamento nuclear a partir da AlemanhaFoto: Rainer Jensen/dpa/picture-alliance

Como a Alemanha participa da dissuasão?

A Alemanha participa das ações de dissuasão nuclear na Europa com caças Tornado da Força Aérea alemã, estacionados na base de Büchel, no estado da Renânia-Palatinado, no sudoeste do país. Em uma situação de emergência, portanto, aeronaves com militares alemães voariam com armas nucleares americanas rumo ao alvo. Pelo menos uma vez por ano, pilotos da Bundeswehr fazem simulações para lançar bombas nucleares em objetos que imitam o alvo real.

Além da Alemanha, a Holanda, a Bélgica e a Itália também participam dos exercícios de dissuasão da Otan na Europa. Entre 100 e 150 bombas certificadas para essas aeronaves estão atualmente armazenadas no continente, segundo relatórios.

Intimidação russa não é recente

Desde a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, o presidente russo tem repetidamente feito ameaças quanto ao uso de armas nucleares. Provavelmente, isso envolveria a utilização das chamadas armas nucleares táticas, que têm um poder explosivo relativamente baixo. Elas poderiam ser usadas com um efeito bem baixo, de modo a provocar um ataque nuclear com cerca de um quinquagésimo do poder de destruição da bomba que devastou Hiroshima, no Japão.

Richter, no entanto, duvida que um ataque nuclear possa realmente acontecer: "Se a Rússia quebrar o tabu nuclear que existe desde 1945, o país também ficaria isolado e ostracizado em todo o mundo. Putin perderia todos os seus aliados, inclusive a China. Isso teria consequências incalculáveis para a sobrevivência política, econômica e social da Rússia."

O especialista em política de segurança considera, portanto, uma guerra nuclear entre Rússia e Otan bastante improvável: "A Rússia não poderia vencer, pois isso levaria a uma destruição mútua. Acredito que esse tanto de racionalidade ainda exista no Kremlin."

Talvez Putin também se lembre da declaração categórica proferida pelo presidente dos EUA, Joe Biden, há alguns dias. Em entrevista à rede CBS, Biden advertiu Putin veementemente contra o uso de armas nucleares ou químicas: "Não faça isso. Mudaria a face da guerra como nada mais o fez desde a Segunda Guerra Mundial."

Volker Witting | Andreas Noll para a Deutsche Welle Brasil. Publicado originalmente em 21.09.22

"Temos que deter Putin", diz militar brasileiro na Ucrânia

O tenente da reserva brasileiro Sandro Silva comanda um pelotão internacional que integra as forças ucranianas. Em entrevista à DW, ele explica as razões que o levaram a pegar em armas contra os russos.

Ele diz que a experiência de combate mais difícil que teve foi em Severodonetsk. Tem um amigo hospitalizado há meses em Kiev depois de ter sido ferido por morteiros, viu colegas caírem em confrontos, e mesmo assim Sandro Silva, de 37 anos, tem certeza de que está fazendo a coisa certa.

Atravessou o mundo, deixou a família e os amigos no Brasil e ingressou nas Forças Armadas ucranianas como comandante de um pelotão da legião estrangeira - integrado por dezenas de latino-americanos - que luta contra os russos em todo o front de batalha.

Tenente da reserva do Exército brasileiro, Silva pratica artes marciais mistas e é um aventureiro inveterado. "Eu viajei e trabalhei em diferentes países por 12 anos, e pude conhecer muitos ucranianos e russos. Também aprendi sobre política, história e o que leva um louco a fazer coisas que faz um líder como Vladimir Putin", diz o oficial, em entrevista à DW de algum lugar da Ucrânia que prefere não revelar, "por razões de segurança".

DW: Por que um brasileiro atravessa o mundo para lutar na Ucrânia?

Sandro Silva: Sou militar, sei o que aconteceu no passado com os nazistas e entendo o que o passado nos diz sobre o futuro. Eu simplesmente não posso ficar de braços cruzados sem fazer nada. Um dia, eu estava vendo o que estava acontecendo na Ucrânia e pensei: "Eu tenho capacidade, tenho o preparo militar, falo inglês, não estou de acordo com o que a Rússia está fazendo, pessoas com quem me importo muito vivem na Ucrânia", e ficaria com o coração partido por não ter feito nada.

Como foi o processo de recrutamento?

Os ucranianos buscam pessoas para funções específicas, e eu fui selecionado por um dos comandantes de pelotão do Departamento Principal de Inteligência (GUR, na sigla ucraniana). Para terminar de responder à outra pergunta, o que me levou a vir foi a sensação de fazer algo grande, para ajudar a Ucrânia a combater a agressão.O que sua família e seus amigos dizem?

O que sua família e seus amigos dizem?

Minha família me apoia, minha esposa me apoia, mas ao mesmo tempo ela constantemente me pede para eu voltar logo para casa. Os amigos também apoiam, mas não todos. Alguns não entendem a importância dessa luta ou entendem apenas uma pequena parte de tudo o que está acontecendo aqui.

A propaganda russa diz que os voluntários só vão à Ucrânia pelo dinheiro.

A propaganda russa é puro lixo. Sim, há um salário, mas o país está em guerra, e por lei você não pode tirar dinheiro da Ucrânia, não pode transferi-lo. Além disso, é pouco dinheiro, você usa para comprar alguma comida ou roupa, não é que você vem e se garante para o resto da vida. De fato, quando [o presidente Volodimir] Zelenski recrutou voluntários, não havia dinheiro, e chegaram 20 mil pessoas para ajudar. O dinheiro chegou depois, quando os soldados começaram a ser registrados no Exército e passaram a receber um salário. Mas ninguém vem, fica dois meses e volta milionário para casa.

O senhor sente que mudou desde que veio para a Ucrânia?

Muito. Há dias ou noites difíceis, nos movimentamos o tempo todo, não comemos nem dormimos bem, combatemos... Todos os aspectos da guerra fazem você apreciar melhor quão importante é a vida. Às vezes você fica com medo e quer ir para casa, mas pensa nas razões pelas quais está aqui e segue em frente. Isso muda as pessoas, muda a percepção sobre a vida, o amor, aqueles que você ama.

E como é a relação entre vocês no front de batalha?

Conheci muita gente na Ucrânia, tenho muito bons amigos e sei como eles são e não merecem que Putin faça toda essa porcaria. Esse cara está destruindo famílias, e se isso não te comove, você não é humano. A guerra muda você, eu não sou o mesmo e nunca mais serei o mesmo. Apesar disso, acho que tudo isso me fez uma pessoa melhor, vejo o mundo com outros olhos.

O senhor passou por momentos difíceis?

Perdi uma mulher e dois homens em combate, não é fácil contar para as famílias o que aconteceu, sabe? Dizer a eles que eles perderam um irmão, um filho... E, bem, aqui estão todas essas famílias que perderam tudo, suas casas, suas vidas. No final, tudo isso te deixa mais sensível. De vez em quando, eu paro e começo a chorar. Antes, muitas coisas não me comoviam, mas hoje vejo vídeos e eles me deixam mal. Espero que eu consiga lidar com tudo isso.

O que seus companheiros estrangeiros dizem para o senhor? Por que eles decidiram ir lutar na Ucrânia?

Creio que cada um tenha suas próprias razões, mas quando você pergunta para eles: "Amigo, o que você está fazendo aqui?", o que sai é quase sempre o mesmo. Eles falam do orgulho, da liberdade, de lutar contra a tirania e de fazer do mundo melhor.

Quão forte psicologicamente é preciso ser para se enfrentar a experiência da guerra?

Na verdade, você não sabe o quão forte você é mentalmente até estar aqui. Tem gente que vem, vê tudo explodindo e prefere ir embora. E não se trata de ser covarde. Você simplesmente não pode saber como é isso se você nunca viveu isso. Estive dentro de prédios que são constantemente bombardeados com fogo direto de tanques, onde tudo treme e te derruba no chão, onde o telhado literalmente cai em cima de você. Você não pode treinar para isso, mas depois de passar semanas sob fogo, literalmente caminhando sob um tanque disparando, você fica mais forte. Em Severodonetsk houve dias em que, enquanto comíamos, os morteiros explodiam a cem metros da nossa posição e, bem, você não pode parar de fazer as coisas porque há uma explosão. Você está lá, a artilharia está lá e atira

Tropas ucranianas. "Conheci muita gente na Ucrânia, tenho muito bons amigos", diz brasileiroFoto: Gleb Garanich/REUTERS

Como espera que essa guerra termine?

Putin acabou de anunciar que vai convocar parte de sua reserva, então… Olha, eu estive no sul, estive em todas as frentes, e quando você olha para trás e vê que no começo Putin disse que estava procurando desnazificar a Ucrânia… puro lixo. Depois, ele disse que o país tinha que ser desmilitarizado e atacou toda a Ucrânia, inclusive perto da fronteira com a Polônia. Depois, disse que queria proteger o povo de Donetsk e Lugansk e protegê-lo da Ucrânia nazista e blá, blá, blá. Puro lixo para justificar a invasão.

E o que o senhor acha de tudo isso?

Todos sabemos que Putin quer o sul, que a intenção é tirar da Ucrânia o que a Rússia não tem, o solo fértil para plantar coisas e depois vendê-las ao mundo. Em vez de fazer acordos diplomáticos, fazer tratados comerciais, os russos preferem bombardear, conquistar e invadir, como se fazia há centenas de anos.

Eles querem acesso ao mar, querem o sul, querem saquear a Ucrânia. É por isso que ele tomou a Crimeia em 2014, porque ele quer criar a URSS novamente.

Mas como o senhor acha que isso vai acabar?

Pode ser que a Otan acabe se envolvendo, a China diga "vamos apoiar a Rússia" e pronto, entraremos na Terceira Guerra Mundial, uma guerra nuclear que não queremos enfrentar, porque ela vai destruir o planeta inteiro. Esse cara não é o mesmo Putin de 15 anos atrás, que queria negociar, que deu a volta ao mundo apertando mãos. Ele está envelhecendo, já vimos isso em pessoas como Hitler, que querem mais poder. Isso começou em 2014, e agora ele quer tomar toda a Ucrânia, e sabemos que depois ele vai tomar Belarus. Se não quisermos ver isso, temos que deter Putin agora.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 23.09.22

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

União Europeia anuncia novas "medidas restritivas adicionais contra a Rússia"

A União Europeia vai "continuar a aumentar as ajudas militares" à Ucrânia e está a estudar novas sanções contra a Rússia. O anúncio foi feito pelo chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, depois de uma reunião extraordinária de ministros da UE em Nova Iorque.

Josep Borrell  

Josep Borrell, chefe da diplomacia europeia:"Serão imediatamente avançadas medidas restritivas adicionais contra a Rússia, assim que for possível, em coordenação com os nossos parceiros. [...] E quero sublinhar, em particular, um elemento importante: de acordo com a carta das Nações Unidas e o direito internacional, a Ucrânia está a exercer o direito legítimo de se defender contra a agressão da Rússia, para recuperar o controlo total do seu território, e tem o direito de libertar territórios ocupados dentro das suas fronteiras reconhecidas internacionalmente. E, por isso, nós vamos continuar a apoiar os esforços da Ucrânia, providenciando equipamento militar, enquanto for necessário."

De acordo com Borrell, as novas sanções deverão afetar setores da economia russa, como o tecnológico, além de mais indivíduos e personalidades russas.

Bruxelas condena também o apoio do Kremlin aos referendos anunciados nas zonas ocupadas sobre uma união dos territórios com a Rússia.

Publicado originalmente por Euronews, em 22.09.22

A esbórnia do Fundo Eleitoral

Recursos têm sido repassados a candidaturas fantasmas, para justificar cota feminina, e desviados para financiar irregularmente campanhas em que partidos de fato apostam

O Fundo Eleitoral se cristalizou como mais uma excrescência do sistema político brasileiro. Criado para reduzir a influência de empresas no processo eleitoral depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu as doações de pessoas jurídicas, o fundão só aumentou de tamanho nos últimos anos e sempre em proporções exponenciais. De R$ 1,7 bilhão em 2018, subiu a R$ 2 bilhões em 2020 e atingiu o recorde de R$ 4,9 bilhões neste ano. Dirigentes partidários e parlamentares argumentam que a democracia “tem um custo”, ainda que isso consuma a verba destinada a políticas públicas custeadas pelo Orçamento, e sustentam que um valor menor não seria suficiente para bancar as campanhas deste ano. Agora, antes mesmo das eleições, o Estadão revelou a quem e para que têm servido esses recursos: candidaturas fantasmas.

Reportagem publicada há poucos dias mostrou que os dirigentes partidários repassaram R$ 5,8 milhões do fundo para candidatos que praticamente não fizeram campanha, neófitos na disputa ou que tiveram votação pífia em pleitos anteriores. Nomes que não foram divulgados nem mesmo em redes sociais, muito menos em santinhos impressos, fizeram jus a valores vultosos, em circunstâncias excêntricas quando comparadas ao tratamento conferido a raposas do mundo político. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), por exemplo, recebeu R$ 2 milhões para sua reeleição. Lira conta com outdoors, slogan musical e um número de fácil fixação, estrutura que evidencia o quanto o partido de fato investe em seu nome. O valor repassado a Lira, no entanto, foi inferior aos R$ 3 milhões transferidos a Adriana Mendonça, candidata a deputada federal pelo PROS no Amazonas e que ocupa o 14.º lugar entre os maiores beneficiários do fundão.

A situação de Adriana, que conquistou 41 votos quando concorreu ao cargo de deputada estadual em 2018, já seria altamente suspeita, não fosse o fato de o próprio presidente do PROS no Amazonas, Edward Malta, admitir o papel que ela tem prestado neste ano – linha auxiliar do ex-marido, que disputa o governo do Estado. “O recurso vai ser usado na campanha do governador, do vice, de todos os candidatos”, disse. Não é um caso único. Há exemplos semelhantes em diversos partidos e Estados, com distribuição de verbas até mesmo para quem abandonou a disputa ou teve a candidatura indeferida.

Os valores repassados pelos dirigentes partidários por meio do Fundo Eleitoral variam em magnitude, mas se há algo em comum a essas candidaturas fantasmas é a preferência por mulheres. O fenômeno expõe as distorções geradas por legislações que tentam ampliar a representação política das mulheres no Legislativo e a enorme diferença entre o discurso público e a prática interna das siglas. Uma das leis delas prevê que as mulheres sejam no mínimo 30% das candidaturas proporcionais; outra obriga a distribuição de 30% da verba do fundão para candidaturas femininas. Longe de representar um investimento concreto para ampliar a presença das mulheres no Legislativo, esses recursos têm sido usados para financiar, de forma irregular, as campanhas nas quais as siglas realmente apostam – quase sempre lideradas por homens.

Esse é apenas um dos aspectos nefastos do Fundo Eleitoral. Há muitos outros, como o fato de que as legendas abrem mão de lançar candidatos à Presidência da República e aos governos estaduais para priorizar as eleições proporcionais, uma vez que o tamanho da bancada de deputados federais na Câmara é o critério de maior peso na distribuição dessa verba. O fundão garantiu um tratamento privilegiado do erário aos partidos e os dispensou, enquanto organizações privadas, de buscarem contribuições com membros e simpatizantes. A recente revelação do Estadão é apenas uma amostra de algo maior, que exige apuração célere e punição exemplar por parte da Justiça Eleitoral, responsável pelo julgamento dos demorados processos de prestação de contas das campanhas. Aos dirigentes partidários, cabe uma incômoda pergunta: é para isso que o Fundo Eleitoral foi criado? 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 22.09.22


Estadista de fancaria

Em sua viagem à Grã-Bretanha e aos EUA, Bolsonaro confirma sua incapacidade de agir como chefe de Estado e sua dificuldade de respeitar os limites, seja o do decoro do cargo, seja o da lei


Bolsonaro com o Rei Charles III confundindo condolências com congratulações. Faltou dizer - Parabéns enlutados. Ou disse e ninguém entendeu.

Em seu recém-encerrado tour pelo exterior, o presidente da República, Jair Bolsonaro, tinha dois compromissos como chefe de Estado: participar do funeral da rainha Elizabeth em Londres e da abertura da Assembleia-Geral da ONU em Nova York. Esteve nas duas solenidades, mas em nenhuma delas participou efetivamente como chefe de Estado. Usando dinheiro público e a estrutura da Presidência, Jair Bolsonaro não se comportou como representante do Brasil, mas como um líder de facção política, fazendo comícios eleitorais onde se exigia uma conduta de estadista.

Diante de um histórico que inclui a imitação jocosa de um doente de covid com falta de ar, sabotagem do esforço para vacinar os brasileiros, propaganda de remédios ineficazes contra a covid, ofensas a jornalistas (principalmente mulheres), manobra para indicar um filho à Embaixada nos EUA, suspeitas de rachadinha e de lavagem de dinheiro na família, incentivo ao descumprimento da lei ambiental, desgoverno nas áreas da saúde e da educação e ameaça golpista de não reconhecer o resultado da eleição, talvez alguém possa pensar que se trata de um pecadilho a confusão feita por Jair Bolsonaro entre candidato à reeleição e chefe de Estado. Não é.

Em primeiro lugar, o uso do cargo público para fins eleitoreiros significa descumprimento da lei eleitoral em dois pontos centrais. Há a utilização do dinheiro público para fins particulares, o que é manifestamente ilegal. E há abuso do poder político – o detentor do cargo usa sua posição pública para angariar votos –, instaurando-se um desequilíbrio de forças entre os candidatos, que devem dispor de igualdade de condições.

Um presidente que a todo momento se jacta de respeitar a Constituição deveria saber que sua atitude é francamente ilegal. Obviamente essa confusão de funções não foi mero descuido. Foi a repetição da mesma conduta delituosa observada no 7 de Setembro, quando Jair Bolsonaro usou a comemoração do Bicentenário da Independência para fazer campanha eleitoral. Não se tem notícia de que algum outro candidato a presidente tenha explorado os eventos oficiais do Bicentenário para fazer comício ou transformado repartições diplomáticas do Brasil no exterior em palanque. A democracia exige igualdade de condições. A Justiça Eleitoral não pode ser conivente com abuso do poder político ou econômico.

Ademais, há um aspecto que transcende a lei: a dimensão do exercício da Presidência da República. Como chefe de Estado, o presidente da República não representa apenas os seus apoiadores ou mesmo uma parcela, por maior que possa ser, da população. Ele representa todo o País, toda a população. Por isso, quando um chefe de Estado fala, especialmente no exterior, ele está falando em nome de toda a população.

No entanto, e aqui está a absoluta incapacidade de Jair Bolsonaro para o cargo, ele nunca fala em nome de todos os brasileiros. Ele não sabe unir. Não sabe agregar. Talvez essa seja a grande constante de seus quatro anos de governo, em que, desde o discurso de posse, em 1.º de janeiro de 2019, sempre apenas se dirigiu a seus apoiadores e a suas pautas. Em todas as circunstâncias, ele procurou explicitamente dividir, provocar, instigar, atritar. Até mesmo no velório da rainha Elizabeth.

Jair Bolsonaro nunca entendeu o que significa ser chefe de Estado. Nunca captou o que implica essa função de representação de todos. Ele sempre se portou como chefe da grei que o idolatra. Daí que a sua viagem à Inglaterra e aos Estados Unidos tenha trazido tanta frustração aos que assumiram a inglória tarefa de melhorar a imagem do presidente para as próximas eleições. A pretensão era produzir imagens de Jair Bolsonaro sério e estadista, ao lado de tantos outros chefes de Estado, mas a criação ficcional tem seus limites.

A incapacidade de Jair Bolsonaro de representar o País não é meramente circunstancial. Tem causas profundas. Seu discurso na ONU, tal como seus três anteriores, foi constrangedor. Bolsonaro reafirmou sua imensa dificuldade de respeitar os limites – seja o de sua função como chefe de Estado, seja o do decoro do cargo que ocupa, seja o da lei. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 22.09.22

Vladimir Putin tem que escalar a situação na Ucrânia para sobreviver

A mobilização parcial da Rússia e os "referendos" ordenados às pressas no leste da Ucrânia são sinais de fraqueza. Putin calculou mal, e milhares de russos estão pagando o preço com suas vidas, diz Miodrag Soric.

Putin anunciou a mobilização de 300.000 reservistas

Não há como voltar atrás - se o presidente russo Vladimir Putin perder sua guerra de agressão contra a Ucrânia , isso lhe custará seu poder, talvez mais. O mesmo vale para políticos no governo e no parlamento que ligaram seus destinos ao chefe do Kremlin, para melhor ou para pior. Eles estão em pânico.

Dado o recente sucesso dos ucranianos em retomar seu território, a Rússia está olhando para a derrota, algo que ninguém em Moscou esperava.

É por isso que Putin anunciou agora uma mobilização parcial e convocou 300.000 reservistas. Eles deveriam parar o avanço dos ucranianos; um avanço que testemunha o estado desesperado do exército russo.

Enfraquecido e isolado?

À margem da cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (SCO) no Uzbequistão,  apenas alguns dias atrás, Putin, fazendo um esforço para parecer desapaixonado, disse que a Rússia não tinha pressa na Ucrânia. Mas o mundo viu um Putin enfraquecido e isolado. As câmeras de televisão mostravam um homem idoso, a quem os outros chefes de Estado e de governo continuavam esperando. Sentado em um sofá, Putin ouviu educadamente o que eles tinham a dizer.

A Turquia, a Índia e até a China  indicaram publicamente que se opunham à guerra de Putin e apoiavam a integridade territorial da Ucrânia. Com razão – a guerra está afetando a economia global, o que significa que está restringindo o poder dos mesmos políticos que Putin esperava que apoiassem sua guerra de agressão.

Mudança de rumo no Kremlin

Não havia como a situação continuar nesse caminho, do ponto de vista do Kremlin. Agora que está de volta a Moscou, Putin  se apressou em mudar de rumo.

Em última análise, a mobilização parcial é uma admissão de fraqueza militar no leste da Ucrânia. O anúncio de permitir que os ucranianos em territórios conquistados "votem" se querem se juntar à Federação Russa mostra que eles não querem. Ninguém no mundo levará a sério os resultados de pessoas votando sob a mira de armas, de um referendo nas ruínas.

Putin quer garantir que os territórios conquistados sejam absorvidos pela Federação Russa. Então poderá convocar a defesa da pátria, recorrendo a todos os meios militares possíveis. Assim, com um floreio retórico, uma "operação militar especial" limitada no tempo e no espaço, que até agora teve pouco impacto na vida cotidiana da maioria dos russos, poderia ser transformada na defesa do "solo russo" por todos os meios - incluindo armas nucleares.

Fim da 'operação especial'

Não há necessidade de ser um profeta para prever o fim iminente do termo "operação militar especial". Ele será enterrado pela propaganda do Kremlin e substituído por ainda mais mentiras confusas, invenções e ameaças que as estações de TV controladas pelo Estado usam para tentar doutrinar seus telespectadores. Eles já afirmam que a Rússia não está travando uma guerra contra a Ucrânia, mas está se defendendo na Ucrânia contra os EUA e a Grã-Bretanha. E aqueles que querem acreditar nisso o fazem.

Os líderes mundiais atualmente reunidos na Assembleia Geral da ONU  em Nova York levarão a sério as renovadas tentativas de Putin de brincar com fogo. Mas sua política em relação a Moscou não mudará. A Ucrânia continuará a receber armas, seu exército continuará lutando.

E os 300.000 reservistas russos? A maioria nunca foi à guerra  e está mal equipada. Eles são homens de família e serão arrancados de suas vidas cotidianas contra seus desejos.

Na Ucrânia, eles serão chamados para defender a Rússia ao lado de criminosos condenados e mercenários chechenos. Não vai dar certo. Eles verão por si mesmos que os ucranianos não querem fazer parte da Rússia.

Dezenas de milhares de pessoas morrerão para que Putin e sua comitiva permaneçam no poder, para que não tenham que responder pelos crimes que cometeram contra seu próprio povo. Essa é a tragédia da mais recente má decisão do chefe do Kremlin.

Este artigo foi escrito por originalmente em alemão por Miodrag Soric. Publicado em português pela Deutsche Welle Brasil em 22.09.22

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Os petistas, ora vejam, estão cansados

Lula diz que o PT está ‘cansado de pedir desculpas’. A quem, não se sabe. Os brasileiros lesados pela corrupção e a inépcia petistas é que estão cansados de esperar pela contrição do PT

“O PT”, desabafou Lula da Silva à revista britânica The Economist, “está farto de pedir desculpas.” Talvez o tenha feito a portas fechadas, em absoluto sigilo, pois ninguém jamais viu um petista publicamente arrependido por ter participado de governos ineptos e corruptos. O PT, ao contrário, não se cansa de alardear a culpa alheia, mas os brasileiros se cansaram de esperar um mea culpa pelo mensalão, pelo petrolão ou pela recessão, que figuram com brilho entre os maiores casos de degradação moral e socioeconômica da República.

O PT jamais se desculpou por sua irresponsabilidade em relação a quase todos os principais temas políticos e econômicos do País. Por exemplo, veio de Lula da Silva, que hoje se apresenta como salvador da democracia, a ordem para que os constituintes petistas votassem contra a Constituição. Na lógica do quanto pior para o País, melhor para Lula, o PT bombardeou o Congresso com ineptos pedidos de impeachment contra Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso e sabotou do Plano Real à modernização da telefonia, passando pela criação das agências reguladoras e das regras de responsabilidade fiscal. No Planalto, perverteu o regime democrático distribuindo mesadas a deputados e capturando a estrutura do Estado para financiar sua máquina eleitoral.

Dos partidos de expressão, o PT é demonstravelmente o mais autocrático: ninguém duvida, a começar pelos petistas, que Lula manda e o partido obedece. Lula insulta a inteligência alheia ao tentar se desvencilhar da presidente Dilma Rousseff, como se a desastrosa política econômica de sua criatura já não existisse em potência no segundo mandato lulista. Três anos antes da primeira eleição de Dilma, por exemplo, Lula já preparava o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o pacote desenvolvimentista de injeção de anabolizantes na economia via bancos públicos que viria a se tornar uma das marcas do governo de sua sucessora. Comparada aos emergentes, a média do crescimento nas gestões petistas foi ainda mais medíocre que o já medíocre histórico nacional. A “aceleração do crescimento” ficou só no discurso, e o preço dessa patranha os brasileiros pagam até hoje.

Uma vez alijados do poder, os petistas correram o mundo desmoralizando o Estado de Direito brasileiro. A narrativa se mantém até hoje: Dilma Rousseff, por exemplo, foi vítima de um “golpe” do Congresso, e o Judiciário “perseguiu” Lula conspirando com as “elites”.

O PT não se desculpou pelo incentivo à cizânia política – o “nós” contra “eles” – que gestou o bolsonarismo, tampouco pelo apoio a ditaduras de esquerda latino-americanas, pela tolerância com o corporativismo e o patrimonialismo, pelas campanhas de desinformação e difamação de adversários. Lula não pediu desculpas nem sequer por ultrajes que – pelo benefício da dúvida – poderiam ser tributados à sua juventude, como quando, na flor dos seus 34 anos, expressou admiração por tiranos como Mao Tsé-tung, o aiatolá Khomeini e Hitler – que, nas palavras de Lula, “tinha aquilo que eu admiro num homem, o fogo de se propor a fazer alguma coisa e tentar fazer”.

Cansado da farsa, o povo foi tomado irresistivelmente pelo sentimento antipetista, consubstanciado nas multitudinárias passeatas pelo impeachment de Dilma, em 2016, e em 2018 e elegeu o antípoda Jair Bolsonaro – cujo grande feito, em razão de sua truculência e de seu calamitoso governo, foi ter feito uma parte significativa do eleitorado sentir saudades de Lula da Silva. Mas nada mudou: como mostra a entrevista do demiurgo de Garanhuns à Economist, não há razão para acreditar que Lula da Silva tenha a intenção de demonstrar contrição pelos inúmeros erros e desvios que ele e seus companheiros cometeram. Afinal, por que aquele que não se considera um ser humano, mas uma “ideia”, que não se cansa de dizer que é a “alma mais honesta” do País, que diz ter sido o “melhor presidente da história do Brasil”, que frequentemente se compara a ninguém menos que Jesus Cristo e que se oferece como a encarnação do próprio povo se desculparia pelo que quer que seja?

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 21.09.22

TCU vai fiscalizar urnas para se contrapor à ‘apuração paralela’ de militares

Corte de Contas prepara estrutura para fiscalizar proposta de militares e busca dar resposta em caso de contestação ao resultado das eleições

Técnicos do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal iniciaram na manhã desta quarta-feira (21) o processo de lacração das urnas eletrônicas que serão usadas nas eleições 2022. Foto: Wilton Junior/Estadão

O Tribunal de Contas da União (TCU) vai fiscalizar as urnas eletrônicas com o objetivo de reunir dados para contrapor, caso necessário, a apuração paralela das Forças Armadas. O Estadão apurou que, em conversas reservadas com ministros do Tribunal Superior Eleitoral, ficou combinado que essa seria a melhor forma de checar as informações dos militares caso eles contestem os resultados oficiais por se tratar de uma instituição isenta nessa queda de braço.

Conforme revelou o Estadão, as Forças Armadas farão uma contagem paralela a partir de boletins de urnas divulgados pela própria Corte. A estimativa, até o momento, é que os militares façam levantamento em cerca de 300 seções eleitorais. Eleitores serão convidados a emprestar suas digitais para que mesários registrem votos em urnas eletrônicas apartadas das que serão utilizadas no pleito. Ao final, poderão conferir se os votos digitados serão os mesmos registrados pelo equipamento.

Já o TCU fará a auditoria de 4.161 urnas no primeiro turno das eleições. O número quase 14 vezes maior de urnas fiscalizadas é proposital. Vai conferir ao TCU mais autoridade do que os militares para dar a última palavra sobre uma eventual divergência. Entre ministros do TCU, a ação está sendo chamada de “fiscalização da fiscalização dos militares”.

Além da auditoria que vai verificar se a quantidade de votos dados numa seção é o mesmo registrado nas urnas, dois técnicos do TCU também serão despachados para as 27 unidades da federação. A missão é recolher 40 boletins de urnas (papel gerado pela máquina informando quantos votos cada candidato recebeu) e comparar com os dados informados pelo TSE. No total, o TCU terá uma amostragem de 1.080 urnas. O tribunal também destacou 30 auditores para ajudar na fiscalização a partir de Brasília.

Até hoje não houve qualquer prova de fraude na votação eletrônica. Apesar disso, o presidente Jair Bolsonaro insiste há dois anos que as urnas podem ser fraudadas. Na última semana, Bolsonaro chegou a declarar que “se não ganhar no primeiro turno, algo de anormal aconteceu dentro do TSE”. Todas as pesquisas de intenção de voto, porém, mostram o presidente segundo colocado nas pesquisas. Na última semana, as chances de vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já no dia dois de outubro aumentou.

Tribunal de Contas da União quer fazer "auditoria da auditoria" e inspecionar o funcionamento de urnas eletrônicas que será feito pelos militares no dia da votação.

Tribunal de Contas da União quer fazer "auditoria da auditoria" e inspecionar o funcionamento de urnas eletrônicas que será feito pelos militares no dia da votação. Foto: Wilton Junior/Estadão

Como revelou o Estadão, dez oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica estão envolvidos no plano de fiscalização idealizado pelo Ministério Defesa, que tem chamado a tentativa de apuração paralela de “acompanhamento da totalização dos votos”.

As Forças Armadas integram o rol de entidades habilitadas para fiscalizar o processo eleitoral deste ano. Não há, no entanto, previsão constitucional, ou nas diretrizes de Defesa Nacional, de competência das três Forças para auditar o processo de contagem dos votos. A Defesa afirma que age de forma técnica para contribuir com o aperfeiçoamento da segurança e transparência do sistema.

Além dos militares, Bolsonaro também mobilizou as estruturas da Controladoria Geral da União (CGU) e da Polícia Federal na sua empreitada para desacreditar as urnas eletrônicas. Os dois órgãos destacaram servidores para fiscalizar o processo eleitoral.

Weslley Galzo para O Estadode S. Paulo, em 21.09.22

‘Campanha de Lula por voto útil é desrespeito à democracia’, diz Simone Tebet

Candidata do MDB cobra que ex-presidente compareça a debates e apresente propostas para o País

Simone Tebet em agenda de campanha em São Paulo nesta quarta-feira, 21. Foto: Felipe Siqueira/Estadão

Em visita ao Centro Paula Souza, na capital paulista, nesta quarta-feira, 21, a candidata à Presidência da República Simone Tebet (MDB) afirmou que o voto útil, que vem sendo pregado pela campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), é um desrespeito à democracia.

“Eu vejo mais como desrespeito do ex-presidente Lula com a democracia e com o povo brasileiro, porque não é só pregar o voto útil, que é um direito dele. Tentar, né? Ele prega um voto útil, mas não se apresenta ao Brasil. Quem é esse Lula que está chegando? Qual é o projeto que tem para educação? Qual é o projeto de desenvolvimento?”, disse.

A postulante ao Planalto pelo MDB também cobrou do adversário presença em debates e falou que o petista estimula o cenário de polarização no País. “Essa situação é muito triste. Nós estamos indo para o encerramento de uma campanha onde os candidatos que mais pontuam (Lula e Jair Bolsonaro) não vão para debates e não apresentam propostas reais, soluções reais, para os problemas mais graves do Brasil.”

Tebet complementou que se considera a real candidata do voto útil e única com possibilidade de derrotar Lula nas urnas. “Eu sou o voto útil. Represento a única saída que o Brasil tem de não voltar com fórmulas ultrapassadas, de um governo que permaneceu quatro mandatos, mas não fez o dever de casa”, disse. A candidata também ressaltou que Bolsonaro e Lula já atingiram um teto de intenções de voto, já que ambos são os mais rejeitados e não têm chances de migração de votos dentro do cenário de polarização.

Conforme dados do agregador de pesquisas do Estadão, Tebet aparece com 4% das intenções de voto, em quarto lugar, atrás de Ciro Gomes (PDT), com 6%, Bolsonaro, 33%, e Lula, que lidera a disputa, com 45%.

Durante a visita, Tebet comentou propostas de campanha à Educação, destacando a reforma do ensino médio e um prêmio, de R$ 5 mil, para alunos que se formarem no ensino médio técnico, como forma de combate à evasão escolar. A candidata acrescentou que não pretende alterar suas estratégias nesta reta final de campanha. “Não posso, no meio da reta para o final, mudar de estratégia, porque essa não é a minha verdade. Eu estou pronta para servir ao Brasil com a minha verdade. O que eu tenho a oferecer para o Brasil é o meu amor e minha coragem.”

Felipe Siqueira para O Estado de S. Paulo, em 21.09.22

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Nós, sobreviventes do ódio

Não haverá sigilo de cem anos para esconder os horrores deste governo

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, imita em vídeo (com a assessora fazendo a versão em Libras) como respiraria uma pessoa com falta de ar devido à Covid

Não vamos esquecer das 685 mil covas abertas como feridas na terra, nem da vida que se esvaiu pela falta de oxigênio que o seu governo não providenciou (e você ainda zombou), nem da dor dos que tiveram que ser amarrados por falta de anestésico nos hospitais.

Estão gravadas suas palavras ásperas como pedras: "e daí?", "gripezinha", "não sou coveiro", "país de maricas". Lembraremos sempre que você tentou manipular o suicídio de um voluntário de testes com a vacina, sabotou as máscaras e o isolamento social, mandou cancelar a compra da Coronavac, riu de tudo isso.

Será preciso lembrar do desespero na fila do osso e da carcaça e de quem revira o lixo para comer, enquanto seus generais compram filé, picanha, bacalhau, salmão, camarão, Viagra e próteses penianas.

Nada de esquecer seus amigos Adriano da Nóbrega e Fabrício Queiroz, os indícios de crime na formação de seu império imobiliário, as rachadinhas, sua ode à ditadura e a torturadores; a liberação das armas que nos matam. A propina cobrada em ouro no MEC, o orçamento secreto, liras, aras, kássios, mendonças, queirogas, damares, pazuellos, salles.

Elen Cristina de Souza (esq.) e Mara Siqueira, que três vezes na semana fazem fila em um açougue na periferia de Cuiabá para pegar pedaços de ossos doados pelo estabelecimento - Bruna Barbosa Pereira/UOL

Não esqueceremos a aversão doentia de Paulo Guedes às empregadas domésticas que gostam da Disney e aos porteiros que sonham com seus filhos doutores. No acerto de contas, estarão florestas em brasa, bichos calcinados, agrotóxicos na comida, rios contaminados, Bruno, Dom, Genivaldo, Moïse e tantos mais, os rios de sangue no Jacarezinho, na Vila Cruzeiro e no Alemão.

Acesos como tochas em nossas consciências estarão seus planos de golpear a Constituição, as eleições, a democracia e o Estado de Direito, suas ameaças contra cada um de nós que acreditamos num país em que a diarista Ilza, de Itapeva, possa comer sem ser humilhada.

Não haverá sigilo de cem anos para esconder o seu Brasil de horrores. Você, Jair, não tem direito ao esquecimento. E nós, sobreviventes do vírus do ódio, temos o dever da verdade e da memória.

Cristina Serra, a autora deste artigo, é paraense, jornalista e escritora. É autora de "Tragédia em Mariana - a história do maior desastre ambiental do Brasil". Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 20.09.22

Multiplicação de igrejas escancara o fracasso do Brasil

Vantagens tributárias e outras conferidas pelo Estado brasileiro explicam o fenômeno além da fé

O presidente Jair Bolsonaro e a primeira-dama, Michelle, participaram de culto evangélico na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte (MG); Michelle teve o microfone durante a maior parte do tempo e pediu orações pelo governo do marido - 7.ago.22/Reprodução O Tempo

Jesus multiplicou os pães, pastores multiplicam as igrejas. Deu em O Globo que, ao longo da última década, foram abertas no Brasil 21 igrejas evangélicas por dia. Em 2013, havia 71.745 instituições desse tipo; em maio de 2022, elas já eram 178.511.

Não duvido de que a fé responda por muito desse movimento, mas questões tributárias e outras vantagens que o Estado brasileiro confere a igrejas, também.

Digo-o com conhecimento de causa, pois já fui o feliz proprietário de uma instituição religiosa. No ano da graça de 2009, num experimento jornalístico, eu e colegas da Folha criamos a Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio.

Seus estatutos traziam um amontoado de delírios entremeados de elucubrações teológicas sem sentido, mas, como não contrariavam nenhuma disposição do Código Civil, pudemos registrar a nova fé em cartório, tirar um CNPJ de organização religiosa e, com ele, abrir uma conta bancária na qual fizemos aplicações financeiras isentas de imposto.

A aventura nos custou R$ 418. Publicada a reportagem, iniciamos os procedimentos para fechar a igreja. Haveria várias outras vantagens de que não nos utilizamos, como a imunidade sobre IPTU e IPVA para imóveis e veículos da instituição e contas de luz, água etc. muito mais baratas, já que livres do ICMS.

O Congresso tem na fila outras bondades para as religiões. Minha favorita é o direito de propor ações diretas de inconstitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal.

Essa multiplicação de igrejas aliada à multiplicação de benesses explica muito do fracasso do Brasil. Cada grupo de interesse com influência sobre o Congresso, sejam religiosos, empresários, servidores públicos ou qualquer outro, dá um jeitinho de inscrever em lei isenções e vantagens exclusivas. Uma vez fixadas, ninguém mais tira.

O resultado disso é que a conta vai ficando cada vez mais impagável e fica cada vez mais difícil aprovar regras que beneficiariam a todos.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo.É autor de "Pensando Bem…". Publicado originalmente em 20.09.22

Comício infame

Incapaz de sentir compaixão por seus compatriotas, Bolsonaro desrespeita o luto dos britânicos, usa funeral da rainha como palanque e, de quebra, volta a duvidar do sistema eleitoral

 Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro em frente à casa do embaixador brasileiro em Londres - 18/9/2022 

A pretexto de atender ao funeral de Estado da rainha Elizabeth II, o presidente Jair Bolsonaro viajou a Londres para fazer comício e produzir imagens para sua campanha pela reeleição. Trata-se de evidente abuso de poder político e econômico, o que impõe a aplicação de uma punição exemplar pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Não satisfeito, Bolsonaro ainda ampliou sua extensa folha corrida de crimes de responsabilidade ao difundir – mais uma vez sem provas – suspeitas sobre a segurança do sistema eleitoral do País, dizendo que, se ele não ganhar a eleição no primeiro turno, é porque “algo de anormal aconteceu no TSE”.

Durante essa rápida e infame passagem pela capital do Reino Unido, Bolsonaro envergonhou a grande maioria dos brasileiros, que decerto ainda guarda na alma um senso de decência. Além de usar recursos públicos para fazer campanha eleitoral, o que é expressamente proibido pela lei, Bolsonaro se fez acompanhar de indivíduos que nada têm a ver com a missão de Estado que lhe cabia desempenhar, mas têm tudo a ver com sua campanha eleitoral. Interessado em transformar a eleição numa “guerra santa”, Bolsonaro levou um líder evangélico e um padre. Já em Londres, Michelle Bolsonaro levou a tiracolo um influenciador digital que aproveitou para fazer propaganda, nas redes sociais, dos produtos usados pela primeira-dama – afinal, diante de um presidente capaz de fazer comício num funeral, que mal há em fazer marketing com o luto?

O contraste com outro funeral importante, o do líder sul-africano Nelson Mandela, é gritante. Em 2013, a então presidente, Dilma Rousseff, para enfatizar que se tratava de uma missão de Estado, levou em sua comitiva os ex-presidentes Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso, José Sarney e Fernando Collor.

Enfrentando uma rejeição proibitiva para um incumbente que tenta a reeleição, Bolsonaro achou que era o caso de usar o funeral da rainha para tentar transmitir a imagem de um governante estimado pela chamada comunidade internacional. Na verdade, ao se comportar como um aproveitador, Bolsonaro só logrou aprofundar o sentimento de comiseração que o mundo civilizado passou a nutrir pelo Brasil desde que ele tomou posse.

Da sacada da residência oficial do embaixador do Brasil, no bairro londrino de Mayfair, Bolsonaro se dirigiu a um pequeno grupo de apoiadores prometendo se opor ao que chama de avanço da “ideologia de gênero”, da “ideologia do aborto” e da “ameaça comunista”. De quebra, ignorando completamente o motivo oficial da visita, foi a um posto de combustíveis em Londres para mostrar que a gasolina ali é mais cara do que no Brasil, o que seria um feito de seu governo. Mas a tosca propaganda eleitoral – que, enfatize-se, usou recursos públicos – obviamente não levou em conta o poder de compra de cada país: no Brasil, abastecer com cerca de 50 litros custa 22% de um salário mínimo; no Reino Unido, custa menos de 6% do piso salarial britânico.

Questionado por jornalistas sobre o óbvio uso da viagem para fins eleitorais, Bolsonaro se irritou, mandou os repórteres fazerem “uma pergunta decente”, virou as costas e encerrou a entrevista.

Em países democráticos, uma das regras mais elementares das disputas eleitorais é a igualdade de condições entre os candidatos. No Brasil, tanto a Constituição como a Lei Eleitoral dispõem de normas muito bem definidas para garantir que candidatos que detêm mandatos eletivos não abusem do poder político e econômico de seus cargos a fim de obter vantagens indevidas em relação aos adversários. Bolsonaro tem obliterado impunemente cada um desses anteparos republicanos. Até quando?

No Twitter, o presidente se apropriou de uma fala do arcebispo da Cantuária durante a cerimônia em memória da rainha Elizabeth II para continuar fazendo campanha e transmitir a ideia segundo a qual é um “servo” do povo brasileiro. “Aqueles que servem serão amados e recordados. Aqueles que se apegam ao poder e aos privilégios serão esquecidos.”

Esquecido Bolsonaro seguramente não será. Haverá de ser lembrado como um dos presidentes mais indignos que já governaram o Brasil.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 20.09.22

Candidatos ‘fantasmas’ recebem R$ 5,8 milhões do fundo eleitoral

‘Estadão’ encontra casos suspeitos no País que obedecem a um padrão: dinheiro público foi parar na conta de candidatos que não fizeram campanha a 12 dias da disputa


Por lei, 30% das candidaturas à Câmara devem ser de mulheres. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Partidos repassaram ao menos R$ 5,8 milhões do fundo eleitoral para candidatos “fantasmas”. O dinheiro público caiu na conta de políticos que, a 12 dias das eleições, praticamente não fizeram campanha, não usaram as redes sociais para divulgar seus nomes, não distribuíram santinhos, são neófitos ou tiveram votação pífia em disputas passadas. Mas, mesmo assim, receberam acima da média dos concorrentes. A verba também foi parar em empresas que não entregaram os serviços e bancou despesas de outros postulantes.

No Amazonas, uma candidata a deputado federal pelo PROS ganhou R$ 3 milhões do fundo eleitoral e se tornou a líder nacional em repasses do partido. Em 2018, ela recebeu 41 votos e terminou a disputa naquele ano com as contas rejeitadas por ocultar gastos da Justiça Eleitoral. O valor destinado a ela é maior do que a candidatos com grande potencial eleitoral. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), por exemplo, recebeu R$ 2 milhões para sua reeleição; Eduardo Bolsonaro (PL-SP), campeão nacional de votos na última disputa, R$ 500 mil.

Em Rondônia, o PP entregou R$ 2 milhões para uma candidata que contratou uma empresa de marketing sem ter feito propaganda nas redes sociais. Questionada sobre como conseguiu tantos recursos, mesmo sendo estreante, Marlucia Oliveira justificou: “Sou a queridinha do partido, mas não no sentido pejorativo”.

O Estadão encontrou casos suspeitos de norte a sul e obedecem a um padrão. O fundo eleitoral, que neste ano ficou em R$ 5 bilhões, é distribuído por dirigentes partidários e, agora, cai na conta de candidatos que não estão fazendo campanha. A divisão beneficia até quem abandonou a disputa ou está com a candidatura indeferida, sem devolução da verba para os cofres públicos.

A candidata a deputada federal Adriana Mendonça fez campanha para o candidato ao governo do Amazonas, Henrique Oliveira, em seu perfil pessoal. 

É o caso da candidata a deputado federal Adriana Mendonça. Foi ela que recebeu do PROS R$ 3 milhões, o que a faz a 14.ª candidata mais contemplada pelo “fundão” em todo o País, numa lista que só tem puxadores de votos e nomes disputando a reeleição. Em 2018, ela teve apenas 41 votos para o cargo de deputado estadual.

A campanha de Adriana se resume a 33 posts numa página do Facebook e do Instagram, no ar há duas semanas. Todos são montagens. Em nenhuma das publicações aparece interagindo com eleitores ou em vídeos pedindo apoio. As páginas somam 59 seguidores e o post com maior visualização teve 69 curtidas. Em sua página pessoal no Instagram, ela fala apenas da candidatura do ex-marido, que concorre ao governo do Amazonas pelo Podemos.

Apesar da escassa campanha nas redes, Adriana contratou uma empresa de marketing digital por R$ 750 mil. Ela é a única candidata em todo o Brasil que buscou a Digital Comunicação Ltda. Os gastos chamaram a atenção dos demais candidatos do PROS no Estado, que acionaram o Ministério Público e a Polícia Federal para investigar o repasse milionário. Atualmente, a candidatura de Adriana está indeferida por duas razões: registro fora do prazo e contas rejeitadas em 2018 por ocultar gastos na Justiça Eleitoral. Ela recorreu e continua na disputa.

O presidente estadual do PROS, Edward Malta, admitiu ao Estadão que o dinheiro repassado a Adriana é para bancar a campanha do ex-marido dela ao governo. Essa movimentação, porém, precisaria ser oficializada, o que não ocorreu. A candidata não foi localizada. O telefone informado no registro da candidatura é o do presidente do PROS.

A campanha de Adriana Mendonça se resume a 33 posts numa página do Facebook e do Instagram 

“O recurso vai ser usado na campanha do governador, do vice, de todos os candidatos”, disse Malta. Sobre a contratação da Digital Comunicação, afirmou: “A empresa quem contratou foi a deputada, eu não posso te falar agora”.

Em Minas, o PROS pôs R$ 300 mil na conta da candidata Gisele da Costura, estreante na política. Nas redes, ela publicou apenas uma foto com o número de urna desde que a campanha começou, em 16 de agosto. “O partido explicou que tinha necessidade de ter candidatas mulheres, de pele negra, que isso ajudava o partido. Foi nessa que eu entrei. O partido precisa de uma certa quantidade de mulheres, né?”, disse ela.

Em Minas, o PROS pôs R$ 300 mil na conta da candidata Gisele da Costura, estreante na política 

A candidata declarou ter contratado R$ 15 mil em despesas com cabo eleitoral, sem produzir nenhum material impresso nem publicidade digital até hoje. Procurada pelo Estadão, disse que “agora vai sair” o material de campanha. “Para ser bem sincera, eu tenho um pouco de dificuldade com a rede social, entendeu?”

Também em Minas, o PL, partido do presidente Jair Bolsonaro, entregou R$ 20 mil para Patrícia Guerra, candidata que faz propaganda nas redes sociais, mas de venda de roupas. “Eles me colocaram e eu entrei”, disse ela. Até agora, Patrícia não declarou nenhuma despesa ao TSE. Argumentou que não sabia ser preciso prestar contas do dinheiro público. O prazo da primeira parcial terminou no último dia 13.

O PL entregou R$ 20 mil para a candidata Patrícia Guerra 

O PL repassou outros R$ 20 mil para Marcilene de Jesus no mesmo Estado. No Instagram e no Facebook, ela fez apenas três publicações pedindo votos. “Tem alguma coisa errada. Eu paguei uma pessoa para fazer publicação para mim todos os dias”, disse Marcilene, que também não prestou contas. Ela afirmou que faz campanha nas ruas e pede votos, apesar de não ter declarado a contratação de despesas com santinho ou cabo eleitoral.

O PL repassou R$ 20 mil para Marcilene de Jesus 

No Rio, a reportagem identificou uma candidata do PSC que recebeu R$ 30 mil do fundão após ter concorrido à Câmara Municipal em 2020 e receber apenas dois votos. Neste ano, Nadir Viana, que usa o nome Sheila na urna, não está fazendo campanha. Ela não respondeu ao Estadão. A legenda é comandada por Pastor Everaldo, preso em 2020 por suspeita de envolvimento com desvios da saúde do Rio. Neste ano, ele concorre à Câmara.

Em Rondônia, o PP deu R$ 2 milhões para Marlucia Oliveira, a candidata a deputado que nunca disputou eleição. O dinheiro foi repassado pelo diretório nacional da legenda, controlado pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira. Apenas 2,6% dos candidatos a deputado, em todo o País, receberam tal valor.

O PP deu R$ 2,2 milhões para a candidata Marlucia Oliveira 

Marlucia não apresenta nenhuma campanha nas redes, mesmo após ter contratado uma empresa de marketing por R$ 400 mil. Ao Estadão, ela afirmou que pede votos nas redes e nas ruas, disse que o recurso é dividido com outros concorrentes e não soube informar seus perfis na internet. “Acredito que seja muito difícil eu chegar agora, mas estou preparando uma candidatura municipal. Venho a vereadora (em 2024)”, afirmou.

Candidata a deputado federal, Soraya (PMN-AL) recebeu R$ 50 mil do fundão para sua primeira campanha. A 15 dias das eleições, não tem santinhos, bandeiras e panfletos nem perfis nas redes. A candidata disse fazer tudo no “boca a boca”. Indagada sobre suas propostas, respondeu: “Você gostaria de saber das minhas propostas agora? Tipo assim, no momento? Agora não seria viável.”

Soraya (PMN-AL) recebeu R$ 50 mil do fundão para sua primeira campanha 

Cota

Pelo menos 30% das candidaturas à Câmara dos Deputados devem ser de mulheres. Elas também devem receber no mínimo 30% dos recursos públicos.

‘Fantasmas’

Para serem cumpridas as cotas, alguns partidos lançam candidaturas de mulheres por uma obrigação legal. Muitas delas nem fazem campanha e são rotuladas de “fantasmas”.

Redes

O levantamento considerou quem usa as redes sociais de forma muito tímida ou nem usa, quem não soube explicar a sua candidatura e quem não tem agenda de candidato.

Valor

Foram identificadas 12 candidatas que se enquadram nesses critérios. Elas receberam, juntas, R$ 5,8 milhões do “fundão eleitoral”, o principal mecanismo de financiamento das candidaturas.

Despesas

Nessa lista estão candidatas que apenas recebem os valores para que a cota feminina seja alcançada, mas acabam assumindo despesas de outros concorrentes, inclusive homens.

Indeferida

Uma das candidatas recebeu R$ 3 milhões, mesmo estando com a candidatura indeferida e tendo conquistado apenas 41 votos em 2018.

Daniel Weterman, Julia Affonso e Vinícius Valfré para O Estado de S. Paulo, em 20.09.22.