A vacina da Pfizer utiliza a tecnologia de mRNA e atingiu uma taxa de eficácia de 95% nos testes clínicos. ( Foto - Getty Images).
Na manhã desta terça-feira (23/2), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou a vacina Cominarty, desenvolvida pelas farmacêuticas Pfizer e BioNTech.
Esse é o primeiro imunizante contra a covid-19 a ganhar liberação definitiva no país — os outros dois produtos já aplicados no Brasil (a CoronaVac, da Sinovac e do Instituto Butantan, e a CoviShield, de AstraZeneca, Universidade de Oxford e Fundação Oswaldo Cruz) ganharam aval em caráter emergencial.
A aprovação definitiva abre um leque de possibilidades que precisarão ser discutidas por políticos, gestores da saúde pública, cientistas e sociedade durante os próximos dias.
"O registro da vacina da Pfizer e da BioNTech na Anvisa é mais amplo, pois envolve uma quantidade de dados maior. Essa amplitude também implica na possibilidade de mais setores poderem comprar esse imunizante", analisa a neurocientista Mellanie Fontes-Dutra, coordenadora da Rede Análise Covid-19.
Em outras palavras, isso significa que as doses poderão ser adquiridas não apenas pelo Ministério da Saúde, mas também por Estados, municípios e até pela iniciativa privada.
Isso, por sua vez, traz uma série de implicações para o enfrentamento da pandemia no Brasil.
Alterações recentes
Até o segundo semestre de 2020, a única possibilidade para medicamentos, insumos, vacinas e equipamentos médicos serem comercializados no Brasil era com um registro definitivo aprovado pela Anvisa.
A lei número 6.360, que estabelece os detalhes desse processo, entrou em vigor a partir do dia 23 de setembro de 1976.
À época, o órgão responsável por avaliar cada pedido de liberação era o Ministério da Saúde. A partir de 1999, essa responsabilidade passou a ser da recém-criada agência sanitária brasileira, a Anvisa.
Fachada do prédio da Anvisa, em Brasília. (Foto - Marcelo Camargo / Agência Brasil)
Até o segundo semestre de 2020, não havia a possibilidade de aprovação emergencial pela Anvisa
Porém, a pandemia de covid-19 exigiu algumas mudanças na regulamentação para acelerar a aprovação das vacinas.
Isso porque todo o trabalho de entrega dos dados, análise da documentação e uma resposta definitiva dos técnicos da Anvisa costuma levar alguns meses para ser finalizado.
E, com centenas de milhares de mortes provocadas pelo coronavírus, não é viável esperar tanto tempo assim para iniciar um programa nacional de imunização.
"No final de 2020, foram criados dois novos dispositivos. O primeiro deles é o fluxo contínuo, em que os responsáveis por uma vacina podem enviar a documentação aos poucos, conforme esses papéis fiquem prontos", diz o médico e advogado sanitarista Daniel A. Dourado, do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo.
Até então, as farmacêuticas tinham que compilar a papelada toda e enviar o dossiê completo de uma só vez, que a partir daí começava a ser analisado pela Anvisa.
Falamos aqui de milhares e milhares de páginas, que levam muito tempo para serem lidas e estudadas.
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Com a alteração recente, as informações são remetidas em levas, e os técnicos da vigilância sanitária já podem começar seu trabalho aos poucos.
"O segundo ponto modificado foi a autorização emergencial das vacinas, que segue os moldes do que é feito em outros países", completa Dourado, que também é pesquisador do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris, na França.
Como o próprio nome já diz, essa aprovação dos imunizantes é mais rápida e se baseia numa análise parcial dos dados.
Ela segue critérios bem estabelecidos (como uma taxa de eficácia mínima de 50%) e permite acelerar processos sem pular etapas importantes da pesquisa clínica de um novo produto.
"É importante mencionar que a autorização emergencial só permite que as vacinas sejam aplicadas na rede pública", completa o especialista.
Foi justamente esse o rito pelo qual passaram CoronaVac e CoviShield, cujas doses já são aplicadas nos postos de saúde do país nos públicos-alvo das primeiras fases da campanha.
O que fez a Pfizer?
Como a vacina Cominarty já possui dados muito robustos e é aplicada em dezenas de países mundo afora, as farmacêuticas Pfizer e BioNTech optaram por pedir o registro definitivo do produto no país.
A requisição foi feita no dia 6 de fevereiro de 2021 e aceita nesta terça-feira (23/02) — a rapidez na resposta se deve, inclusive, àquela facilidade de envio contínuo da documentação criada no final de 2020.
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A principal diferença entre a aprovação definitiva e a liberação emergencial está em quem poderá adquirir as doses.
Com o sinal verde da Anvisa, a Cominarty poderá ser comprada não só pelo governo federal, mas também autoridades estaduais, municipais ou entes privados. E isso, de acordo com os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, pode abrir brechas para a criação de "grupos paralelos" de vacinação contra a covid-19 e aumentar a desigualdade social no enfrentamento da pandemia.
"Eu entendo que todo mundo quer se proteger contra o coronavírus, mas nós temos regras do Plano Nacional de Imunização que precisam ser seguidas. Os grupos prioritários para a vacinação obedecem critérios, como maior risco de agravamento ou óbito por covid-19", aponta Fontes-Dutra.
Portanto, se pessoas com condição de pagar pela vacina "furarem a fila", o problema de saúde pública não se altera: indivíduos mais vulneráveis continuam pegando a doença e necessitando de internação em UTI.
"O argumento de 'quanto mais imunizados, melhor' pode ser enganoso. Se eu vacinar só jovens, o impacto que tenho na rede hospitalar, que está em seu limite, é baixo. A ordem da população que recebe as doses importa", complementa Dourado.
De quem é a responsabilidade?
No momento, são discutidos vários dispositivos legais e projetos de leis para evitar a formação das "listas VIP" de vacinação no Brasil.
Após uma série de reuniões com executivos da Pfizer e da Janssen e com o ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), anunciou ontem (22/02) um projeto de lei que facilitaria a compra de doses por Estados e municípios e até pela iniciativa privada
A ideia é que essas entidades assumam alguns riscos contratuais que têm encontrado resistência por parte do governo federal.
Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, propõe projeto de lei que divida responsabilidades sobre eventuais efeitos colaterais das vacinas. (Foto - Marcos Brandão / Senado Federal)
Desde o final do ano passado, Pazuello e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) fizeram críticas às condições estabelecidas pela Pfizer nas negociações de compra.
Isso porque o contrato indica uma isenção de responsabilidade da farmacêutica e prevê que o governo assuma o ônus caso o imunizante provoque algum efeito colateral inesperado. A empresa, por sua vez, afirma que as mesmas cláusulas foram aceitas por governos do mundo inteiro na compra dos imunizantes.
Em dezembro, Bolsonaro levantou uma série de dúvidas infundadas sobre a segurança do imunizante e as negociações para compra de doses. "Lá no contrato da Pfizer, está bem claro: 'nós [a Pfizer] não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral'. Se você virar um jacaré, é problema seu", discursou o presidente.
Como resolver essa briga?
De acordo com informações divulgadas pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que participou das reuniões com as farmacêuticas em Brasília na última segunda-feira e vai ser o relator do projeto de lei mencionado por Pacheco, só três países não concordaram com o contrato proposto por Pfizer e BioNTech: Brasil, Argentina e Venezuela.
Para Dourado, o temor do Governo Federal com a tal cláusula polêmica não faz sentido em meio a uma pandemia que está matando mais de mil pessoas no país todos os dias.
"O risco de ficarmos mais tempo sem vacinas é muito maior. Mesmo que apareça um efeito colateral e o Estado Brasileiro tenha que pagar alguma indenização futuramente, o valor seria bem menor do que o preço que pagamos atualmente com os números exorbitantes de casos e mortes", interpreta.
O deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), que foi ministro da Saúde durante 2011 e 2014 no governo de Dilma Rousseff, fez críticas à liberação da compra de doses por Estados, municípios e iniciativa privada.
De acordo com o parlamentar, a ideia criaria o "camarote da vacina".
Padilha afirma que apresentou uma proposta de emenda em que todos os imunizantes comprados por empresas sejam doados para o Sistema Único de Saúde (SUS) e que as clínicas privadas só poderão oferecer doses quando as metas da rede pública forem cumpridas.
A compra de doses também foi discutida no Supremo Tribunal Federal (STF) nesta terça-feira (23/2).
Os ministros decidiram que Estados e municípios poderão negociar e comprar vacinas caso o governo federal não cumpra o que está estipulado no Plano Nacional de Imunizações ou as doses previstas não sejam suficientes para resguardar a população do local.
O que há de concreto
Em meio a tanta especulação e impasse, não se sabe ainda qual será a postura adotada pela Pfizer a partir de agora — afinal, com o registro definitivo, ela tem o poder de decidir se negociará ou não com outros níveis da administração pública ou com a iniciativa privada a partir de agora.
De acordo com as informações divulgadas até o momento, a farmacêutica diz que insistirá nas negociações com o governo federal.
Uma reportagem da CNN Brasil publicada na última segunda-feira (22/1) afirma que o laboratório ofereceu para o Ministério da Saúde um total de 100 milhões de doses da Cominarty, que seriam entregues até o fim de 2021.
Um lote de 9 milhões seria disponibilizado ainda no primeiro semestre. Outras 35 milhões chegariam ao Brasil até setembro e as 65 milhões restantes estariam no país em dezembro.
A Pfizer, no entanto, não confirma essa informação.
A BBC News Brasil procurou o Ministério da Saúde, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.
Uma novela que dura meses
O imbróglio envolvendo Pfizer/BioNTech e o Ministério da Saúde se arrasta há meses e começou durante o segundo semestre de 2020.
De acordo com uma série de notas e documentos, executivos da farmacêutica tentaram por diversas vezes entrar em contato com o governo federal para vender lotes de sua vacina, que naquele momento estava na fase final de testes antes de ser aprovada.
A empresa tinha capacidade de fornecer cerca de 70 milhões de doses ao Brasil, mas não recebeu nenhuma resposta a tempo de garantir os primeiros lotes ao país.
Entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, a discussão voltou a esquentar após Pazuello fazer uma série de declarações dizendo que as ofertas do laboratório eram "pífias" e poderiam até frustrar os brasileiros.
O tema ganhou novo fôlego quando o presidente Jair Bolsonaro fez declarações questionando a segurança do imunizante e criticando as cláusulas contratuais, como explicado anteriormente.
O que diz a ciência
Na contramão do discurso do presidente, as últimas evidências só reforçam a eficácia e a segurança da Cominarty.
Aplicada desde dezembro em dezenas de países, até o momento a vacina não provocou nenhum evento adverso grave, que justificasse a interrupção das campanhas.
Em Israel, país que já protegeu 87% de sua população, o número de internações por covid-19 caiu drasticamente nas últimas semanas.
Outra notícia positiva divulgada recentemente foi a de que as doses não precisam ser armazenadas a -70 °C como se imaginava.
O imunizante fica estável numa temperatura de -25 a -15 °C por até duas semanas, o que facilita bastante a sua distribuição.
Israel quer ser o primeiro país a sair da pandemia de covid (Foto - EPA)
Por fim, dados publicados na última sexta-feira (19/02) no periódico científico The Lancet revelam que a vacina de Pfizer e BioNTech tem uma eficácia de 85% de duas a quatro semanas após a aplicação da primeira dose.
Já com a segunda dose, esquema adotado mundialmente, a taxa de eficácia pula para 95%.
"Diante da atual situação alarmante da pandemia no Brasil e da ameaça das novas variantes, nós precisamos ser rápidos e vacinar o mais depressa o maior número de pessoas possível", adverte Fontes-Dutra.
Repercussões da liberação
Durante o anúncio da aprovação definitiva da Cominarty, o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres comemorou "o primeiro registro de vacina contra a covid-19, para uso amplo, nas Américas".
"O imunizante do Laboratório Pfizer/BioNTech teve sua segurança, qualidade e eficácia aferidas e atestadas pela equipe técnica de servidores da Anvisa, que prossegue no seu trabalho de proteger a saúde do cidadão brasileiro. Esperamos que outras vacinas estejam em breve sendo avaliadas e aprovadas. Esse é o nosso compromisso", disse Torres.
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A Pfizer também soltou um comunicado à imprensa. Marta Díez, presidente da farmacêutica no Brasil, comemorou a rapidez da decisão. "Ficamos muito felizes com a notícia da aprovação e gostaríamos de parabenizar a agência pela celeridade e profissionalismo que demonstrou em todas as etapas desse processo".
A executiva ressaltou que as tratativas com o Ministério da Saúde continuam: "Esperamos poder avançar em nossas negociações com o governo brasileiro para apoiar a imunização da população do país", complementou.
Por meio de nota, a Associação Brasileira de Clínicas de Vacina (ABCVAC) ressaltou que todo novo imunizante registrado no Brasil aumenta as possibilidades de proteção da população brasileira e que a prioridade para aquisição de doses de vacinas contra a covid-19 deve ser do governo federal.
"As clínicas associadas à ABCVAC aguardam a disponibilidade de doses para aquisição pelo setor privado de vacinação humana, para poderem atuar, como sempre fizeram, de forma complementar ao Programa Nacional de Imunização", finaliza o texto.
André Biernath, da BBC News Brasil em São Paulo, em 23 fevereiro 2021