domingo, 14 de fevereiro de 2021

Há reação política contra a Lava Jato e apatia com volta ao poder de envolvidos em corrupção, afirma Deltan

O ex-coordenador da Lava Jato no Paraná Deltan Dallagnol diz que partidos e políticos alvos da operação paulatinamente recuperaram o espaço perdido e que, como resultado, há “uma certa apatia ou mesmo cinismo” no país hoje

A força-tarefa que ele comandou em Curitiba de 2014 a 2020 foi dissolvida neste mês e incorporada a um Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), em iniciativa que acabou gerando pouca repercussão política ou mobilização de apoiadores.

À Folha ele comparou o contato que mantinha com o então juiz Sergio Moro ao relacionamento de advogados com ministros de cortes superiores e negou que tenha havia conluio.

A entrevista foi feita por email, a pedido do procurador.

Fora da Lava Jato desde setembro, o ex-coordenador da operação sofreu outros reveses recentemente.

A defesa do ex-presidente Lula conseguiu acesso em janeiro a mensagens trocadas pelo procurador no aplicativo Telegram, hackeadas em 2019, e tem trazido a público mais conversas da época das investigações. O STF (Supremo Tribunal Federal) confirmou na terça (9) o direito de Lula de manusear os arquivos.

A defesa ainda tenta anular na corte as condenações impostas a ele em Curitiba

O procurador da República Deltan Dallagnol

Como viu a decisão do STF sobre as mensagens? O sr. considera que há como reverter o abalo na credibilidade sofrido pelas autoridades da Lava Jato com essa exposição? 

- O STF ainda não apreciou a questão de ser um material ilegal, não autenticado e não reconhecido. Há quem veja nele uma base para acusar a Lava Jato de excessos na investigação, o que é um equívoco.

Em direito muito pode ser debatido, mas jamais houve afrontas à lei. Se tivessem ocorrido violações à lei na obtenção de dados fiscais ou de provas no exterior, ou a indevida investigação de pessoas com foro privilegiado, tudo isso seria facilmente comprovável, afinal o histórico de todos os atos probatórios, desde a suspeita inicial até a prova resultante, está nos processos.

Passados dois anos da exposição sensacionalista do material, nada de ilegal foi de fato identificado pelas centenas de advogados porque não houve.

Pesquisa divulgada nesta semana mostrou que 80% da população apoia a Lava Jato, o que demonstra que a sociedade confia na solidez do trabalho. Contudo, não sei como se verá essa questão no futuro porque seu debate está muito poluído por narrativas que têm compromissos com interesses e não com a verdade.

Mas até um nome de votos historicamente a favor da operação, como Cármen Lúcia, se posicionou de maneira crítica agora. 

- A ministra ressalvou no seu voto que não estava apreciando as questões referentes à legalidade, eficácia probatória ou conteúdo do material. Apenas concedeu acesso à defesa do ex-presidente em atenção ao princípio da ampla defesa, o que é algo muito mais limitado.

Não é necessário, ao menos, fazer autocrítica em relação à proximidade com o juiz? Se o juiz mantivesse contatos com as defesas da mesma maneira, o sr. também não consideraria problemático? 

- Advogados têm contatos com juízes diariamente em todo o Brasil, e isso é legal. Figurões vão ao STF de bermuda. Não temos um décimo do acesso a certos ministros das cortes superiores que muitos advogados ou mesmo réus têm.

Com o juiz da Lava Jato, é evidente que tínhamos um contato mais frequente. Quando um advogado tem cinco casos criminais sob a responsabilidade do juiz, ele marca uma reunião. Quando você tem mil casos, trocar mensagens é mais eficiente.

Ninguém alega que exista prova da inocência de alguém nas mensagens, mas que o juiz teria se excedido na proatividade. Ora, no sistema brasileiro, o juiz pode produzir provas e buscar os valores da Justiça como verdade e agilidade. Fazer isso não é favorecer o Ministério Púbico, e sim a Justiça. Se o juiz fala para o advogado ou réu que, se quer provar seu álibi, precisa trazer provas do que diz, não há nada de errado nisso.

A tese do comando pelo ex-juiz ou de conluio com o Ministério Público é desmontada pelo fato de que o ex-juiz absolveu mais de 20% dos réus e indeferiu centenas de pedidos da força-tarefa.

No caso envolvendo o ex-presidente Lula, mais de uma dezena de pedidos do Ministério Público foram indeferidos e mais de 60 da defesa foram deferidos. O caso foi rejulgado completamente e confirmado por três julgadores independentes e depois pelo STJ [Superior Tribunal de Justiça].

Não há no material, que não é reconhecido por nós por várias razões que vão de indicativos de sua edição e deturpação até a impossibilidade de lembrar e resgatar o contexto de milhares de mensagens trocadas há anos, qualquer predefinição de resultados, ações contrárias a fatos e provas, supressão de provas de inocência, fraudes processuais ou prática de crimes.

Sempre pautamos nosso trabalho pela lei. Sempre há, contudo, discordâncias legítimas em matéria de direito e tem também, claro, muita gente que quer ver erros e anular condenações.

A força-tarefa errou ao intervir em assuntos que não eram de sua atribuição, como a eleição no Senado, a apresentação de propostas legislativas ou a gestão de recursos pagos pela Petrobras? Também não avalia que houve exposição em demasia de autoridades da operação? Em que medida esses fatores colaboraram para o enfraquecimento da investigação? 

O enfraquecimento da operação decorre principalmente da proibição da prisão após o julgamento da segunda instância, de amarras legislativas colocadas na colaboração premiada e em prisões, da transferência para a Justiça Eleitoral dos casos de corrupção política, da cisão e redistribuição pelo Brasil de casos com íntima relação que estavam concentrados em Curitiba e do desmonte das forças-tarefas.

Há, ainda, uma reação política às investigações. Se o sistema de Justiça criminal propicia a impunidade, é legítimo que seus atores, que conhecem suas amarras, proponham e defendam mudanças. As iniciativas que mencionou tinham por objetivo justamente aumentar a integridade na política, mudar leis no Congresso e fortalecer a atuação da sociedade civil em matéria anticorrupção.

O sr. não participa mais da equipe, mas a Procuradoria já trabalha com a hipótese de anulação de muitos dos atos e processos da operação devido ao caso Telegram? Como seria esse cenário?  

- Esse cenário não é trabalhado porque não vai se concretizar.

Tenho absoluta segurança no trabalho feito, sempre lastreado em fatos e provas colhidos dentro da lei. Embora a interpretação do direito sempre possa ser debatida, aplicamos a lei de modo coerente nos diferentes casos em que atuamos e sempre defendemos e respeitamos padrões internacionais de proteção a direitos fundamentais.

A título de exemplo, criticou-se a troca de mensagens com autoridades estrangeiras em matéria de cooperação internacional. Contudo, esqueceram de dizer que isso é legal e recomendado por manuais de organismos nacionais e internacionais. Conversar sobre provas que estão sendo remetidas pelos canais oficiais é não só correto como recomendável.

Porém a sentença do caso tríplex parece seriamente ameaçada. Ao menos dois ministros já sinalizaram que votarão por considerar que o juiz foi parcial no processo. Isso tende a gerar um efeito cascata. Em entrevista recente, um desses ministros sinalizou que não seria usado o material dos hackers no julgamento.

- É difícil prever o resultado do julgamento, mas, se for reconhecida a suspeição, isso provavelmente ocorrerá com base na discussão de decisões específicas proferidas pelo ex-juiz federal ao longo das investigações e processos envolvendo o ex-presidente. Nesse caso seria uma decisão com efeitos apenas nesse caso em particular.

​A gestão de Augusto Aras certamente ficará marcada pela iniciativa de mudar a dinâmica dos trabalhos de investigação da Lava Jato. Como avalia o trabalho do procurador-geral até o momento? 

- O procurador-geral tem atribuições relevantes em diferentes áreas em que não trabalho e deve exercer sua função com absoluta independência em relação aos demais Poderes.

Na área anticorrupção, entendo que as forças-tarefas da Lava Jato, agora Gaecos, precisariam ter uma estrutura muito maior do que têm, o que é uma questão de priorização. O modelo de trabalho anticorrupção precisa ainda assegurar a plena independência dos procuradores.

Quase não houve comoção com o fim simbólico da força-tarefa. A que atribui essa falta de mobilização?

- Houve um enfraquecimento progressivo do combate à corrupção, o que diminuiu os resultados e a visibilidade do trabalhoAlém disso, a pauta anticorrupção cedeu lugar para questões mais urgentes, como a pandemia e seus efeitos sobre a saúde pública e a economia.

Não houve mudanças sistêmicas e estruturais necessárias para fortalecer a integridade no país e, paulatinamente, agentes e partidos políticos envolvidos com a corrupção retomaram espaços de poder.

Como resultado, há uma certa apatia ou mesmo cinismo, que não nos levarão a lugar algum que seja bom. É preciso sermos realistas, mas mantermos a esperança e o bom combate.

O apoio de 80% da sociedade à Lava Jato mostra que existe uma demanda clara por mais justiça e integridade, que deve ser canalizada de algum modo para transformação. Em muitos lugares, a grande corrupção reduziu como fruto de um amadurecimento geracional e civilizatório. É um trabalho permanente.

​​Quais perspectivas de trabalho há para o MPF diante dessa nova realidade e quais as pendências da operação? 

- Quando saí da força-tarefa, ainda havia muito trabalho por fazer, muitos casos envolvendo corrupção multimilionária.

Embora os acordos de colaboração premida tenham se reduzido drasticamente desde a decisão que proibiu a prisão em segunda instância, ainda havia a perspectiva de acordos com empresas que recuperariam centenas de milhões de reais.

Contudo, são investigações e negociações complexas e, para serem feitas, é necessário suporte da administração em termos de procuradores com dedicação exclusiva e assessores. Na falta disso, é difícil falar em perspectivas. Só quem está hoje na equipe tem condições de dizer o que poderá ou não ser feito.

O presidente Jair Bolsonaro disse em outubro: "Acabei com a Lava Jato porque não tem mais corrupção no governo". Como o sr. e colegas receberam essa declaração? Qual a avaliação sobre o desempenho de Bolsonaro em ações contra a corrupção? 

- Se não houver mudanças sistêmicas na política e na Justiça, reduzindo o apelo do dinheiro nas campanhas, a impunidade e a ineficiência do foro privilegiado, a grande corrupção política continuará aí, independentemente do presidente ou partido da vez.

A intensidade dessa corrupção poderá variar, assim como a prioridade dada a seu combate, mas continuará a ser uma realidade. As mudanças sistêmicas dependem da atuação dos três Poderes. Enquanto não ocorrem, a corrupção continua e com toda força. Pesquisa recente mostrou que a maior parte da população credita o fim da Lava Jato à reação política. Isso é um sinal de que a sociedade espera mais contra a corrupção.

Diferentes entidades e nomes como ex-procuradores-gerais e ex-ministros do STF dizem que a democracia está em risco no país hoje com a incitação a atos antidemocráticos e declarações pondo em dúvida a lisura das eleições. O sr. concorda com esse posicionamento? 

- Não há qualquer evidência da falta de lisura das eleições. As manifestações autoritárias preocupam, mas acredito na força da nossa democracia, regime que tem o apoio da grande maioria da população, segundo pesquisas.

Um dos principais objetivos do combate à corrupção, aliás, é o fortalecimento do Estado de Direito e da democracia, evitando que propinas bilionárias dobrem a lei e influenciem eleições. Quem rouba mais tem mais dinheiro e consequentemente maiores chances de se reeleger.

Como tem sido a sua atuação no MPF fora da Lava Jato? O sr. admite a hipótese de disputar eleição para cargos públicos ou a descarta?​ 

- A Lava Jato ocupava a maior parte dos meus dias, inclusive fins de semana. Desde minha saída para dar atenção à saúde de minha filha mais nova, pude fazer um curso no Mind Institute sobre essa questão e participar ativamente do tratamento.

Então, eu foquei nisso e no trabalho ordinário. Atuo ainda no combate à corrupção, pois acredito que há muito a fazer para melhorarmos a situação no Brasil. Não tenho hoje planos de candidatura, mas sim de contribuir como procurador e como cidadão para o fortalecimento da integridade e da cidadania.

DELTAN DALLAGNOL, 41, é procurador da República desde 2003. Graduado em direito pela Universidade Federal do Paraná, tem mestrado na Universidade Harvard (EUA). Chefiou a força-tarefa de Curitiba de abril de 2014 até setembro de 2020

Entrevista a Felipe Bächtold, publicada originalmente pela Folha de São Paulo, edição de 14.02.2021.

Tasso Jereissati: 'Partidos foram triturados no Congresso'

Tucano atribui o racha em sua legenda às eleições na Câmara e no Senado, marcadas, segundo ele, pela ‘captação individual de votos’

O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) em seu gabinete de trabalho Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) afirmou, em entrevista ao GLOBO, que seu partido, assim como os demais, foi “triturado” durante a eleição para as presidências da Câmara e do Senado e agora tem a oportunidade de se reconstruir.

Para ele, o melhor nome para disputar a eleição de 2022 será aquele que conseguir unir as legendas de centro, da esquerda à direita, a fim de evitar a polarização como a que ocorreu no segundo turno do último pleito, entre Jair Bolsonaro e petista Fernando Haddad.

Como o senhor avalia o cenário atual do PSDB? O partido está rachado?

O PSDB está num momento de transição, de reconstrução, procurando manter os seus princípios iniciais e fundamentais. Ao mesmo tempo, esse período agora é diferente, em que todos os partidos, todos, foram triturados ou tratorados pelo processo eleitoral de Senado e Câmara. Em uma olhada panorâmica, o DEM rachou, PSDB trincou, PSD teve problemas... Isso porque o processo que se instalou nas duas Casas do Congresso foi na base da captação de votos individual.

Sempre teve isso, mas os partidos também tinham um grande peso. Agora os partidos foram ignorados como se não existissem. Isso fez com que pessoas, de bolsonaristas a petistas, votassem nos mesmos candidatos. Essa questão de não haver uma coesão absurda não é privilégio do PSDB, todos os partidos estão vivendo problemas.

É possível encontrar uma saída?

É um bom momento para o PSDB se reconstruir, estávamos vivendo isso... Tínhamos uma candidatura natural (à Presidência da República) do governador de São Paulo (João Doria), que só pelo fato de ser governador de São Paulo já o torna presidenciável, e se abre uma nova perspectiva trazendo ao cenário mais um outro candidato de uma parcela do PSDB, o Eduardo Leite (RS), que traz uma perspectiva extremamente democrática para voltarmos às discussões dos nossos ideais, dos nossos princípios. E vai prevalecer aquele que se identificar mais com esses princípios. Tem que ser um princípio que junte mais os partidos de centro.

Considerando os nomes de Doria e Leite, qual deles tem o melhor perfil hoje para unificar o centro? Avalia que Doria tenderia mais para a direita do que para o centro?

Eu acho que antes de definirmos o nome, temos que definir o que queremos. Estamos vivendo um momento que, além dos partidos, vivemos uma crise de valores, uma crise sanitária, econômica e social. Então, eu acho que aquele que tiver capacidade de unir desde o centro mais à direita até o mais à esquerda, com o propósito de acabar a polarização em que (entre) a extremíssima esquerda e a extremíssima direita, o ódio é que está prevalecendo... Esse que tiver mais capacidade de fazer essa união será o candidato ideal.

Mas ainda não está na hora de definir (um nome), e sim o que queremos e conversar com outros partidos, inclusive com a possibilidade de aparecer outro nome com poder de agregação.

O senhor vê Luciano Huck com uma dessas alternativas?

Tem essa possibilidade. Não estou dizendo que seja ele, estou colocando. É um rapaz novo, não vejo problema no fato de não ser político, existem vantagens e desvantagens. Ele tem feito um esforço enorme de aprender, captar soluções e ideias que estão pairando pelo mundo. É um rapaz de centro.

A situação na Câmara e no Senado mostrou a bancada dividida e em parte apoiando o nome de Bolsonaro à presidência das Casas. Não é um sinal de que é difícil unir o partido e fazer oposição?

Essa definição de oposição em relação ao governo está tomada. É uma definição que está sendo reforçada com a ratificação do nome de Bruno Araújo (ao comando do PSDB). A diferença que houve durante as eleições não é um desafio só nosso, e sim de todos os partidos e democratas. Houve uma manipulação profunda que dizimou a unidade dos partidos.

O PSDB tem um alinhamento na área econômica com o governo. Como fazer essa diferenciação em relação a outras pautas?

Olhando em uma visão geral nós temos, sim, uma identidade muito grande, não total, na área econômica, mas nas outras questões temos uma distância enorme. Se for para falar de política externa, é o oposto da apresentada pelo ministro de Relações Exteriores, que é incompreensível. Se formos falar de tendência ao autoritarismo, somos um partido que nasceu da redemocratização. Enfrentamento da pandemia, coronavírus e Ministério da Saúde... É um desastre que chega a ser quase criminoso. As coisas que aconteceram e estão acontecendo beiram a irresponsabilidade total.

A nossa identidade é nessa questão da pauta econômica mais liberal, porém não é 100%. Nada nos impede quando as pautas econômicas chegam no Congresso de apoiarmos o governo. Fomos oposição ao (ex-presidente) Lula e à (ex-presidente) Dilma e nunca fizemos o quanto pior melhor. Se vier, por exemplo, uma proposta muito boa para a Saúde vamos aprovar.

Pensando em 2022, o senhor teme um cenário como o da última eleição, com Bolsonaro e o candidato do PT no segundo turno? Isso colocaria o PSDB numa situação difícil?

O Bolsonaro ganhou as eleições porque havia um forte sentimento antipetista na população brasileira. Eu costumo dizer que o Bolsonaro nasceu do PT. Quando o PT começou a dividir o Brasil entre nós e eles, dividiu o Brasil e acabou levando para a radicalização. Isso se transformou na extrema direita. Isso (cenário de 2018) só vai se repetir se nós, do centro, centro-direita, centro-esquerda, formos muito divididos novamente para a eleição. Porque você tem um nicho certo de eleitores na extrema esquerda e na extrema direita.

Se esse centro que é a maioria ficar todo subdividido, pode ser, como aconteceu, que a subdivisão leve a uma reedição de uma maneira piorada dessa polarização que só gerou ódio, dividiu a população. As pessoas não querem saber de argumentos. Tenho grande esperança de que possamos construir uma candidatura de centro mais sólida.

Como o senhor vê a sinalização, por exemplo, do ACM Neto não descartar um apoio a Bolsonaro lá na frente?

Eu acredito que o Neto disse isso mais como uma figura de linguagem, tipo “não estou descartando algum cenário”. Porque todas as vezes em que eu conversei com ele, além de negar de maneira muito veemente qualquer aproximação com Bolsonaro, não é da índole dele, da criação dele, qualquer aliança maior com um governo com esses defeitos.

O senhor falou do antipetismo. Avalia que a oposição do PSDB ao PT e especialmente a postura na eleição de 2014 de questionar o resultado contribuiu para esse ambiente?

Não foi nem a oposição do PSDB ao PT. Quando o PT fez o ‘nós e eles’ visou principalmente o PSDB, demonizou os nossos governos, neoliberalistas, os nossos candidatos, todo o primeiro governo do Lula tinha o negócio da herança maldita. Tudo era feito para demonizar o PSDB. Isso fez com que os eleitores do PSDB acabassem nas mãos da extrema direita, que criou o Bolsonaro.

Aécio Neves (MG) influênciou na eleição da Câmara no apoio ao candidato de Bolsonaro. A permanência dele atrapalha a imagem do PSDB?

Esse assunto está morto. O Aécio não está influindo, está calado lá. Ele não é mais uma liderança do partido, não tem relevância dentro das discussões. É um assunto morto e não tem por que abrir essa ferida. Temos outros assuntos tão importantes agora que isso seria sair do foco.

O que achou das explicações de Eduardo Pazuello ao Congresso? Ainda vê necessidade da CPI da Covid?

A grande maioria do PSDB assinou a CPI da Pandemia e estamos defendendo principalmente depois do depoimento do ministro da Saúde, que não respondeu as questões fundamentais. Alguém de governo tem que ser responsabilizado para que isso não volte a se repetir.

A situação em Manaus evidenciou mais a crítica que se faz ao governo na pandemia?

Claro. Aquilo foi um caos, um conjunto de crimes em relação à total falta de sensibilidade com o que estava acontecendo em Manaus, pessoas morrendo asfixiadas no meio da rua e o governo distribuindo cloroquina. E não só em Manaus. Cidades estão parando de vacinar por falta de vacina. É um conjunto de crimes, e alguém precisa ser responsável por isso. Não é possível que centenas de milhares venham a falecer e essa negligência fique impune. Até para que não volte a acontecer.

Entrevista a Julia Lindner, publicada originalmente em O Globo, edição de 14/02/2021 

Vice da Câmara diz que Bolsonaro invadiu competência do Congresso ao editar decretos sobre armas

Para Marcelo Ramos (PL-AM), cabe exclusivamente ao Legislativo a análise de regras de flexibilização do acesso a armas no país. Presidente afirma estar regulamentando Estatuto

O vice-presidente da Câmara, deputado Marcelo Ramos (PL-AM) — Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

O vice-presidente da Câmara, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), criticou em uma rede social neste domingo (14) a atitude do presidente Jair Bolsonaro de editar decretos que flexibilizam o uso e a compra de armas de fogo no país. Para o parlamentar, o assunto deveria ser tratado no Congresso e Bolsonaro invadiu uma competência exclusiva do Legislativo.

Na última sexta-feira (12), o presidente da República assinou quatro decretos que modificam decretos anteriores editados pelo próprio Bolsonaro. A flexibilização no uso e na compra de armas foi uma das principais promessas de campanha do presidente e uma das principais causas defendidas por ele nestes dois anos de mandato.

Na rede social, Marcelo Ramos disse que "mais grave do que o conteúdo dos decretos" é o fato de Bolsonaro, na avaliação do deputado, "exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Pode Legislativo".

"O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando projeto de lei à Câmara", declarou Ramos.

Decretos são atos do presidente da República que devem regulamentar leis. Por isso, não passam pela aprovação do Congresso. No caso, Bolsonaro afirma que está regulamentando o Estatuto do Desarmamento, aprovado em 2003. As novas regras passam a valer em 60 dias.

Entre outros pontos, os decretos aumentam o número de armas que um cidadão comum pode adquirir; ampliam o número de categorias profissionais que têm direito a comprar armas e munições controladas pelo Exército; flexibilizam a comprovação de aptidão psicológica para colecionadores, atiradores e caçadores (CACs); e mudam as regras de munição e armas para os CACs.

Os novos decretos de Bolsonaro sobre armas também foram alvos de críticas de entidades da área de segurança pública.

O Instituto Igarapé classificou os novos atos como "continuação do desmonte da política de controle de armas e munições do Brasil", o que "não só tem efeitos letais para o país que mais mata com armas de fogo no mundo, como reforça possíveis ameaças à democracia e à segurança da coletividade".

O Instituto Sou da Paz expressou "indignação" em relação às mudanças. "Com esses decretos, já são mais de 30 atos normativos publicados nos últimos dois anos que levaram ao aumento recorde de armas em circulação no ano passado – contrariando todos os cientistas que dizem que mais armas em circulação no Brasil nos levarão a uma tragédia em perda de vidas e deterioração democrática", afirma a entidade.

Para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública , inexistem argumentos válidos em favor "da liberação da compra de até 60 armas por um único colecionador, 30 armas por caçadores ou até 6 armas para cidadãos".

Em nota, a entidade afirmou ainda ser "inaceitável o desmonte dos mecanismos de fiscalização, sobretudo do trabalho do Exército brasileiro, seja pela liberação de produtos controlados ou mesmo pelo rastreamento de munição e concessão do porte".

Por G1 — Brasília, em 14/02/2021 19h47  Atualizado há 2 minutos

Trump continua tendo os republicanos nas mãos

Embora previsível, é uma vergonha: o resultado do processo de impeachment, que poderia ter sido um momento de libertação, termina sedimentando a divisão política dos EUA, opina Ines Pohl, correspondente da Deutsche Welle em Washington, DC.

Homem na escadaria do Capitólio porta bandeira Trump é meu presidente

Imagens chocantes do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 não impediram senadores de colocar manutenção do cargo acima do direito

A liberdade de expressão é um bem precioso, para pessoas privadas, jornalistas e, obviamente, também para políticos. Numa sociedade livre, deve ser possível ter uma opinião que não agrade, argumentar contra a visão das autoridades sem perigo de ser punido por isso. Também procede que muitos assentos parlamentares estariam vazios se se destituísse do cargo todo político que fosse apanhado mentindo.

Contudo, ao contrário do que argumentaram os defensores do ex-presidente americano Donald Trump, esse processo de impeachment não girava em torno da livre expressão, mas sim de nada menos do que o futuro da democracia dos Estados Unidos.

Impunemente, Trump destruiu durante anos a credibilidade das instituições americanas, minando a confiança nas eleições livres e, com isso, o cerne de qualquer democracia. Por pura sede de poder, seguiu difundindo a mentira de que as eleições presidenciais de novembro de 2020 teriam sido "roubadas", quando mais de 60 juízes, entre os quais vários que ele próprio colocara no cargo, confirmaram sem sombra de dúvida que ele havia perdido o pleito contra o democrata Joe Biden por mais de 7 milhões de votos.

Perigo de vida no Capitólio

Essa campanha de incitação populista chegou a um triste clímax em 6 de janeiro de 2021, quando Trump conclamou seus adeptos a obstruírem a última verificação da eleição presidencial e a invadirem a sede do Congresso, o Capitólio de Washington.

Embora desde o início estivesse claro que seria difícil condenar Donald Trump de fato, os políticos do Partido Democrata não tiveram alternativa senão abrir um processo de impeachment. O mais tardar as provas em vídeo apresentadas nos últimos dias no Senado mostraram o perigo real que foi essa invasão do Capitólio.

Elas mostraram que, no fim das contas, só a coragem de alguns agentes policiais impediu que líderes políticos, entre os quais o então vice-presidente Mike Pence, fossem literalmente sacrificados. Cinco vidas se perderam nesse dia: poderiam ter sido muitas mais, e o então presidente dos EUA seria o responsável.

Vergonha para os EUA

É uma vergonha que ele não seja penalizado por isso. E é motivo de preocupação para todos o fato de essas imagens terem até forçado uma parte do eleitorado republicano a repensar, porém não a maioria esmagadora dos senadores e senadoras americanos.

A sentença desse processo deixa claro até que ponto Donald Trump tem o Partido Republicano em suas mãos; quão grande é a preocupação dos deputados de serem castigados pelo eleitorado trumpista, caso tivessem colocado o direito acima da manutenção do próprio poder.

O que poderia ter sido um momento de libertação termina com a sedimentação da divisão deste país. Para a comunidade internacional, trata-se de um claro sinal de quanto os Estados Unidos estarão ocupados consigo mesmos nos próximos anos.

Ines Pohl foi editora-chefe da DW e atualmente é correspondente em Washington. O texto reflete a opinião pessoal da autora, não necessariamente da DW. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 14.02.2021

Morre ex-presidente argentino Carlos Menem

Peronista foi quem por mais tempo permaneceu na presidência da Argentina, de 1989 a 1999. Seu governo foi marcado por privatizações e forte abertura às importações.

Menem ocupava o cargo de senador desde 2005

O ex-presidente da Argentina e senador Carlos Saúl Menem morreu neste domingo (14/02), aos 90 anos. O político peronista estava internado no hospital Los Arcos, em Buenos Aires, desde 15 de dezembro do ano passado. Menem viu seus problemas de saúde se agravarem após contrair uma forte pneumonia em junho de 2020. Recentemente, uma infecção urinária complicou seus problemas cardíacos.

Filho de imigrantes sírios e advogado de profissão, Menem foi o presidente argentino a ficar mais tempo no cargo, de 1989 a 1999. Desde 2005, era senador e se manteve ativo na política quase até o fim da vida, chegando a participar das primeiras sessões virtuais do Senado argentino em meio à pandemia de covid-19.

Antes de ocupar a Casa Rosada, Menem foi governador de La Rioja, sua província natal, duas vezes, entre 1973 e 1976 e novamente de 1983 até o início da sua campanha para as eleições presidenciais de 1989, que venceu com 47,5% dos votos. Depois de reformar a Constituição, foi reeleito presidente em 1995, com 49,94% dos votos.

Privatizações e abertura comercial

Seu governo foi marcado por escândalos de corrupção, mas também pela transformação da economia, com uma grande abertura comercial a importações e um intenso processo de privatização de empresas públicas.

Para vencer a inflação, no começo dos anos 1990, implementou o sistema "um a um", que manteve o dólar e o peso argentino em paridade. O modelo funcionou no primeiro mandato, mas, após sua reeleição, começou a apresentar desequilíbrios e acabou explodindo e lançando as bases, segundo alguns analistas, para a crise do "corralito", desencadeada em 2001.

Sua forma de governar foi questionada dentro do heterogêneo partido fundado pelo ex-presidente Juan Perón, por vozes como os ex-presidentes Néstor Kirchner (2003-2007) e Cristina Kirchner (2007-2015), que o acusavam de promover o neoliberalismo, que não consideravam típico do peronismo. Nos últimos tempos, porém, Menem superou suas diferenças com o kirchnerismo, tornando-se aliado dessa corrente peronista.

Entre as polêmicas de seu governo, estão os indultos que Menem assinou em favor tanto dos militares que participaram da ditadura  (1976-1983) quanto dos líderes da guerrilha.

Com grandes divisões no peronismo, Menem concorreu pela última vez à presidência nas eleições de 2003. Embora tenha vencido o primeiro turno, desistiu de disputar o segundo, que deu a vitória automática a Néstor Kirchner, que era favorito.

Venda de armas e desvio de verbas

Menem foi detido em 2001 preventivamente por seis meses pela suposta venda ilegal de armas para a Croácia e o Equador, pela qual foi inicialmente condenado, mas, depois, absolvido.

Em 2019, foi condenado a três anos e nove meses de prisão por fraude na venda de um imóvel na década de 1990, o qual teria comprado com recursos públicos desviados. No entanto, por ocupar o cargo de senador, ele tinha imunidade parlamentar e só seria preso caso o Senado aprovasse a sua detenção, o que não ocorreu.

Além disso, o ex-presidente também foi absolvido da acusação de encobrimento dos autores do atentado contra o centro judaico AMIA, em Buenos Aires, em 1994, que deixou 85 mortos e 300 feridos.

O ex-presidente tinha três filhos: os dois mais velhos, Zulemita e Carlitos (que morreu em um acidente de helicóptero em 1995), com sua primeira esposa, Zulema Yoma, e o mais novo, Máximo, com a modelo chilena e ex-miss universo Cecilia Bolocco, com quem foi casado de 2001 a 2007.

Deustche Welle Brasil, em 14.02.2021

Brasil registra mais 713 mortes por covid-19

Com mais de 24 mil novos casos confirmados em um dia, total de infectados supera 9,8 milhões. Ao todo, mais de 239 mil pessoas morreram no país em decorrência do coronavírus.

Profissionais da saúde percorrem o rio Solimões para aplicar vacinas em populações ribeirinhas

O Brasil registrou oficialmente 24.759 casos confirmados de covid-19 e 713 mortes ligadas à doença neste domingo (14/02), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país desde o início da epidemia subiu para 9.834.513 casos, enquanto os óbitos somam 239.245.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que as cifras reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação. Os números divulgados no domingo também costumam ser mais baixos, já que equipes responsáveis pela notificação trabalham em escala reduzida.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde,  8.710.840 pacientes haviam se recuperado da doença até a noite de sábado.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes é de 113,8 no Brasil.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 27,6 milhões de casos, e da Índia, com 10,9 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, atrás apenas dos EUA, que já contabilizam mais de 485 mil óbitos.

Ao todo, mais de 108,7 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e 2,39 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 14.02.2021

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Brasil registra 1.043 mortes por covid-19 em 24 horas

Com mais de 44 mil novos casos confirmados em um dia, total de infectados passa de 9,8 milhões. Ao todo, mais de 238 mil morreram no país em decorrência do coronavírus.

Paciente é transferido de hospital no Pará

O Brasil registrou oficialmente 44.299 casos confirmados de covid-19 e 1.043 mortes ligadas à doença neste sábado (13/02), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 9.809.754, enquanto os óbitos chegam a 238.532. A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 113,5 no Brasil.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 8.710.840 pacientes haviam se recuperado da doença até este sábado.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 27,5 milhões de casos, e da Índia, com 10,8 milhões, segundo dados da Universidade Johns Hopkins. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, atrás apenas dos EUA, que já registraram mais de 483 mil óbitos.

Ao todo, mais de 108 milhões já contraíram o coronavírus no mundo, e mais de 2,38 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 13.02.2021

Senado dos EUA absolve Trump em processo de impeachment

Votação terminou em 57 votos a favor e 43 contra, mas eram necessários 67 votos para que ex-presidente fosse condenado. Trump era acusado de "incitação a insurreição", pelo episódio que culminou na invasão ao Capitólio.

O Senado dos Estados Unidos absolveu neste sábado (13/02) o ex-presidente republicano Donald Trump de seu segundo processo de impeachment, dessa vez por "incitação a insurreição", no episódio que culminou com a invasão ao Capitólio, sede do Congresso americano.

Foram 57 votos a favor e 43 contra – eram necessários 67 votos para aprovar o impeachment. A maioria dos republicanos votou contra, mas ocorreram sete dissidências.

O julgamento havia começado na terça-feira, quando a maioria dos senadores considerou o processo de impeachment constitucional, por 56 votos a favor e 44 contra.

O resultado deste sábado já era esperado, pois em nenhum momento do processo de impeachment houve indicativos de que a maioria dos 50 senadores republicanos se voltaria contra Trump.

Como o mandato do republicano já havia terminado, o objetivo maior dos democratas era abrir caminho para a cassação dos direitos políticos de Trump, impedindo-o de concorrer novamente à presidência no futuro, já que, se condenado, ele poderia ficar impedido de se candidatar novamente a cargos políticos. 

Neste sábado, os democratas tiveram a oportunidade de estender o processo, com a decisão de aprovar a convocação de testemunhas. No entanto, após um acordo com a defesa de Trump, a medida foi revogada.

Com nenhum indicativo de condenação de Trump, também era de interesse dos democratas encerrar o julgamento, já que um processo de impeachment trava a pauta do Congresso -  e prioridade do governo de Joe Biden agora é a aprovação de outras medidas, como o pacote econômico.

Votação na Câmara

Há exatamente um mês, a Câmara dos Representantes havia aprovado, por 232 votos a favor e 197 contra a abertura do processo de impeachment.

Trump era acusado de incitação a insurreição por instigar seus apoiadores a marcharem em direção ao Capitólio para pressionar legisladores. A ação ocorreu ao mesmo tempo em que a Câmara e o Senado se reuniam para oficializar a vitória do democrata Joe Biden nas eleições presidenciais de novembro – e consequentemente a derrota de Trump no mesmo pleito.

Os procedimentos foram interrompidos quando centenas de manifestantes, entre eles neonazistas e supremacistas brancos, invadiram o prédio. Eles vandalizaram gabinetes e agrediram policiais. Cinco pessoas morreram, incluindo um agente de segurança, que foi agredido com um extintor de incêndio.

O episódio foi a conclusão de dois meses de tentativas de Trump de minar a confiança no sistema eleitoral e reverter sua derrota nas eleições presidenciais de 2020, alegando ter sido vítima de fraude, mesmo sem apresentar provas.

Segundo o pedido de impeachment, Trump "deliberadamente fez declarações que encorajaram ações ilegais" e "continuará sendo uma ameaça à segurança nacional, à democracia e à Constituição se for autorizado a permanecer no cargo".

O documento ainda cita outras ações de Trump, como a pressão exercida sobre uma autoridade eleitoral da Geórgia, a quem Trump pediu para que "encontrasse votos" para mudar o resultado da eleição no estado.

Após o ataque ao Congresso, Trump não demonstrou arrependimento, e na terça-feira, na véspera da votação do impeachment, disse que seu discurso para apoiadores foi "totalmente apropriado".

Apesar de o processo ter sido aprovado na Câmara, Trump não foi afastado do cargo, como ocorre pelas regras brasileiras de impeachment. Nos EUA, o presidente só é afastado após o aval do Senado, responsável pelo julgamento do caso.

Trump foi o primeiro presidente da história dos EUA a enfrentar dois processos de impeachment. Em dezembro de 2019, a Câmara já havia votado pelo afastamento de Trump no caso conhecido como a "pressão na Ucrânia", que envolveu manobras do presidente para intimidar o governo ucraniano a iniciar uma investigação contra o então ex-vice-presidente e agora presidente Joe Biden e seu filho, Hunter, que era membro do conselho de uma empresa ucraniana. O episódio rendeu a Trump duas acusações: abuso de poder e obstrução dos poderes investigativos do Congresso.

No entanto, o processo anterior acabou sendo barrado em fevereiro de 2020 pelo Senado, que na época contava com maioria republicana. Apenas um senador republicano, Mitt Romney, votou contra o presidente em relação a uma das acusações.

Deutsche Welle Brasil, em 13.02.2021

Bolsonaro avança por filiação ao Patriota, que resiste a entregar partido de 'porteira fechada'

Presidente se reuniu com representantes do partido em encontro fora da agenda; ida esbarra no controle da legenda

Reunião do presidente Jair Messias Bolsonaro, com Catia Presa, presidente do Mulher Patriota do Paraná e Evandro Roman Foto: Reprodução

Sem constar na agenda oficial, o presidente Jair Bolsonaro recebeu ontem um grupo de representantes do Patriota para discutir sua possível filiação à legenda. Na conversa, segundo relatos feitos ao GLOBO, o chefe do Executivo prometeu que nos próximos dias delegará dois auxiliares para conduzir as negociações com a diretoria da legenda.

No encontro, Bolsonaro teria reafirmando o interesse em ingressar no Patriota para disputar a reeleição de 2022, mas não pediu diretamente o controle do partido.

A intenção do presidente e de seu grupo é assumir o controle do Patriota, mas um racha na cúpula da legenda ameaça os planos do chefe do Executivo. Na reunião, Bolsonaro já teria sido avisado que há resistência em entregar diretórios como do Rio, São Paulo, Minas Gerais e Maranhão.

A reunião, inicialmente marcada para 10h, começou com uma hora de atraso. De acordo integrantes do partido e também do governo, estiveram no Planalto o presidente nacional da sigla, Adilson Barroso, e o vice, Junior Marreca, ex-deputado e amigo de Bolsonaro. Também compareceram o coordenador do Conselho Político do Patriota, Nilton Silva, o Niltinho, e os deputados Pastor Eurico (PE) e Evandro Roman (PR), além da presidente do Mulher Patriota do Paraná, Cátia Presa. Roman e Cátia registraram o encontro em suas redes sociais.

Questionado pelo GLOBO, Barroso, que está em Brasília, negou que tenha se encontrado com Bolsonaro, apesar de confrontado com a informação de que ele foi visto na sede do Executivo. O dirigente se limita a dizer que tem apenas orado para receber a filiação de Bolsonaro como uma “bênção.”

— Os parlamentares foram e devem ter levado algum assessor que acharam que era eu, mas não fui. A conversa hoje era só com deputados, nada sobre partido. Isso só vai ocorrer em março — disse Barroso.

Fusão com o PRP

A filiação de Bolsonaro, no entanto, não depende apenas de Barroso, que atualmente não tem maioria na sigla. Em 2018, o Patriota, para cumprir a cláusula de barreira e ter direito ao fundo partidário, anunciou a fusão com o PRP, controlado por Ovasco Resende. Barroso, embora se mantenha na presidência, tem apenas cerca de 30% da sigla, enquanto Resende domina 50%. Os cerca de 20% restante estão nas mãos de parlamentares.

Barroso afirma querer retomar a história interrompida em fevereiro de 2018. No ano anterior, ele havia mudado o nome da sigla de Partido Ecológico Nacional (PEN) para Patriota para receber o então deputado federal Bolsonaro como candidato à Presidência. Após interferência do advogado Gustavo Bebianno, ex-ministro morto em 2020, Bolsonaro se filiou ao PSL.

— Agora, se der certo, não tem essa de namoro mais não. Tem que ir direto para o cartório. Já conhece, então tem que casar logo de papel passado — disse Barroso.

Na época, Bolsonaro e  Bebianno só negociaram ficar no comando do PSL durante o período eleitoral. Após a disputa, o partido nanico virou a segunda maior bancada federal com um fundo partidário que pode chegar a R$ 500 milhões até 2022. A briga pelo controle do caixa culminou na saída do presidente do partido em novembro de 2019.

Na última segunda-feira, em entrevista à TV Band, Bolsonaro disse que quer definir sua nova legenda em março e que está “namorando alguns partidos, dentre eles, um tal de Patriota”. O presidente disse, então, que não poderá ir para um partido que não seja “autoridade”, como ocorreu no PSL.

Ovasco Resende sinaliza que não está disposto a entregar o controle da legenda para Bolsonaro. Em entrevista à revista Época, o dirigente afirmou que tudo deverá ser decidido pelos integrantes do partido, mas não cogita entregar o poder.

— Trabalhamos com construção e com o tempo, que vai alinhavando uma relação. Não existe possibilidade nenhuma de qualquer liderança vir para tomar o comando do partido. Isso é fora de qualquer mesa de conversa. Ou se confia no partido para o qual você vem ou não. Somos um partido sério — disse Ovasco Resende.

Jussara Soares, O GLOBO, em 13/02/2021 

‘Para perder de Bolsonaro, a gente tem que errar muito’, diz Flávio Dino

Maranhense admite que projeto do presidente é hoje o mais estruturado e diz que se a esquerda tiver quatro candidatos é um erro ‘monumental’

Governador do Maranhão, Flávio Dino Foto: Governo do Maranhão

Colocado por seu partido como nome para 2022, o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), evita se apresentar publicamente como pré-candidato para não dificultar o debate com o centro. Ele criticou a decisão do petista Fernando Haddad de anunciar que passaria a viajar o país.

Nos últimos dias, foram expostas a fragmentação na centro-direita e na esquerda. Há como reverter?

É uma fragmentação típica de um período em que o velho já morreu e o novo não nasceu. Acho que essa fragmentação vai continuar por mais uns anos até a gente ter um redesenho do quadro partidário. Então, tem que aglutinar o que der.

Diante desse quadro, o Bolsonaro tem hoje o projeto mais estruturado para 2022?

Hoje, sim. Não há dúvida. É o adversário a ser batido. A força gravitacional do Poder Executivo é muito grande e ele hoje tem um projeto mais nítido. De 2018 para cá, ele perdeu muitos setores sociais, mas conseguiu manter um núcleo mais cristalizado, fiel, o que coloca a sua candidatura numa condição muito forte.

A gestão Bolsonaro tem muitos problemas. A atração do poder em si é maior?

Se a popularidade se depreciar mais, essa força atrativa diminui. Ele é um candidato forte, sólido, mas acho que perde a eleição. Para perder dele, a gente tem que errar muito. É um candidato que pode ir ao segundo turno, mas perde no segundo turno porque faz um governo muito frágil.

Quando o Haddad se apresentou como candidato, o senhor escreveu que mais importante para derrotar Bolsonaro era ter programa e alianças. A escolha do nome deveria ficar para depois?

Se bate o martelo muito precocemente, em se tratando de um partido importante como o PT, pode criar interdições ao debate. A chave da derrota do Bolsonaro em 2022 é atrair setores que foram lulistas até 2014, depois bolsonaristas, se descolaram e estão hoje numa posição de centro. Se diz que o candidato é fulano pode criar uma interdição nesse segmento que vai decidir a eleição. Por isso, colocar o nome na frente não é uma tática eleitoral que parece ajustada.

Os partidos de esquerda já não têm seus programas?

O que eu quero chamar a atenção é que o programa que existe não serve. Os programas políticos que nossos partidos têm não dão conta da largueza que precisa para atrair esses segmentos. Um exemplo: o nosso discurso clássico da esquerda não abrange os novos segmentos da classe trabalhadora, os precarizados, os uberizados. Tem que modular o programa porque a realidade mudou. O programa de 2022 não pode ser o mesmo do Lula em 2002. Não é verdade que programa já tem.

Temos quatro pré-candidatos da esquerda: o senhor, Fernadno Haddad (PT), Ciro Gomes (PDT) e o Guilherme Boulos (PSOL). É difícil uma união?

Como ponto de partida não vejo como problema. O problema é se virar ponto de chegada.Se a esquerda fragmentar muito corre riscos, um perigo que não pode correr. A candidatura do Bolsonaro, embora marcada para perder, é forte. Provavelmente, vai para o segundo turno. Então, temos que fazer uma mesa, um seminário, um debate, e tentar aglutinar. Se não der em um nome, em dois. Mas quatro realmente acho um excesso, um erro monumental.

Alguém está tomando uma atitude nesse sentido?

Tomo o tempo inteiro. O PT (em sua festa de aniversário desta semana) fez uma sinalização. A Gleisi (Hoffmann, presidente da sigla) citou o meu nome, o do Boulos. Achei o gesto importante. A esquerda com quatro candidatos não pode ser o desenho na urna. Aí, realmente, eu não participo.

O senhor tem conversado também com o centro?

Sim. No segundo turno em 2018, esse campo mais liberal, de centro, foi todo com Bolsonaro. Ninguém foi com Haddad. E ninguém não é excesso retórico, é literalmente. Nem o Ciro foi. Então, não pode chegar na eleição de 2022 com o ambiente tal que se o segundo turno, por hipótese, for entre Ciro e Bolsonaro, ninguém apoia o Ciro. Essa tragédia deve ser evitada. Precisa distensionar.

Se o Lula recuperar os direitos políticos, deve concorrer?

Da minha parte, sim. Considero que ele teria uma precedência, mesmo tendo críticas de um lado ou de outro. Ele tem uma trajetória política mais forte. E geraria uma polarização quase que automática com o Bolsonaro. Não deixaria nem espaço para outras alternativas.

Ele não afasta essa parcela do eleitorado de centro?

Mas ele teria condições de atrair mostrando o que foi o governo dele, um governo amplo. Hoje, de fato há essa rejeição, mas por outro lado ele saiu com 80% de aprovação e fez um governo bem amplo, com líderes empresariais, do agronegócio, com muitos partidos. Ele teria condições de recompor.

Sérgio Roxo, O Globo, em 13/02/2021 - 03:30 / Atualizado em 13/02/2021 - 09:08

Sérgio Fausto: O realismo oportunista do Centrão e a distopia bolsonarista

Violência, boçalidade e patrimonialismo têm um passado vistoso. Terão futuro promissor?

O saldo da primeira metade da Presidência de Jair Bolsonaro é muito ruim. Mas pior do que os resultados é o espírito que preside à gestão do governo em seu conjunto. A sua marca é o ânimo destrutivo.

Nada é mais simbólico desse fato do que a genuína paixão do presidente pelas armas. Bolsonaro banaliza a vida (“a morte é o destino de todos nós”), dá de ombros para as vítimas da covid-19 (“eu não sou coveiro”) e duvida dos benefícios da vacina (“se virar jacaré, não vem reclamar”), mas não esconde seu entusiasmo com o grande aumento do número de armas nas mãos da população civil, objetivo que vem perseguindo desde o início de seu mandato. Segundo reportagem do jornal O Globo publicada em 31 de janeiro, já são mais de 1 milhão de armas, um aumento de 65% em comparação com 2018.

A paixão pelas armas é correspondida pelo desprezo à cultura, outro traço de Bolsonaro, visível nas escolhas feitas por ele para essa área em seu governo. O elo que une a paixão pelas armas e o desprezo pela cultura é a intolerância, pois a cultura reclama pluralidade e valorização da diferença. “Quando ouço falar em cultura, puxo o meu revólver”, diz um personagem da peça Schlageter, do dramaturgo e poeta nazista Hanns Johst, escrita em 1933, logo após a chegada de Hitler ao poder. Bolsonaro não é nazista, mas compartilha com o personagem a mesma ojeriza à transgressão criativa, que é própria da criação cultural.

O uso do polegar e do indicador para simular uma arma é a marca registrada do presidente. Do gesto derivam dois discursos, que não são exatamente iguais, mas convergem no enaltecimento de virtudes viris. Um deles apela ao instinto de autodefesa do cidadão amedrontado: defenda-se você mesmo, pois o Estado não é capaz de fazê-lo (por suposta culpa da “turma dos direitos humanos”, que amarraria as mãos da polícia). O outro aponta para o uso da violência contra adversários políticos. No início deste mês ele mais uma vez voltou a bater nessa tecla ao anunciar novos decretos para facilitar a compra de armas: “Eu não tenho medo do povo armado, me sinto muito bem ao lado de um povo armado, isso evita que o governante se torne um ditador”.

O alvo real da suposta preocupação democrática do presidente não é, obviamente, ele próprio, mas os seus adversários. Não há como esquecer a reunião ministerial de 22 de abril, em que, alterado, disse que “um povo armado” não acataria as medidas de restrição ao comércio adotadas por prefeitos e governadores.

A distopia bolsonarista projeta na tela do imaginário nacional uma espécie de faroeste caboclo, protagonizado por homens rudes, incultos e indomáveis, um mundo onde a saliva cedeu definitivamente lugar à pólvora e no qual manda quem tem a maior pistola.

A referência do presidente não é Adam Smith e A Riqueza das Nações. Não é a mão invisível do mercado que faz Bolsonaro sonhar à noite e despertar com energia na manhã seguinte para desincumbir-se do seu ofício do presidente. Uma economia de mercado requer uma rede complexa de instituições que regule, contenha, sem sufocar, o espírito animal dos empreendedores. Supõe regras estáveis e agentes estatais “neutros” com capacidade jurídica e operacional para fazê-las valer. Exige também o reconhecimento da ciência como parâmetro fundamental da ação reguladora do Estado, a começar pelas questões elementares do que é ou não nocivo à saúde humana. Exige ainda, como ensina Smith na Teoria dos Sentimentos Morais, uma ética da solidariedade, baseada na empatia. Nada disso é compatível com a distopia do “povo armado” e do “negacionismo científico”. Só se for para um liberalismo de fancaria, mero véu para encobrir interesses mesquinhos e grandes preconceitos.

A distopia bolsonarista é também inconciliável com a ordem e o progresso, lema de inspiração positivista inscrito em nossa bandeira com o advento da República e no espírito das Forças Armadas desde então. Não pode haver ordem sem monopólio estatal da violência exercido por forças armadas e policiais regidas pelos princípios da hierarquia e da disciplina e, no Estado Democrático de Direito, submetidas ao império de direitos e garantias individuais. E não pode haver progresso sem reconhecimento da importância da ciência para o desenvolvimento econômico e social. O que já era uma verdade inquestionável no século 19, quando o positivismo desembarcou no Brasil e fez escola entre os militares, é hoje ainda mais verdadeiro.

A distopia bolsonarista não é inconciliável, porém, com a realidade de um Estado patrimonialista, tomado pelos interesses de corporações e clientelas políticas e gerenciado por profissionais da intermediação política cujo principal propósito é maximizar o poder e a renda que a intermediação lhes permite extrair. O impulso destrutivo do bolsonarismo e o oportunismo do Centrão podem se acomodar mutuamente, à custa do que resta de republicano no Estado brasileiro.

A violência, a boçalidade e o patrimonialismo têm um passado vistoso no país. Terão um futuro promissor?

Sergio Fausto, o autor deste artigo, é Diretor Geral da Fundação FHC e membro do GCINT-USP,. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, edição de 13 de fevereiro de 2021. 


Mariz de Oliveira: Pátria mal amada, pátria maltratada

É hora de remover os entulhos que impedem a construção do Brasil dos nossos sonhos

Nelson Rodrigues disse que somos “narcisos ao inverso” e temos complexo de “vira-lata”. Ele nos comparou a essa espécie de cão possivelmente porque ela não constitui uma raça, tal como o povo brasileiro, que é a junção de várias raças, não provem de uma única.

Quanto à mitologia de Narciso, posta ao inverso, significa que não apreciamos a nossa figura quando refletida nas águas ou no espelho. Ao contrário de Narciso, não nos aceitamos e chegamos a nos rejeitar.

Na base dessas duas afirmações há duas realidades: não sabemos, ainda, com precisão quem somos e como somos, assim como nos acompanha historicamente um sentimento de autodepreciação. O desconhecimento leva muitos segmentos a serem carentes de autoestima, autoconsideração, apego ao nosso modo de ser e ignorância quanto às nossas qualidades. A não aceitação, por parte das elites, da multiplicidade de raças, o racismo, a desigualdade e a discriminação sociais, as carências no campo da educação e da cultura, entre outros fatores, têm impedido um mergulho profundo nas nossas raízes.

Houve um esforço da parte de intelectuais para nos decifrar. Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Raymundo Faoro, Gilberto Freire e outros empreenderam estudos nesse sentido, mas não foram acompanhados pela elite, que jamais se preocupou com a própria origem, mas sim com a que gostaria de ter tido.

Uma das questões que mais intrigam os estudiosos da sociedade brasileira é o chamado “fenômeno patológico da psicologia brasileira”, representativo da nossa tendência a adotar padrões culturais e estéticos de outros povos. E até uma tendência clara a sair do País e viver em outras plagas.

Em sua obra O Elogio do Vira-Lata e Outros Ensaios, obra indispensável para uma avaliação realista e desprovida de preconceitos do nosso povo, e especialmente de suas potencialidades, Eduardo Giannetti analisa as origens dessa crônica visão depreciativa que a sociedade brasileira tem de si mesma, acentuadamente parte das elites. Extrai-se dessa obra que estamos aptos a solucionar problemas, a superar obstáculos em razão de nossa criatividade, inteligência criativa, facilidade de percepção e outros dons, que poderiam estar sendo utilizados para a supressão de nossas carências e o aprimoramento da sociedade, em vez de copiarmos modelos e soluções que não se amoldam a nós.

A analogia, para Giannetti, ao contrário do dramaturgo, se justifica porque no seu mundo o vira-lata é dotado também de grande habilidade para ultrapassar dificuldade e sobreviver, tal como nós. O autor mostra que a raiz do nosso complexo de inferioridade está nos filhos aqui nascidos dos primeiros portugueses que vieram para o Brasil. Passaram a ser denominados mazombos, designação de iletrado, bruto, grosseiro. Esses primeiros brasileiros deploravam ter nascido fora de Portugal e almejavam ir para lá. Segundo afirma Giannetti, a característica dos mazombos era a falta do “senso de pertencimento”

O mesmo acontece com o que chamo de “brasileiros envergonhados”, que tal como seus antecessores são estranhos ao país de nascimento, resistem a assimilar sua cultura e a desprezam. Portadores de um individualismo que os impede de participar dos projetos coletivos, não admitem nenhuma responsabilidade, mas apontam o dedo acusador contra terceiros pelas nossas dificuldades.

Ao mal da pátria mal amada junta-se o mal da pátria maltratada. Talvez esses males decorram um do outro e se completem.

A malquerença levou as elites dirigentes a não empreenderem os esforços necessários para nos governarem, prevalecendo os interesses pessoais em detrimento do coletivo. As consequências dessa incúria histórica são pontualmente bem identificadas.

Assim, após a libertação os escravos foram deixados ao léu e a República foi proclamada sem a participação do povo; antes de 1988 as instituições estavam fragilizadas, resultando como decorrência duas ditaduras em curto tempo. O desprezo pela educação, o adesismo, o clientelismo, a corrupção maculam a atividade política. E atualmente há o exemplo patente de um governo que chega às raias da desumanidade, por seu total desleixo com a saúde pública e a pandemia do novo coronavírus.

Talvez nunca como na atualidade a pátria tenha sido tão maltratada. O desprezo, a arrogância e a autossuficiência no trato dos problemas sociais, o desrespeito aos direitos humanos, à cultura, à educação e à imagem do País, e outras mazelas, têm uma origem: o poder pelo poder, desvinculado dos interesses e das necessidades nacionais. O poder para o desempenho do mando, sem nenhuma consideração pelos anseios e aspirações do povo. Mando refletido numa retórica irreal, falaciosa e odienta.

A catástrofe conta com o beneplácito de políticos interesseiros uns e omissos outros, assim como de parcelas da sociedade cujo apoio ao desgoverno, para mim, constitui um grande enigma.

Está na hora de substituir o desamor pelo amor ao Brasil, que é o nosso país. E na hora de removermos os entulhos que impedem a construção da pátria dos nossos sonhos.

António Cláudio Mariz de Oliveira, o autor deste artigo, é advogado criminalista. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 13.02.2021.

13 de fevereiro de 2021 | 03h00

'Mercado irritadinho'

Diante da escalada inflacionária, Jair Bolsonaro cultiva a narrativa segundo a qual a culpa é dos governadores, do vírus e dos investidores

O presidente Jair Bolsonaro declarou que quer “tratar de diminuir impostos num clima de tranquilidade, não num clima conflituoso”, numa referência à sua intenção de reduzir os impostos federais sobre os combustíveis para baratear o diesel e agradar aos caminhoneiros. Queixou-se de que “o pessoal do mercado” fica “irritadinho” com “qualquer coisa que se fala aqui”. E insistiu: “Vamos deixar de ser irritadinhos, que isso não leva a lugar nenhum. Uma das maneiras de diminuir (o preço do) combustível é com o dólar caindo aqui dentro. Mas qualquer negocinho, qualquer boato na imprensa, tá o mercado irritadinho, sobe o dólar”. Arrematou dizendo que “o mercado tem que dar um tempinho também” e que “um pouquinho de patriotismo não faz mal a eles”.

É preciso um esforço considerável para traduzir o dialeto primitivo do sr. Bolsonaro, mas presume-se que o presidente da República tenha tentado expressar sua contrariedade com o fato de que o mercado reage mal sempre que se fala em intervir em preços.

Bolsonaro nunca escondeu que não entende nada de economia. Ainda na campanha, avisou aos eleitores que era um ignorante completo sobre o assunto, deixando todas as questões relativas a esse tema para serem respondidas pelo hoje ministro da Economia, Paulo Guedes.

Já na condição de presidente, disse que não era economista e que, por esse motivo, não conseguia entender por que razão a Petrobrás eventualmente reajustava os preços dos combustíveis acima da inflação. Em abril de 2019, a Petrobrás havia majorado o preço do diesel em 5,7%, e Bolsonaro informou ter mandado a estatal suspender o aumento até que lhe explicasse “o porquê dos 5,7% quando a inflação projetada para este ano está abaixo de 5%”. Ato contínuo, as ações da Petrobrás despencaram, ante a óbvia intervenção do presidente.

Passados quase dois anos, aparentemente nenhum dos auxiliares de Bolsonaro foi capaz de explicar-lhe que um presidente da República, por mais poderoso que se considere, não deve interferir na formação dos preços da Petrobrás.

Na última vez em que isso foi feito explicitamente, durante o governo de Dilma Rousseff, a estatal contabilizou um dos maiores prejuízos de sua história, por ter sido obrigada a subsidiar os preços dos combustíveis para tentar conter a escalada da inflação às vésperas da eleição presidencial de 2014. Como a Petrobrás é uma empresa com ações em Bolsa e deve satisfações a investidores privados, não pode estar sujeita aos humores políticos, naturalmente instáveis, a ponto de tornar imprevisível o processo decisório da empresa.

Mas o problema transcende a Petrobrás. Um governo que interfere diretamente nos preços dos combustíveis cruza uma espécie de Rubicão da administração pública, pois deixa claro que não respeita os fundamentos da economia de mercado e é capaz de tudo para satisfazer aos interesses políticos.

Um presidente da República não precisa entender de economia, mas deve saber de cor quais são os limites de seu poder. O fato, contudo, é que é ocioso esperar que Bolsonaro algum dia aprenda o que é uma economia de mercado, assim como é perda de tempo esperar que ele aprenda os fundamentos da democracia – cuja plenitude só é atingida quando os agentes econômicos são livres.

Bolsonaro já disse reiteradas vezes – e repetiu agora – que são impatriotas os “irritadinhos” do mercado. De acordo com essa concepção, não gostam do Brasil os investidores que esperam transparência e racionalidade das empresas nas quais põem seu dinheiro. Também não gostam do Brasil aqueles que exigem responsabilidade fiscal e têm ojeriza ao populismo perdulário. Por conseguinte, o bom brasileiro, na visão bolsonarista, seria aquele que aceita perder dinheiro em nome dos interesses eleitorais do presidente.

Mas Bolsonaro compensa largamente seu apedeutismo econômico com sua astúcia política: diante da escalada inflacionária, o presidente vem cultivando a narrativa segundo a qual não tem culpa de nada – a conta é dos governadores, do vírus e, agora, dos investidores “irritadinhos”. Se há algo previsível neste governo, é a ânsia de Bolsonaro de fugir de toda e qualquer responsabilidade.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de São Paulo, em 13 de fevereiro de 2021 

No menu de militares, dinheiro público pagou de lombo de bacalhau a uísque 12 anos

Em representação à PGR, deputados detalham gastos de militares com alimentação e bebida

O cardápio de iguarias consumidas pelas Forças Armadas não se limitou à aquisição de milhares de quilos de picanha e garrafas de cerveja ao longo de 2020. Os dados oficiais mostram que a dieta verde oliva também incluiu, no ano passado, a compra de itens como milhares de quilos de lombo de bacalhau – lombo, não o peixe desfiado, que é bem mais em conta –, além de uísques 12 anos e garrafas de conhaque.

As novas informações reunidas pelos deputados do PSB serão anexadas à representação que o partido fez à Procuradoria-Geral da República (PGR), para pedir esclarecimentos sobre os gastos alimentares das Forças Armadas, os quais incluíram a compra de mais de 700 mil quilos de picanha e 80 mil cervejas.

Os dados oficiais, obtidos a partir de informações que são repassadas pelos próprios militares ao Painel de Preços do Ministério da Economia, mostram que, no ano passado, foram aprovados processos de compra de 140 mil quilos de lombo de bacalhau, além de outros 9,7 mil quilos de filé do peixe salgado.

Em uma das compras registradas pelos militares, consta um pedido homologado pelo Comando da Aeronáutica, para aquisição de 500 quilos de lombo de bacalhau, em que o preço de referência usado pelo órgão público foi de nada menos que R$ 150 o quilo. Esses pedidos, uma vez homologados, ficam à disposição dos órgãos, para que façam suas compras com os fornecedores aprovados.

Muitos copos de uísques e conhaques também foram brindados com o uso do dinheiro público. O 38.º Batalhão de Infantaria, por exemplo, comprou dez garrafas do uísque Ballantine’s, mas desde que fosse com 12 anos de envelhecimento. O preço da garrafa proposto foi de R$ 144,13.

Já o Comando da Marinha preferiu adquirir 15 garrafas de Johnnie Walker, também com 12 anos de envelhecimento, o chamado “Black Label”. O valor que se dispôs a pagar para cada unidade foi de R$ 164,18.

Conhaques mais populares também entraram na lista do Batalhão Naval da Marinha. Em setembro do ano passado, o órgão aprovou o registro para compra de até 660 garrafas de conhaque das marcas “Presidente” e “Palhinha”, com preço unitário proposto de R$ 27,06.

“É um poço sem fundo. Quanto mais investigamos, mais absurdos e irregularidades encontramos. Se não bastasse o governo comprar picanha e cerveja, ainda tem o corte mais caro do bacalhau, uísque e conhaque e com indícios de superfaturamento”, diz o deputado Elias Vaz de Andrade (PSB-GO), que está entre aqueles que assinam a representação enviada ao procurador-geral da República, Augusto Aras, para que investigue os gastos militares. “Além da PGR, eu e mais nove deputados do PSB vamos levar essas informações ao Tribunal de Contas da União. Também estamos discutindo propor a instalação da CPI das compras do governo na Câmara Federal.”

Defesa

A reportagem questionou o Ministério da Defesa sobre cada uma das novas informações. A pasta, no entanto, não se manifestou sobre esses dados até a conclusão desta reportagem. Na quinta-feira, por meio de nota, o ministério afirmou que “reitera seu compromisso com a transparência e a seriedade com o interesse e a administração dos bens públicos” e que “eventuais irregularidades são apuradas com rigor”.

Segundo o Ministério da Defesa, “existe sempre uma significativa diferença entre processos de licitação e a compra efetivamente realizada, cuja efetiva aquisição é concretizada conforme a real necessidade da administração”.

Assim, “é imprescindível que se faça essa segmentação adequada, quando se faz a totalização dos valores, interpretação e principalmente a divulgação pública destes dados, de modo a evitar a desinformação”, afirma o ministério.

De acordo com a pasta, “apresentar valores totais de processos licitatórios homologados como sendo valores efetivamente gastos constitui grave equívoco”, afirma a nota, referindo-se aos dados incluídos na representação. No documento apresentado à PGR, entretanto, os deputados exibem dados detalhados com a identificação da compra realizada e seu referido fornecedor.

Elias Vaz afirmou que se trata de processos já concluídos e com fornecedores escolhidos pelos militares. “Estamos denunciando esses processos licitatórios. Essas empresas tiveram suas propostas aprovadas, por esses valores. Há processos de compra concluídos e, inclusive, já efetivamente pagos. Todos eles foram homologados pelas Forças Armadas”, disse o deputado.

André Borges, O Estado de São Paulo, em 13 de fevereiro de 2021 

Brasil tem que 'livrar-se da Coronavirus-19 e do Bolsonavirus-22', diz Augusto de Campos, que completa 90 anos


Avesso a entrevistas, Augusto de Campos, único remanescente do trio que criou a poesia concreta em São Paulo, critica Bolsonaro e se diz cansado. (CRÉDITO: DIVULGAÇÃO)

Para muitos, ele é o maior poeta brasileiro vivo. Único remanescente do trio original de poetas que, chamado de Noigandres, criou em 1952 a poesia concreta em São Paulo, Augusto de Campos completa 90 anos neste domingo e se diz cansado.

Pelo menos oficialmente. "Agradeço muitíssimo a você o convite, mas diante dos inúmeros pedidos de entrevista que tenho recebido, e solicitações as mais diversas, impossibilitado de responder a todos, e de ter que repetir-me, em face de minha avançada idade, cansado, esgotado mesmo, decidi optar, e resumir depoimento ao seguinte", foi a gentil resposta que a reportagem recebeu dele.

Em seu texto pronto enviado à guisa de depoimento, ele poetiza sua crítica ao governo Jair Bolsonaro. "Tudo o que tem o Brasil a fazer hoje é livrar-se da Coronavirus-19 e do Bolsonavirus-22 (e por este último entendo toda a corja que acompanha o nosso "presidemente"). Um vírus mata. O outro imbeciliza", escreveu. "Et tout le rest est littérature."

Mas, de seu apartamento no bairro das Perdizes, o agora nonagenário segue em plena ebulição intelectual. Encontrou no Instagram (@poetamenos) uma plataforma para suas experimentações verbivocovisuais — é seguido por quase 23 mil leitores. Está lançando, pelo Selo Demônio Negro, ExtraPound, antologia de traduções de poemas do americano Ezra Pound (1885-1972). E será homenageado, pelo aniversário, por eventos no Brasil e no exterior.

Em 2020, recluso pela pandemia, gravou com o filho Cid Campos sua tradução de Up From The Skies, de Jimi Hendrix (1942-1970). Batizada de Visitante dos Céus, a música foi produzida, interpretada e arranjada por Cid — voz, guitarra e baixo. Augusto toca gaita. Segundo o poeta, foi "para fugir à depressão" que gravou "a canção que traduzi do Jimi Hendrix, de quem sou grande admirador".

O poeta E. M de Melo e Castro, o editor Vanderley Mendonça e o poeta Augusto de Campos, em 2012. (CRÉDITO: VANDERLEY MENDONÇA)

Concreto

O paulistano Augusto Luís Browne de Campos começou a conquistar seu espaço no cânone literário brasileiro nos anos 1950. Seu primeiro livro, O Rei Menos o Reino, foi lançado quando ele tinha 20 anos e cursava Direito na Faculdade do Largo São Francisco. No ano seguinte, com o irmão Haroldo de Campos (1929-2003) e o amigo Décio Pignatari (1927-2012), criou a revista Noigandres — e a poesia concreta.

Era uma reação ao formalismo academicista da chamada geração de 1945. E, ao mesmo tempo, um resgate do espírito revolucionário dos poetas de 1922. Antenados com experiências europeias, como as que vinham sendo realizadas pelo poeta boliviano naturalizado suíço Eugen Gomringer (1925-), o trio buscava uma poesia que ultrapassasse os limites do verso.

Conforme explica o poeta e professor de literatura Frederico Barbosa, para tanto eles precisavam lançar mão de um arcabouço cultural "descomunal" — e, assim, realizar "a proeza sonhada pelo 'antropófago' Oswald de Andrade" (1890-1954), ou seja, "produzir, no Brasil, uma literatura de teor, qualidade e importância universais".

Em uma de suas raras entrevistas. concedida em 2010 e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, o poeta concordou que São Paulo era o berço necessário para o nascimento do concretismo.

"Como o Movimento de 22, tinha de nascer em São Paulo. Nos anos 50, aqui se concentraram os museus de arte moderna, a cinemateca, as bienais, as importadoras de livros e discos estrangeiros. O Rio, maior rival, sempre encantador, não era tão avançado e multi-informativo e era mais sentimental e francês (leia-se: surrealizante)", afirmou Augusto.

Em 1953, o lançamento do livro Poetamenos garantiu a Augusto um lugar na história da literatura brasileira. Mas sua vasta produção não se limitaria ao fazer poético. O paulistano tornou-se um reconhecido ensaísta e tradutor — principalmente de autores como o inglês John Keats (1795-1821), o francês Paul Valéry (1871-1945), o russo Vladimir Maiakovski (1893-1930), o americano E. E. Cummings (1894-1962) e o irlandês James Joyce (1882-1941), além do já citado PounReprodução da capa do novo livro de Augusto de Campos

                                                    

Reclusão

Enquanto produz, contudo, Augusto costuma ser avesso a aparições públicas. Neste aspecto, sua reclusão é bem anterior à pandemia. Na entrevista publicada em 2010, ele disse passar "a maior parte do tempo no computador".

"Dentro ou fora do universo digital, leio, ouço e vejo muito mais do que escrevo", comentou. "O meu fazer poético é, antes, como disse, um 'a-fazer' e a minha criação propriamente dita, um acidente de percurso."

Na época, dizendo-se "quase-oitenta", enfatizou: "fico muito em casa". "Não vou mais a livrarias e casas de disco. Compro tudo na internet. Cinema, não dá mais: sou da geração pré-'pipococa'. Prefiro zapear a TV, onde, a par de futebol e noticiário, entrevejo, com atraso, os filmes da moda, de preferência sob a forma de montagem (dois ou três ao mesmo tempo)", contou. "Melhor ainda: o meu Mac e o YouTube, onde assisto a coisas que nunca imaginei rever."

Segundo o editor Vanderley Mendonça, que além de ExtraPound também reeditou três obras de Augusto (ColidouEecapo, Reduchamp e Poemóbiles), a aparente reclusão de Augusto é "coerente com seu discurso poético".

"Ele se interessa por quem trilha as mesmas sendas da invenção, como leitor, tradutor e poeta. E, muito particularmente, como homem, em suas amizades", assinala o editor.

"Augusto transita entre duas tradições: o amor e a política. Fazer poemas políticos sem ser maniqueísta ou mesmo discursivo é o mais difícil desafio do poeta. Augusto, assim como Maiakovski, vai muito além do discurso político, inventa novas formas de versificação, de composição tipográfica ou agregam elementos novos no poema — cartaz, som, movimento."

"Augusto, para quem não sabe, não apenas recusa entrevistas — há anos, acredita que 'não tem nada a dizer, tudo está dito'. Recusa homenagens — embora seus leitores as façam. Recusa prêmios — como recusou o Prêmio Camões [edição de 2019], pois jamais o aceitaria vindo de um governo com fortes sintomas autoritários [a premiação é instituída pelos governos de Brasil e Portugal]", prossegue Mendonça.

"Assim, ao contrário do que parece, Augusto está mais interessado na obra do que no eu. Um poeta como ele jamais faria parte de uma Academia Brasileira de Letras, ou de qualquer academia. É o mais crítico e refinado teórico da poesia sem ser acadêmico. Sua obra é sua voz."


São icônicos os livros-objetos criados por ele. Do encontro de Augusto com o artista espanhol Julio Plaza (1938-2003) nasceu Poemóbiles.

"Sublinhou um novo aspecto visual às palavras impressas num livro, coloridas, fazendo com que se descolem da sintaxe tradicional numa configuração tridimensional para o texto, que se move e multiplica os sentidos", avalia o editor Mendonça. "Uma das mais inovadoras parcerias e de fundamental importância para as relações entre artes gráficas e poesia no Brasil."

Frederico Barbosa ressalta a importância da inovação das plataformas na obra de Augusto.

"Após escrever os primeiros poemas concretos do mundo, a série de poemas de amor baseados na música de Anton Webern, Poetamenos, ele experimentou novas formas de suporte para a poesia, em obras da década de 1970, como a Caixa Preta, literalmente uma caixa contendo diversos poemas soltos e os Poemóbiles série de poemas tridimensionais e coloridos", recorda.

"Nos anos 1980 e 1990 continuou a dedicar-se a investigar novos meios para a poesia, como a holografia e a computação gráfica e lançou, em parceria com seu filho, o músico Cid Campos, um CD com leituras criativas de seus poemas e traduções, 'Poesia é Risco'."

"No livro 'Não', de 2005, já apresenta poemas escritos diretamente na linguagem [de programação] flash e recentemente Augusto tem publicado seus poemas na internet, principalmente por meio do Instagram", completa Barbosa. "Ou seja, trata-se de um jovem de 90 anos que não para de experimentar e inventar."

"Não há nada mais fascinante do que conviver com Augusto durante o processo de produção de um livro seu. Não apenas por que ele conhece profundamente artes gráficas — repare que esse aspecto é comum nos poetas inventores, como Apollinaire, Mallarmé, Maiakovski, que conheciam muito tipologia e composição tipográfica —, mas porque cada livro dele é um desafio para editores, artistas gráficos e também leitores", conta Mendonça.

"Augusto, certa vez, me disse: 'a grande poesia não nos dá nada, só nos tira'. Talvez seja mesmo a poesia o último bastião da arte para resistir ao mercado. É um código e como tal precisa ser decifrada."

"Aprendi mais com Augusto fazendo seus livros do que com todos os livros de crítica já escritos", acrescenta. "Augusto é muito reservado, como se sabe. Sua retidão intelectual, suas atitudes e afirmações não se contradizem. Ele não tem essas características de intelectuais de terceiro mundo, ufanistas, que vivem em completa contradição, como era o caso do Ferreira Gullar. É um internacionalista."

Para Frederico Barbosa, "a importância para a poesia mundial" de Augusto "jamais pode ser ignorada".

"Campos é o último remanescente vivo de um trio que criou a poesia concreta, o último dos movimentos poéticos de vanguarda surgidos no século 20", afirma ele.

"Assim, pode ser considerado o único poeta vivo do mundo que corresponde àquela definição de Ezra Pound de 'poeta inventor': aquele que criou uma nova forma de escrever poesia, novos processos poéticos."

Marcelino Freire e Augusto de Campos (CRÉDITO: VANDERLEY MENDONÇA)

Reconhecimento internacional

Mas mesmo que ele diga não gostar, Augusto será celebrado pelos 90 anos. A Casa das Rosas, em São Paulo, tem uma programação dedicada a obra dele neste mês de fevereiro.

Organizada pelo escritor Marcelino Freire, a Balada Literária também terá edição online para homenagear o poeta — será no dia 27, no canal do Youtube do evento.

No dia 20, a celebração será internacional. Via Zoom, críticos e acadêmicos internacionais irão debater a obra de Augusto — evento das universidades de Yale, Zurique e Lausanne.

O reconhecimento internacional não é novidade. Augusto já teve sua obra exposta em museus como o Guggenheim de Nova York e a Galeria Maddox de Londres, além de ter integrado a Bienal de Lyon. Boa parte dos seus trabalhos foi traduzida para o francês e o espanhol. Em 2015, tornou-se o primeiro brasileiro a ganhar o Prêmio Latinoamericano de Poesia Pablo Neruda, oferecido pelo Chile.

"Ele é considerado um dos maiores poetas brasileiros por causa de sua longa devoção à poesia, sempre em busca do rigor formal aliado ao conteúdo inventivo", avalia Kenneth David Jackson, professor de Literatura e Cultura Luso-Brasileira na Universidade de Yale.

Ele enfatiza o fato de que a carreira de Augusto já soma sete décadas de produção ininterrupta. "Isso é mais longo do que qualquer outro poeta latino-americano que conheço", diz.

O professor conheceu Augusto em 1968, nos Estados Unidos. Desde então, nunca perderam contato. "Ele é importante porque sabe o que está fazendo e por quê. [Augusto] tornou a poesia brasileira relevante em perspectiva mundial", completa Jackson, lembrando que aos 90 anos, Augusto usa o computador para criar seus poemas, o que faz dele um poeta consumado, intimamente ligado com sua época.

"Para mim, Augusto de Campos é o poeta da contemporaneidade. Sua obra mantém-se atual por que a matéria-prima de sua criação é a forma — que, para ele, é também criação", define Mendonça.

"O domínio da arte e tecnologia gráfica é elemento predominante na composição de seus poemas. Das composições em Letraset, nos anos 50, às atuais incursões nas mídias sociais — Instagram —, passando por móbiles que compõem livros-objeto, ou mesmo holografia, seu domínio sobre a língua, a versificação e as tecnologias gráficas é impressionantemente moderno, atual. No século 20, nenhum poeta chegou tão longe. Eu diria que Augusto é o único poeta concreto, ou do que se chama concretismo."

Professora emérita da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, a crítica literária Marjorie Perloff diz que "Augusto de Campos conferiu à poesia um novo alcance, muito mais amplo, ao mostrar como o poético pode se transformar em obras de arte e performance e ao fazer da tradução parte integrante do universo da poesia concreta".

"Seus dons linguísticos são notáveis. Ele é capaz de pegar uma única palavra e fazê-la ressoar. Criou um novo universo de palavras e frases por 'semelhança familiar', transformando-as em parte de um discurso mais amplo", contextualiza ela. "Pense em 'Viva Vaia' ou 'Luxo/Lixo'. A obra de arte que valoriza a poesia é linda."

Professor de literatura brasileira na Universidade de Zurique, Eduardo Jorge de Oliveira acredita que os dois grandes legados de Augusto, "pelo menos para os poetas", são "a recusa e a margem".

"Ele soube articular como ninguém esses dois pontos. O primeiro porque os poetas têm uma grande capacidade de dizer não das mais variadas maneiras, declinando este termo: 'não', o que só enriquece a linguagem através da arte da subtração. Não à toa, Augusto de Campos adota o termo 'poetamenos', em referência a uma série dele de 1953", explica ele.

"Sobre o segundo ponto, pela arte de criar margens, dizer não implica em criar tempo para dedicar-se à arte da palavra, ainda que dela emane cores, visualidades, ritmos diversos. Augusto de Campos é um grande mestre nesse sentido."


Poema Tensão de 1956, de Augusto de Campos

Oliveira frisa também a importância das traduções realizadas por Augusto.

"Nesse sentido, a contribuição dele para a língua portuguesa, como a de Haroldo de Campos, seu irmão, e Décio Pignatari, foram enormes. No caso preciso do Augusto, ele continua a nos oferecer novas traduções, seja do russo, do espanhol, do inglês, do francês, do italiano, do latim ou do provençal", enumera.

"Ele é um poeta-arqueólogo dos sentidos. Ele é o maior para o menor, ou seja, para buscar nos sentidos mais ínfimos, desapercebidos, um tipo de elaboração verbal que não vem unicamente dele, mas dos outros poetas de sua eleição. Além disso, ele contribui para a crítica literária e musical. O Balanço da Bossa e os dois volumes de Música de Invenção são livros para ler com o Youtube. São livros para ler e escutar", comenta.

"Assim, pela dimensão musical e/ou sonora, táctil e/ou visual e dentro do grande leque da arte verbal, Augusto de Campos alia conhecimento e técnica. É curioso, pois ao mesmo tempo em que ele pode ser considerado um poeta dos poetas no âmbito experimental, ele também é um dos que mais contribuem para a língua portuguesa, o que chega a ultrapassar o caráter puramente nacional. Espero que ele continue assim pelos próximos 90 anos como já foi dito em um dos eventos que celebram seu aniversário no próximo dia 14."

O alcance cultural internacional de Augusto de Campos não se resume às rodas literárias.

O médico e historiador Vincent Barras, diretor do Instituto de Humanidades em Medicina da Universidade de Lausanne é grande admirador da obra do brasileiro.

"Augusto de Campos é definitivamente um dos maiores poetas do nosso mundo contemporâneo", afirma ele.

"Como escritor, teórico, tradutor e intérprete, ele nos dá toda a gama do que deve ser considerado poesia: não contente com o sentido usual e clássico do termo, ele abre as dimensões da poesia a todos os sentidos: verbivocovisual, como ele mesmo diz."

Para o escritor Marcelino Freire, Augusto é um poeta necessário aos dias atuais.

"A gente deve muito a esse eterno poeta inquieto", comenta.

"Note o Instagram do Augusto e veja que ele não parou: está no enfrentamento ao desgoverno que aí está. Augusto, com 90 anos, é mais jovem do que todos nós. Só gratidão ao autor que não para de pulsar."

Edison Veiga, de Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil, em 12 fevereiro 2021