sábado, 6 de fevereiro de 2021

Miguel Reale Júnior: A História se repete como farsa

O ministro da Justiça revive Armando Falcão com Lei de Segurança Nacional contra críticas

Em janeiro de 1970, sendo ministro da Justiça Alfredo Buzaid, o governo militar editou o Decreto-Lei n.º 1.077, estabelecendo a censura, visando a “preservar a moral e os bons costumes”. O obscurantismo cresceu no governo seguinte com Armando Falcão no Ministério da Justiça, quando se montou plano de combate sistemático a publicações “obscenas e subversivas”, propondo aplicar a Lei de Segurança Nacional, pois a censura e a “benigna” Lei de Imprensa seriam insuficientes na guerra psicológica adversa (confira-se: Douglas Atilla Marcelino, Subversivos e Pornográficos: censura de livros e diversões nos anos 1970).

Livros extraordinários foram proibidos e inquéritos policiais-militares, instaurados por crime contra a segurança nacional, como sucedeu com Rose Marie Muraro (A Mulher na Construção do Mundo Futuro), Renato Carvalho Tapajós (Em Câmara Lenta) e Lourenço Diaféria, sendo os últimos até presos.

Em maio de 2018 escrevi nesta página que com Bolsonaro haveria risco da volta da ditadura. Hoje o ministro da Justiça revive Armando Falcão, aplicando a Lei de Segurança Nacional a críticas jornalísticas.

Em parecer conjunto ofertado ao Conselho Federal da OAB, Alexandre Wunderlich e eu analisamos a origem e o significado do conceito de segurança nacional, como próprio de regime autoritário, razão por que deve haver nova lei de defesa do Estado. Segurança nacional vinha a ser uma estratégia para garantia da consecução dos “objetivos nacionais permanentes”, visando, primordialmente, a assegurar a mantença do regime militar por via da contenção de qualquer efetiva oposição nos campos político, econômico, psicossocial e militar, reprimindo opiniões, emoções e atitudes contrárias ao sistema vigente.

A Lei de Segurança Nacional hoje em vigor, editada em 1983, guarda graves resquícios autoritários, bastando lembrar que os artigos 16 e 17 admitem ser a lei apropriada para tutela do regime excepcional vigente.

Numa democracia, a crítica ao presidente não se inclui como lesão ao Estado de Direito, pois não abala a estrutura do sistema democrático, inserindo-se no campo da liberdade de expressão como questão de interesse público. Essa teleologia não corresponde à postura do ministro da Justiça ao representar para enquadramento de crítica como crime contra a segurança nacional ou crime comum.

Hélio Schwartsman, em artigo na Folha de S.Paulo  (Por que torço para que Bolsonaro morra), pondera que o presidente, em seu negacionismo, prejudica a vida de muitos, argumentando que, sob a ótica do consequencialismo, o sacrifício de indivíduo pode ser válido, se dele advier um bem maior. O ministro da Justiça viu nesse texto, cujo título é de mau gosto, crime contra a segurança nacional onde há mera avaliação crítica, longe de causar qualquer abalo à estrutura democrática.

Foi, aliás, nesse sentido a decisão do ministro Mussi, do STJ, ao apreciar habeas corpus: “Não é possível verificar, em análise preliminar, que tenha havido motivação política ou lesão real ou potencial aos bens protegidos pela Lei de Segurança Nacional, capaz de justificar o eventual enquadramento de Schwartsman”.

Sem aprender a lição, o ministro de Justiça requisitou inquérito contra o advogado Marcelo Feller em vista de opinião exarada em debate na televisão sobre a frase do ministro Gilmar Mendes de estar o Exército se associando, na pandemia, a um genocídio. Para o advogado, “o discurso e a postura do presidente da República são diretamente responsáveis por pelo menos 10% dos casos de covid no Brasil”. É, alias, o entendimento de muitos infectologistas.

O procurador federal João Gabriel Morais de Queiroz solicitou o arquivamento do inquérito, com judiciosas considerações: “A lei de segurança não pode ser empregada para constranger ou perseguir pessoa que se oponha licitamente externando opiniões desfavoráveis ao governo (...) a lei de segurança nacional, como instrumento de defesa do estado, deve ser reservada para casos extremos(...)”. A Justiça Federal arquivou o inquérito.

Mas o incansável ministro da Justiça requisitou inquérito policial agora pelo crime de induzimento ao suicídio contra os jornalistas Ruy Castro e Ricardo Noblat, que replicara artigo de Ruy no qual se aventava ser o suicídio a forma de o presidente Trump entrar para a História como herói, tal como Getúlio Vargas, argumentando que “se Trump optar pelo suicídio, Bolsonaro deveria imitá-lo”.

O ministro viu nessa frase “desrespeito à pessoa humana, à nação e ao povo de ambos os países”. E mais: um crime de induzimento ao suicídio, que vem a ser criar na mente da vítima a vontade firme de se aniquilar, atuando no plano psíquico com potencialidade para a levar ao suicídio.

A requisição de inquérito por crime de induzimento ao suicídio, em vista de ideias jocosas em artigo de jornal, seria apenas de um ridículo atroz se não consistisse em abuso de poder do ministro da Justiça, por perseguir criminalmente críticos do governo com tipificação penal forçada de fato absolutamente anódino.

Até quando?

Miguel Reale Júnior, Advogado, é Professor Titular Sênior da Faculdade de Direito da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 06.02.2021.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Brasil passa marca de 230 mil mortos por Covid-19; média móvel é de 1.050 por dia

País contabilizou 230.127 óbitos e 9.449.088 casos por Covid-19 desde o início da pandemia, segundo balanço do consórcio de veículos de imprensa. Já são 16 dias seguidos com a média móvel de mortes acima de 1 mil

O consórcio de veículos de imprensa divulgou novo levantamento da situação da pandemia de coronavírus no Brasil a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde, consolidados às 20h desta sexta-feira (5).

O país registrou 1.244 mortes pela Covid-19 nas últimas 24 horas, chegando ao total de 230.127 óbitos desde o começo da pandemia. Com isso, a média móvel de mortes no Brasil nos últimos 7 dias foi de 1.050. Já são 16 dias com essa média acima da marca de 1 mil. A variação foi de +3% em comparação à média de 14 dias atrás, indicando tendência de estabilidade nos óbitos pela doença.

Em casos confirmados, desde o começo da pandemia 9.449.088 brasileiros já tiveram ou têm o novo coronavírus, com 51.319 desses confirmados no último dia. A média móvel nos últimos 7 dias foi de 47.087 novos diagnósticos por dia. Isso representa uma variação de -8% em relação aos casos registrados em duas semanas, o que indica tendência de estabilidade nos diagnósticos.

Oito estados e o Distrito Federal estão com alta nas mortes: PR, DF, GO, AC, PA, BA, CE, MA e PI.

As secretarias dos estados do Rio Grande do Norte e de Roraima não divulgaram novos dados até o fechamento do balanço do consórcio desta sexta-feira.

Brasil, 5 de fevereiro

Total de mortes: 230.127

Registro de mortes em 24 horas: 1.244

Média de novas mortes nos últimos 7 dias: 1.050 (variação em 14 dias: +3%)

Total de casos confirmados: 9.449.088

Registro de casos confirmados em 24 horas: 51.319

Média de novos casos nos últimos 7 dias: 47.087 por dia (variação em 14 dias: -8%)

(Antes do balanço das 20h, o consórcio divulgou um boletim parcial às 13h, com 229.097 mortes e 9.406.817 casos confirmados.)

Estados

Subindo (8 estados e Distrito Federal): PR, DF, GO, AC, PA, BA, CE, MA e PI

Em estabilidade (10 estados): ES, MG, RJ, SP, MT, AM, RO, TO, AL, PB

Em queda (6 estados): RS, SC, MS, AP, PE, SE

Não divulgaram (2 estados): RR e RN

Essa comparação leva em conta a média de mortes nos últimos 7 dias até a publicação deste balanço em relação à média registrada duas semanas atrás (entenda os critérios usados pelo G1 para analisar as tendências da pandemia).

Vale ressaltar que há estados em que o baixo número médio de óbitos pode levar a grandes variações percentuais. Os dados de médias móveis são, em geral, em números decimais e arredondados para facilitar a apresentação dos dados.

Vacinação

Balanço da vacinação contra Covid-19 desta sexta-feira (5) aponta que o Brasil já aplicou 3.366.706 de doses, segundo dados divulgados até as 20h. A segunda dose já foi aplicada em 1.962 pessoas no estado de Pernambuco.

Publicado por G1, em 05.02.2021

"Corrigir erros da Lava Jato sem desmontar sistema anticorrupção é desafio"

Avaliar que decisões da força-tarefa devem ser revistas é tarefa delicada e pode acentuar ceticismo quanto à luta contra corrupção, diz professora da FGV. Há um projeto em curso para enfraquecer combate a crimes, aponta.

Manifestante apoia a Lava Jato em protesto em Brasília em 2016

O fim da Lava Jato em Curitiba, anunciado nesta quarta-feira (03/02) pelos procuradores da força-tarefa, coloca um dilema diante do Brasil: como corrigir os erros da operação e repreender os guardiões da lei que ultrapassaram seus limites e, ao mesmo tempo, preservar aprendizados da força-tarefa e proteger o sistema de combate à corrupção de ataques do atual governo. A análise é de Raquel Pimenta, professora da FGV Direito SP e especialista em corrupção, desenvolvimento e poder econômico.

Em entrevista à DW Brasil, Pimenta afirma que a Lava Jato ultrapassou limites e adotou práticas controversas no processo penal, na separação entre acusação e julgadores, na dinâmica interna do Ministério Público e na relação com a imprensa.

Parte desses problemas será discutida pelo próprio Judiciário: neste semestre, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar a suspeição do juiz Sergio Moro e decidir se anula a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex do Guarujá, sob o impacto de mensagens entre o magistrado e procuradores que vieram à público no escândalo que ficou conhecido como Vaza Jato.

A professora da FGV Direito SP alerta que calibrar o grau de repreensão à Lava Jato será uma tarefa delicada, pois simplesmente anular todos os processos em que Moro atuou acentuará um ceticismo que atravessa a sociedade brasileira em relação ao combate à corrupção, uma sensação de "de que nunca nada acontece". "O que faremos com tudo o que já se sabe nesses processos?", questiona.

A necessária revisão crítica de práticas da Lava Jato, diz, se torna ainda mais complexa no momento em que o atual governo do presidente Jair Bolsonaro e parcela do Poder Legislativo tentam desfazer pilares do sistema de combate à corrupção, como a autonomia da Polícia Federal e a atividade do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

O fato de a Lava Jato ter terminado justamente no governo de um líder eleito na onda da força-tarefa explica-se, segundo ela, por um paradoxo comum a grandes operações do tipo, já identificado por pesquisas acadêmicas. Quando a corrupção é inerente ao sistema político, investigações de amplo alcance podem levar ao colapso do próprio sistema e causar danos à democracia. Um exemplo dessa dinâmica foi a eleição de Bolsonaro, o "resultado mais trágico" da Lava Jato, diz.

Um caminho para o futuro, segundo Pimenta, seria remodelar as relações entre o público e o privado não por meio do endurecimento de punições, mas elevando a transparência e definindo regras melhores sobre lobby, conflito de interesses e concorrência. "A política anticorrupção deve ser uma política de acesso ao poder político", afirma.

DW Brasil: A Lava Jato em Curitiba chegou ao seu fim nesta semana. De uma forma geral, como você avalia as ações da força-tarefa?

Raquel Pimenta: Ela revela pontos de aprendizado institucional e desafios para o futuro do combate à corrupção. Entre os pontos que devem ser preservados, a força-tarefa desvendou esquemas de corrupção de grande escala e recuperou ativos de uma forma que nunca tinha sido vista no Brasil. Há também a importância da cooperação entre polícia e Ministério Público, que não é uma constante no nosso sistema de Justiça, e o modelo de especialização, pois os procuradores ficavam focados em um caso, e isso permite ganho de expertise.

Nos desafios, estão as zonas fronteiriças nas quais a força-tarefa acabou se embrenhando. Por exemplo, por muito tempo a sua estratégia era concentrar tudo em Curitiba, com prejuízos não só aos réus e às empresas, mas para o aprendizado do próprio Ministério Público. E há outros, atinentes ao modo de condução dos processos, sobretudo os criminais, que testaram o limite do nosso sistema criminal e da separação entre acusação e julgadores, como a gente viu na Vaza Jato, e interpretações do direito criminal muito controversas.

Alguns especialistas afirmam que a Lava Jato não testou, mas ultrapassou os limites.

Sim, ultrapassou. Isso será pautado, e o nosso desafio, não olhando para trás, mas para frente, é com qual profundidade daremos a devida repreensão a esses desvios da Lava Jato. Vamos anular todos os processos em que Sérgio Moro foi juiz? Ou vamos anular apenas os processos nos quais há evidência dessa conversa inadequada entre o Ministério Público e Moro?

É uma tarefa delicada. O que faremos para mostrar aos guardiões da lei que existem limites aos seus poderes e a como eles devem exercer suas atividades, dados pelo Estado democrático de direito? Por outro lado, o que faremos com tudo o que já se sabe nesses processos? É importante mostrar que aqueles que guardam a lei devem respeitá-la, mas a depender do nível [de anulação de decisões], é possível gerar um certo ceticismo, que já atravessa a sociedade brasileira em relação ao combate à corrupção, o ceticismo de que nunca nada acontece.

A Lava Jato fortaleceu ou enfraqueceu a democracia e o Estado de direito?

Existe uma literatura no campo dos estudos da corrupção que aponta um paradoxo, sobretudo em grandes investigações. A corrupção é em si um problema para a democracia, porque tira a legitimidade das decisões, fecha os acessos aos governos a quem pode pagar e distorce o mercado. Mas há grandes investigações, como as que aconteceram no Brasil, na Itália, e há exemplos também do estado de Illinois, nos Estados Unidos, que acabam em si também enfraquecendo a democracia. Porque quando a corrupção é sistêmica ao funcionamento do sistema político, há potencial de colapso do sistema político.

Em segundo lugar, é comum a utilização dos instrumentos de combate à corrupção contra adversários políticos, seja porque existe uma vontade de alijar do sistema político certos atores, seja porque muitas vezes o combate à corrupção olha para os fatos pretéritos, para quem ocupava o governo, e acaba atingindo um grupo político de forma mais intensa. É uma combinação explosiva, e a gente viu isso na Lava Jato.

Mas não podemos ter uma análise simplista e dizer que isso ocorreu apenas pela Lava Jato. É pela Lava Jato, mas é também responsabilidade do sistema político, que não se reformou quando teve chance, e da sociedade brasileira, que aceitou em parte que o nosso arranjo político fosse permeado por atos de corrupção.

Dito isso, só o colapso do sistema político causado pelas investigações anticorrupção explica a emergência de uma figura como Jair Bolsonaro para se tornar presidente do Brasil. Esse é o resultado mais trágico da Lava Jato, abrir espaço para alguém que mobiliza o discurso da corrupção em um viés moralista e de tolerância zero, e não num viés de reformas institucionais e de aperfeiçoamento do Estado. Mas que, na verdade, tem uma aderência superficial à pauta anticorrupção, e uma vez no governo começa a desfazer os próprios mecanismos que garantem a política de controle da corrupção, que é muito maior do que a Lava Jato. Assim, a ascensão dessa figura em decorrência do colapso do sistema é pior para a própria política de controle da corrupção, que uma parte da sociedade brasileira tanto desejava que fosse fortalecida.

Daqui para frente, como promover ações anticorrupção sem desestruturar o sistema político?

Existem formas diferentes de se conceber uma política de controle da corrupção. O Brasil fez uma aposta de reforma do Estado e das relações público-privadas pela punição. Se a gente punir muita gente, isso vai gerar algum ímpeto de reforma. Existe outra forma: a política anticorrupção deve ser uma política de acesso ao poder político, e combina elementos de punição com elementos de participação e de aprofundamento democrático. Como o fortalecimento de regras de transparência das relações público-privadas, regulamentação do lobby, fortalecimento das regras sobre conflito de interesse, garantir que o Estado não tenha acesso apenas a uma ou outra voz nas suas decisões econômicas, fortalecer a diversidade de empresas que contratam com o poder público. É uma visão mais ambiciosa, mas que no longo prazo tende a ser mais estabilizadora.

Não foi a primeira vez na história do Brasil que a luta contra a corrupção foi instrumentalizada por políticos que queriam derrubar quem estava no poder. No governo Getúlio Vargas, por exemplo, a oposição dizia que o país estava tomado por um "mar de lama". Por que a sociedade acaba embarcando no discurso de corrupção de quem não necessariamente está interessado no fim da corrupção?

Corrupção é um tema de alta voltagem política, pois mobiliza nas pessoas as ideias de justiça e injustiça, de desigualdade. Por isso, a corrupção não sai da pauta política. Você deu o exemplo do mar de lama, mas teve também o caçador de marajás do [Fernando] Collor e outros. A ideia de desigualdade, de justiça, são tarefas inacabadas da democracia brasileira, e as pessoas se deixam instrumentalizar porque, de formas diferentes, a corrupção toca em temas fundamentais da nossa democracia. Também por isso é um erro imaginar que dá para ter combate à corrupção sem democracia.

É relevante que a Lava Jato tenha chegado ao fim justamente no governo Bolsonaro -  eleito na onda criada pela operação e que chegou a ter Moro como ministro - e na mesma semana em que o Centrão assumiu o comando da Câmara, com um presidente da Casa que é réu da Lava Jato e membro do PP, o partido com o maior número de investigados e denunciados pela operação?

É muito relevante. Uma visão sistêmica da política brasileira anticorrupção, que não olhe apenas para Lava Jato, mostra que há nesse governo um projeto em curso de enfraquecimento e desfazimento dos pilares do controle da corrupção. Veja quantas vezes temas de transparência foram ameaçados. Mesmo na relação que o governo tem com a mídia. Há movimentações institucionais muito relevantes, e Augusto Aras também é produto dessas movimentações - o primeiro procurador-geral da República indicado fora da lista tríplice desde que ela passou a ser uma prática no Brasil que garantia um tanto de independência do Ministério Público. Outro elemento são notícias de possíveis interferências na Polícia Federal.

A Lava Jato acabar neste momento deve nos colocar diante da pergunta: o que vem adiante? Além de termos que acertar as contas com o passado e entender o que a gente preserva e o que a gente deve repelir da operação, temos que nos preocupar em como a política anticorrupção pode ser preservada nos próximos anos. Temos visto uma regressão clara em diversas frentes.

A 3ª Turma do TRF-1 recentemente considerou ilegal a produção de um relatório de inteligência financeira pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) contra Frederick Wassef, que era advogado do presidente, e ordenou que a Polícia Federal investigasse o órgão. Qual é o risco de vermos uma investida ainda maior contra o sistema de monitoramento de lavagem de dinheiro e corrupção?

Corremos um risco enorme. Uma política anticorrupção funciona em rede, e é preciso que alguém produza a informação que vai ser utilizada numa investigação e depois levada ao Judiciário. As movimentações sendo feitas hoje procuram desfazer e focar seus esforços em só alguns elementos da política. Porque, como é uma política que trabalha em rede, se a gente enfraquece o Coaf, as investigações se tornam menos consistentes e a possibilidade de punição também. É interessante esse modo de desfazimento: não precisa dizer que a corrupção está liberada no Brasil, é só atacar certos órgãos. Falávamos do Poder Executivo, mas existe uma parte considerável do Legislativo que também concorda com um certo arrefecimento dessas instituições.

Aras e outros especialistas apontavam que a Lava Jato tinha se tornado autônoma em relação ao Ministério Público e que acumulava muito poder. Como avalia essa tensão?

Há um dilema no coração do Ministério Público, não resolvido, entre a unicidade, ser um Ministério Público único, e a autonomia dos seus membros. Experimentamos, nos últimos anos, a autonomia de uma força-tarefa. A autonomia, por um lado, garante que não exista bloqueio se existir uma investigação que o comando do Ministério Público não quer que seja feita. Por outro lado, a força-tarefa de Curitiba testou os limites da unicidade, concentrando competências em Curitiba, não compartilhando informações, por serem sigilosas mas também por uma estratégia da própria força-tarefa. E chegou ao limite no caso do fundo da Petrobras [composto por recursos pagos pela estatal para criar uma associação privada destinada ao combate à corrupção], de assinar um documento que não poderia ter assinado sem [a então procuradora-geral da República] Raquel Dodge.

A Lava Jato estruturou-se com farto uso de prisões preventivas, delações premiadas e proximidade com a imprensa. É uma fórmula adequada para a ação do Ministério Público?

Os instrumentos de colaboração vieram para ficar, tanto de colaboração do indivíduo, criminal [delação premiada], como de colaboração das empresas [acordo de leniência]. Eles contribuem para permitir que empresas e indivíduos tragam evidências, possam ter uma redução de pena e, no caso das empresas, continuem a operar, acertando as contas com o passado. A colaboração é importante, sobretudo para crimes de difícil detecção, como corrupção. A questão é que esses instrumentos são extremamente recentes no nosso ordenamento, então teve um certo aprendizado institucional sobre como firmá-los, como deve ser uma negociação, que tipos de evidências devem ser cobradas.

Sobre prisões preventivas, houve vários momentos que a Lava Jato as usou de forma abusiva, e isso é uma discussão que o meio jurídico já tem, bastante intensa.

A relação entre a mídia e os procuradores foi conduzida por alguns fatores. Um era a disponibilidade imensa de informações. Os processos ficarem disponíveis online não era antes um padrão tão claro. Agora, tem que ter muito discernimento entre o que é uma tese de acusação e o que o que é a notícia, sobre o que a sociedade precisa ser informada. Por vezes, a imprensa noticiou teses de acusações como verdades, com uma consciência grande dos procuradores, que estavam fomentando esse tipo de interação e notícia. Os procuradores e Moro fomentaram um tipo de interação com a mídia que era benéfica às suas teses. Não era apenas transparência, tinha um jogo de avanço processual nessa relação.

Deutsche Welle Brasil, em 05.02.2021

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Deputado aconselha irmão senador a não entrar no governo: 'Extrema-direita prendeu e torturou nosso pai'

Nelsinho Trad (PSD-MS) foi sondado e pode ser indicado por Davi Alcolumbre (DEM-AP) para assumir um ministério

O senador Nelsinho Trad (PSD-MS) Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

Fabio Trad, deputado federal, tem 51 anos. Nelsinho Trad, seu irmão, 59. É senador e foi cotado como ministro do governo Jair Bolsonaro. Mesmo sendo mais novo, Fabio arriscou dar conselhos ao irmão: é melhor "preservar a independência".

— Ele perguntou o que eu achava. Falei Nelson, é um governo de extrema-direita, a extrema-direita prendeu e torturou nosso pai (o ex-deputado Nelson Trad, falecido em 2011). Ele falou "é verdade, irmão. Vou pensar."

Ambos são do PSD, mas Fábio Trad tem uma postura de maior oposição em relação a Bolsonaro. Nelsinho deve ser indicado pelo ex-presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para um posto em um ministério.

Há a possibilidade de o senador ser indicado para Desenvolvimento Regional ou Minas e Energia. Ao GLOBO, Nelsinho disse que recebeu com "muita alegria" a sondagem e que há ainda um "longo oceano" até a indicação.

— Eu li que o Davi não quer ser ministro pra preservar sua imagem de independência. Ele também deveria preservar a independência dele. É um governo de extrema-direita, que se não fosse a sociedade civil, já teria restringido as liberdades individuais há muito tempo — comentou Fábio.

Nesta quinta-feira, ele escreveu sobre a possibilidade de o irmão se tornar ministro em suas redes sociais. "Nelsinho, meu irmão, sondado para integrar o ministério de Bolsonaro. O que devo dizer como irmão mais novo? Mais importante que ser ministro é refletir sobre o governo a que o ministro servirá. É isso! Que Deus o ilumine!", comentou Fabio Trad no Twitter.

Há também integrantes do governo que demonstram resistência ao nome de Nelsinho Trad pelo fato de ele ser primo do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, também do Mato Grosso do Sul.

Natália Portinari, de Brasília, para o GLOBO on line, em 04.02.2021

A Lava Jato lutou contra um sistema que foi feito para não funcionar

Muitas coisas mudaram em sete anos. A corrupção e a impunidade, infelizmente, não. Leia o artigo de procuradora que integrou força-tarefa da operação em Curitiba

O clã Odebrecht: Norberto (ao fundo), Marcelo (à esquerda) e Emílio à direita. Empresa foi alvo da Lava Jato

Fevereiro de 2021 marca o enterro da Operação Lava Jato. A morte dela já estava anunciada pelo menos desde o final de 2018 e ela respirava por aparelhos há muito mais tempo. Foi um caso emblemático que teve conhecimento e apoio público como grande diferencial e trouxe luzes a grandes casos de corrupção que assolam a administração pública brasileira em todas as esferas. Alertou a sociedade sobre as malezas causadas pela corrupção e trouxe à tona a discussão sobre a ineficiência do sistema penal e processual penal brasileiro.

Foram quase sete anos de luta contra um sistema que foi feito para não funcionar, mas sim para proteger os aliados do poder político e econômico. Sete anos de muitas batalhas perdidas, erros e acertos, que trouxeram esperança de que os trilhos da impunidade pudessem ser alterados para alcançar a eficácia da persecução criminal e de que o ciclo corrupção x impunidade x corrupção pudesse ser quebrado de forma a permitir o alcance da punição adequada e suficiente à prevenção e à repressão dos crimes de colarinho branco.

Enquanto o sucesso da Lava Jato era latente, a ampla maioria aplaudiu, muitos colheram seus louros e poucos teceram críticas que seriam construtivas e poderiam ter sido decisivas naquele momento. Mas, a partir do declínio da operação, mesmo ela tendo processado e condenado políticos de diversos partidos, os apontamentos de falhas e excessos pareceram superar um legado de que deveria persistir de maneira perene.

Nos últimos anos, não foram poucos os que levantaram a bandeira do combate à corrupção, mas foram escassas as medidas para alterar o quadro de corrupção sistêmica vivenciado. Palavras ao vento não modificam o estado das coisas e essa verdadeira doença que assola o país parece cada vez mais distante de encontrar tratamento adequado.

Pelo contrário, os poucos avanços que pareciam ter sido alcançados desde 2014 hoje estão cada vez mais distantes, pois soterrados diante de tantos retrocessos legislativos, jurisprudenciais, administrativos e até mesmo em palavras, tanto que já se fala em corrupção tolerável porque feita “por todo mundo”, como se um fato criminoso deixasse de ser típico por ser generalizado.

Fato é que aos poucos se vai esquecendo de tudo que a Lava Jato significou para o Brasil, tanto em termos de fortalecimento das estruturas de combate à corrupção, quanto no sentido de permitir à sociedade conhecer o funcionamento do processo penal e principalmente os meandros dos esquemas de corrupção existentes.

A história, neste ponto e talvez em nome de disputas notoriamente estranhas ao mundo jurídico, repete o triste fim da italiana Operação Mãos Limpas, apagando marcas que poderiam significar uma verdadeira mudança no sistema de combate à corrupção e à criminalidade.

Muitas coisas mudaram em sete anos. A corrupção e a impunidade, infelizmente, não.

Jerusa Burmann Viecili é Procuradora da República e foi integrante da Força-Tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 04. FEV. 2021

Derrocada da Lava Jato expõe Moro como guia da força-tarefa, e escândalo cai no colo do Supremo

Mensagens do ex-juiz com procurador Deltan Dallagnol obtidas pela defesa do ex-presidente Lula têm potencial de anular processos em andamento, segundo juristas. Caso já é chamado de “maior escândalo da Justiça no Brasil”

Ex-ministro da Justiça e ex-juiz da Lava Jato, Sergio Moro, em Brasília. (Foto de ADRIANO MACHADO / REUTERS)

Sete anos após provocar uma reviravolta sem precedentes na política e na economia do Brasil, a outrora poderosa Operação Lava Jato viveu nesta quarta-feira, 3 de fevereiro, um melancólico apagar de luzes com o anúncio de que já não existe mais —ao menos não da forma como ficou conhecida. A força-tarefa de Curitiba deixa de existir e torna-se um apêndice do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco). O desfecho acontece após a operação entrar numa espiral de descrédito no mundo jurídico, que culminou com a exposição de diálogos entre o ex-juiz Sergio Moro e o então chefe da força-tarefa, Deltan Dallagnol.

O conteúdo, tornado público nesta segunda-feira, 1, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandovski a pedido da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, confirma parte das informações que já haviam sido reveladas pelo The Intercept Brasil, na série Vaza Jato. Publicada desde 9 de junho de 2019, a série trazia alguns diálogos de Dallagnol e Moro, mas principalmente conversas entre os procuradores da força-tarefa do Ministério Público Federal do Paraná. Um total de 105 reportagens foram escritas por diversos veículos de imprensa, incluindo o EL PAÍS Brasil, a partir do material obtido pelo The Intercept.

No entanto, o material exposto nesta segunda-feira vai muito além do que o exposto pela Vaza Jato. E tem o potencial de reescrever a história da operação. Em 50 páginas de mensagens selecionadas pelo perito Cláudio Wagner, a pedido da defesa do ex-presidente Lula, lê-se de maneira cristalina como Moro, que deveria ser neutro para julgar os processos apresentados pelos procuradores do Ministério Público Federal (MPF) de Curitiba, tinha comunicação permanente com integrantes da força-tarefa, especialmente com o ex-chefe da operação, Deltan Dallagnol. Entre setembro de 2015 e junho de 2017, há registros de trocas sistemáticas de diálogos entre os dois pelo aplicativo Telegram —fora dos ritos processuais— para tratar de detalhes de decisões em andamento, em que o então juiz do caso cobra informações e sugere ao menos uma fonte para ser ouvida pelo Ministério Público no processo do ex-presidente Lula. “O material que o moro nos contou é ótimo. Se for verdade, é a pá de cal no 9 e o Márcio merece uma medalha”, diz Dallagnol numa comunicação feita pouco depois das 19h, em 29 de julho de 2016. As mensagens estão sendo apresentadas neste texto com a grafia em que aparecem nos arquivos apreendidos; o número “9” é como os procuradores tratavam, de forma pejorativa, o ex-presidente Lula, em função da ausência de um dos dedos da mão, perdido em um acidente de trabalho.

Não era a primeira vez que Moro sugeria caminhos para a investigação. Em trecho de 7 de dezembro de 2015, ele dá dicas ao procurador: “Entao. Seguinte. Fonte me informou que a pessoa do contato estaria incomodado por ter sido a ela solicitada a lavratura de minutas de escrituras para transferências de propriedade de um dos filhos do ex Presidente. Aparentemente a pessoa estaria disposta a prestar a informação. Estou entao repassando. A fonte é seria”, lembrou o juiz. No que Deltan agradeceu a corteisa. “Obrigado!! Faremos contato”. Para Moro valia a pena seguir a pista, afinal, “seriam dezenas de imóveis”. A fonte, em questão, não se mostrou crível como apontou a continuação do diálogo. A fala havia sido revelada em junho de 2019 pelo The Intercept. Na ocasião, Moro afirmou ao Estadão, que repercutiu a fala, que “tudo o que chegava que era relevante, ou a gente encaminhava para a polícia ou Ministério Público, seja lá se a informação eventualmente beneficiava defesa ou acusação”. Segundo ele, o objetivo era “descobrir a verdade”. Os métodos tornados públicos agora, porém, são considerados condenáveis por irem contra todo o princípio de imparcialidade que se espera, ainda mais num caso de extrema delicadeza com potencial de alterar os rumos políticos do país —a Lava Jato foi responsável por enquadrar o ex-presidente na Lei da Ficha Limpa e retirá-lo da corrida presidencial contra Bolsonaro em 2018.

Em outro trecho de 14 de dezembro de 2016 Deltan informa Moro sobre o andamento de duas denúncias. “Denúncia do Lula sendo protocolada em breve. Denúncia do Cabral será protocolada amanhã”, informa o procurador, citando ali o ex-governador do Rio, Sergio Cabral. O então juiz responde a comunicação extraoficial quase como um torcedor: “Um bom dia afinal”, seguido de um emoticon feliz.

As conversas fora dos autos foram captadas pela Operação Spoofing, a investigação da Polícia Federal que prendeu hackers que invadiram celulares dos procuradores da Lava Jato e tiveram acesso aos arquivos de mensagens dos procuradores no aplicativo Telegram —e foram base para a Vaza Jato. Depois, os diálogos foram obtidos na íntegra pela PF. A defesa de Lula solicitou os trechos que diziam respeito ao processo do ex-presidente. Nelas, os dois maiores protagonistas da Lava Jato mostram intimidade de parceiros de trabalhos, partilhando emojis, risos em linguagem de internet, pedindo reuniões reservadas com parte dos integrantes da força-tarefa e até orientando melhores caminhos para a comunicação com a imprensa. “Precisamos conversar com urgência. Hj as 1430 ou as 1500 vcs podem? Mas melhor virem em poucos pois melhor mais reservado. Quem sabe vc, o lima, Athayde e Orlando?”, propõe Moro a Dallagnol, mencionando, possivelmente, Carlos Fernando Lima, Athayde Ribeiro Costa e Orlando Martello Jr.

Se a Vaza Jato provocou um terremoto e representou uma perda de prestígio da operação e de Moro, as mensagens conhecidas nesta segunda podem jogar uma pá de cal na credibilidade de algumas decisões tomadas pela Lava Jato, segundo juristas ouvidos por este jornal. O escândalo bate à porta do Supremo Tribunal Federal que tem um encontro marcado com Moro no julgamento do pedido da defesa do ex-presidente Lula de suspeição do ex-juiz e consequente anulação da condenação do petista no caso do triplex do Guarujá. Lula foi preso em abril de 2018 por ter supostamente recebido o apartamento em seu nome em troca de favores para a empreiteira OAS. Saiu 580 dias depois, em novembro do ano seguinte, após uma mudança de interpretação do STF sobre prisão de condenados em segunda instância.

A comunicação fluída entre Moro e Dallagnol viola a relação juiz-procurador e rompe o princípio da imparcialidade aos olhos do Direito. “Este é o maior escândalo da história da Justiça no Brasil”, diz o jurista Rafael Valim. Marco Aurélio de Carvalho, líder do grupo Prerrogativas —que reúne cerca de 1000 juristas, incluindo advogados de réus da Lava Jato que militam contra as práticas açodadas da operação—, segue a mesma linha. “O Supremo tem uma chance única de reacreditar o sistema de Justiça. Nesse processo, perdeu-se muito de credibilidade com a politização do Judiciário”, diz Carvalho.

A Lava Jato participou de investigações que levaram a 278 condenações, algumas de réus confessos, como o empresário Marcelo Odebrecht, que sustentava um departamento de propina para políticos na empreiteira, ou Pedro Corrêa, ex-deputado do PP, que mencionou troca de apoio aos Governos petistas em troca de ministérios, além de cargos em diretorias de empresas públicas como a Petrobras. “O mesmo que se fazia nos Governos anteriores. Inclusive com o entendimento e favores a empresários, igualzinho a todos os Governos que participei desde 1976”, ressaltou ele, em entrevista ao Paraná Portal. Em sua delação aos procuradores, Correia apontava corrupção na Petrobras desde o Governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-1998 e 1999-2002).

O problema são os juízos onde as investigações tiveram atropelos com consequências diretas para os rumos políticos do Brasil. A Vaza Jato já havia revelado conversas que mostravam as estratégias de divulgação para a imprensa e o contato direto dos procuradores com movimentos de rua que torciam pela queda da então presidente Dilma Rousseff em 2016, retroalimentando a pressão popular para favorecer os pleitos da Lava Jato. Mesmo quando passavam por ilegalidades, como a exposição de um telefonema entre o ex-presidente Lula e Rousseff, em que eles discutiam a futura noemação do ex-presidente para um cargo de ministro. A celeridade da condenação de Lula também causou uma clara sensação de parcialidade, incluindo a confirmação de pena em segunda instância.

Divisor de águas

O julgamento da suspeição de Moro pode, assim, ser um divisor no passado de glórias da Lava Jato e vai determinar o futuro do combate à corrupção no Brasil. Os trechos de arquivos apreendidos pela Operação Spoofing mostram que o sucesso da operação teve um custo alto para a imagem da Justiça brasileira, com excessos que afetam a credibilidade do sistema Judiciário. Ignorar esses desvios seria um golpe que contaminaria o mesmo Supremo. O processo está nas mãos do ministro Gilmar Mendes, que pediu vistas e já avisou que ele poderá ser julgado pela Segunda Turma do Supremo ainda no primeiro semestre deste ano. Em tese, as informações divulgadas tornariam mais difícil aos ministros da Corte justificarem um comportamento que vai contra o princípio da imparcialidade do Direito brasileiro.

A dúvida, no entanto, é se eles vão admitir as mensagens como legítimas ou tomá-las como provas ilícitas, diz o advogado Alberto Toron, que defende réus da Lava Jato. “Reconhecidamente esse material foi interceptado de forma ilícita [pelos hackers que invadiram os celulares dos integrantes da Lava Jato e de Moro], o que abre uma grande discussão no processo penal, pois não valem para acusar alguém. Mas e para se defender ou mostrar parcialidade de um juiz?”, questiona Toron.

A montanha de mensagens confirma o que advogados de defesa dos réus reclamavam desde o início da operação, em 2014. “Um juiz precisa ser equidistante e assegurar à acusação e à defesa as mesmas condições. Isso é a negação radical desse princípio fundamental do exercício da magistratura”, afirma o advogado Maurício Dieter, professor de criminologia da USP. Os procuradores e o juiz encarnaram uma espécie de “tenentismo togado”, como escreve o jurista e cientista político Christian Edward Cyril Lynch —numa alusão aos tenentes que se revoltaram contra a República Velha na década de 1930— os novos heróis, no caso juízes e promotores da Lava Jato, assumiram para si a tarefa de limpar a política, “se não mais a golpes de metralha, pelo menos de vazamentos, delações premiadas e rigorosas condenações judiciais”. Foram bem sucedidos por um tempo em sua “Revolução Judiciarista”.

Moro nunca reconheceu o teor das conversas e sempre afirmou que podiam ter sido adulteradas. Após o movimento de Lewandowski, o ex-ministro da Justiça do Governo Jair Bolsonaro voltou a repetir sua justificativa: “Não reconheço a autenticidade das referidas mensagens, pois como já afirmei anteriormente não guardo mensagens de anos atrás”, disse em nota. “As referidas mensagens, se verdadeiras, teriam sido obtidas por meios criminosos, por hackers, de celulares de procuradores da República, sendo, portanto, de se lamentar a sua utilização para qualquer propósito, ignorando a origem ilícita”. O problema desse argumento é que a própria Polícia Federal, acionada pelo então ministro Moro quando a Vaza Jato publicava suas reportagens, fez a perícia das mensagens e constatou que são verdadeiras. O MPF de Curitiba informou por meio da assessoria de imprensa que não comenta o caso.

Carla Jimenez, Felipe Betim e Regiane Oliveira, de São Paulo para o EL PAÍS, em 04.Fev.2021

Brasil registra 1.232 mortes por covid-19 em 24 horas

País identificou mais 56 mil casos da doença e total passa de 9,3 milhões. Número de mortes supera 228 mil.

O Brasil registrou oficialmente 56.873 casos confirmados de covid-19 e 1.232 mortes ligadas à doença nesta quinta-feira (04/02), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 9.396.293, enquanto os óbitos chegam a 228.795.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 8.236.864 pacientes haviam se recuperado até quarta-feira. 

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 108,9 no Brasil, a 23ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 26,6 milhões de casos, e da Índia, com 10,7 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 454 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 104,1 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e 2,2 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 04.02.2021

A hora da verdadeira oposição

O tenebroso exemplo venezuelano deve ser lembrado no momento em que o bolsonarismo avança sobre as instituições brasileiras.

O chavismo estabeleceu uma sólida ditadura na Venezuela não apenas como resultado da truculência golpista do falecido caudilho Hugo Chávez e de seu impiedoso herdeiro, Nicolás Maduro, mas também – e talvez principalmente – pelo sucesso do assalto promovido pelos gângsteres bolivarianos às instituições de Estado. E esse assalto foi bem-sucedido, entre outras razões, pela ausência de uma oposição organizada, unida e com propósitos claros.

O tenebroso exemplo venezuelano deve ser lembrado justamente no momento em que o bolsonarismo avança insidiosamente sobre as instituições democráticas brasileiras. Cada dia que passa sem reação à altura desse desafio ajuda a consolidar esse desmonte do sistema de freios e contrapesos, que limita o poder numa democracia representativa.

Tal como ocorreu na Venezuela, a oposição a Bolsonaro claramente perdeu-se em lutas internas, movidas por objetivos imediatos e paroquiais, que só dizem respeito aos interesses eleitorais de seus caciques, sem qualquer conexão com os anseios da sociedade.

A mediocridade das forças que poderiam obstar a marcha bolsonarista permitiu que o presidente Jair Bolsonaro, malgrado suas inúmeras agressões à democracia e seu criminoso desserviço ao povo em meio à pandemia de covid-19, conseguisse eleger seus candidatos ao comando da Câmara e do Senado.

Para adicionar insulto à injúria, vários parlamentares supostamente de oposição aderiram às candidaturas patrocinadas por Bolsonaro, ávidos por participar do festim governista no Congresso e por obter espaços nas Mesas Diretoras e nas comissões. Nem na Venezuela a oposição foi tão pusilânime.

Os partidos com maior consistência ideológica – PSDB, DEM e PT – parecem perdidos com questiúnculas de poder e profundas contradições internas, que embaralham seu discurso e enfraquecem a mensagem com a qual pretendem motivar o eleitorado.

Com a fragilização desses partidos tradicionais, restam no horizonte político pouco mais de duas dezenas de legendas que só existem para aproveitar as oportunidades fisiológicas abertas pelo governismo. Há de tudo nesse balaio: de partidos cujos proprietários foram condenados por corrupção a agremiações que se alugam para quem pagar mais. No topo de tudo, temos um presidente da República que já foi de oito partidos e hoje nem partido tem, o que dá a exata medida do menosprezo bolsonarista pelo debate partidário próprio das democracias.

O que une esses indigitados é sua absoluta indiferença às necessidades do País e sua associação com lobbies empenhados na manutenção de privilégios. Para eles, a democracia é mero instrumento de apropriação do poder e de suas benesses.

Para interromper essa putrefação da democracia, é necessário que haja uma oposição digna do nome. Para começar, é preciso ser oposição de verdade, sem hesitação.

“Do meu ponto de vista, o PSDB deveria ser mais claramente de oposição”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em entrevista ao Estado, na qual avaliou, de modo sombrio, o comportamento de seu partido na eleição para o novo comando do Congresso. “A força do presidente da República é muito grande e é muito difícil ganhar uma eleição no Congresso contra o presidente. Mas, se não vai ganhar, é para marcar posição. Acho que o PSDB ficou um pouco esvaecido lá”, disse FHC, num diagnóstico que serve para os demais partidos de oposição.

Para o ex-presidente, é a própria sobrevivência do PSDB que está em questão. “Em política, ou você tem posição clara ou fica difícil. (...) O povo não é bobo. A gente pensa que a população não percebe, mas percebe. Se você não toma posição no momento oportuno, quando chega a hora H é tarde.”

FHC advertiu que “o PSDB precisa tomar rumo, precisa ter uma palavra afirmativa forte” – do contrário, corre o risco de acelerar seu “ciclo descendente”. Ou seja, o PSDB e os demais grandes partidos de oposição talvez continuem a existir, mas perderão a razão de sua existência caso se permitam confundir com as siglas que mercadejam votos e só pensam na próxima eleição. É tudo o que o Chávez de Eldorado quer.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 04 de fevereiro de 2021

Porandubas Políticas |

Por Gaudêncio Torquato 

Abro a coluna com uma historinha de Tancredo Neves.

"Os livros errados"

Brasília, Congresso Nacional, 11 de abril de 1964. Castello Branco não teve o voto de Tancredo Neves, seu amigo pessoal de longa data, companheiro na Escola Superior de Guerra, em 1956. Tancredo bateu o pé. Comunicou ao PSD que votaria em branco, apesar dos méritos e credenciais do general Castello Branco. Questão de princípio: era contra o golpe. Não queria nem um minuto de regime militar, não abria mão da democracia. Conta-se que, esgotados todos os argumentos dos pessedistas para convencê-lo, o amigo e ex-chefe JK, então senador por Goiás, fez um apelo: "Mas, Tancredo, o Castello é um sorbonniano, estudou na França. É militar diferente, um intelectual como você. Já leu centenas de livros!". Tancredo: "É verdade, Juscelino. Só que ele leu os livros errados". Dois meses depois o governo cassou o mandato e os direitos políticos de JK, que partiu para o exílio e o sofrimento sem fim.

(Caso narrado por Ronaldo Costa Couto).

Dualibi, lenda da propaganda

Segunda feira, dia 1º, foi o Dia do Publicitário. Em 1º de fevereiro de 1966 a profissão foi regulamentada pelo decreto-lei 57.690. A coluna tem a alegria de fazer singela homenagem aos publicitários brasileiros na figura de um perfil emblemático da profissão: Roberto Dualibi. O famoso "D"da DPZ (fundador da Agência com Francesc Petit e José Zaragoza) é uma lenda na publicidade brasileira. Pinço de uma entrevista antiga em Época Negócios duas considerações sobre sua profissão.

O que encantou você na publicidade?

Duailibi - Na loja de meus pais tínhamos muito material promocional das Linhas Corrente, das agulhas Guterman, da Colgate, além dos manequins de cera e das vitrines sempre renovadas. E um irmão desenhava muito bem, e eu aprendi com ele a fazer caricaturas. Comecei aos 14 anos a propor material para algumas lojas vizinhas na Vila Mariana, mas nunca fui bem-sucedido. Depois trabalhei no jornal do bairro, e além de escrever matérias, tinha de vender espaço. Finalmente, fui trabalhar na Colgate Palmolive - e tive a sorte de ser aprovado na Escola de Propaganda. E me encantavam as aulas com profissionais tão consagrados, Alfredo da Silva Carmo, José Kfouri, Renato Castelo Branco, Rodolfo Lima Martensen, Caio Domingues, Gherard Wilda, e tantos outros. Ao mesmo tempo, fazia o curso na Escola de Sociologia e Política.

E o que desencantou (se desencantou)?

Duailibi - Nunca me desencantei da publicidade, com exceção de um período em que as boas agências foram afastadas das contas governamentais, que passaram a ser cuidadas por agências sem credenciais, mas alinhadas ideologicamente com políticos ou políticas. Mas hoje vejo que, no fundo, foi uma sorte não ter participado dos negócios desse período. Outro desencanto foi ver, em algumas empresas, pessoas que pediam propina. Perdemos, ou deixamos de ganhar, algumas contas por causa disso, mas nunca cedemos. Acho que também foi uma sorte. Vi grandes marcas serem destruídas por administradores corruptos.

Seleciono três citações de um dos seus mais famosos livros (Livro das Citações):

"Sempre peça emprestado a um pessimista. Ele nunca espera receber".

"Ninguém jamais morreu afogado em seu próprio suor".

"A chave para o sucesso nos negócios é reservar oito horas por dia para o trabalho e oito para dormir e ter certeza de que não são as mesmas".

Panorama da política
VITÓRIAS e vitórias

Há VITÓRIAS, como a dos aliados na II Guerra Mundial contra Hitler e seu nazismo, e há vitórias como a de Pirro, o rei grego que comandou seu exército contra os romanos, chegando a esmagá-los, mas com a perda de muitos generais. Os romanos conseguiram rapidamente repor suas baixas, mas não Pirro, que viu Roma se tornar uma potência. O que pode parecer uma espetacular vitória, hoje, a depender das condições dos adversários e suas circunstâncias, ameaça, tempos depois, ser humilhante derrota. Vejam o caso da vitória de Napoleão Bonaparte na Rússia. Em setembro de 1812, ganhou a luta contra os russos, que custou aos franceses a perda de 35 mil vidas, enquanto os adversários contabilizaram 40 mil mortos. Moscou foi incendiada. Rapidamente, os russos repuseram seus efetivos, enquanto os franceses, não suportando o rigoroso inverno, entraram em Paris humilhados. Imensa catástrofe. Vitórias como as de Pirro ocorrem aqui e ali. P.S. É oportuno lembrar a guerra dos EUA no Vietnã.

Vitória de Bolsonaro

O governo Bolsonaro acaba de registrar grande vitória na guerra pelo comando do Senado e da Câmara. A conversa à boca pequena é: ele fez barba, cabelo e bigode. Será? É claro que Bolsonaro ganhou. E ganhou bem, derrotando figuras de porte, como o ex-presidente e prócer do DEM, Rodrigo Maia. Teria usado armas pesadas, do tipo R$ 3 bilhões, para atrair votos que iriam para Baleia Rossi, MDB-SP, e Simone Tebet, MDB-MT. E mais: puxou o apoio do Centrão. Esse ente que monta no cavalo do poder, livra-se do cavalo cansado e pega adiante outra montaria cheia de saúde e viço. O Centrão é assim. Muda de posição como as nuvens. Hoje, é governo, amanhã será governo, arrumando sempre um jeito de se acomodar.

O Centrão indiano

O Centrão é um ente amalgamado. Tem um pouco de tudo. E possui três olhos, o terceiro no meio da testa, o bindi. Maneira fácil de identificar sua religião franciscana: é dando que se recebe. Lembrando: o terceiro olho é aquela pinta que indianas usam para mostrar que seguem o hinduísmo. No caso do Centrão, é um olho que enxerga coisas do arco da velha, apetrechos que os olhos comuns não conseguem ver. O olho da direita detecta as coisas que vão bem; o olho da esquerda aponta o que está errado, as ruindades de governos e suas administrações. Os dois olhos mandam as informações para o cérebro dos membros do Centrão. O terceiro olho aponta qual o caminho a seguir. Pois bem, Bolsonaro tem hoje o apoio desse bloco. Não haverá impeachment. A agenda do Executivo será cumprida. Porém, no curto prazo. No médio prazo, se os olhos do Centrão detectarem ameaças de perigo, a corrida para outro lugar será bem previsível.

Mudanças

O fato é que as eleições no Senado sinalizam mudanças na paisagem da política: 1. Extingue-se o que Bolsonaro designava, em sua campanha, como a nova política ou a antipolítica, como queiram; 2. Vai para o lixo a prerrogativa, no Senado, de conceder ao maior partido o comando da Casa (hoje é o MDB); 3. O conceito de independência do Legislativo continuará a ser peça de ficção; 4. O Centrão dará as cartas em um primeiro momento, mas será um milagre se continuar cacifando o jogo por mais de um ano; 5. Grandes partidos, como PSDB, DEM e o próprio MDB, assumem explicitamente sua identidade de Janus, o deus de duas caras: uma, a de um homem velho, de cabelos longos e enorme barba; outra, um rosto jovial, de cabelos não tão longos e sem pelo na face. Janus é a entrada e a saída; 6. Em suma, as eleições no Legislativo confirmam a hipótese da sentença: plus ça change, plus c'est la même chose (quanto mais muda, mais permanece a mesma coisa).

O divisionismo

A atração do Centrão para fincar estacas na administração de Bolsonaro atende ao seguinte pressuposto: quanto maior a divisão de alas que habitam o centro do arco ideológico, com ramificações à esquerda e à direita, maior a probabilidade de o capitão-presidente levar a melhor no pleito de 2022. Ou seja, ele prevê que a dispersão do centro produzirá um conjunto de candidatos nessa esfera, deixando que ele e o PT voltem a ser os polos de uma batalha contundente: nós, os libertários, contra eles, os comunistas, os destruidores dos valores da família. O comandante parece esquecer a lição de Heráclito de Éfeso: ninguém entra em um rio duas vezes no mesmo lugar. As águas serão outras. O espírito do tempo puxa suas circunstâncias. Ou seja, a economia, a alegria ou a tristeza, a felicidade ou a infelicidade, uma quantidade maior ou menor de dinheiro no bolso, os impactos duradouros da gestão/congestão da economia, o rolo das pressões e contrapressões, o estágio civilizatório do país - serão, entre outros, fatores a determinar a caminhada dos eleitores em outubro de 2022.

O perfil do líder

Nessa moldura, a própria índole de Sua Excelência estará sob o olhar das massas. Continuará a ser o fogueteiro que incendeia o ânimo de um grupo que habita a parte da extrema direita do arco ideológico? Terá adocicado a língua amarga? Seus filhos persistirão no monitoramento da administração? O presidente ainda ouvirá o eco dos gritos clamando pelo "mito"? O senador Flávio, o número 1, já teria resolvido seu caso na Justiça? Paulo Guedes ainda estará no leme na economia? O auxilio emergencial continuará bancando o apoio de parcela ponderável das massas? Respostas a essas questões influirão na avaliação positiva/negativa do líder. (É possível que vejamos certo impulso ao neopopulismo).

Maia

Rodrigo Maia deixa a presidência da Câmara muito comovido. Chorou em seu discurso, o que é compreensível ante a traição que sofreu com a debandada de muitos de seus aliados, incluindo seu próprio partido, o DEM, que liberou a bancada para votar em Arthur Lira. Maia foi um dos melhores presidentes da Câmara. Merece figurar na galeria dos grandes. Será difícil permanecer no DEM. Para onde ir? Mais adiante, conhecendo bem o corpo parlamentar, poderá se transformar em exímio articulador das forças de centro-direita e centro-esquerda. A conferir.

Homenagem a Nelson

Dia 10 de fevereiro, quarta-feira, às 17h, será realizada pela Academia Norte-rio-grandense de Letras a homenagem in memoriam ao acadêmico Nelson Ferreira Patriota Neto, sucessor 3 da cadeira 8, que tem como patrona Isabel Gondim. A Saudação de Louvor será proferida pelo acadêmico Lívio Oliveira, que ocupa a cadeira 15. Nelson, escritor, jornalista, sociólogo, tradutor e crítico literário, faleceu aos 71 anos, dia 6 de janeiro, deixando uma vasta obra, com destaque para Livro das Odes; Colóquio com um Leitor Kafkiano-Contos; Uns Potiguares- Escrito sobre as Letras Norte-rio-grandenses; Um Equívoco de Gênero e Outros Contos e Tribulações de um Homem chamado Silêncio.

 Gaudêncio Torquato, Professor Titular na USP, é cientista político e consultor de marketing político.

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Livro Porandubas Políticas

A partir das colunas recheadas de humor para uma obra consagrada com a experiência do jornalista Gaudêncio Torquato.

Em forma editorial, o livro "Porandubas Políticas" apresenta saborosas narrativas folclóricas do mundo político acrescidas de valiosas dicas de marketing eleitoral.

Cada exemplar da obra custa apenas R$ 60,00. Adquira o seu, acesse:  https://www.livrariamigalhas.com.br/

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Brasil registra média móvel de 1.051 mortes pela covid-19; número total de óbitos ultrapassa 227 mil

No total são 227.592 mortes registradas e 9.339.921 pessoas contaminadas no País

 A média móvel de mortes por covid-19, que registra as oscilações dos últimos sete dias e elimina distorções entre um número alto de meio de semana e baixo de fim de semana, ficou em 1.051 nesta quarta-feira, 3. Segundo o consórcio de veículos de imprensa, foram registrados 1.209 novos óbitos nas últimas 24 horas e 53.665 casos.

No total são 227.592 mortes registradas e 9.339.921 pessoas contaminadas no Brasil, segundo o balanço mais recente do consórcio formado por Estadão, G1, O Globo, Extra, Folha e UOL em parceria com 27 secretarias estaduais de Saúde. Os dados foram divulgados às 20h. 

Paciente internado com covid-19 Foto: Tiago Queiroz/ Estadão

O Estado de São Paulo, epicentro da doença no País, chegou a 53.704 mortes e 1.807.009 casos confirmados. Entre o total de casos diagnosticados, 1.565.915 pessoas estão recuperadas. As taxas de ocupação dos leitos de UTI são de 67% na Grande São Paulo e 67,8% no Estado. O número de pacientes internados é de 12.938, sendo 6.993 em enfermaria e 5.945 em unidades de terapia intensiva.

Consórcio dos veículos de imprensa

O balanço de óbitos e casos é resultado da parceria entre os seis meios de comunicação que passaram a trabalhar, desde o dia 8 de junho, de forma colaborativa para reunir as informações necessárias nos 26 Estados e no Distrito Federal. A iniciativa inédita é uma resposta à decisão do governo Bolsonaro de restringir o acesso a dados sobre a pandemia, mas foi mantida após os registros governamentais continuarem a ser divulgados.

Andreza Galdeano, O Estado de São Paulo, em 03 de fevereiro de 2021 

Quadrilha, segundo Rosângela Bittar

Dominado por Jair Bolsonaro e Centrão, o ambiente político é irreversivelmente estéril

É com profundo sentimento de pesar que se anuncia o fim dos tempos. Sejam das reformas, da rotina política ou tudo o mais que tenha vida ou inspire esperança. Inclusive as soluções para o grande desafio da pandemia.

O ambiente político, dominado por Jair Bolsonaro e Centrão, é irreversivelmente estéril. Sem espaço para avanços ou reformas. Nem a administrativa (como enquadrar o funcionalismo com rigor em meio ao vale-tudo?); nem privatizações (conseguirão vender empresas por eles loteadas?); ou reforma tributária (é lícito perder receita para um projeto liberal que não existe?).

O Congresso renunciou à sua agenda própria. Enfraquecido, dividido e sob nova direção, restou ao Parlamento submeter-se à agenda do Executivo.

O governo, também fragilizado, não consegue adesões, sequer internamente, para suas propostas. O ministro Paulo Guedes é satélite e está estacionado há tempos. Seu anunciado pacote econômico não tem respaldo nem do próprio presidente.

A sucessão na Câmara e no Senado esgotou qualquer capacidade de ação coletiva. Nada se pode esperar além da aprovação de um orçamento caviloso e da indispensável bolsa social de sobrevivência no caos.

A lei é a do mercado persa. Vale tudo para vender.

Como nos versos da Quadrilha do poeta Drummond, o círculo é vicioso. Os elos, porém, não são de amor, mas de oportunismo.

Parlamentares negociam o mandato para fazer caixa eleitoral e alimentar sua campanha de reeleição. É só o que interessa nesses dois anos finais da legislatura. Com os bolsos cheios, fidelizam prefeitos. Uma vez reeleitos, voltam à boca do caixa e começam a vender tudo de novo. E assim sucessivamente: Jair paga a Arthur, que sacia o bando, que transfere ao prefeito, que elege o deputado, que vende seu voto ao governo, que financia a campanha.

Bolsonaro adquiriu com o Centrão o primeiro estágio do projeto da própria reeleição, além de miudezas do seu passivo judicial. Como, por exemplo, o engavetamento do impeachment e a suspensão das CPIs, a das Fake News e a dos crimes de gestão da pandemia.

Numa operação triangular, o Congresso pode ter levado de volta ao estoque um produto encalhado, a CPI da Toga. Quem sabe não conseguirá empacotar junto o comando dos três poderes para quitar sua fatura?

No varejo, há vistosos produtos de safra, indiferentes para o Centrão, mas que valem ouro no Palácio do Planalto. O armamentismo, por exemplo, é um. A macabra licença para matar, outro.

Os brasileiros não estão preocupados com os destinos de Rodrigo Maia, com a sorte de Simone Tebet, ou o sucesso de um futuro projeto democrático à sucessão presidencial. Para isso há tempo.

Tebet foi derrotada por ser candidata da Lava Jato. O deputado Rodrigo Maia perdeu na rasteira habitual de ACM Neto. Pedra cantada há duas semanas: Neto foi visto em festa com Bolsonaro num palanque entre Alagoas e Sergipe, em inauguração da ponte de Propriá. A Bahia, ausente do fato, estava na foto.

Neto já se opusera à primeira disputa da presidência da Câmara por Maia. Quando apoiou o candidato do então presidente Temer, Rogério Rosso, sentenciou sua filosofia: em eleição para presidente da Câmara não se fica, jamais, contra o candidato do presidente da República.

Além do mais, sua disputa pessoal com Maia é antiga e nos últimos anos a balança pendeu para o presidente da Câmara. Chegou ao momento de decisão. Ao destruir Maia, o demista baiano fez uma opção oportuna pensando no seu futuro. Quem sabe a associação Bolsonaro-Lira não representará sua bala de prata na próxima batalha com o PT, que, por acaso, tem na Bahia sua base estadual mais sólida?

Já aos brasileiros em geral sobra o bizarro desafio de apreciar a fusão das táticas milicianas do governo Bolsonaro com a súbita aparição de um novo protagonista alagoano.

Rosângela Bittar é colunista do Estado de São Paulo e analista de assuntos políticos. Publicado originariamente em 03.02.2021.

Como Bolsonaro prejudica o Banco do Brasil

É o primeiro presidente a interferir na gestão administrativa do BB. Isso tem consequências
 
Dias atrás noticiou-se que o presidente Jair Bolsonaro iria demitir o presidente do Banco do Brasil (BB), André Brandão, no cargo havia apenas quatro meses. Motivo: sua irritação com o anúncio, pelo BB, de um programa de demissão voluntária, que estimava a adesão de 5 mil funcionários, e o fechamento de 112 agências. As ações do banco despencaram na B3.

Bolsonaro já havia interferido na gestão do BB. Em 2019 mandou o banco suspender a veiculação de um comercial de TV que buscava atrair grupos jovens, até mesmo com apelo a questões de raça e gênero. O vídeo recebeu elogios de especialistas, mas irritou um presidente sensível a pautas de costumes e ignorante da realidade do banco.

Nesses dois casos, o BB seguia estratégia para se manter competitivo no sistema bancário. Essa realidade foi iniciada a partir de 1986, quando o banco perdeu o acesso à “conta de movimento”, um mecanismo que lhe conferia suprimento automático, ilimitado e sem custos de recursos do Banco Central (BC).

Com o tempo, a “conta de movimento” tornou-se insustentável. Ela provocava emissões de moeda, que precisavam ser neutralizadas pelo BC, mediante venda de títulos públicos federais. Os empréstimos do BB impactavam o endividamento da União e eram fonte de pressões inflacionárias. A “conta de movimento” foi extinta em 1986.

Essa mudança criou um desafio para o BB, o de sobreviver sem o acesso fácil e grátis a recursos do BC. O risco de falência foi evitado mediante injeção de capital da União, nos anos 1990. De lá para cá, o banco modernizou-se, adotou novas práticas gerenciais e ajustou sua estrutura à nova realidade.

Hoje, o novo desafio é adaptar-se a um ambiente crescentemente competitivo. O BB tem de se preparar, via eficiência, para concorrer com seus pares no setor privado. Seus concorrentes têm reduzido quadros de pessoal e fechado agências. As medidas do BB eram coerentes com essa realidade.

Nada disso foi inteiramente absorvido por grande parte da classe política, que ainda enxerga o BB pelas lentes dos tempos da “conta de movimento”. De tempos em tempos surgem pressões para que o banco amplie seus empréstimos a juros abaixo do mercado ou para que seja utilizado para forçar os bancos privados a reduzir suas taxas de juros, como se continuasse a obter recursos no BC, sem custos. Dilma Rousseff deu ordens ao banco para emprestar mais a juros camaradas, impactando sua rentabilidade. Bolsonaro parece ter a mesma visão ultrapassada. Pior, vem mostrando não entender os poderes do acionista controlador. É o primeiro presidente a interferir na gestão administrativa do banco.

A demissão do presidente do BB, ao que se diz, foi suspensa por conselho dos que alertaram Bolsonaro sobre os riscos da imprudência. Acionistas minoritários nacionais e estrangeiros poderiam buscar a responsabilização administrativa ou judicial do presidente, alegando o crime de abuso do controlador.

O BB tem naturalmente dificuldades de competir com os bancos privados, dados os custos que lhe são inerentes. Entre eles, pode-se mencionar a sede em Brasília, que desconsidera as características de sistemas financeiros em todo o mundo, qual seja, a concentração em certas cidades, o que propicia economias de aglomeração. Os bancos se agregam em Nova York, São Francisco, Londres, Frankfurt, Zurique, Amsterdã, Paris, Roma e outras praças relevantes. No Brasil, isso ocorre em São Paulo.

Além disso, o Banco do Brasil está sujeito a outros ônus, como o de submeter-se às regras de concorrência pública para adquirir equipamentos e serviços, bem como à volatilidade administrativa derivada da substituição de sua diretoria ao sabor das mudanças de governo, ou mesmo antes, como já aconteceu na atual administração.

O mercado financeiro identifica e precifica os riscos da interferência do governo no BB. As ações do banco sofrem um desconto em relação aos seus principais pares do sistema bancário. O desconto médio tem oscilado em torno de 30%, mas costuma subir em momentos de intervenção governamental. Passou de 50% em 2015-2016, quando a presidente Dilma Rousseff deu ordens para o banco aumentar empréstimos e reduzir juros. Agora chegou perto disso, com o voluntarismo inconsequente de Bolsonaro. No começo do governo Lula, o BB chegou a exibir um prêmio sobre as ações de seus concorrentes privados, quando a percepção era de que não havia ingerência externa na sua gestão.

A demissão do presidente do BB foi evitada, mas a possibilidade de sua ocorrência neste governo pode ter deixado consequências. O presidente do BB, detentor de uma carreira bem-sucedida em importantes bancos privados, deve ter-se dado conta de que não dispõe da autonomia que lhe fora assegurada quando do convite para dirigi-lo. Doravante terá de pensar duas ou mais vezes quando tiver de tomar decisões, avaliando quais delas poderiam excitar os instintos intervencionistas e autoritários do presidente. É um novo custo. O mal está feito.


Maílson da Nóbrega, o autor deste artigo, foi Ministro da Fazenda. Atualmente é sócio da Tendência Consultoria. Publicado originalmente por O Estado de São Paulo, edição de 03.02.2021.

Acabou a desculpa

Como Bolsonaro se queixava da falta de colaboração do Congresso, é lícito supor que agora terá força política para tocar sua agenda.

Os candidatos apoiados pelo presidente Jair Bolsonaro venceram as eleições para o comando da Câmara e do Senado. Como Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, passaram toda a primeira metade do mandato presidencial a se queixar da falta de colaboração do Congresso para destravar a votação dos projetos de interesse do País, é lícito supor que agora, com uma direção parlamentar supostamente mais alinhada ao Palácio do Planalto, o governo terá força política para tocar sua agenda adiante.

Ou seja, acabou a desculpa usada frequentemente por Bolsonaro para a impressionante inoperância de seu governo.

Mas é duplamente ingênua a expectativa de que o desfecho da eleição do Congresso dará ao governo melhor condição de governabilidade e permitirá que Bolsonaro, enfim, comece a trabalhar.

Em primeiro lugar, qualquer observador minimamente bem informado sabe que Bolsonaro não trabalhou até agora simplesmente porque é ergofóbico, e não porque não o deixaram trabalhar. Não tem nenhum projeto racional e estruturado de governo, e seu único interesse é se manter no poder e proteger os filhos. Foi um mau militar, na insuspeita avaliação do general Ernesto Geisel, e foi igualmente um mau parlamentar, sem qualquer contribuição para o País; não surpreende que seja um mau presidente.

Assim, mesmo que os novos presidentes da Câmara e do Senado revelem-se governistas leais, o que está longe de ser garantido, nada sugere que Bolsonaro daqui em diante faça mais do que bater ponto e sabotar as raras iniciativas reformistas de seus ministros e de sua base parlamentar.

Em segundo lugar, mas não menos importante, o novo presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), é genuíno representante do Centrão – bloco cujos integrantes não saem de casa se não receberem algum estímulo fisiológico. Bolsonaro, que já vinha entregando seu governo ao Centrão, despejou bilhões de reais na campanha de Arthur Lira, na forma de liberação de verbas para deputados em troca de votos.

Mais uma vez, contudo, as aparências enganam. Os impressionantes 302 votos obtidos por Arthur Lira não significam nem que o Centrão tenha tantos deputados nem que todos esses parlamentares tenham se tornado subitamente governistas. Hoje, o Centrão mal tem votos suficientes para aprovar leis ordinárias – quando muito, pode impedir que um eventual processo de impeachment prospere, o que, na prática, é o único interesse do presidente da República.

Seja como for, a vitória dos candidatos apoiados por Bolsonaro no Congresso é um desfecho preocupante, pois um Legislativo amalgamado a um Executivo cujo chefe tem orgulhosa vocação autoritária é obviamente uma ameaça à democracia – a comparação com o assalto ao poder pelo chavismo na Venezuela não é despropositada.

O jogo é bruto, e vai requerer da oposição união e objetivos claros, algo ainda muito distante da realidade. Ao contrário, DEM e PSDB, que pareciam ter pretensões de liderar o movimento de centro contra Bolsonaro, deram vexame na eleição do Congresso, demonstrando imensa fragilidade e confusão de propósitos. Não é possível se apresentar como oposição e, ao mesmo tempo, permitir que seus correligionários se engalfinhem por cargos e verbas oferecidos pelo presidente.

O desanimador resultado da disputa no Congresso pode dar a entender que estamos fadados ao Centrão e ao bolsonarismo, isto é, à escória da democracia. A grandiosa promessa de renovação da política desembocou nisso – a eleição de um deputado condenado por improbidade, apoiado por um presidente que jogou no lixo suas promessas de acabar com a relação fisiológica, tudo ante a impotência de uma oposição covarde. E Bolsonaro, em vez de ser chamado à responsabilidade por suas inúmeras afrontas à lei e aos brasileiros, ganha poder.

Mas, em política, não existem resultados definitivos. As circunstâncias extraordinariamente duras que o País enfrenta demandam um governo sério e um Congresso consciente de seus deveres. Mais cedo ou mais tarde, o País se dará conta de que não temos nem uma coisa nem outra.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 03 de fevereiro de 2021

Ritmo lento na vacinação contra a covid-19 no Brasil favorece novas cepas do vírus

2 milhões de pessoas receberam a primeira dose do imunizante em 14 dias, ritmo inferior a outras campanhas no país. Nesta velocidade, país levaria mais de três anos para completar imunização. Vácuo na coordenação nacional faz Estados agirem de forma desarticulada

Uma mulher brasileira faz o formato de um coração com as mãos ao mostrar o atestado de vacinação contra covid-19 em São Paulo.(Foto: Sebastião Moreira / EFE)

O Brasil vacinou aproximadamente 2,5 milhão de pessoas contra a covid-19 ao longo de 17 dias. A média até terça-feira (2) era de 147.000 doses aplicadas por dia e com diferenças entre Estados e capitais ―um ritmo considerado lento por especialistas, mesmo diante do problema de escassez de doses que o país enfrenta. Considerando que a ambição é imunizar 90% da população, na atual velocidade o país levaria três anos e meio para concluir o trabalho. Um ponto de comparação apontado por especialistas é o histórico do país, que já conseguiu vacinar em média 1 milhão de pessoas por dia durante a pandemia de H1N1, por exemplo. A atual campanha de imunização enfrenta problemas particulares: há o desafio de realizá-la em uma grave pandemia com tendência de elevação de casos e diante de um quantitativo ainda pequeno de doses disponíveis.

Mesmo assim, o país só aplicou uma pequena parcela das 7,33 milhões de doses que o Ministério da Saúde diz já ter distribuído aos Estados, responsáveis por fazê-las chegar aos municípios. Outras 4,98 milhões estão em trânsito, segundo painel do Governo. A lentidão ―presente também no início da vacinação de outros países― é observada em meio a uma campanha nacional descoordenada, com uma estratégia nacional ainda repleta de lacunas. Estados e municípios passaram a decidir quem priorizariam na vacinação ―o que tem gerado ruídos na ponta diante de gargalos nas diretrizes nacionais. Governadores cobram do Ministério da Saúde um cronograma mais definido com previsão de chegada de novas doses num cenário de escassez global dos imunizantes.

“O nosso ritmo está péssimo. Não conseguimos nem gastar metade das primeiras 6 milhões de doses da Coronavac distribuídas, que são poucas. Teríamos que estar vacinando 1 milhão de pessoas por dia”, avalia a enfermeira e epidemiologista Ethel Maciel, que integrou o grupo de pesquisadores que participou das discussões iniciais de formulação do plano nacional de imunização. Ela diz que é difícil entender a situação, mas acredita que ela pode estar associada ao fato de a população não estar entendendo quando será a sua vez ou pra onde deve se dirigir, já que ainda não há uma campanha de comunicação clara por parte do Ministério da Saúde, responsável por coordenar a imunização no país. “Não há centralidade nem informação clara. Cada Estado está fazendo de uma forma diferente. Nós, que tínhamos orgulho do PNI, estamos começando uma campanha confusa”, afirma.

O médico sanitarista e advogado Daniel Dourado estima que o país precisará de cerca de 160 milhões de doses para conseguir alguma proteção coletiva e que o ritmo lento de vacinação abre mais margem para o vírus circular. “Estamos muito lentos e em uma corrida contra o vírus. Registramos 60.000 novos casos e mais de 1.000 mortes por dia há semanas”, diz. Ele pondera que o país vacinou 1 milhão de pessoas diariamente em campanhas com um cenário diferente e todas as doses dos grupos prioritários já garantidas. Os Estados estão vacinando à medida que chegam pequenos lotes. “Mesmo assim está muito lento”, opina. O EL PAÍS procurou o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais da Saúde para saber quais as dificuldades enfrentadas da ponta para acelerar a vacinação, mas não houve retorno.

O Ministério da Saúde elaborou as primeiras versões da estratégia nacional definindo quatro grupos prioritários, que naturalmente poderiam sofrer modificações conforme a chegada de mais doses. Este planejamento sofreu alterações quando o primeiro lote de 6 milhões de doses da Coronavac foi distribuído, sendo indicado a 34% dos profissionais de saúde, idosos institucionalizados, indígenas e pessoas com deficiência institucionalizadas. Outra atualização, na semana seguinte, incluiu novos grupos entre os prioritários, como por exemplo caminhoneiros, trabalhadores industriais e portuários. Mas já não há definição clara sobre as fases de imunização, ainda que a pasta indique seguir a ordem da lista apresentada. Ao quantificar o total de vacinas da AstraZeneca a serem enviadas aos Estados em uma tabela, porém, o ministério calcula a aplicação delas em 27% dos profissionais de saúde em quase todos eles. Apenas o Amazonas, que está recebendo mais doses diante da gravidade da pandemia, foi orientado a começar a vacinar também idosos com mais de 70 anos. “Essa mudança, sem determinação das fases, é muito ruim e cria coisas sendo feitas de maneira diferente em cada lugar”, aponta Maciel.

O próprio Ministério da Saúde deixou abertas as possibilidades para que os Estados usem os imunizantes conforme suas realidades locais, mas com tantas lacunas o resultado tem sido de estratégias muito diversas. Especialistas apontam que a lógica da campanha de vacinação é priorizar os grupos mais vulneráveis, seja pela elevada possibilidade de se infectar ou pelo risco maior de agravo da doença. É assim que se espera desafogar os sistemas de saúde que já sofrem grande pressão e tentar estancar os elevados índices de 1.000 mortes por dia.

Falta critérios sobre trabalhadores da saúde prioritários

A lógica de priorizar os trabalhadores da saúde é tanto pela alta exposição quanto pela necessidade de reduzir o afastamento deles e manter o atendimento. Mas, sem vacinas suficientes para vacinar todo esse grupo no país, o Ministério da Saúde também não estabeleceu critérios sobre quais profissionais deveriam receber as doses primeiro. Enquanto alguns locais priorizaram os que trabalham diretamente com pacientes com a covid-19, outros ampliaram o leque e estão vacinando também profissionais menos expostos. Isso pode fazer com que profissionais que atuam longe da linha de frente consigam se vacinar antes de trabalhadores de limpeza dos hospitais, por exemplo. “São muitas incertezas. E aí a gente volta para o começo da pandemia, com cada Estado definindo como vai ser [como aconteceu com as medidas restritivas]. Nem aquilo que a gente fazia bem estamos fazendo neste momento”, afirma Maciel.

O Distrito Federal, por exemplo, incluiu todos os funcionários da secretaria da Saúde no grupo prioritário e deixou de fora até os idosos com mais de 85 anos. Em nota à revista Época, a justificativa foi de “assegurar a força de trabalho e diminuir o absenteísmo” quando não haveria doses suficientes para todos os 142.000 idosos com idade acima de 80 anos. Alguns dias depois, decidiu incluir este grupo e agora espera adicionar também os idosos com mais de 75 anos na semana que vem. Alguns Estados, por outro lado, já começam a vacinar um grupo maior de idosos não institucionalizados. O Ceará decidiu usar parte das doses da AstraZeneca para vacinar idosos com mais de 75 anos nesta semana. Pernambuco, por sua vez, começou a vacinar idosos a partir de 85 anos.

Já o Estado de São Paulo afirmou que vai começar a imunizar idosos com mais de 90 anos no próximo dia 8. O Governo paulista também decidiu incluir no seu plano a vacinação de quilombolas, grupo que havia sido incluído nos grupos prioritários em uma primeira versão do PNI, mas foi retirado. A Administração João Doria até quis usar todas as doses disponíveis para vacinar um maior número de pessoas com a Coronavac, mas recuou após o Ministério da Saúde não dar garantias de que receberia mais vacinas. Sobre a lentidão, o Governo paulista diz que “é preciso apoio e agilidade das prefeituras na aplicação das doses e na inserção de dados no Vacivida [sistema com os dados da vacina], para que os dados reais e atualizados possam ser monitorados. Nesse sentido, a pasta prepara resolução para determinar o devido abastecimento da plataforma pela rede de saúde”.

A falta de uma comunicação clara do Governo Federal sobre quem deve ser vacinado neste momento tem gerado muitos ruídos na ponta. Durante os primeiros dias de vacinação, houve uma enxurrada de denúncias de fura-filas. “Falta uma coordenação. E começa a existir mais gente controlando quem pode tomar ou não tomar a vacina do que de fato administrando”, aponta o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da USP, que também vê um ritmo lento na vacinação brasileira.

No Amazonas, a vacinação chegou a ser interrompida por vários dias em Manaus, após a Justiça exigir critérios claros para o procedimento. Depois, o repasse de novas doses também foi interrompido por conta de suspeitas de fura-fila. O Estado então publicou uma definição mais clara desses grupos: trabalhadores de saúde da área pública e privada, envolvidos diretamente na atenção e referência para os casos suspeitos e confirmados de covid-19, pessoas de 60 anos institucionalizadas, indígenas maiores de 18 anos aldeados, pessoas com deficiência em instituições de longa permanência e idosos de 70 a 74 anos, estes últimos com elevada taxa de mortalidade. O Ministério Público do Amazonas pediu a prisão do prefeito e da secretária de saúde de Manaus ao ver a intenção de fura-filas da vacina na nomeação de dez médicos pouco antes de receberem as doses

Maciel diz que deixar essas decisões nas mãos dos gestores locais pode trazer prejuízos, ainda que as realidades regionais precisem de fato ser consideradas. Ela cita como exemplo a região Norte do país, que tem uma situação de migração forte e pode precisar de ajustes, além de ter uma grande população indígena. Mas, mesmo assim, ela avalia que o que está acontecendo representa um “vácuo” no PNI. “Quando a gente tem uma estratégia nacional, ela precisa ser semelhante em cada lugar. Claro que pode haver algumas diferenças. Vamos pensar que alguém com mais 60 anos se vacinou e precisou viajar a outro Estado onde este grupo não está sendo vacinado. Pode ter dificuldades de conseguir uma segunda dose”, explica.

Outro problema que a epidemiologista aponta é a ausência de uma campanha de informação à população pelo Governo Federal quando a vacinação já foi iniciada. “Em geral, no mínimo duas semanas antes de uma campanha de imunização já tínhamos uma campanha de informação, explicando onde ir, como fazer. É a primeira vez que começamos uma campanha sem ter informações oficiais. E os Estados estão criando formas de fazer isso porque há um vácuo no PNI”, diz. O Ministério da Saúde prevê em suas notas técnicas uma campanha de informação sobre a importância da vacinação, públicos prioritários, dosagens e locais. Mas diz que está “prevista para iniciar assim que tenhamos a definição das vacinas”.

Na semana passada, governadores subiram o tom e cobraram um cronograma detalhado de vacinação ao Ministério da Saúde, inclusive com a quantidade de doses que planeja comprar e o prazo previsto para entrega. “Caso o Governo não apresente um cronograma que atenda a demanda de imunização dos mais de 220 milhões de brasileiros, os governadores, através do Fórum Nacional de Governadores e do Consórcio Nordeste, irão se movimentar para comprar as doses necessárias”, diz nota enviada pelo governador do Piauí, Welington Dias.

BEATRIZ JUCÁ, de São Paulo para o EL PAÍS, em  02 FEV 2021.

Como a China fez Bolsonaro comer em sua mão

É uma arte diplomática como Pequim conseguiu, durante a pandemia, impôr seus interesses perante o Brasil. Bolsonaro caiu cegamente na armadilha. E agora sua sobrevivência política depende também dos chineses.    

Bolsonaro presenteia casaco do Flamengo ao presidente da China, Xi Jinping, em outubro de 2019

Até uns meses atrás, o presidente Jair Bolsonaro era contra qualquer tipo de vacinação contra o coronavírus. Especialmente se a vacina fosse da China. Seu governo, disse ele categoricamente em outubro, não compraria a Coronavac. Bolsonaro chegou a suspender temporariamente o processo de registro do imunizante junto à Anvisa. Repetidamente, seu filho Eduardo e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, se revezaram para atacar a China como o culpado por trás da pandemia.

Mas agora está tudo calmo. Bolsonaro e sua claque interromperam suas investidas contra Pequim e a vacina chinesa. A razão: as entregas de insumos por parte da China para a produção da vacina no Instituto Butantan, em São Paulo, não se materializaram. A produção, que havia acabado de começar, corria o risco de parar. E isso se tornou um problema existencial para o presidente populista de direita.

Porque, por um lado, seus índices de aprovação caíram abruptamente com o fim do auxílio emergencial. Por outro, cada vez mais brasileiros querem ser vacinados. As condições catastróficas em Manaus e a fraca gestão da crise por parte do ministro da Saúde podem ter contribuído para isso. O Brasil é hoje um dos países com o menor número de pessoas que se declaram antivacina do mundo.

Tudo isso parece ter causado uma mudança de sentido em Bolsonaro. Agora o governo está se esforçando para obter vacinas. Mas isso é complicado quando você já destruiu pontes, como com a China. Oficialmente, o presidente recorreu ao governo em Pequim para obter novos ingredientes de vacinas. Quando as autoridades chinesas anunciaram novos suprimentos, Bolsonaro lhes agradeceu gentilmente pela boa cooperação.

Mas tudo isso não saiu de graça. Nos bastidores, o ministro das Comunicações, Fabio Faria, teve que mexer os pauzinhos. Pois não há dúvidas sobre o que a China espera em troca de entregas rápidas de vacinas: o acesso irrestrito da Huawei na licitação da rede G5. O governo brasileiro tem até agora se recusado a admitir a empresa estatal chinesa, assim como muitos outros países ocidentais, especialmente os Estados Unidos. A acusação é de que que a China usaria a tecnologia para fins de espionagem.

Mas, desde o final da semana passada, isso parece não ser mais um problema. A Anatel, órgão regulador das telecomunicações, declarou, de repente, unanimemente que não havia objeções ao envolvimento da Huawei. E no caso de o governo Bolsonaro mudar sua política em relação à Huawei, como já fez algumas vezes, foram tomadas providências: os suprimentos semanais da China para a produção da vacina provavelmente ainda serão existencialmente importantes até o fim do ano, para que a campanha de vacinação não pare. Os leilões para a rede móvel devem ser realizados em paralelo, o mais tardar na metade do ano. É difícil pensar em uma moeda de troca diplomática melhor para fazer com que outro governo cumpra sua parte.

No futuro, é provável que as escolas diplomáticas em todo o mundo analisem em detalhes a estratégia da China em relação ao Brasil nos últimos meses. É uma jogada de mestre como Pequim, a partir de uma posição de fraqueza, domina agora as relações com o Brasil. Afinal, a pandemia começou sua propagação global na China. E a China é dependente das commodities agrícolas do Brasil.

Mas agora a influência política chinesa no Brasil é maior do que nunca. Bolsonaro caiu na armadilha. Pequim agora também decide sobre sua sobrevivência política.

Há mais de 25 anos, o jornalista Alexander Busch, o autor deste artigo, é correspondente de América do Sul do grupo editorial Handelsblatt (que publica o semanário Wirtschaftswoche e o diário Handelsblatt) e do jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em São Paulo e Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil. Clique aqui para ler suas colunas