quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

O fim melancólico da força-tarefa da Lava Jato no Paraná

Sem alarde ou protestos, núcleo original da operação que sacudiu o mundo político entre 2014 e 2018 é extinto. Casamento tumultuado com bolsonarismo e escândalo de vazamento de mensagens aceleraram declínio.    

Manifestação em apoio à Lava Jato em 2017. Entusiasmo com operação erodiu e silêncio marcou extinção da força-tarefa paranaense

O Ministério Público Federal (MPF) do Paraná informou nesta quarta-feira (03/02) que a força-tarefa da Lava Jato "deixa de existir" como núcleo isolado após quase sete anos de atuação. A medida estava prevista desde dezembro.

Desde 1º de fevereiro, uma nova estrutura passou a vigorar, com a responsabilidade dos casos sendo transferida para o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Paraná. Dos 14 procuradores da República que ainda atuavam na força-tarefa da Lava Jato paranaense, quatro passam a integrar o Gaeco do Paraná, com mandato até agosto de 2022. Os outros dez membros da força-tarefa devem continuar a atuar na operação até 1º de outubro, porém sem dedicação exclusiva e a partir de suas lotações de origem. Nenhum desses procuradores está baseado em Curitiba, que sediou a força-tarefa por mais de meia década

Alessandro José de Oliveira, que coordenava a força-tarefa de Curitiba, vai assumir o núcleo da Lava Jato no Gaeco paranaense. "O legado da Força-Tarefa da Lava Jato é inegável e louvável considerando os avanços que tivemos em discutir temas tão importantes e caros à sociedade brasileira", disse Oliveira, em nota distribuída pelo MPF.

O texto ainda traz um balanço dos quase sete anos de operação: 79 fases, 1.450 mandados de busca e apreensão, 211 conduções coercitivas, 132 mandados de prisão preventiva, 163 mandados de prisão temporária, 130 denúncias, 533 acusados, 278 condenações. De acordo com o MPF, mais de R$ 4,3 bilhões foram devolvidos por meio de 209 acordos de colaboração e 17 de leniência.

Até o momento, o fim da força-tarefa não gerou movimentação ou protestos nas redes, em contraste com as fases douradas da Lava Jato paranense, quando movimentos mobilizavam militantes nas ruas em apoio à operação. Já o núcleo da Lava Jato no Rio de Janeiro deve ter o mesmo fim em abril, quando seus procuradores serão remanejados para o Gaeco fluminense.

Abalos no mundo político

Lançada em março de 2014 com foco em investigar desvios na Petrobras, a Lava Jato acabou abalando de maneira dura as estruturas do sistema político em seus primeiros quatro anos, colocando dirigentes partidários, dois ex-presidentes, ex-ministros e figuras influentes do mundo político e empresarial no banco dos réus; revelando as entranhas de mecanismos de corrupção e colecionando elogios e críticas ao longo do processo. 

Mas o fim silencioso da força-tarefa, um mês e meio antes de seu sétimo aniversário, contrasta com o barulho que a operação provocou em anos anteriores.

Em março de 2015, por exemplo, o primeiro aniversário da operação foi marcado pela prisão de ex-diretores da Petrobras e pela divulgação da primeira lista de políticos suspeitos de envolvimento com corrupção na estatal. No aniversário seguinte, foi a vez da condenação do empreiteiro Marcelo Odebrecht e da divulgação pelo então juiz Sergio Moro dos grampos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que ajudaram a selar o fim do governo Dilma Rousseff. Em 2018, o quarto aniversário ocorreu em meio à expectativa da prisão iminente de Lula, que ocorreu menos de um mês depois, em 7 de abril.

Embora o Partido dos Trabalhadores tenha sido a sigla mais afetada no longo prazo pela Lava Jato, paradoxalmente a força-tarefa paranaense só conseguiu chegar tão longe em seus objetivos por causa de mecanismos instituídos por governos petistas, como a aprovação da delação premiada em 2013. Sob Lula, a figura do "engavetador da república" também saiu de cena, com a nomeação de indicados pela lista tríplice formulada pelo MPF, promovendo um cenário favorável para investigar políticos. A Polícia Federal também passou a receber mais investimentos.

A delação premiada acabou se revelando um trunfo para a operação, mas a forma como foi aplicada sistematicamente pelos procuradores da Lava Jato também provocou críticas no mundo jurídico. Advogados e juristas argumentaram que a combinação de prisões provisórias e delações acabou fazendo com que suspeitos falassem qualquer coisa para se livrar da cadeia ou conseguir uma redução de pena. Mas essas críticas não foram suficientes para abalar a popularidade da operação nos primeiros anos.

Declínio em meio a altas expectativas

O declínio do núcleo paranaense começou em 2019, paradoxalmente quando havia expectativa de que a operação passaria a mudar a política por dentro, quando a principal estrela da operação, o ex-juiz Sergio Moro, aceitou um cargo de "superministro" da Justiça no governo Bolsonaro, selando uma aliança entre o lavajatismo e o bolsonarismo. 

Decisões de Moro à frente da Lava Jato ajudaram a pavimentar vitória de Bolsonaro, mas relacionamento dos dois desmoronou em abril de 2020

Mas a decisão de Moro levantou questionamentos sobre sua conduta à frente dos casos da operação, já que ele havia sido o responsável direto por tirar da corrida presidencial aquele que provavelmente teria sido o maior adversário de Jair Bolsonaro na disputa, o ex-presidente Lula.

Não são poucos os cientistas políticos que afirmam que os excessos bombásticos da Lava Jato também acabaram alimentando um sentimento em várias camadas da população, pavimentando o caminho para que um radical de extrema direita como Bolsonaro tivesse mais aceitação numa eleição.

Em 2016, Moro já havia enfrentado críticas por divulgar uma escuta irregular entre Lula e Dilma, que precipitou o fim da era petista no Planalto, mas sua entrada no governo Bolsonaro deixaria marcas mais profundas na imagem do ex-juiz.

Ao aceitar o cargo, Moro afirmou que essa seria a chance "de implementar uma forte agenda anticorrupção e anticrime organizado" e consolidar o legado da operação afastando "riscos de retrocessos por um bem maior". Moro não entrou sozinho no governo, mas trouxe para a pasta seus antigos aliados da Polícia Federal que atuaram nos casos mais ruidosos da Lava Jato. 

Só que em 16 meses no cargo, Moro não apenas não conseguiu implementar seus projetos ambiciosos como colecionou episódios de desgaste com o presidente, que fez seguidas declarações de desapreço e movimentos contra seu ministro.

Em abril de 2020, veio finalmente o desfecho dessa relação tumultuada: Moro deixou o governo falando em "interferência política" de Bolsonaro na sua pasta e na Polícia Federal, e acusou o presidente de não cumprir a promessa da carta branca. Rapidamente, o núcleo bolsonarista pintou Moro como um "traidor" e tratou de desconstruir sua imagem para os apoiadores do governo.

Rifado pela exrema direita, Moro passou a perseguir iniciativas mais lucrativas, enquanto continuam especulações sobre seu futuro político. Ele se tornou diretor de uma consultoria que tem entre seus clientes empreiteiras que foram emparedadas pela Lava Jato, levantando novamente questões sobre sua conduta ética.

Vaza Jato

Ainda em 2019, outro abalo para a credibilidade das principais figuras da operação, entre elas o então chefe da força-tarefa Deltan Dallagnol, ocorreu depois que o site The Intercept Brasil revelou diálogos que levantaram suspeitas de conluio entre o ex-juiz Moro e o MPF na condução de inquéritos e ações penais contra réus como o ex-presidente Lula, político de maior renome alvo da Lava Jato.

As mensagens, que foram obtidas ilegalmente por um hacker, indicaram que o então juiz, entre outras coisas, orientou ilegalmente ações da Lava Jato, como negociações de delações, cobrou novas operações e até pediu para que os procuradores incluíssem uma prova num processo. As mensagens também revelaram que os procuradores cogitaram investigar ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e tiveram inicialmente dúvidas em relação à delação de um empreiteiro que incriminou Lula. Outras mensagens indicaram que Deltan também tentou aproveitar a exposição pública proporcionada pela Lava Jato para lucrar com sua fama no mercado de palestras.


Deltan Dallagnol foi criticado por métodos usados na operação, tentativa de criar fundação bilionária e até por tentar lucrar no mercado de palestras

Moro adotou uma posição dúbia diante do escândalo. Ora disse que não reconhecia as mensagens, ora afirmou que elas não tinham nada de mais ou que as conversas com os procuradores foram um mero "descuido". A "Vaza Jato" também teve o efeito de abalar a relação amigável que a força-tarefa cultivava com vários setores da imprensa, que deu ampla publicidade às ações da operação nos primeiros anos, muitas vezes sem muitos questionamentos.

Também em 2019, Deltan Dallagnol foi criticado por tentar criar com outros procuradores uma fundação bilionária com dinheiro de multas da Petrobras. Pelo plano, essa fundação ficaria responsável pela gestão de R$ 1,25 bilhão. A iniciativa gerou críticas tanto no mundo político quanto dentro do Ministério Público. Ao final, acabou sendo barrada em março pelo Supremo a pedido da então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que ainda censurou publicamente os procuradores.

Derrotas em série

Ainda em 2019, em meio ao contexto do escândalo da "Vaza Jato", foi a vez de o STF anular pela primeira vez uma sentença de Moro, com base num novo entendimento sobre a ordem de entrega de alegações finais de réus delatores e delatados numa mesma ação penal.

Em novembro do mesmo ano, veio o golpe mais duro: por seis votos a cinco, o Supremo decidiu derrubar a decisão que permitia o cumprimento de pena após condenação em segunda instância. Pelo novo entendimento, um condenado só passará a cumprir pena após trânsito em julgado, ou seja, quando a possibilidade de recurso for esgotada.

Paralelamente, a PGR passou a ser comandada por uma figura hostil à operação, Augusto Aras, que foi escolhido por Bolsonaro fora da lista tríplice, em contraste com os anos do PT no poder. 

Dallagnol, que já havia sido rejeitado pelos bolsonaristas antes mesmo da saída de Moro do Ministério da Justiça, deixou a força-tarefa em setembro de 2020, alegando questões familiares.

Em 2019 também ocorreram outros problemas de imagem para a Lava Jato como um todo, não só no núcleo curitibano, quando o ex-procurador-geral Rodrigo Janot – que havia elaborado algumas das denúncias mais barulhentas contra políticos com mandato entre 2015 e 2017 – enterrou sua reputação ao declarar que tinha planejado matar o ministro do STF Gilmar Mendes.

O caso "Vaza Jato" ainda está provocando desdobramentos. Na segunda-feira (01/02), o ministro do STF Ricardo Lewandowski retirou o sigilo das mensagens trocadas entre procuradores da operação e o ex-juiz Moro. Há expectativa de que o caso venha a influenciar os pedidos de anulação de sentenças apresentados pela defesa de Lula.

O fim melancólico do núcleo paranaense da operação também ocorreu num dia bastante simbólico, considerando os antigos alvos da Lava Jato. Na segunda-feira, a Câmara elegeu um novo presidente, o deputado Arthur Lira, réu numa das denúncias da Lava Jato e membro do PP, o partido que colecionou a maior quantidade de membros investigados e denunciados pela operação. Lira também articulou, pela Lei de Abuso de Autoridade, limitações a delações no pacote anticrime promovido por Moro em seus tempos de ministro.

Deutsche Welle Brasil, em 03.02.2021

Gasolina já subiu 13% nas refinarias em 2021 e deve ficar ainda mais caraThais Carrança


Preço praticado pela Petrobras segue abaixo do mercado internacional, dizem analistas. rédito da foto: Getty Images).

Ainda é fevereiro, mas a Petrobras já anunciou dois aumentos para a gasolina e um para o diesel em 2021. Com um reajuste de 7,6% anunciado em 8 de janeiro e outro de 5% no dia 26 do mesmo mês, a gasolina já acumula cerca de 13% de alta nas refinarias neste ano. Já o diesel, pivô do descontentamento dos caminhoneiros que levou a paralisações isoladas nos últimos dias pelo país, foi reajustado em 4,4%.

E os analistas são unânimes: deve vir mais alta de preços dos combustíveis por aí, já que os valores praticados pela Petrobras no mercado interno seguem abaixo do mercado internacional, que serve de referência para os reajustes da estatal.

O aumento esperado dos preços reflete a expectativa de valorização do barril do petróleo, diante da previsão de manutenção da oferta restrita pela Opep (Organização de Países Exportadores de Petróleo) e Rússia; aliada ao crescimento projetado da economia mundial, com o avanço da vacinação contra a covid-19; e à incerteza com relação ao câmbio, diante do desequilíbrio das contas públicas nacionais.

Gasolina, diesel e o bolso do consumidor

Para o consumidor final, a expectativa dos analistas é de uma alta entre 8% e 10% do preço da gasolina neste ano e um pouco menos do que isso para o diesel, devido à sensibilidade política do reajuste desse combustível desde a greve nacional dos caminhoneiros de 2018.

A gasolina pesa no bolso do consumidor de classe média que tem carro e dos trabalhadores que dependem de veículos automotores para seu sustento, como motoristas de aplicativos e entregadores.

Já o diesel tem peso direto menor no IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), índice oficial de inflação do país, mas um impacto indireto muito maior, pesando no frete de todos os produtos transportados por rodovias e em alguns custos industriais.

Assim, embora a estimativa dos analistas seja de uma inflação em 2021 abaixo da meta (de 3,53%, segundo o boletim Focus do Banco Central mais recente, contra meta de 3,75% para 2021), a alta do preço dos combustíveis, somada à carestia dos alimentos e à expectativa de um IPCA acumulado em 12 meses que pode superar os 6% em maio devem contribuir para o mal-estar da população com relação à dinâmica de preços esse ano.

"A sensação térmica é muito ruim. Não dá para dizer outra coisa, porque alimentação pesa bastante e combustíveis também", diz Fábio Romão, analista de inflação na LCA Consultores.

A tal paridade internacional

A Petrobras adotou em 2016 o chamado PPI (Preço de Paridade Internacional), uma resposta à política de controle de preços dos combustíveis que vigorou durante o governo Dilma Rousseff (PT), que deteriorou a contabilidade da empresa, como parte de uma estratégia para controlar a inflação.

Quando foi estabelecida a nova política de preços, eles chegaram a variar quase que diariamente, seguindo a flutuação do mercado internacional. Em setembro de 2018, às vésperas da eleição daquele ano, esses reajustes passaram a ser quinzenais. E, em meados de 2019, deixaram de ter prazo fixo, passando a depender da avaliação da companhia sobre as condições de mercado e o ambiente externo.

A fórmula usada pela Petrobras para calcular a relação entre os preços praticados pela empresa no Brasil e o mercado internacional não é conhecida. Por conta disso, cada consultoria chega a um resultado diferente, com base em parâmetros como o preço da gasolina no Golfo do México, nos Estados Unidos, cotações em Bolsa e outros.

A Ativa Investimentos, por exemplo, calcula que a gasolina pode ter ainda um reajuste potencial de 9%.

Já o Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE) estima que a defasagem está em R$ 0,28 para o diesel e R$ 0,30 para a gasolina, equivalentes a cerca de 12% e 13% de diferença, respectivamente.

A consultoria StoneX, por sua vez, calcula que o diesel pode ser reajustado ainda em até R$ 0,22 e a gasolina, em R$ 0,11.

Independentemente do valor exato, o que chama a atenção é a avaliação consensual entre os analistas de que os preços internos estão defasados e, por isso, o caminho esperado é de mais reajustes de valores para cima.

Petróleo e câmbio ditam a tendência

Sob ameaça de greve dos caminhoneiros, Jair Bolsonaro acenou com a possibilidade de zerar impostos (Crédito da foto: Getty Images)

"A gasolina, como um derivado do petróleo, tem alta correlação com o preço do barril de óleo", explica Étore Sanchez, economista-chefe da Ativa Investimentos. "Recentemente, assistimos ao preço do petróleo subir, depois da reunião da Opep e das perspectivas de crescimento global, que ganharam ímpeto".

O petróleo de tipo Brent, referência da Europa, é negociado em torno de US$ 56 por barril, enquanto o WTI, dos EUA, está em US$ 53 por barril, comparado a valores próximos a US$ 51 e US$ 49, respectivamente, ao final de 2020.

"Houve um avanço do preço internacional da commodity, um primeiro aspecto que justifica a Petrobras reajustar seus preços domésticos para cima", diz Sanchez.

"Além disso, temos um câmbio brasileiro que não cede, com o dólar próximo a R$ 5,40, um avanço significativo em relação ao começo do ano, quando estava ao redor de R$ 5,20. Isso também contribui para que a defasagem de preços avance."

Adriano Pires, diretor do CBIE, tem avaliação semelhante. "O preço do barril de petróleo subiu muito nos últimos meses. Apesar de em abril e maio [de 2020] ele ter chegado abaixo de US$ 20, a partir de junho o barril voltou a subir, com a abertura das economias no hemisfério Norte e a restrição de produção provocada pela Opep+, que é a Opep mais a Rússia", diz Pires.

"Para se ter uma ideia, de julho até dezembro de 2020, o barril subiu quase 40%. No caso brasileiro, além da pressão do preço do barril, também teve a pressão do câmbio", destaca o diretor do CBIE.

"Isso fez com que a Petrobras, apesar de ter continuado a seguir a tendência de preço internacional, não conseguisse acompanhar em termos absolutos. Então a defasagem existe, apesar de ela ter feito aumentos nos preços da gasolina, do diesel e do botijão de gás nos últimos meses."

Importadores reclamam da disparidade

A Petrobras diz que 'reitera compromisso com preços competitivos em equilíbrio com os mercados internacionais' (Crédito da foto: Getty Images)

Apesar de nenhum consumidor ter pressa para que essa defasagem seja corrigida, existe um grupo de empresários que está ansioso para que isso aconteça: os importadores de combustíveis.

A Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis (Abicom) tem feito, pelo menos desde novembro, críticas à disparidade de preços, que inibe a atividade importadora.

"Caso não haja aderência dos custos no mercado doméstico, o Brasil estará sinalizando que será mantida a retração dos preços para contenção da inflação, e essa artificialidade é um desestímulo para os investidores que pretendem desenvolver negócios em nosso país", escreveu a entidade em nota publicada em 25 de janeiro.

"A paridade é o preço que justifica algum agente privado trazer combustível para o Brasil, porque, se não, você vai comprar mais caro e vender mais barato", explica Thadeu Silva, consultor de petróleo e gás da StoneX.

"Olhando as licenças de importação de dezembro, que são os dados oficiais mais recentes disponibilizados pela ANP [Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis], vemos que vários agentes privados já pararam de importar. Ainda não temos dados de janeiro, mas o mês deve trazer mais gente parando de trazer produto."

Procurada, a Petrobras informou que "reitera compromisso com a prática de preços competitivos e em equilíbrio com os mercados internacionais"

"Os reajustes seguem sendo realizados sem periodicidade definida, de forma que a volatilidade das cotações internacionais e da taxa de câmbio podem não ser repassadas imediatamente para o mercado interno", disse a empresa.

Com relação à crítica dos importadores, a Petrobras afirmou que os custos efetivos de importação variam de agente para agente.

"Por esse motivo, a crítica dos importadores deve ser vista com cautela, ao pretender um aumento de preços que 'proteja' a atuação de agentes menos eficientes, cujo efeito prático se traduziria em maiores preços ao consumidor."

Inflação ao consumidor

O percentual de reajuste da gasolina e do diesel nas refinarias não chega integralmente ao consumidor. Isso porque o preço ao consumidor é formado pelo valor nas refinarias, pelos impostos federais Cide e Pis/Cofins, o estadual ICMS e pelas margens de lucro da distribuidora e da revenda.

Assim, um mesmo reajuste de R$ 0,10, por exemplo, representa um percentual maior de variação no preço da refinaria, que é mais baixo, do que no preço na bomba, que é mais alto devido a todos esses itens adicionais.

A consultoria Triad Research, que coleta dados em postos de revenda de combustíveis, estima que a gasolina comum fechou janeiro a um preço médio de R$ 4,870 por litro para os consumidores, comparado a R$ 4,714 ao fim de dezembro, um aumento de 3,3%.

Já o diesel S10 estava em R$ 3,905 em 31 de janeiro, ante R$ 3,838 no último dia de 2020, alta de 1,7%.

Gasolina vs. Diesel

A alta dos combustíveis não afeta os consumidores apenas no custo para abastecer seus veículos(Crédito da foto: Getty Images).

Para Fábio Romão, da LCA Consultores, a alta de preços menor para o diesel do que para a gasolina deve ser uma tendência no ano.

O analista lembra que, em 2020, a gasolina teve queda de preço de 0,19% no IPCA e o diesel caiu 3,30%, enquanto a inflação em geral subiu 4,52%.

Olhando para os reajustes realizados pela Petrobras no ano passado, considerando apenas as altas de preços, foram 19 aumentos da gasolina, com variação média de 5,79%, comparadas a 14 altas do diesel, a uma taxa média de 5,21%.

"É difícil afirmar categoricamente, mas existe a possiblidade de essa diferença ter acontecido à luz da greve dos caminhoneiros de 2018, que tornou o preço do diesel politicamente mais sensível", avalia Romão.

Para 2021, a projeção da LCA é de uma alta de 9,5% da gasolina e de 7,4% do diesel, contra uma inflação em geral de 3,52%.

"O aumento do diesel deve ser novamente menor do que o da gasolina", prevê Romão. "Estamos no começo de 2021, mas essa lógica já voltou a acontecer, com dois aumentos da gasolina e só um do diesel. Além disso, pode ter algum alívio no diesel pelo lado da tributação, como já aventado pelo governo, o que teria como efeito líquido uma queda de preço no curto prazo."

Na quarta-feira passada (27/01), sob ameaça de greve dos caminhoneiros, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) acenou com a possibilidade de zerar a PIS/Cofins sobre o diesel, desde que os governos estaduais reduzissem as alíquotas de ICMS.

A perda de arrecadação, no entanto, é um entrave para levar à frente a redução, e o governo estaria estudando medidas compensatórias, como retirar benefícios de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para carros de valor mais alto e acabar com renúncias tributárias para o setor petroquímico.

Por que a alta dos combustíveis é um problema de todos, e não só de quem dirige?

"A inflação dos menos favorecidos é pautada em parte pelo preço dos transportes públicos. O principal meio de transporte no Brasil é o ônibus urbano e 30% do custo da passagem é derivado do preço do diesel. Então, se ele sobe, acaba influenciando no custo da passagem de ônibus, que é um item de peso para as famílias de baixa renda", diz André Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor da FGV (Fundação Getulio Vargas).

A alta do diesel também onera o frete. "Fica mais caro transportar mercadorias para os grandes centros urbanos. Então, uma parte desse aumento do frete é transferido para o preço final de tudo que consumimos nas cidades", afirma o economista.

Ele lembra ainda que o diesel e outros óleos combustíveis e lubrificantes têm aplicações industriais. "Isso também acaba aumentando o custo de produção do país, o que pode favorecer aumento de preços de uma gama muito variada de produtos, tanto para as famílias, quanto para a própria indústria."

Já a alta da gasolina afeta mais a parcela mais rica da população, avalia Braz.

"Quem tem carro, normalmente pertence à classe média mais alta", afirma. "Mas a gasolina afeta mais o IPCA. E isso é grave, porque o índice é base para uma série de contratos, que podem ser indiretamente afetados pelo aumento do combustível."

Romão, da LCA, estima que, sem a alta prevista para a gasolina esse ano, o IPCA teria aumento de 3,05%, comparado aos 3,52% esperados pelo analista.

Ou seja, a gasolina sozinha pode ser responsável por 0,47 ponto percentual do aumento da inflação em 2021.

Thais Carrança, da BBC News Brasil em São Paulo, em 3 fevereiro 2021

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Empresário que promoveu festa com 300 pessoas para Arthur Lira é réu por fraude

Marcelo Perboni foi denunciado pelo Ministério Público por fraudar a fiscalização tributária ao omitir receitas relativas a saídas de mercadorias. Segundo assessoria de Lira, presidente da Câmara 'não foi responsável pela organização do evento.

Arthur Lira comemora presidência da Câmara em festa que reuniu cerca de 300 pessoas Foto: Dida Sampaio/ Estadão

Arthur Lira comemora vitória na disputa pela presidência da Câmara em festa que reuniu cerca de 300 pessoas Foto: Dida Sampaio/ Estadão

A “festa da vitória” do novo presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), que reuniu cerca de 300 pessoas em plena pandemia do novo coronavírus, ocorreu em uma luxuosa casa do empresário catarinense Marcelo Perboni. Produtor e comerciante de frutas, ele é acusado pelo Ministério Público de se apropriar indevidamente de R$ 3,8 milhões.

Perboni foi denunciado pelo MP por fraudar a fiscalização tributária ao omitir receitas relativas a saídas de mercadorias. Segundo a assessoria de Lira, o presidente da Câmara “não foi responsável pela organização do evento”.

“Marcelo Perboni, na condição de beneficiário dos lucros da atividade empresarial, apropriou-se de créditos de ICMS vedados pelo ordenamento jurídico, inserindo-os indevidamente em documentos e livros fiscais”, apontou o Ministério Público.

Réu em ação penal, Perboni recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF) para trancar o caso, mas a liminar foi negada. O advogado Marcelo Bessa, que defende o comerciante, disse ao Estadão que o crédito tributário já foi pago. “Estamos discutindo o débito, mas os valores já estão integralmente depositados, com juros e correção”. A ação, segundo Bessa, aguarda um desfecho na Justiça.

Amiga de Daniela Perboni, mulher do empresário, a deputada Celina Leão (Progressistas-DF) disse que pediu a casa para abrigar a festa por ser um espaço amplo e arejado. A propriedade numa “ponta de picolé” é o estilo de casa mais valorizada na capital federal por ter acesso ao Lago Paranoá.

Marcelo e Daniela Perboni foram anunciados como anfitriões pelos cantores da festa. Estão acostumados a celebrar em casa e promover festejos e recepções frequentadas por políticos, como o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB).

‘Cabra da peste’

Cerca de 300 pessoas estiveram no local e poucos convidados usavam máscaras, o que incluía ministros do governo de Jair Bolsonaro, fiador da eleição de Lira – que também estava sem a proteção.

Articulador político do Palácio do Planalto, o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, foi um dos presentes à festa. O “02” de Ramos na Segov, secretário executivo Jônathas Assunção, acompanhou o chefe. Como revelou o Estadão, o gabinete do ministro se tornou um QG da campanha de Lira na reta final, onde cargos e emendas eram negociados. Ramos tratou Lira como “cabra da peste” e deu tapinhas no ombro para reverenciá-lo pela vitória. O ministro Fabio Faria (Comunicações) e os secretários Fabio Wajngarten (Comunicações) e Jorge Seif (Pesca) completavam o time do governo na festa. O ex-ministro do Turismo, deputado Marcelo Álvaro Antônio (PSL-MG), curtia animado.

Deputados e políticos aliados, como Roberto Jefferson, condenado no mensalão e presidente do PTB, eram maioria. O grupo mais íntimo de Lira estava em peso: Ciro Nogueira (PP-PI), Ricardo Barros (PP-PR), André Fufuca (PP-MA), Hugo Motta (Republicanos-PB), João Carlos Bacelar (PL-BA), Marcelo Ramos (PL-AM), Guilherme Mussi (PP-SP), Ricardo Izar (PP-SP), Marcelo Aro (PP-MG), Claudio Cajado, Evair de Melo (PP-ES), Fred Costa (Patriota-MG), Pastor Sargento Isidório (Avante-BA) e os rebeldes no DEM Pedro Lupion (PR) e Luís Miranda (DF).

Nas conversas ao pé do ouvido, esses aliados avaliavam que Lira não seria subserviente a Bolsonaro. Um apoiador de Lira ponderou, no entanto, que ele começou mal ao dissolver o bloco da oposição como primeiro ato. Lira havia aceitado a formação do bloco adversário pois considerava a eleição ganha, e tomou a atitude depois de pregar o diálogo e decisões colegiadas. Foi aconselhado a rever e buscar composição.

Até mesmo quem não apoiou Lira compareceu. A deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) para dar um abraço no novo presidente. O deputado Julian Lemos (PSL-PB), outro “desiludido” com Bolsonaro, festejou a vitória governista. Figuras antes identificadas com a Operação Lava Jato, que investiga Lira, dançavam animadas, como o militante conservador Tomé Abduch, do movimento Nas Ruas. Bolsonaristas ostentavam camisas da campanha presidencial de 2018.

Malandragem

A bancada feminina foi representada por Bia Kicis (PSL-DF), Renata Abreu (Podemos-SP), Soraya Santos (PL-RJ) e Caroline de Toni (PSL-SC). A ex-deputada Cristiane Brasil, filha de Roberto Jefferson, cantou “Malandragem”, de Cássia Eller: “Eu só peço a Deus/ Um pouco de malandragem/ Pois sou criança/ E não conheço a verdade.”

Uma banda de música animava os presentes. A trilha passou por pop rock, axé music e muito sertanejo e forró. Um dos mais animados no microfone era o deputado Fausto Pinato (PP-SP), crítico contumaz da política externa bolsonarista e porta-voz das insatisfações chinesas no Congresso.

O buffet tinha opções de pratos quentes, entre eles massa com molho vermelho e paella. De sobremesa, uma variedade de tortas. Dois bares serviam coquetéis como caipirinha, gin tônica, drinks com frutas e vodca, uísque, chope artesanal e vinhos espumante, além dos tintos suave ou seco. A festa ocorreu num ambiente externo nos jardins de uma mansão na Península dos Ministros, a poucos metros da residência oficial da Câmara.

Imagens de bastidores das viagens da campanha de Lira eram exibidas num telão. No meio da festa, a música foi interrompida para um discurso. “A partir de amanhã, a vida é dura”, afirmou o novo chefe da Câmara, sendo abraçado e assediado por ao menos dez pessoas ao seu redor, contrariando todas as recomendações de autoridades de saúde para evitar a propagação do novo coronavírus.

Rafael Moraes Moura, Felipe Frazão e Dida Sampaio, de BRASÍLIA para o Estado de São Paulo, em 02.02.2021

Brasil registra 1.210 mortes por covid-19 em 24 horas

País identificou mais 54 mil casos da doença e total passa de 9,2 milhões. Número de mortes passa de 226 mil.

O Brasil registrou oficialmente 54.096 casos confirmados de covid-19 e 1.210 mortes ligadas à doença nesta terça-feira (02/02), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 9.283.418, enquanto os óbitos chegam a 226.309.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 8.077.967 pacientes haviam se recuperado até segunda-feira. 

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 107,7 no Brasil, a 23ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 26,3 milhões de casos, e da Índia, com 10,7 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 445 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 103 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e 2,2 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 02.02.2021

Uma nova era para Bolsonaro no Congresso?

Novos presidentes da Câmara e do Senado sinalizam que, por enquanto, devem segurar movimentação por impeachment. Mas união de Bolsonaro com Centrão pode ser curta, dependendo da voracidade do bloco e dos ventos da crise.

Jair Bolsonaro teve relação tumultuada com a Presidência da Câmara nos dois últimos anos. Vitória de Lira tem potencial de melhorar relação, mas também torna governo mais dependente do Centrão

Jair Bolsonaro obteve nesta segunda-feira (01/02) duas vitórias significativas na escolha dos novos presidentes da Câmara e do Senado, em pleitos considerados decisivos para o futuro do seu governo, ameaçado pela queda acentuada de aprovação nas últimas semanas e a gestão desastrosa da pandemia.

Na Câmara, o deputado governista Arthur Lira (PP-AL) venceu a disputa para a presidência da Casa, ao conquistar 302 votos. O resultado também significa uma derrota acachapante para o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ), articulador da candidatura de Luiz Felipe Baleia Rossi (MDB-SP), que terminou com apenas 145 votos. Mais cedo, o Planalto já havia visto um nome da sua preferência vencer com folga a disputa pela presidência do Senado: Rodrigo Pacheco (DEM-MG). 

Tanto Lira quanto Pacheco são encarados, pelo menos por enquanto, como contrários a um fim prematuro do governo por meio de um processo de impeachment, mesmo com um cenário de agravamento da crise econômica e sanitária no país, que foi exacerbada por posturas e medidas de Bolsonaro. 

Mais de 60 pedidos de impeachment contra Bolsonaro foram entregues à Câmara nos últimos 24 meses - 21 citam as ações catastróficas do governo na pandemia. E Lira e Pacheco, em diferentes graus, também são contra a instalação de uma CPI para investigar a conduta do governo durante a pandemia. Na Câmara, a saída de Maia ainda deve resultar num avanço sem tantas travas da pauta de costumes da agenda de extrema direita de Bolsonaro.

No entanto, esse alinhamento deve ter alto custo para o governo e não há garantias sobre sua validade.

Lira, o anti-Maia

Arthur Lira, o novo presidente da Câmara, é um membro notório do "Centrão" do Congresso, bloco informal que reúne políticos sem bandeiras ideológicas definidas e que se alinham com governos de diversas matizes de acordo com a ocasião, não tanto pelas pautas, mas pela defesa de interesses pessoais, seja com a indicação de cargos ou na busca por verbas. Na Câmara desde 2011, Lira integrou o grupo do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha - que hoje cumpre pena - e ganhou projeção no processo de impeachment de Dilma Rousseff em 2016. 

Assim como outros membros do PP, partido que colecionou escândalos nas últimas décadas e que tem a distinção de ter o maior número de investigados no Petrolão, Lira tem sua fatia de problemas com a Justiça. Ele é réu no Supremo por suspeita de integrar uma organização criminosa e é investigado por ter supostamente recebido propinas. Ainda chegou a ser alvo de uma ação movida por sua ex-mulher, que o acusou de violência doméstica.

O deputado Arthur Lira acumula problemas com a Justiça e se aproximou do bolsonarismo em 2020

Ao contrário de Maia e Baleia Rossi, Lira se aproximou ainda mais do Planalto nos últimos meses. No início de janeiro, Rossi parecia estar caminhando para vencer a disputa, mas a aproximação de Lira com o Planalto acabou rendendo frutos na forma de cargos no governo e liberação de vultosas emendas parlamentares - que já totalizaram R$ 3 bilhões - para aliados, provocando fissuras nos membros do Centrão que haviam se alinhando com o grupo de Maia.

Mesmo para os padrões do Congresso brasileiro, o uso de emendas em tal escala para cooptar deputados foi espantoso. Em pleitos anteriores, investidas tão diretas do Planalto na escolha do presidente da Câmara acabaram tendo efeito adverso, com a vitória de figuras hostis ao governo que se elegeram com discursos de "independência", como no caso de Eduardo Cunha, em 2015, e Severino Cavalcanti, dez anos antes.

Mas, no caso de Bolsonaro, a ofensiva acabou rendendo frutos. 

Um casamento sem garantias

Lira já demonstrou que não deve ter a mesma postura de Rodrigo Maia em barrar temas de interesse da agenda de extrema direita de Bolsonaro, como a pauta de costumes, que envolve a facilitação de acesso a armas de fogo e ofensivas contra direitos de minorias.

Para agitar sua base em meio à queda de popularidade, Bolsonaro já sinalizou que pretende retomar esses temas. Nos últimos dois anos, Maia freou muitas dessas  iniciativas.

"O presidente não pode ter posições pessoais”, afirmou Lira, em discurso antes do pleito, deixando claro que não pretende atuar como seu antecessor. E Maia não atuou só para frear a pauta de costumes, mas também para paralisar projetos controversos, como a autorização para mineração em terras indígenas.

No entanto, cientistas políticos apontam que, embora Lira seja mais simpático ao bolsonarismo do que Maia, não há garantias de que ele permanecerá leal ao presidente pelos dois próximos anos dado o histórico de volatilidade do Centrão dependendo da conjuntura política, como ocorreu na derrocada dos governos Fernando Collor e Dilma Rousseff. A natureza voraz do bloco por verbas e ministérios também tem potencial para provocar choques com a equipe econômica de Bolsonaro, que prega a austeridade. Lealdade não é uma palavra normalmente usada para definir a natureza do bloco.

 A própria ausência de um partido diretamente ligado a Bolsonaro também torna a relação com a Câmara mais frágil. Desde sua saída do PSL em 2019 e o fracasso na aprovação da Aliança pelo Brasil, Bolsonaro segue sem um partido, tornando mais difícil a formação de coalizões. Há apenas algumas poucas dezenas de deputados verdadeiramente bolsonaristas na Câmara.

Mesmo a saída de Maia não significa automaticamente que os temas da agenda ultraconservadora de Bolsonaro para os costumes vão ter garantia de aprovação. No início do governo, iniciativas de aglutinar as bancadas da "bala" e da "bíblia"  nesses temas acabaram fracassando e boa parte do que Bolsonaroa avançou na área foi por meio de decreto ou portarias.

O cientista político Antonio Lavareda, por sua vez, aponta que a aproximação de Bolsonaro com as presidências das duas Casas também pode significar a perda de uma ferramenta de mobilização da base popular de apoio do presidente. "Tenho dúvidas se estar associado ao comando do Congresso – além de maior tranquilidade quanto ao impeachment – ajudará a imagem de Bolsonaro em 2022. Afinal, ele não terá mais a justificativa de culpar o Congresso pelo que não terá feito", disse.

A articulação política do Planalto, embora tenha se mostrado eficaz nestas eleições, também costuma ser inábil quando se trata de promoção de reformas, como ocorreu no caso da Previdência, que acabou sendo aprovada mais pelo esforço de Maia.

O casamento de conveniência com Lira também afasta ainda mais Bolsonaro do discurso do combate à corrupção e da rejeição à "velha política", que foi tão prevalente em 2018, e que já estava desgastado pelas encrencas da família presidencial na Justiça e o início da aproximação com o Centrão na metade de 2020, em troca de cargos e emendas. Em 2018, ainda na época do discurso contra a "velha política", o general Augusto Heleno (hoje ministro do GSI) foi filmado num evento do PSL cantarolando  "Se gritar 'pega Centrão', não fica um, meu irmão". Hoje, tanto Bolsonaro quanto Heleno dependem do Centrão para sua sobrevivência política.

Pacheco, alinhamento condicional

Em contraste com a Câmara, a eleição para a presidência do Senado teve menos tensão. E o resultado igualmente agradou o Planalto - mas também partidos da oposição. O senador Rodrigo Pacheco foi eleito com 57 votos, contra 22 de Simone Tebet (MDB-MS), que acabou abandonada pelo próprio partido, em troca de cargos na Mesa Diretora do Senado. Pacheco também contou com o apoio decisivo de Davi Alcolumbre (DEM-AP), seu padrinho político e que demonstrou sintonia mais regular com o Planalto nos últimos dois anos, em contraste com o deputado Rodrigo Maia.

O senador Rodrigo Pacheco é alinhado com o governo em questões como impeachment e blindagem política, mas pautas econômicas podem provocar choques

Assim como Lira na Câmara e seu antecessor na chefia do Senado, Pacheco deve inciar seu mandato dando continuidade ao bom relacionamento com o Planalto, especialmente em temas que envolvem blindagem política. Há expectativa de que o senador atue para enfraquecer a CPI das Fake News, que tem membros e aliados do governo como alvo.

Ele também deve exercer influência para manter a blindagem ao senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) no Conselho de Ética. Embora não se posicione publicamente sobre CPIs, Pacheco, tal como Lira, é encarado como um adversário da instalação de comissões para investigar o governo, como a instalação de uma CPI da Saúde para investigar a conduta do Planalto e do Ministério da Saúde na pandemia.

Por outro lado, Pacheco já demonstrou menos alinhamento em outros temas, como a pauta de costumes promovida pelo governo de extrema direita de Bolsonaro, que deve ter uma abertura maior na Câmara e menos força no Senado.

Em janeiro, Pacheco disse que as prioridades da Casa devem ser a saúde pública, desenvolvimento social e crescimento econômico do país, e não a pauta de costumes. Nos últimos dois anos, Pacheco também esteve em lados opostos ao Planalto em outros temas. O senador já defendeu o projeto de combate às fake news - amplamente rejeitado pelos bolsonaristas - e também a possibilidade de estrangeiros comprarem terras no Brasil.

O alinhamento de Pacheco - e Lira - também deve ser testado com a discussão da recriação do auxílio-emergencial, um assunto que causa desconforto na equipe econômica do governo. A candidatura do senador inclusive recebeu apoio do PT e de outros partidos de esquerda e centro-esquerda por causa da expectativa de que ele pressione por uma nova concessão da ajuda. 

Em seu discurso após a vitória, o senador afirmou que, "a despeito do teto de gastos",  é preciso reconhecer o "estado de necessidade" das camadas da população mais atingidas pelos efeitos econômicos da pandemia. O novo presidente do Senado também evitou se comprometer com a agenda de privatizações do Ministério da Economia.

Deutsche Welle Brasil, em 02.02.2021

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Rodrigo Pacheco é eleito presidente do Senado

Senador do DEM recebeu apoio do então presidente da Casa, Davi Alcolumbre, e de Jair Bolsonaro. Ele derrotou Simone Tebet, do MDB, na primeira rodada de votação.

Rodrigo Pacheco foi eleito na primeira rodada de votação

O senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) foi eleito nesta segunda-feira (01/02) presidente do Senado. Ele substitui Davi Alcolumbre (DEM-AP), que comandou a Casa por dois anos.

Pacheco obteve 57 votos. Ele derrotou Simone Tebet (MDB-MS), que recebeu 21 votos. Os senadores Major Olimpio (PSL-SP), Lasier Martins (Pode-RS) e Jorge Kajuru (Cidadania-GO) retiraram suas candidaturas em apoio a Tebet.

Pacheco comandará a Casa por dois anos. Sua candidatura foi apoiada pelo presidente Jair Bolsonaro e por Alcolumbre. Favorito na disputa, ele foi eleito na primeira rodada. O senador recebeu ainda o apoio de dez bancadas: PSD, PP, PT, DEM, PDT, PROS, PL, Republicanos, Rede e PSC. Ele ainda recebeu votos de parlamentares do MDB, do PSB e de dissidentes do Podemos, que havia anunciado apoio a Tebet.

Advogado criminalista, Pacheco entrou para política em 2014, quando foi eleito deputado federal por Minas Gerais pelo MDB. Durante o mandato, chegou a presidir a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Em 2016, disputou a prefeitura de Belo Horizonte, mas não foi eleito. Em 2018, é então eleito senador por Minas Gerais pelo DEM. Nessa eleição, ele derrotou a ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

Entre as atribuições do presidente do Senado estão a definição da pauta de votações da Casa, o comando de sessões conjuntas do Congresso Nacional, o desempate de votações e a devolução de medidas provisórias editadas pelo governo federal que possam violar a Constituição, além de ser o terceiro na linha sucessória da Presidência da República, após vice-presidente e presidente da Câmara.

Deutsche Welle Brasil, em 01.02.2021

Brasil registra 595 mortes por covid-19 em 24 horas

País confirma ainda mais de 24,5 mil novos casos de coronavírus. Total de mortos passa de 225 mil, enquanto soma de infectados chega a 9,22 milhões.

O Brasil registrou oficialmente nesta segunda-feira (01/02) 595 mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) e do Ministério da Saúde.

Também foram registrados 24.591 novos casos confirmados da doença. Com isso, o total de infecções oficialmente identificadas no país subiu para 9.229.322, enquanto os óbitos chegaram a 225.099 desde o início da epidemia.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Ao todo, 8.027.042 pacientes se recuperaram da doença no país, segundo dados do Ministério da Saúde de domingo. O Conass não divulga número de recuperados.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes está em 107,1 no Brasil, a 23ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Andorra e Liechtenstein.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 26,2 milhões de casos, e da Índia, com 10,7 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, já que mais de 442 mil pessoas morreram em território americano.

Em todo o mundo, mais de 103,2 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus, e 2,2 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 01.02.2021

A ideologia bolsonarista - 2

Ela orienta as ações de seus militantes, que se comprazem em gritar histericamente: ‘Mito!’    

Dando prosseguimento ao artigo anterior (18/1), centrado no conjunto de ideias que estrutura o bolsonarismo, ressaltemos alguns outros aspectos para que tenhamos uma visão mais abrangente desse fenômeno. Por mais que alguns insistam, talvez com certa dose de razão, que essas “ideias” não sejam propriamente ideias dado o seu caráter tosco, são elas que orientam as ações de seus militantes, que se comprazem histericamente em gritar: “Mito!”.

Note-se, preliminarmente, como muito bem observou um leitor, que os aspectos por mim assinalados da ideologia bolsonarista não se restringem à extrema direita, mas são igualmente válidos para a extrema esquerda, configurando um tipo de autoritarismo ou totalitarismo cujas consequências são as mesmas na dominação da sociedade e no controle ou aniquilamento das liberdades. Eis por que autores como Hannah Arendt incluem na análise do totalitarismo tanto o nazismo quanto o comunismo. Se me detive mais no caso da extrema direita, é por ser ela a experiência concreta que o País está vivendo.

Subversão da democracia – Um aspecto importante desse fenômeno reside na subversão da democracia por meios democráticos, as eleições sendo usadas como instrumentos para corroer suas instituições e seus valores. Hitler conquista o poder por meios democráticos visando a destruir as próprias instituições republicanas. Chávez conquista “democraticamente” o poder, para eliminar progressivamente todas as instituições democráticas da Venezuela, hoje destruída e exaurida. O presidente Bolsonaro, por sua vez, está sempre testando os limites das instituições democráticas, erodindo seus valores e princípios, embora se diga o seu defensor. Quando convoca as Forças Armadas para defenderem a democracia, faz jogo duplo: o de defensor das liberdades e o de seu verdugo.

Militares – A convocação dos militares é elemento constitutivo de um discurso que busca criar condições para que eles, junto com as forças policiais, passem a responder a ele, e não à Constituição, com o intuito de estabelecer uma relação direta com eles, e não mais unicamente pela hierarquia militar. Há o menosprezo da representação. O presidente gasta boa parte do seu tempo em comemorações militares dos mais diferentes níveis, que não seriam, em condições normais, afeitas à posição de um presidente. Os comandantes militares seriam as pessoas que naturalmente deveriam presidir tais cerimônias. Uma vez que sempre procura comparecer a tais eventos, tem como objetivo chamar a si as pessoas homenageadas, estabelecendo uma relação direta com elas, independentemente de seus superiores hierárquicos.

Trata-se de um meio de também manter os comandantes sob controle, ao mostrar que pode deles prescindir. É um empreendimento difícil nas Forças Armadas, por serem elas hierárquicas e ordenadas, apesar de um suposto chamamento à tropa embutido em tal comportamento, embora o caso não seja o mesmo em algumas Polícias Militares, cuja cadeia de comando é fraca, além de pouco estruturada em torno de valores. Aí as chances do bolsonarismo germinar são maiores, o que explicaria a atual tentativa de uma reorganização das forças policiais, tirando o poder dos governadores e estabelecendo uma forma de coordenação nacional, à revelia das Forças Armadas.

Milícias – Se o bolsonarismo conseguiu com êxito criar uma milícia digital, não se pode dizer o mesmo da criação de um partido, cuja tarefa seria a de estruturar seus adeptos em grupos organizados, que responderiam a vozes de comando paramilitares. Nota-se uma desorientação do bolsonarismo nesse sentido, visto que, no afã da família Bolsonaro de tudo controlar, dividiu e fragmentou um partido eleitoralmente vitorioso, o PSL. Saindo vencedor das últimas eleições, foi vítima da tentativa bolsonarista de tudo dominar, nem aceitando o compartilhamento do poder. Sua orientação de extrema direita, sem uma estratégia correspondente, conseguiu minar a si mesma. O que teria sido um instrumento seu de poder, terminou sendo seu óbice, com as desorientações partidárias daí derivadas. Até hoje não sabe o presidente por qual partido se candidatar em 2022, seu maior, se não o único, objetivo.

Idiotas – O vídeo de ampla repercussão em que o presidente da República, numa tirada sua característica, totalmente imprópria para uma figura presidencial, manda a imprensa pôr uma lata de leite condensado “naquele lugar”, de eliminação fisiológica do corpo, com odor fétido, exibe em toda a sua “pureza” o desprezo pela liberdade de imprensa, sua profunda aversão à crítica e ao outro em geral. Mais surpreendente ainda, contudo, é que, ladeado pelo ministro das Relações Exteriores, a sua plateia, em delírio, grite: “Mito! Mito!, Mito!”. Enseja pensar por que um discurso tão tosco e grosseiro ainda encontra quem o acolha, pois quem assim o faz age como idiota, como se habitasse outro mundo. Talvez isso explique o comparecimento do chanceler, pois é como se ele estivesse numa terra estrangeira.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente pelo O Estado de São Paulo, edição de -1.02.2021.

Vacinação pode ser pontapé para conter ataques à liberdade

Além do coronavírus, precisamos vencer o vírus do autoritarismo, voltar a tomar as ruas. Leia aqui o artigo do analista político Paulo Gontijo publicado no Estadão hoje.

O início da vacinação é o primeiro passo para o País sair da pior crise enfrentada por esta geração. Em momentos de grandes dificuldades, nossa espécie anseia por grandes líderes apontando caminhos de superação. Infelizmente, no Brasil, nós nos deparamos hoje é com o gigantismo da estupidez guiando a desordem e provocando instabilidades.

Não há ação técnica coordenada entre União e Estados. Onde precisamos de um governo para preservar a vida dos brasileiros, há apenas um comitê eleitoral. No lugar de distribuir vacinas, distribuem-se palavrões em churrascarias e cenas grotescas lambuzadas de leite condensado. O preço é alto e permanecerá sendo pago em largas prestações.

Após meses de negacionismo, Jair Bolsonaro ensaiou falar o óbvio: a vacina é essencial para a retomada econômica. Mas antes que sentíssemos qualquer alívio, o presidente retomou a sua narrativa insana, defendendo a ideia de que basta ao povo coragem para voltar à normalidade e enfrentar o vírus que já vitimou mais de 220 mil brasileiros.

Há, porém, algo pior do que seus discursos irresponsáveis: o boicote à vacinação. Fruto de uma combinação entre aloprados ideológicos, generais incompetentes e a pura omissão, seja na diplomacia ou na falta de implantação de um sistema de gestão do programa de imunização. E assim seguimos patinando, com consequências graves para a vida de todos os brasileiros e também para a economia.

As piores repercussões humanitárias ainda estão a caminho. Há risco de reedições da catástrofe de Manaus. Segundo projeções do economista Daniel Duque, com o fim do auxílio emergencial e a segunda onda da doença a extrema pobreza pode atingir até 20 milhões de brasileiros e a pobreza, que antes da pandemia era a condição de menos de 25% da população, pode chegar a mais de 30%. Quando aplicadas no ano passado, políticas de transferência de renda foram consenso. Agora voltam ao centro das atenções. Interrompido sem uma transição minimamente estruturada, o auxílio emergencial acabou significando um custo fiscal muito maior em razão da desorganização, da falta de planejamento e do caos político do governo Bolsonaro.

Criar uma ampla rede de proteção com transferências diretas para os mais pobres e vulneráveis é uma política herdeira do pensamento de liberais como Thomas Paine, Stuart Mill, Friedrich Hayek e Milton Friedman. Indiscutível do ponto de vista social, essa necessidade ilumina um problema crônico e estrutural do Estado brasileiro: apesar de consumir 40% da riqueza nacional todos os anos com um orçamento trilionário, nosso poder público, engessado em despesas obrigatórias, não foi capaz de construir uma proteção minimamente robusta para os mais vulneráveis. Mudar essa realidade deveria ser o centro das preocupações políticas.

Neste momento, cabe às vozes liberais o cuidado com os mais frágeis no presente, sem lhes sacrificar o futuro. Nosso esforço de guerra contra a covid-19 não pode perder de vista o pós-guerra. A reconstrução da economia e do mundo que herdaremos será mais ágil, ampla e inclusiva na medida em que tivermos a capacidade de implementar políticas públicas que sejam fruto da urgência, mas não se contaminem pelo desespero. Não apenas é possível, como necessário, aliar sensibilidade social à responsabilidade fiscal, a reformas que aumentem a eficiência do Estado brasileiro, à proposta da Lei de Responsabilidade Social – elaborada pelo Centro de Debate de Políticas Públicas após debate surgido no movimento Livres –, que remaneja programas sociais já existentes em busca de mais efetividade.

Em direção oposta a esse esforço, porém, o que assistimos é a proposições para ampliar poderes de forma abusiva, diminuir a transparência ou simplesmente promover líderes do Executivo. São exemplos o alargamento de prazos das medidas provisórias e da Lei de Acesso à Informação, a injustificável menção a decreto de estado de defesa pelo procurador-geral da República e a ameaça aberta de insurreição antidemocrática em 2022 pelo próprio presidente, inspirado na invasão dos trumpistas ao Capitólio. Com isso, antes de avançar, é preciso assegurar que não vamos retroceder.

O alerta liberal contra excessos do poder estatal está mais pertinente do que nunca. Não à toa, nós, do Livres, ingressamos com ação civil pública para convocar Jair Bolsonaro a apresentar em juízo as provas que ele reiteradamente alega possuir sobre a suposta fraude eleitoral em 2018. Não há espaço para omissão. A credibilidade do sistema eleitoral é pilar da legitimidade da democracia liberal. Utilizar o prestígio da Presidência da República para minar as bases da democracia é um atentado à Constituição. Em meio a uma pandemia, faltam até palavras para classificar. Além do coronavírus, precisamos vencer o vírus do autoritarismo. Em ambos os casos, a vacina será o passaporte para que possamos voltar a sair de nossa casa, tomar as ruas e desfrutar, juntos, o prazer da liberdade. E, sobretudo, encarar a responsabilidade de defendê-la.

Paulo Gontijo, o auto deste artigo, é analista político, especialista pela Universidade de Georgetown (Washington, DC) e Diretor Executivo do Movimento Liberal Livres. Publicado originalmente pelo O Estado de São Paulo, edição de 01.02.2021.



A tempestade perfeita

A combinação mortal de nova cepa do vírus, um presidente irresponsável e cidadãos descuidados.

O Brasil se encontra em um ponto muito perigoso da trajetória da pandemia de covid-19, talvez o mais perigoso desde julho do ano passado. Está em formação uma tempestade perfeita que poderá levar o País a experimentar um dramático aumento do número de casos e mortes em decorrência da doença nos próximos meses.

Não se pretende aqui alarmar a população, já angustiada o bastante, mas sim exortar as chamadas autoridades, em especial do governo federal, a cumprirem seu dever constitucional de zelar pela saúde pública e despertar a consciência cidadã para evitar o recrudescimento de uma tragédia que voltou a matar mais de 1,2 mil brasileiros por dia. É inaceitável conviver com isso. Achar normal um patamar de letalidade como esse é aceitar nossa morte como nação.

Três fatos concomitantes compõem a tal tempestade perfeita: 1) circula no País uma nova cepa do coronavírus que é potencialmente mais infecciosa, a variante P.1, identificada pela primeira vez em Manaus (AM); 2) a atuação tíbia do Ministério da Saúde, sob as ordens do presidente Jair Bolsonaro, sabotador de primeira hora de todos os esforços para frear o avanço da doença no Brasil; 3) a irresponsabilidade de muitos cidadãos, que a cada dia parecem mais convencidos de que, se a pandemia não acabou, também já passou o tempo das medidas restritivas e é hora de “voltar a viver a vida”.

Cientistas do Centro Brasil-Reino Unido de Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (Cadde), que conta com pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), publicaram um estudo no dia 16 passado que revela que a variante P.1 do novo coronavírus tem maior potencial de transmissão.

No dia 27, outro grupo de pesquisadores, oriundos da Universidade de Oxford, do King’s College de Londres, da Universidade Harvard e do Instituto de Medicina Tropical da USP, publicou um artigo apontando a variante P.1 como uma das causas mais prováveis do vertiginoso aumento de casos de covid-19 na capital amazonense, o que contribuiu para levar o sistema de saúde da cidade ao colapso.

A precariedade da testagem e rastreamento de casos no Brasil impede a identificação de outros casos da variante P.1 no País. Sabe-se que apenas em São Paulo, Estado com a melhor infraestrutura para diagnóstico, houve ao menos três casos. Não é improvável que a nova cepa já esteja em circulação em outros Estados.

Em entrevista à TV Cultura, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta alertou que o País corre um sério risco de ter uma “megaepidemia” de covid-19 nos próximos dois meses por conta da circulação da variante P.1, que já está presente em 90% dos casos da doença em Manaus. “O mundo inteiro está fechando os voos para o Brasil e o Brasil está não só aberto normalmente, como está retirando pacientes de Manaus e mandando para Goiás, para a Bahia, mandando para outros lugares sem os bloqueios de biossegurança”, disse Mandetta.

Enquanto isso, aprisionado pelas grades de seus interesses particulares, o presidente Jair Bolsonaro segue imperturbável diante das aflições dos brasileiros. Na última edição de sua live semanal, Bolsonaro recomendou que a sociedade precisa “aprender a conviver com a covid-19”. “Eu lamento as mortes, antes que falem que eu sou insensível”, disse, “mas temos que conviver com esse problema.” Até a quinta-feira passada, quando a famigerada live foi ao ar, o “problema” já tinha causado a morte de 221.676 brasileiros. O que se pode esperar de um governo encabeçado por alguém com esta índole?

É justamente diante da incúria e da brutal insensibilidade de agentes do Estado – muitos dos quais ainda haverão de responder pelos crimes que estão cometendo contra a saúde pública – que deve prevalecer a responsabilidade individual dos cidadãos. Aproxima-se o carnaval e teme-se pela falta de cuidado de muitas pessoas dispostas a ignorar as medidas de prevenção, o que já tem ocorrido em boa medida.

Jair Bolsonaro já basta como embaixador da morte.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 01 de fevereiro de 2021 | 

domingo, 31 de janeiro de 2021

Caminhoneiros confirmam greve e alegam situação pior que a de 2018

Os caminhoneiros planejam uma nova paralisação por tempo indeterminado, começando a partir desta segunda-feira (1). A categoria reivindica melhores condições de trabalho, protesta contra o aumento do preço do combustível, o marco regulatório do transporte marítimo (BR do Mar) e cobra direito a aposentadoria especial, entre outras pautas.

A decisão de promover a greve foi tomada no dia 15 de dezembro do ano passado, em assembleia geral extraordinária do Conselho Nacional do Transporte Rodoviário de Cargas (CNTRC). O conselho reúne 40 mil caminhoneiros em São Paulo e tem afiliados em outros estados. Mas, como são várias as entidades que representam a categoria, ainda não se sabe que tamanho terá a mobilização.

Em 2018, no governo do ex-presidente Michel Temer, o grupo realizou uma paralisação que durou dez dias, afetando o sistema de distribuição em todo o país. Dessa vez, segundo Plínio Dias, presidente do CNTRC, a situação é "pior" do que a que levou à mobilização naquele ano eleitoral. A categoria apoiou em peso, na ocasião, a candidatura de Jair Bolsonaro.

Na semana passada Bolsonaro fez um apelo aos motoristas para que adiassem a greve. Segundo ele, o governo estuda alternativas para reduzir o PIS/Cofins e, por consequência, o preço do diesel. Bolsonaro ressaltou que a saída, no entanto, não será fácil.

Plínio Dias estima que até 80% dos caminhoneiros poderão aderir à mobilização, que também recebe o apoio da Federação Nacional dos Petroleiros (FNP).

"As nossas pautas, que a gente trabalhou em 2018, a gente ganhou e não levou. O que funciona é só o eixo erguido do pedágio, pra não pagar. Todas as reivindicações de 2018 não vingaram, só uma, que é a do eixo erguido", explicou.

Segundo Plínio, a orientação é que as pistas não sejam totalmente interditadas e que ônibus, caminhões com insumos hospitalares e os com carga viva tenham livre passagem. Ele afirma ainda que a duração da mobilização depende de um acordo entre os agentes políticos.

"Se os caminhoneiros tivessem sido atendidos antes de segunda-feira, não haveria paralisação. (...) É prazo indeterminado até o governo chamar, o senhor presidente Bolsonaro, chamar o conselho e também juntamente com a categoria, para a gente fazer uma reunião aberta, para decidir o que vai acontecer com a nossa pauta. Da maneira que está, ninguém vai trabalhar, não", afirmou.

Entre as pautas, está o posicionamento contra o projeto de Lei da BR do Mar, que, segundo, a categoria, afeta diretamente políticas públicas fundamentais conquistadas e pleiteadas ao setor de transporte autônomo rodoviário de cargas, em detrimento de empresas estrangeiras. Plínio defende que seja analisado o impacto social da pauta para que ela seja reconstruída de uma maneira que não prejudique os caminhoneiros.

"É um projeto desastroso, que o ministro Tarcísio falou que iria tirar a urgência desse projeto. Afirmando que fariam as audiência públicas. Como ele não cumpriu com a palavra, não retirou a urgência. Nossa categoria está muito preocupada porque se isso daí for passar no Senado e for sancionado pelo presidente, essas empresas estrangeiras vão só usar as cotas próprias. Eles querem baratear 40% e ainda querem retirar as cargas das viagens longas dos caminhoneiros. Nesse projeto, não foram feitas audiências públicas para ver o impacto social. Esse projeto não fala do lado humano dos caminhoneiros que vivem nos portos", apontou.

Plínio sinalizou ainda que a diminuição de caminhoneiros em rotas longas pode vir a impactar famílias que vivem nas estradas e tiram suas rendas da manutenção dos caminhões.

Por Larissa Calixto para o UOL, em 31 jan, 2021 

Defenda a democracia, recupere a virtude

Para lutar contra as derivas autoritárias que nos ameaçam, devemos atuar em duas frentes: nas instituições, reforçando o respeito à Constituição; na cidadania, reduzindo a desigualdade injusta.

Ninguém desconhece que estamos inseridos numa crise global da democracia e que é mais necessário do que nunca defendê-la dos seus inimigos. As imagens chocantes do ataque insano ao Capitólio , o coração democrático do primeiro poder, e as repetidas tentativas de Donald Trump de permanecer no poder a todo custo nos levam a momentos passados ​​que acreditávamos estarem enterrados e, acima de tudo, possíveis repetições de momentos futuros que lançam mais incertezas, se possível, ao nosso horizonte.

Não é necessário atravessar o Atlântico para verificar esta realidade, uma vez que já a temos na casa comum que é a Europa. A Polónia ou a Hungria representam um grande desafio para a democracia do velho continente porque os seus desvios autoritários afectam não só os seus cidadãos, mas também toda a cidadania da União Europeia, uma vez que estes países participam na tomada de decisões que, a partir do nível supranacional, eles acabam sendo aplicados aos demais estados.

A singularidade desta crise atual em nossas democracias, que a diferencia das anteriores, é que os impulsos que tendem a destruir sua arquitetura não vêm de fora, de elementos exógenos, mas de dentro dos próprios processos representativos. É assim que Steven Levitsky e Daniel Ziblatt viram em seu livro How Democracies Die,onde esclarecem que antes morriam por golpes ou revoluções e que agora estão morrendo nos resultados das urnas. Podemos gostar ou não de Trump, Orbán, Putin, Kaczynski (hoje Duda), Salvini ou Bolsonaro, mas eles foram eleitos por seus cidadãos e, em alguns casos, com maioria esmagadora. Têm pretensões antidemocráticas e minam o Estado de Direito com as suas políticas, de forma anunciada e manifesta? Claro que sim, mas mesmo assim são votados, e às vezes com plena consciência desta afirmação e com orgulho de supostamente ir contra o sistema estabelecido. Por isso, acreditamos que, se realmente queremos proteger os paradigmas liberal-representativo e social-democrata que até agora presidiram nossos sistemas políticos,

Em primeiro lugar, de cima para baixo (no quadro jurídico e institucional), precisamos reforçar a própria ideia da constituição como um quadro no qual todos nos encaixamos. Ao acusar sistematicamente as medidas e políticas do oponente de serem inconstitucionais, os políticos prostituem o texto fundamental, reivindicando-o como seu e exclusivo à maneira das catastróficas constituições partidárias do século XIX espanhol. Devemos também fortalecer urgentemente as instituições do Estado de Direito e a função de limitação de poder que devem desempenhar. A esclerotização a que as partes condenaram o funcionamento de órgãos como o Tribunal Constitucional e o Tribunal de Contas e, nomeadamente, o Conselho Geral do Poder Judiciário ou RTVE, com as distribuições profanas de quotas e a cooptação de seus cargos principais, deve dar lugar a uma maior lealdade da classe política para o mesmo fim para o qual foram concebidos.

Um grande desafio não nos fica oculto a este respeito: os responsáveis ​​pelas patologias descritas são sobretudo as próprias partes, por isso não podemos ter muitas ilusões. Não é muito previsível que o remédio para uma situação surja da pessoa que a causou e se beneficia dela. Sobretudo quando, como escreveu Tomás de la Quadra nesta mesma tribuna , em Espanha já houve muitas “primeiras vezes” em que se cruzaram as linhas vermelhas da convivência democrática, sem - acrescentamos - parecer haver arrependimento ou mesmo reprovar o cidadão ou a mídia.

Em segundo lugar, e de baixo para cima (ou seja, no próprio substrato da democracia, na cidadania), é necessário reconstruir o mais rápido possível os laços de co-pertencimento que dão sentido à comunidade política. Aqui, o desafio é duplo, uma vez que existem dois problemas principais que encontramos. Em primeiro lugar, o abandono da maioria dos mecanismos redistributivos do Estado social tem apoiado, e continua a fazê-lo, um aumento da desigualdade que aprofunda a insegurança.e incerteza em camadas cada vez maiores da população. Há muito se sabe que o aumento das desigualdades gera exclusão e fratura social, e é um terreno fértil, embora não único, de descontentamento e populismo autoritário. Por isso, é imprescindível recuperar o potencial interventor do Estado no combate às causas da desigualdade entendida como injustiça, o que neste momento passa necessariamente pelo reforço dos espaços de integração política e de regulação supranacional, como a União Europeia, que devem ser capazes de travar as estratégias de dumping social propostas pelo capital privado transnacional.

O outro desafio “de baixo” consiste em reconstruir as velhas demos, hoje fragmentadas por um individualismo compulsivo que nos impede de levantar atribuições simbólicas comuns e a identificação majoritária com um projeto conjunto. Um individualismo que atinge limites insuspeitados pela atual tirania da hiperconectividade das novas tecnologias, cujo uso indevido promove as esferas da autorreferencialidade, da reafirmação dos próprios preconceitos e da quase total ausência de concentração, calma e espírito crítico. Isso não afeta apenas a qualidade da educação dos futuros cidadãos, mas também, e como Sherry Turkle viu em seu livro In Defense of Conversation, aos antigos processos e estruturas de empatia. A incapacidade de muitas pessoas hoje de se colocarem na situação e na perspectiva de quem não pensa como eles é sintomática, diz o autor, de uma tecnologização das relações menos sociais e mais instáveis ​​a cada dia. Isso leva ao pacto político e à transação, que deveria ser normal em uma democracia, são freqüentemente vistos como uma traição ou um compromisso, ao invés de um benefício para os negócios públicos. Diante do amálgama atual de indivíduos líquidos, seguindo o adjetivo preciso de Bauman, precisamos formar cidadãos socialmente engajados, politicamente ativos e decididamente bem informados. E para isso também temos que desenterrar a antiga virtude do republicanismo, a de Cícero, Vico ou Hannah Arendt,

Apesar de tudo, face às crescentes decepções dos dirigentes ocidentais, face ao individualismo obsceno e face à instantaneidade tecnológica que impede a empatia e encoraja a rejeição hiperbólica, insistamos no óbvio: vamos recuperar o compromisso com o público e o valor da palavra, recuperemos a essência e o valor da democracia. Não fazer, ou não tentar, significaria, como Juan Luis Requejo escreveu sombriamente em A Agonia da Democracia, levando-o ao fim de sua história.

Gabriel Moreno González e Miguel Beltrán de Felipe, autores deste artigo, são professores de Direito das Universidades de Extremadura e Castilla-La Mancha, respectivamente. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 01.02.2021.

Palácio e picadeiro, incontinências de Bolsonaro

Se o líder pensa com os intestinos e não domina ódios pessoais, perde acatamento político. Leia aqui o artigo de Roberto Romano publicado no Estadão hoje.

Das cenas grotescas protagonizadas pelo presidente Jair Bolsonaro, a que foi exibida no último dia 27 de janeiro é das mais repulsivas. Cercado por tietes, ele exibiu todo o ódio à imprensa. A causa do destempero encontra-se na denúncia sobre os estranhos gastos do Executivo federal com alimentos. Um estadista responderia com números e documentos. Mas, ao proferir, sorrindo, vocábulos pornográficos, o governante recebeu ovações de arruaceiros e chaleiras. Tal vitupério exige processo judicial por indecente uso do cargo. Frases que no pior bordel são evitadas, nos lábios de um presidente causam asco.

O “mito” não entenderá a citação abaixo, pois sua força cognitiva é pequena. Mas entre ministros, políticos que a ele se aliam e antigos apoiadores talvez exista algum saber. A eles me dirijo. Ao discutir a governabilidade, diz Spinoza: “A república não pode fazer com que os homens (...) respeitem o que gera riso ou náusea. (...) Para garantir o poder é preciso guardar as causas do medo e do respeito, caso oposto não há mais um Estado. É impossível para os que operam o mando político (...) bancar o palhaço, violar ou desprezar abertamente as leis por eles mesmos estabelecidas, pois assim eles perdem a majestade e mudam o medo em indignação e o estado civil em estado de guerra” (Tratado Político). Tais enunciados vêm de Maquiavel, pensador das práticas que permitem manter o poderio civil.

Repito: o presidente nada compreende de semelhantes teses. Mas quem negou sua utilidade perdeu cargos, para não mencionar a cabeça. Assim foi com Carlos I da Inglaterra e Luís XVI na França. Sempre chega a vez de quem imagina a si mesmo como impune e infenso às leis.

O decoro na fala e na postura corporal integra toda autoridade política, jurídica, religiosa, militar. Menciono outro escrito que certamente não será compreendido pelo sr. Jair Bolsonaro e seus marombeiros. Trata-se de Hannah Arendt: “Se for preciso verdadeiramente definir a autoridade, deve-se fazê-lo opondo-a ao mesmo tempo ao constrangimento pela força e à persuasão por argumentos”. No setor público ou privado cada um reconhece a superior hierarquia de quem ostenta autoridade. Não é pelo vezo de prender ou censurar, perseguir ou caluniar aos berros os oponentes que alguém consegue respeito público.

Dito de outro modo: se você precisa gritar para que lhe obedeçam, sua autoridade não existe. Inteligência, decoro, respeito à hierarquia, autoridade: um estadista pode receber da vida doses desiguais desses elementos. Ele compensa a fraqueza de um com a força de outro. Mas o dirigente que enxovalha o seu cargo não tem autoridade, só lhe cabe o título atribuído por Spinoza: palhaço.

Todo clown possui dupla face: a risível e a trágica. A primeira é exibida a cada novo dia pelo sr. Jair Bolsonaro. A trágica surge em decisões imprudentes e impudentes durante a pandemia. Tantas sandices comete o “mito” – e aí vai um alerta aos militares responsáveis pela força física estatal – que podemos temer: a indignação diante do descalabro pode “mudar o estado civil em estado de guerra”.

Aliás, são hábitos do líder a mão armada e o incentivo aos instrumentos da morte que impulsionam fraturas civis. Junto vem o boicote pérfido a vacinas como a Coronavac – esperanças de vida – por mesquinhos alvos políticos. A teoria infame de Carl Schmitt é praticada por ele: a política como forma de gerar o inimigo. E assim são corroídos os elos que garantem a união interna do Estado.

Recordo o dito usado por João de Salisbury (Policraticus) sobre governantes desprovidos de saber. Rex illiteratus quasi asinus coronatus est (um rei iletrado é quase um asno coroado). Para governar urge mover conceitos políticos, militares, filosóficos, jurídicos e outros. A edificação do Estado moderno se norteia pelo preparo do governante. Erasmo publicou um tratado sobre o tema, Institutio Principis Christiani. Ele cita Salisbury: “Liberdade real e virtude só podem ser obtidas onde existe a liberdade de palavra. O bom príncipe do bom Estado deve aceitar pacientemente as palavras livres, quaisquer que elas sejam”. Os turpilóquios de Bolsonaro contra a imprensa ameaçam o verbo independente. Erasmo adverte contra os aduladores. Na educação do príncipe o cavalo ensina a governar, pois não aceita violência e recusa imperícia ou lisonja. O sáfaro que ignora tais peculiaridades equinas vai ao chão. Aduladores, como os do espetáculo obsceno indicado no início deste artigo, lambem botas do poderoso ocasional. Se ele perde força, as línguas de aluguel procuram outra fonte de poder.

Gabriel Naudé, autor das Considerações Políticas Sobre os Golpes de Estado (1640), louva o saber do governante e recorda o dito de Luís XI: “Quem não sabe dissimular não sabe governar”. Se o líder pensa com os intestinos, em vez do cérebro, e não domina ódios pessoais, perde acatamento político.

Os destemperos de Jair Bolsonaro evidenciam carência de autoridade, decoro, saber. Ele quer os poderes do Legislativo e do Judiciário. O lugar que lhe cabe, no entanto, não é no palácio, mas na arena ou picadeiro.

Roberto Romano é Professor na UNICAMP e autor de "Razões de Estado e Outros Estados da Razão" (Editora Perspectiva). Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 31.01.2021.

Comunicar a verdade

É necessário sair da presunção cômoda do ‘já sabido’, diz o papa Francisco.

Na mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, o papa Francisco apresentou algumas reflexões sobre a “comunicação humana e autêntica”, que podem ser úteis para os dias de hoje. Ante a abundância de desinformação, preconceitos e simplismos, observa-se uma grande demanda por informação confiável, baseada em uma apuração isenta dos fatos.

De alguma forma, pode-se dizer que os tempos atuais redescobriram a importância da verdade – desse conhecimento que, indo além do que seria mera versão de um acontecimento, expressa o mais possível a realidade tal como ela é, com suas complexidades, matizes e contradições. Nessa empreitada pela verdade, não há atalhos ou fórmulas prontas. “Para poder contar a verdade da vida que se faz história, é necessário sair da presunção cômoda do ‘já sabido’ e mover-se, ir ver, estar com as pessoas, ouvi-las, recolher as sugestões da realidade, que nunca deixará de nos surpreender em algum dos seus aspectos”, diz o papa Francisco.

A mensagem papal frisa a relevância, para uma informação confiável, do conhecimento pessoal. “Na comunicação, nada pode jamais substituir, de todo, o ver pessoalmente. Algumas coisas só se podem aprender experimentando-as”, diz Francisco, alertando que isso se aplica a todas as dimensões comunicativas da vida humana.

O papa Francisco diz que esse “ir e ver” os acontecimentos de perto é a sua “sugestão para toda a expressão comunicativa que queira ser transparente e honesta: tanto na redação de um jornal como no mundo da web, tanto na pregação comum da igreja como na comunicação política ou social”. Essa sugestão do papa, na verdade, uma recomendação, é atualíssima perante tantas falsas notícias, produzidas entre quatro paredes com o objetivo de confundir e enganar.

Nessa busca por conhecer a verdade, o papa Francisco menciona o papel do jornalismo e dos profissionais da comunicação. “Temos de agradecer a coragem e determinação de tantos profissionais, se hoje conhecemos, por exemplo, a difícil condição das minorias perseguidas em várias partes do mundo, se muitos abusos e injustiças contra os pobres e contra a criação foram denunciados, se muitas guerras esquecidas foram noticiadas”, diz o papa.

“Seria uma perda não só para a informação, mas também para toda a sociedade e para a democracia, se faltassem estas vozes (dos profissionais da comunicação): um empobrecimento para a nossa humanidade”, diz Francisco. É interessante que, nos dias de hoje, ao mesmo tempo que se verifica uma demanda por verdade e informação confiável, seja necessário lembrar a importância do jornalismo.

Em alguns ambientes, tornou-se corriqueiro desautorizar a atividade da imprensa, como se ela dificultasse o acesso à verdade. O papa Francisco afirma o exato oposto. Sem o jornalismo, seria impossível conhecer muitas realidades que alguns desejam esconder.

Ao falar das novas tecnologias, Francisco lembra que as muitas oportunidades de interação geram também responsabilidade. Em concreto, menciona o cuidado que se deve ter ao compartilhar notícias e informações. “Todos somos responsáveis pela comunicação que fazemos, pelas informações que damos, pelo controle que podemos conjuntamente exercer sobre as notícias falsas, desmascarando-as. Todos estamos chamados a ser testemunhas da verdade: a ir, ver e partilhar”, diz o papa.

No fim da mensagem, Francisco cita umas palavras do personagem Bassânio, da peça O Mercador de Veneza, de William Shakespeare: “Graciano fala sempre uma infinidade de nadas, como ninguém em Veneza. Suas ideias razoáveis são como dois grãos de trigo perdidos em dois alqueires de palha: gastais um dia inteiro para encontrá-los; mas, uma vez achados, não compensam o trabalho”. Diz Francisco: “Pensemos na quantidade de eloquência vazia que abunda no nosso tempo, em todas as esferas da vida pública”.

Ante a abundância de mensagens e informações, é indispensável diferenciar o que é relevante e o que é confiável. Com o rigor e a independência do seu trabalho, o jornalismo tem muito a contribuir nessa tarefa.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de SãoPaulo, em31 de janeiro de 2021

O bê-á-bá do chavismo

Jair Bolsonaro já fez rasgados elogios ao ditador Hugo Chávez e do defunto caudilho venezuelano pegou vários cacoetes.
 
      



Os fanáticos camisas pardas bolsonaristas costumam dizer que “Bolsonaro sempre tem razão”, não por acaso uma das divisas do fascismo italiano. Mas a inspiração do movimento extremista liderado pelo presidente Jair Bolsonaro está bem mais próxima no tempo e no espaço: é o chavismo.

Os bolsonaristas podem não querer se lembrar, mas Bolsonaro já fez rasgados elogios ao ditador venezuelano Hugo Chávez, a quem hoje trata como demônio. Em entrevista ao Estado, em 1999, Bolsonaro disse que Chávez era uma “esperança para a América Latina” e que “gostaria muito que sua filosofia chegasse ao Brasil”.

Do defunto caudilho venezuelano, de fato, Bolsonaro pegou vários cacoetes: o profundo ódio pela imprensa livre, o desprezo pela democracia representativa, a militarização do governo, o apreço pelas teorias da conspiração e a mendacidade sistemática como política de Estado.

A afinidade é tanta que, enquanto Bolsonaro receita a inócua cloroquina como elixir mágico contra a covid-19, o atual tirano chavista, Nicolás Maduro, anunciou a fabricação de um certo “carvativir”, suposto antiviral que, em suas palavras, são “gotinhas milagrosas” que “neutralizam 100% o coronavírus”.

Nada disso, é claro, faz do Brasil sob Bolsonaro automaticamente um congênere da Venezuela chavista, mas há sinais evidentes de que o presidente está estudando com afinco a cartilha de Chávez – em especial os capítulos referentes ao modo como o chavismo tomou o Estado de assalto e subjugou o Legislativo e o Judiciário.

“Vamos, se Deus quiser, participar, influir na presidência da Câmara”, informou Bolsonaro, sem meias-palavras, na quarta-feira, dia 27, em referência à sucessão no comando da Câmara dos Deputados. Para o presidente, isso é necessário “para que possamos ter um relacionamento pacífico e produtivo para o nosso Brasil”.

Por “relacionamento pacífico e produtivo” o presidente certamente entende como subserviente e caudatário. Praticamente desde a posse de Bolsonaro, o Congresso tem sido uma barreira razoavelmente sólida para as pretensões autoritárias do presidente, graças ao perfil democrático e reformista de sua atual liderança.

Mas a eleição para a presidência da Câmara, na próxima segunda-feira, pode alterar drasticamente esse quadro em caso de vitória do deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), explicitamente apoiado por Bolsonaro. Fina flor do Centrão, com robusta ficha corrida e igualmente expressiva desenvoltura para angariar apoio em troca de favores, verbas e cargos, o parlamentar, se eleito, será a cabeça de ponte de Bolsonaro para conquistar o Congresso.

Se a cidadela da Câmara cair, o bolsonarismo terá removido um obstáculo crucial para avançar na tomada institucional do Estado, tal como fez o chavismo. Outros já ficaram pelo caminho: a Procuradoria-Geral da República é comandada por um fiel servidor de Bolsonaro e o bolsonarismo se espraia entre policiais e militares. É só o começo.

Profundo conhecedor do baixo estrato do Congresso, pois fez parte dele por três décadas, Bolsonaro sabe como ninguém o que faz brilhar os olhos de parlamentares que mercadejam o voto. Graças a essa habilidade e ao poder da caneta que preenche cargos e libera verbas, Bolsonaro conseguiu cooptar deputados de partidos que não estão em sua base, como DEM e PSDB.

Consta que alguns correligionários do próprio presidente do DEM, ACM Neto, decidiram votar no bolsonarista Arthur Lira porque este lhes prometeu manter apadrinhados em cargos na máquina federal. O fato de uma vitória de Arthur Lira representar enorme risco para a independência da Câmara, com consequências funestas para o País, não lhes pareceu relevante.

Cada um tem o lugar na História que merece: Bolsonaro já assegurou o dele, como o mais nocivo presidente do Brasil; já os parlamentares que elegerão o presidente da Câmara ainda podem escolher como querem ser lembrados, se como políticos responsáveis que honram o mandato que receberam ou como aqueles que, em troca de uma boquinha, entregaram o Congresso de bandeja ao Chávez de Eldorado.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 31 de janeiro de 2021 | 03h00

Brasil registra no domingo média móvel de 1.065 mortes por covid-19

É o 11º dia seguido em um patamar acima de mil mortes na média móvel; nas últimas 24 horas, são registrados 563 óbitos e 27.597 novos casos no País

A média móvel de mortes por covid-19 no Brasil, que registra as oscilações dos últimos sete dias e elimina distorções entre um número alto de meio de semana e baixo de fim de semana, ficou em 1.065 neste domingo, 31. É o 11º dia seguido em um patamar acima de mil mortes na média móvel.

 Nas últimas 24 horas, foram registrados 563 novos óbitos e 27.597 novos casos no País.

No total, o Brasil registra 224.534 mortos e 9.202.791 casos da doença. Os dados são do consórcio de veículos de imprensa formado por Estadão, G1, O Globo, Extra, Folha e UOL em parceria com 27 secretarias estaduais de Saúde, em balanço divulgado às 20h. Segundo os números do governo, 8.027.042 pessoas estão recuperadas. 

Consórcio dos veículos de imprensa

O balanço de óbitos e casos é resultado da parceria entre os seis meios de comunicação que passaram a trabalhar, desde o dia 8 de junho, de forma colaborativa para reunir as informações necessárias nos 26 Estados e no Distrito Federal. A iniciativa inédita é uma resposta à decisão do governo Bolsonaro de restringir o acesso a dados sobre a pandemia, mas foi mantida após os registros governamentais continuarem a ser divulgados.

Neste domingo, o Ministério da Saúde informou que foram registrados 27.756 novos casos e mais 559 mortes pela covid-19 nas últimas 24 horas. No total, segundo a pasta, são 9.204.731 pessoas infectadas e 224.504 óbitos. Os números são diferentes do compilado pelo consórcio de veículos de imprensa principalmente por causa do horário de coleta dos dados.

Paulo Favero, O Estado de S.Paulo, em 31 de janeiro de 2021 | 20h04